DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
DIREITO À HONRA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
QUESTÕES DE INTERESSE PÚBLICO
REENVIO
Sumário

(da responsabilidade do relator):
1 - O cumprimento do dever de fundamentação da sentença exige que o Tribunal pondere toda a matéria de facto, provenha ela da acusação, da defesa ou da prova produzida em audiência, como exige ainda que o Tribunal pondere todas as soluções jurídicas pertinentes.
2 - Não se impõe ao Tribunal que tome posição sobre todas as razões invocadas pelos sujeitos processuais, mas impõe-se-lhe uma apreciação explícita em relação aos argumentos expostos que se prefigurem como decisivos para o desfecho dos autos, à luz de todas as soluções plausíveis.
3 -  Menos que isso torna a sentença uma peça processual que decide o pleito, porém sem qualquer capacidade, sequer teórica, de persuasão, visto que adere a uma visão dos factos ou do direito ou de uns e de outro sem uma estruturação sólida.
4 - No caso concreto, face (i) ao teor do despacho de pronúncia e às matérias aí debatidas; (ii) aos factos nesse despacho considerados indiciados e imputados; (iii) à documentação junta pelo Arguido na fase de julgamento; (iv) ao teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que a própria sentença recorrida diz em dado passo ter sido «abundantemente invocado ao longo d[o] julgamento»; (v) ao conteúdo das declarações prestadas pelo Arguido no início da audiência, em que se sabe ter lido uma parte daquele acórdão, formulado a sua interpretação do mesmo e procurado contextualizar a sua atuação; (vi) e aos depoimentos provindos de todas as testemunhas indicadas pela Defesa, que a sentença não deixa de descrever (embora acabe por as desconsiderar totalmente, ao categorizá-las como «intervenções»); face a tudo isto, era incontornável que o Tribunal tivesse ponderado e debatido na sentença, em suma, se agiu ou não o Arguido no exercício legítimo da liberdade de expressão e, em caso negativo, porquê.
5 - As palavras alegadamente ofensivas têm que ser lidas e analisadas em si mesmas, decerto, mas esse é apenas o ponto de partida; não podem ser olhadas de forma atomística, isolada e estática, tendo antes que o ser também no seu contexto e na sua dinâmica, para que se lhe possa fixar o seu sentido exato, a sua envolvência, a lógica com que surgiram, o seu papel no mundo exterior, e a própria intenção com que foram usadas e percebidas no ambiente cultural em que se enquadram.
6 - Se o trágico «caso AA» releva de gestos de extrema violência motivada por ódio racial; se esses gestos encontram guarida numa certa ideologia; se o Assistente cultivava ativamente e em lugar de protagonismo essa ideologia e dela se não afastara e, para mais, se esteve presente e participou nos acontecimentos alargados da noite em que veio a morrer AA; e se o Arguido é pessoa que combate o ódio racial e nesse sentido é um defensor dos direitos humanos e em particular da não discriminação, com intervenção cívica significativa e até visibilidade mediática; se tudo isto é no fundo a lógica da Defesa que transparece da prova documental e testemunhal que apresentou, bem assim como das declarações prestadas pelo Arguido em audiência, então não pode o Tribunal a quo pura e simplesmente desconsiderar toda essa realidade como não relevando para a discussão da causa, sob a invocação de que o objeto da causa está circunscrito à frase que se tem por ofensiva.
7 - Toda aquela matéria, em si mesma, tem a maior relevância e não pode portanto o Tribunal a quo deixar de se pronunciar sobre ela, extraindo da prova produzida os factos correspondentes, que poderão até não estar, vários deles, diretamente ligados à publicação em apreço, mas que é passível de lhe servir de enquadramento e contextualização.
8 - Só depois de feita essa transposição para a matéria de facto provada é que poderá então encetar-se uma judiciosa apreciação dos termos do litígio, os quais passam inevitavelmente pela ponderação «direito à honra versus liberdade de expressão», ponderação essa de natureza jurídica para cujo conseguimento idóneo se requer um prévio enunciado completo da matéria de facto relevante à luz de todas as soluções plausíveis de Direito.
9 - O direito à honra e a liberdade de expressão, pelas suas próprias naturezas, têm uma especial vocação para se confrontarem na dinâmica geral da vida em sociedade, não podendo dizer-se logo em abstrato, isto é, no plano jurídico-conceptual, que um deles deva necessariamente ter prevalência sobre o outro.
10 - A respeito da liberdade de expressão ganha especial realce o desempenho de quem observa, acompanha e vigia a coisa pública (os chamados «public watchdogs»), como sejam a imprensa, os «bloggers» e outros utilizadores de redes sociais, organizações não governamentais ou o papel de quem participa no debate político ou de outros assuntos de interesse público.
11 - A condenação criminal pela formulação de uma opinião pode produzir um efeito dissuasor («chilling effect») sobre o exercício da liberdade de expressão, o que é particularmente delicado em assuntos de interesse público.
12 - Sempre que estejam em causa questões de interesse público, impõe-se uma proteção alargada da liberdade de expressão, e o contrário ocorre quando se esteja diante discursos ou práticas de violência, ódio, xenofobia ou outras formas de intolerância.
13 - Nas apontadas circunstâncias, impõe-se a anulação da sentença e o reenvio dos autos para novo julgamento, em ordem à correção dos vícios apontados.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – RELATÓRIO
Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 2) foi proferida sentença em 20 de outubro de 2023, que contém o seguinte dispositivo (transcrição):
«a) condenar o Arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, nº 1, e 183º, nº 1, a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 10€, no montante de 2.400€;
b) fixar 160 dias de prisão subsidiária (art.º 49º, nº 1, do C. Penal);
c) condenar o Arguido na taxa de justiça que se fixa em duas UC, e nas legais custas.
(…)»
*
O Arguido recorreu, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«a. O Tribunal é incompetente em razão do território, porquanto o Assistente residia na área da Comarca de Lisboa Norte aquando dos factos e seu conhecimento, como ainda reside hoje, pelo que, constituindo exceção de conhecimento oficioso, impõe o respetivo conhecimento e a remessa dos autos para a fase de inquérito, a realizar no DIAP de Loures;
b. Normas violadas – Arts. 7, nº. 1, 19 nº. 1 do Código Penal e artigo 38 nº. 5 da lei de imprensa (2/99 de 13 de janeiro), por a.a. e artigo 32 do CPP.
c. O processo é nulo por falta no processo físico de documentação admitida e não restringida, devendo, em consequência, ser considerada relevante para a boa decisão da causa, e ainda por falta de descarga das gravações das duas últimas sessões do julgamento.
d. Normas violadas – Ats. 101 nº. 4 e 120 nº. 2 d) do CPP e art.º 28 nº. 1 da Portaria nº. 280/2013, de 26 de agosto;
e. A frase sob destaque na acusação encontra-se presente numa oração frásica subordinante, e, por isso, não assertivamente construída, sendo a referência a CC – “Ao contrário de uma das figuras principais do assassinato de DD, o …, CC” – usada apenas como contraste a estabelecer entre a visibilidade mediática deste e a invisibilidade, do identificado assassino de AA, EE, por aquele ser uma das figuras principais – tido como “mais conhecida” – do referido assassinato, tido como “caso” ou “processo” mediático em si próprio.
f. O Arguido não imputou qualquer tipo de facto jurídico ou juízo de valor ao Assistente, limitando-se a destacar a sua mediatização comparativamente com EE;
g. O arguido identifica claramente EE como autor da morte de AA, no texto em análise, bem se entendendo desse texto que não é CC o assassino;
h. É ainda um facto, publicamente conhecido, verdadeiro e largamente mediatizado, a associação de CC às pessoas e às circunstâncias em que teve lugar o homicídio de AA, bem como aos ideais políticos e sociológicos partilhados pelo grupo de pessoas envolvidas nos atos cometidos na noite de 10 para 11 de junho de 1995;
i. CC, possui o estatuto de figura pública, por largamente mediatizada,
j. CC reivindica para si próprio a liderança de grupos que professam a ideologia nazi,
k. Pelo que não goza – nem deve gozar, no caso concreto - de especial proteção da sua reputação, bem pelo contrário, estando mais exposto à crítica;
l. CC não goza, em concreto, de reputação positiva, por, como é profusamente sabido pelos media e vozes públicas, ter vindo a cometer atos criminosos desde há décadas e ter vindo a ser por eles condenado;
m. Por isso, não se lhe pode aplicar a generosa oferta da sentença recorrida, que o branqueia e sobre ele refere que devemos todos respeitar a sua reinserção social – inexistente.
n. Não sendo a não reinserção social do Assistente da responsabilidade do Recorrente e muto menos da frase sob análise;
o. Por tudo o que não se encontra preenchido o elemento objetivo e nem o subjetivo
do tipo de crime previsto no artigo 180 nº. 1 do Código Penal, nem os elementos da agravação constante das alíneas a) e b) do nº. 1 do art.º 183 do mesmo Código;
p. E mesmo que se considere que se acha preenchido o tipo previsto no nº. 1 do artigo 180 do Código Penal, ocorrem condições de não punibilidade, por se verificarem as eximentes das alíneas a) e b) do nº. 2 do mesmo artigo, isto é, o que BB escreveu no texto sob análise, é verdadeiro e realiza interesses legítimos contidos em direitos fundamentais,
q. Que são os seus, por se tratar de um militante antirracista, que vem reiteradamente expressando a sua militância em público, por via de intervenções corajosas, contundentes e assertivas.
r. Os direitos de personalidade de CC, não merecendo especial proteção face ao caso dos autos e à vida que decidiu livremente levar, não são hábeis a se sobrepor ao direito de liberdade de expressão de BB;
s. Ponderação que não foi feita, nem com recurso aos comandos vertidos na jurisprudência constante do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recentemente acolhidos também pela jurisprudência portuguesa,
t. Nem com recurso ao juízo de prognose proposto aplicar pela jurisprudência mais recente do STJ, face à mudança de paradigma português, no que respeita à colisão dos direitos fundamentais à liberdade de expressão e à honra.
u. Se feita tal ponderação ou um juízo de prognose, daí resultaria a absolvição de BB, ou, em contrário, a violação do artigo 10º. da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
v. Uma vez que nem sequer foram demonstrados no processo factos que permitam dar por verificada alguma das restrições possíveis ao direito de liberdade de expressão do arguido, elencadas no nº. 2 do artigo 10º da referida Convenção.
w. Normas violadas – Arts. 10º. nºs. 1 e 2 e 46 nº. 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 11º. Da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; artigo 8º. Nº. 2, 16 nº. 2, 37 e 38 da CRP; arts. 180 nºs. 1 e 2 e 183 nº. 1 alíneas a) e b) do Código Penal.
Por tudo o que,
Quer o processo desça para reenvio para inquérito, ou repetição do julgamento, quer tal não aconteça, a sentença recorrida deve ser integralmente revogada, por não ter alcançado o sentido das conclusões que acima se formularam, devendo, em consequência, ser aquela substituída por decisão que proceda à absolvição de BB, do crime pelo qual vem condenado, assim se adequando a decisão do caso concreto às exigências atuais, não só o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, mas também do próprio Supremo Tribunal de Justiça Português.»
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando a final as seguintes conclusões (transcrição):
«1ª O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida e depositada a 20/10/2023, que condenou o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1 e artigo 183º, n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Cód. Penal, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 10 euros, no montante de 2.400 euros.
2ª Tendo em conta o âmbito do recurso fixado pelas conclusões apresentadas, pretende o recorrente que o tribunal não é competente, que o processo é nulo e que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de crime.
3ª Quanto à incompetência do Tribunal, afirma o recorrente a incompetência em razão do território destes Juízos Locais de Lisboa, dizendo que o assistente residia na área da Comarca de Lisboa Norte no momento em que tomou conhecimento dos factos, dizendo impor-se a remessa dos autos para a fase de inquérito.
4ª Nos presentes autos, a queixa foi apresentada pelo assistente contra o arguido junto do DIAP de Lisboa, indicando-se morada daquele em Lisboa (fls. 1 a 3 dos autos), local onde o arguido veio a prestar termo de identidade e residência (fls. 62). Terá sido na sua residência em Lisboa o local onde terá sido publicado o texto que constitui objeto destes autos, sendo certo que se trata também do local onde primeiramente houve notícia do crime.
5ª Ora, os factos dos autos foram praticados através da internet, mais concretamente na rede social ‘facebook’, pelo que, no início do processo, aquando da fixação da competência, o local em que foi produzida a publicação por parte do arguido é desconhecido, assim como será desconhecido o local em que o assistente leu aquela publicação. Com efeito, na atualidade a consulta de redes sociais através dos ‘smartphones’ pode ser realizada em qualquer lugar, pelo que não se afigura que seja determinável o local onde os factos foram praticados ou produzido o resultado típico.
6ª Assim sendo, face aos elementos de conexão com este Tribunal Judicial, nada há a apontar à fixação de competência em Lisboa, por ser o local de residência do arguido e onde houve primeiramente notícia do crime (artigos 7º do Cód. Penal, 19º e 21º do Cód. de Processo Penal).
7ª Mesmo que assim não se entenda, o que não se concede como se viu ‘supra’, não estaria em causa qualquer nulidade insanável como bem resulta inequívoco da própria referência do recorrente ao artigo 32º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal. Resulta da alínea b) daquele artigo que “tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.”, pelo que, é manifesto que estaria em causa uma nulidade sanável que, não tendo sido tempestivamente invocada, se mostra sanada (artigos 120º, n.º 1 e 121º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal).
8ª Daqui não resulta, como é evidente, que o presente procedimento criminal não tivesse seguido regularmente os seus trâmites (artigos 262º a 264º, 276º, 283º e 284º, todos do Cód. de Processo Penal) até à fase de julgamento não se verificando qualquer motivo para o regresso dos autos à fase de inquérito.
9ª Finalmente, não se compreende a referência ao artigo 38º, n.º 5 da Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro, aplicável à liberdade de imprensa. Com efeito, a publicação do arguido no âmbito destes autos não tem qualquer enquadramento nas noções constantes do artigo 9º e seguintes pelo que a Lei n.º 2/99, de 13 de janeiro não tem qualquer aplicação aos presentes autos.
10ª Invoca ainda o recorrente a nulidade do processo por falta de documentação admitida relevante para a boa decisão da causa e por falta de descarga das duas últimas sessões do julgamento.
11ª Diferentemente do que pretende o recorrente, resulta expressamente do artigo 28.º, n.º 1 da Portaria 280/2013, de 26 de agosto, que, em regra, as peças, autos e termos processuais relevantes para a decisão da causa só constarão do processo físico, caso exista despacho fundamentado nesse sentido.
12ª Compulsados os autos, na ausência de qualquer despacho da Arguido BBª Juiz a ordenar a junção ao processo físico dos documentos juntos pela defesa e admitidos, não se vislumbra qualquer nulidade ou irregularidade por omissão de diligência essencial.
13ª Acresce que, ainda que estivesse em causa a nulidade prevista no artigo 120º, n.º 2, alínea d) do Cód. de Processo Penal, aquela teria de ser arguida nos termos do número 3, i.e., no próprio ato ou até 5 dias após a notificação do despacho que designou data para a audiência (sendo o último datado de 14/07/23). Não o tendo sido, resulta evidente que aquela se encontra sanada (artigo 120º, n.º 1 e 121º, n.º 2 do Cód. de Processo Penal).
14ª Resulta ainda dos autos eletrónicos que a Il. Mandatária do arguido apresentou requerimento a requerer a consulta dos autos no escritório, que veio a ser deferido por despacho da Arguido BBª Juiz, cumprido a 20/10/23 (refªs 37376639, 429779944 e 429795657).
15ª Consta ainda do processo eletrónico o termo de disponibilização dos registos de gravação (refª 429635042, de 20/10/23), sendo certo que, após aquela menção, apenas foi requerido pela defesa a consulta dos autos acima mencionada.
16ª Ora, nada tendo sido requerido quanto aos registos de gravação, não se verifica qualquer nulidade ou irregularidade processual, dado que o artigo 101º, n.º 4 do Cód. de Processo Penal prevê a apresentação de requerimento da parte para o efeito.
17ª Deste modo, a verificar-se alguma nulidade, aquela estaria sanada, pelo que, devem improceder totalmente as nulidades invocadas.
18ª Relativamente ao preenchimento dos elementos do tipo de crime pelo qual foi condenado, afirma o recorrente que a sua conduta não é punível por se verificarem os requisitos previstos no artigo 180º, n.º 2 do Cód. Penal, afirmando que a sua conduta foi praticada em pleno exercício da sua liberdade de expressão, tratando-se de uma necessidade democrática a exposição da pessoa do assistente.
19ª De acordo com o que resulta da factualidade provada na douta sentença - a qual não é posta em causa pelo presente recurso - no dia 14/06/2020, às 2h23m, o arguido, através da rede social ‘facebook’, publicou o texto reproduzido na douta sentença, de onde constam as seguintes referências ao assistente: “Ao contrário de uma das figuras principais do assassinato de DD, o ‘...’ CC”. “Portanto não é só ao CC ou ao FF que, por vezes ocupam as parangonas da imprensa que temos de prestar atenção”.
20ª Contudo, nada se afirma, assim como nenhuma prova foi feita, para demonstrar a verdade da imputação que o arguido faz ao assistente neste texto que publicou. E é logo aqui que falece a argumentação do recorrente dado que os requisitos previstos no artigo 180º, n.º 2 do Cód. Penal são cumulativos (neste sentido, vd. FARIA COSTA Comentário Conimbricense do Cód. Penal, Coimbra Editora, 1999, anotação ao artigo 180º, p. 615 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/11/2013, proferido no processo n.º 582/10.9TAGRD.C1, disponível em dgsi.pt).
21ª Desde logo, no que respeita à realização de interesses legítimos, tendo em conta a menção do arguido à responsabilidade coletiva de garantir a democracia, dir-se-á que o depoimento das testemunhas de defesa não comprova que se viesse realizar nenhum interesse legítimo.
22ª A propósito de democracia, cumprirá apenas salientar que, nos tribunais, a democracia se cumpre essencialmente com a independência dos juízes face aos restantes poderes de Estado, no respeito estrito da CRP e da lei.
23ª Em cumprimento dos princípios e valores democráticos, a interpretação destas menções ao assistente constantes dos factos provados terá de ser feita de uma perspetiva absolutamente jurídica.
24ª Tudo ponderado, não se olvida que a liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa.
25ª Contudo, tal não legitima o arguido a produzir afirmações atentatórias da honra do assistente que sabe não serem verdade.
26ª Por outro lado, o arguido não provou a veracidade dos factos que atribui ao assistente, i.e., a intervenção principal no assassinato de AA.
27ª O arguido é um estudioso, pessoa letrada e que sabe expressar-se com propriedade e clareza na língua portuguesa, basta uma simples leitura da publicação objeto dos presentes autos para perceber que estrutura os textos e pondera as palavras que utiliza.
28ª Assim sendo, é impossível concluir que o arguido, conhecedor das decisões judiciais referentes à morte de AA, tanto na 1ª instância como no STJ no âmbito das quais desenvolve o seu trabalho, pudesse, em boa fé, reputar a sua afirmação verdadeira.
29ª Deste modo, uma vez que os requisitos da causa de justificação do artigo 180º, n.º 2 do Cód. Penal têm de ser preenchidos cumulativamente e não resultou provada a verdade da imputação ou que o arguido atuasse no exercício de interesses legítimos, nada há a apontar à douta sentença.
30ª Assim, haverá que determinar se as menções do arguido à pessoa do assistente constantes da publicação dada como provada na douta sentença integram os elementos objetivos do tipo de crime.
31ª A conduta integradora do crime de difamação incluiu a imputação de um facto ofensivo dirigido a terceiro que pode ser comunicado sob a forma de proposição incompleta sobre a realidade, vulgarmente chamada meia verdade. No fundo, sustentando-se num facto verdadeiro, afirma-se algo mais (vd. FARIA COSTA, ob. cit, p. 612).
32ª Ora, é precisamente esta a situação dos autos. A verdade é que o assistente teve intervenção em ocorrências semelhantes na noite em que AA foi assassinado, que se passaram no mesmo tempo e lugar, tendo sido condenado por crimes de ofensa à integridade física em pena de prisão no âmbito do mesmo processo.
33ª Contudo, não é possível afirmar que aquele tenha tido uma intervenção principal nesse concreto episódio como faz o arguido na sua publicação.
34ª Deste ponto de vista, a conduta do arguido não pode deixar de ser incluída na conduta típica da difamação. Efetivamente, a frase objeto deste processo está efetivamente a conotar o assistente como assassino de AA, e, embora não o diga diretamente, qualquer destinatário médio o entenderá como tal.
35ª Por outro lado, no que respeita ao juízo ofensivo da honra e consideração do assistente, afirma o recorrente que o assistente não goza de especial proteção da sua reputação. Salvo o devido respeito, a questão é saber se o assistente goza, ou não, do direito à honra em igualdade com todos os outros cidadãos.
36ª Quanto à honra do assistente, numa sociedade democrática em que todos os cidadãos são iguais perante a lei não se vislumbra que seja possível afirmar que o assistente, por ter tido intervenção em factos criminosos, não tem direito à honra.
37ª Por todas estas razões, bem andou a Mmª Juiz ao condenar o arguido pela prática dos factos por que veio pronunciado, porquanto a frase objeto destes autos não corresponde totalmente à verdade, o que o arguido sabia, sendo uma pessoa que tem bom domínio da linguagem e conhecimento profundo dos factos que mencionou e, ainda, porque tal frase é suscetível de colocar em causa e honra como manifestação da própria dignidade do assistente.»
O Assistente CC também respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
«1 -O tribunal de julgamento é territorialmente competente, devendo falecer a invocação da incompetência territorial alegada pelo recorrente e a remessa do processo para a fase de inquérito no Tribunal Judicial de Loures;
2- Inexiste qualquer nulidade por eventual falta de documentação admitida para a boa decisão da causa e por falta de descarga das duas últimas sessões de julgamento;
3- A conduta do arguido preenche os elementos objectivos e subjectivos do crime de difamação e não operam as causas de justificação previstas no art.180º n.2 C.P.
4- O apelo efectuado pelo arguido ao art.º 10º CEDH e a alguma jurisprudência do TEDH é totalmente novo neste processo e nunca foi antes invocado.
5- De qualquer modo, assenta em decisões jurisprudenciais sobre órgãos de comunicação social que não tem aplicação neste processo.
6- Admitir que o art.º 10º CEDH serve de “guarda-chuva” para toda a sorte de atropelos aos direitos de terceiros, nomeadamente ao bom nome e reputação mesmo quando intencionais não é possível, sob pena de colisão com os arts. 13º n.º 1 18º n.º 2 CRP, 20º e 26º CRP.
Nestes termos, nenhuma censura merece a sentença recorrida, devendo ser mantida nos seus precisos termos.»
Chegados os autos a este Tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta lavrou parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no art.º 417º/2 do Código de Processo Penal, não foi junta qualquer resposta.
*
2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
São as seguintes as questões suscitadas pelo presente recurso:
a. Incompetência territorial do Tribunal a quo;
b. Nulidade por ausência, no suporte físico dos autos, dos documentos juntos pelo Arguido;
c. Omissão de disponibilização dos registos da gravação das sessões da audiência de julgamento;
d. Falta de preenchimento dos requisitos da incriminação.
*
2.2 A sentença recorrida
Tem a sentença recorrida o seguinte teor (transcrição das partes relevantes):
«2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. - Matéria de facto provada
a) No dia 14 de Junho de 2020 às 2h23, na rede social Facebook, no perfil público do Arguido, em https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=...&id=..., o Arguido publicou o seguinte texto:
«No passado dia 10, na ..., houve o descerramento de uma placa evocativa de AA em homenagem à sua memória, por ocasião dos 25 anos do seu assassinato. A escassos metros dali, no ..., estava um grupelho nazi a celebrar o fascismo, com a participação de EE que, com a sua matilha, depois de ter participado em diversas agressões a pessoas negras na noite de 10 de Junho de 1995, assassinou AA. Sobre o assassino lê-se num excerto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. ''Já no final, e com vítima prostrada no solo em decúbito ventral, inanimada, o arguido EE colocou o pé sobre a cabeça da vítima, levantando os braços em atitude de triunfo".
Perante esta abjecta provocação, onde esteve a nossa imprensa que está sempre a leste a atacar o anti-racismo, inventando fake news e enlameando os seus militantes?
Em vez do hábito antropofágico de mostrar ad nauseam a cara das vítimas, escolho mostrar a cara do monstro assassino de AA que pousa com sorriso, a escassos metros do sítio onde ele o matou, no dia em que está a ser homenageado. O que terão sentia os amigos e a família de AA perante esta vil provocação ao confrontarem-se com a presença daquele que o matou? Porquê e como é que um assassino que professa uma ideologia de ódio pode andar tranquilamente em actividades políticas? O que leva este assassino a se sentir tão confortável no espaço público ao ponto de se manifestar a escassos metros donde matou a sua vítima, como se nada fosse?
Ao contrário de uma das figuras principais do assassinato de DD, o ... CC, EE tem conseguido, salvo raras excepções, passar pelos pingos da chuva do escrutínio público. É bom que se saiba que um dos assassinos de AA anda solto, milita num partido e já tentou candidatar-se a eleições no ....
Portanto não é só ao CC ou ao FF que, por vezes ocupam as parangonas da imprensa que temo de prestar atenção. EE é autor moral e material da morte de AA e continua alegremente a desenvolver atividade política na mesma linha ideológica que o levou a matar. E sobre isso, há um insuportável silêncio da imprensa e da discussão política nós não o permitiremos mais.»
b) 0 texto ora transcrito, publicado na mencionada página individual do Arguido, no Facebook, contava, quando da apresentação deste processo, em 15 de Setembro de 2020, 844 gostos, 285 partilhas e 2 comentários.
c) Na realidade, o Assistente nunca esteve envolvido, directa ou indirectamente, no assassinato de AA.
d) Nessa ocasião, o Assistente encontrava-se, pelo menos, a 1 km do local do crime, no ...; enquanto o crime se deu na ..., junto ao antigo tribunal da ....
e) Esta factualidade foi provada em Tribunal.
f) Nunca o Assistente foi condenado pelo homicídio de AA,
g) Ao proferir que uma das figuras principais do assassinato de AA, foi o ... CC, nas circunstâncias em que o fez na sua página de facebook de larga divulgação, o Arguido quis ofender a honra e dignidade do Assistente, o que conseguiu.
h) 0 Assistente sentiu-se humilhado e revoltado com a propagação desta mentira altamente caluniosa, que provocou perturbações na sua vida pessoal e familiar.
i) Esta imputação é grave, ofensiva da honra consideração do Assistente, e cometida em meio de comunicação social de grande divulgação.
j) Além do Assistente, a sua vida particular é penalizada com estas afirmações.
k) A sua mãe, já de idade avançada, sofre por ver o nome do filho enxovalhado em todo o país por um crime que não cometeu.
l) O mesmo se diga da cônjuge do Assistente, que chega a ouvir pessoas das suas relações dizer que vive com um assassino.
m) Em relação aos três filhos do Assistente, a situação na escola é insustentável, porque as crianças são frequentemente visada pelos colegas como sendo “filhas de um assassino", o que lhes causa profunda dor e tristeza, sendo uma situação profundamente traumática.
n) O Arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é punida por lei, com a intenção de ofender a honra e consideração do Assistente, o que conseguiu.
o) O Assistente é ….
p) O Arguido é respeitado pelas pessoas que o conhecem e estimam, e que o consideram um homem bom, justo e sensível.
q) O Arguido não tem antecedentes criminais.
r) O Arguido foi convidado pelo ..., em ....
s) O Arguido encontra-se a fazer um doutoramento no ..., e recebe apoios de cerca de 300€, por semana; tem dois filhos, de 22 e 17 anos de idade, sendo que, relativamente ao mais novo, contribui com cerca de 250€, por mês, e, quanto ao mais velho, consoante as necessidades.
*
2.2. - Matéria de facto não provada
Com efectivo interesse para a decisão, e com pertinência ao objecto do processo, nenhuma.
*
2.3. – Motivação
(…)
O Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações prestadas pelo Arguido BB, quanto às suas condições pessoais, familiares e profissionais. Afirmou o mesmo que, quanto aos factos, mantém o que escreveu na sua página no Facebook, assumindo a autoria da publicação transcrita nos factos provados. O Arguido leu, em audiência de julgamento, um excerto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu, a final, o processo de homicídio de AA, fazendo a sua pessoal leitura do mesmo. Esclareceu que o principal visado na sua publicação, no Facebook, não era o Assistente. Nas suas declarações finais, após produzida toda a prova testemunhal e as alegações, o Arguido afirmou que o Assistente “não tem honra”, e insurgiu-se contra o facto de ter sido pronunciado.
Atendeu o Tribunal às declarações do Assistente CC, o qual esclareceu que, já anteriormente, o Arguido lhe imputara o homicídio de AA. Afirmou o Assistente que tal imputação era(é) penosa, para si e para a sua família. Tinha 18 anos de idade, à data daqueles factos, e nunca matou ninguém; reconheceu, embora, ter cometido erros na sua vida, pelos quais foi condenado, tendo cumprido pena. Durante o cumprimento da mesma, licenciou-se em …. Recordou que nunca conheceu AA, bem como não conhecia as pessoas que o agrediram, nem tinha qualquer ascendente sobre quem assassinou o mesmo. Naquela noite, não passou sequer no local onde essas agressões ocorreram, e não saiu do .... Afirmou que os seus filhos não estão preparados para ouvir dizer que o pai é um assassino; sendo que, em determinado dia, a sua mulher teve necessidade de ir buscar um dos seus filhos, à Escola, neste enquadramento. Mais recordou que o Arguido é uma pessoa muito acompanhada e seguida na Internet; pelo que, a afirmação de que o Assistente era uma das principais figuras do assassinato de AA teve grande impacto público. O Assistente, de uma forma contida, mas bastante assertiva, deu nota da perturbação que tal lhe causou, e ainda causa; bem como à sua família. As suas palavras foram claras e afiguraram-se coerentes, objectivas e isentas, tendo o Assistente merecido todo o crédito ao Tribunal.
No que às testemunhas do Assistente, arroladas com a acusação particular, diz respeito:
O Tribunal atendeu ao depoimento de GG, actualmente …, ex-mulher do Assistente. A depoente recordou que, em Junho de 2020, ainda vivia com o Assistente, e têm filhos em comum. A depoente tomou conhecimento da publicação feita pelo Arguido, o qual é uma pessoa com enorme mediatismo. E foi grande o impacto na família, nomeadamente nos filhos do Assistente que ouviam que o pai era assassino. Na Escola, assim que o Arguido fez aquela publicação, a situação despoletou. O Assistente, que verdadeiramente não esteve envolvido no assassinato de AA, ficou bastante afectado, e a sua vida foi feita num inferno por causa desta imputação. Esclareceu a depoente que o Assistente sempre foi o seu apoio, mesmo quando tentou suicidar-se. Mais recordou a depoente que, nesse ano de 2020, estava grávida, tendo a sua filha nascido em Novembro. No dia do parto, durante a sua preparação, um Enfermeiro perguntou-lhe se a filha era de CC. Ao que a depoente disse que sim, tendo Enfermeiro respondido: “Eu também sou do ....” A depoente pensou que a questão se prendia com futebol. Seguidamente, durante o parto, foi vítima de violência obstétrica. Ficou com lesões neurológicas definitivas. Relativamente a esses factos, encontra-se a decorrer um processo de Inquérito. Por fim, recordou a depoente que o Assistente há sete anos que não sofre condenação criminal. A testemunha prestou um depoimento claro, lógico, coerente, e, não obstante ser ex-mulher do Assistente, afigurou-se objectiva e isenta. Mereceu todo o crédito ao Tribunal.
Atendeu ao depoimento de HH, mãe do Assistente. A depoente afirmou que se dá todos os dias com o filho. Mais recordou que teve conhecimento do texto publicado pelo Arguido, mas não o leu. O assunto da imputação do assassinato (de AA), perturbou o Assistente e os seus filhos. Chamar-lhe assassino foi muito complicado e perturbador para o Assistente, e para a família. A testemunha prestou um depoimento claro, lógico, coerente, e, não obstante ser mãe do Assistente, afigurou-se objectiva e isenta. Mereceu todo o crédito ao Tribunal.
No que à testemunha de Defesa diz respeito:
O Tribunal atendeu ao depoimento de II, ..., a qual afirmou que, antes, conhecia o Arguido através da Comunicação Social; hoje, conhece-o pessoalmente. A depoente presenciou acontecimentos na noite de 10 de Junho de 1995, e recordou que, também ela, foi vítima de racismo; nomeadamente, quando alguém aproximou o rosto do seu, e lhe disse “basa”. Mais afirmou que, ao longo da sua vida, foi sujeita a vários actos de racismo; mas, nunca permitiu que o ódio a tomasse. Na sua opinião, o Arguido representa a defesa dos valores de respeito pela vida humana. Esclareceu que não teve conhecimento da publicação feita pelo Arguido, na sua página de Facebook. Afigurou-se que a depoente foi objectiva e isenta.
O Tribunal atendeu ao depoimento de JJ, ..., o qual afirmou conhecer pessoalmente o Arguido. O depoente esclareceu ter sido o realizador do filme “DD”, e conhece o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que julgou, a final, o crime de homicídio de AA. Deu-nos o depoente, em audiência, uma elucidação a respeito do que é uma investigação antropológica, o estudo do linchamento e do vigilantismo. Afigurou-se que o depoente foi objectivo e isento.
O Tribunal atendeu ao depoimento de KK, ..., a qual afirmou que não conhece pessoalmente o Arguido; mas, acompanha, com admiração, a actividade do mesmo. A depoente presenciou acontecimentos na noite de 10 de Junho de 1995, pois esteve no ..., e recordou que havia um clima de medo. Mais afirmou ter tomado parte numa manifestação anti-racismo. Afigurou-se que a depoente foi objectiva e isenta.
Atendeu ao depoimento de LL de ..., o qual afirmou conhecer pessoalmente, e há muito tempo, o ARGUIDO BB, do qual é amigo. O depoente esclareceu ser próximo da família de AA, sendo amigo da irmã do mesmo. Mais afirmou o depoente que exerce actividade política juntamente com o Arguido, em questões comuns, como a defesa da igualdade. Afirmou que o Arguido é conhecido por ser um homem político, que só fala por razões políticas, e não por razões pessoais. O depoente definiu o Arguido como um homem bom, justo, sensível, e um companheiro. Afigurou-se que o depoente foi objectivo e isento.
Atendeu ao depoimento de NN, ... e ..., o qual afirmou conhecer pessoalmente o Arguido. O depoente esclareceu que, também por referência à temática abordada pelo Arguido, na sua publicação no Facebook, o próprio depoente escreveu uma crónica jornalística; sendo que, na altura, ainda não conhecia o teor da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, no processo de homicídio de AA. Posteriormente, depois de ler o Acórdão, o depoente publicou outra crónica jornalística, clarificando a sua crónica anterior. Afigurou-se que o depoente foi objectivo e isento.
Atendeu ao depoimento de OO, ..., o qual afirmou conhecer pessoalmente o Arguido, uma vez que o entrevistou. O depoente esclareceu que tem acompanhado a vida pública do Arguido, que considera a principal figura do movimento anti-racista. Na opinião do depoente, o Arguido é uma figura de interesse público, a qual tem sido vítima de campanhas de desinformação. Recordou o depoente que, em 2006, fez um trabalho na revista ...”, sobre o movimento “skin”. Afigurou-se que o depoente foi objectivo e isento.
Atendeu ao depoimento de PP, ..., o qual afirmou conhecer pessoalmente o Arguido, uma vez que ambos pertenceram ao .... O depoente esclareceu que tem o entendimento de que o texto publicado pelo Arguido, na sua página de Facebook, se baseia no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que julgou, a final, o crime de homicídio de AA. Na opinião do depoente, o Acórdão do STJ alude a uma “responsabilidade partilhada”. Afigurou-se que o depoente foi objectivo e isento.
Atendeu ao depoimento de QQ, ..., anteriormente..., o qual afirmou conhecer, sobretudo profissionalmente, o Arguido, tendo-o entrevistado. O depoente considera o Arguido uma pessoa íntegra e coerente. Um homem com ideias muito claras, e alguém que sabe o que quer dizer. O Arguido, expressando um pensamento estruturado, entende que ... precisa de mudar. Na opinião do depoente que, a propósito do Acórdão do S.T.J. que julgou o crime de homicídio de AA, leu algo na Comunicação Social sobre “responsabilidade colectiva”, consegue entender o post do Arguido, no Facebook. Afigurou-se que o depoente foi objectivo e isento.
O Tribunal atendeu ao depoimento de RR, ..., a qual afirmou que conhece pessoalmente o Arguido, há alguns anos. A depoente recordou que o mesmo recebeu o prémio dos Front Line Defenders. Mais afirmou a depoente que conversou com o Arguido sobre o combate ao racismo, que dá sentido à sua vida. Mais esclareceu que segue os escritos do mesmo, e as suas intervenções em debates. Na opinião da depoente, a propósito do Acórdão do S.T.J. que julgou o crime de homicídio de AA, entende a mesma que, naquela noite, actuou uma “matilha” com motivações racistas, que todos os outros são “co-autores materiais”, sendo toda a “matilha” responsável. A depoente ficou a conhecer o texto do Arguido, no Facebook, e subscreve o mesmo. Afigurou-se que a depoente foi objectiva e isenta.
O Tribunal atendeu ao depoimento de SS, ..., a qual afirmou que conhece pessoalmente o Arguido, e como figura pública. A depoente recordou as comemorações dos 150 anos da abolição da escravatura, tendo sido feito um roteiro para uma educação anti-racista. Esclareceu a depoente que o Arguido esteve presente numa conferência, em 2019; Arguido que vinha sendo incomodado verbalmente, e ameaçado. Na Academia, e na conferência, necessitaram de ter segurança policial, o que incomodou a depoente. Afirmou a mesma que o Arguido é um defensor de uma sociedade anti-racista, e dos princípios que levaram à defesa dos Direitos Humanos. É um intelectual activista, que respeita as pessoas, e a diversidade; bem como é uma pessoa afável e cordata. Afigurou-se que a depoente foi objectiva e isenta.
O Tribunal atendeu ao depoimento de TT, ..., o qual afirmou que conhece o Arguido há mais de 30 anos. Interpretou a frase escrita pelo Arguido no Facebook, a qual lhe pareceu rigorosa, e que evocou uma realidade que foi uma tragédia. O depoente leu o Acórdão do S.T.J., e entende que este refere uma “responsabilidade grupal”. Mais esclareceu que teve contacto com o Arguido, e caracteriza-o como uma pessoa que se exprime sempre com toda a clareza e contundência. Na opinião do depoente, essa contundência é merecida, quando se refere a um assassinato, e quando destroça esse “cancro” que é o racismo. Mais afirmou que o Arguido contribui de uma forma decisiva para esse combate. O depoente afigurou-se objectivo e isento.
O Tribunal atendeu ao depoimento de UU, ..., a qual afirmou que conhece pessoalmente o Arguido, há alguns anos. A depoente recordou que é amiga das pessoas do .... Da leitura que fez do Acórdão do S.T.J., entendeu que havia a referência a responsáveis por um clima criado em grupo; e, da sua perspectiva, a frase publicada pelo Arguido no Facebook está correcta. Mais recordou que investigaram o “Arrastão da praia de Carcavelos”, tendo sido colocado na internet um trabalho, o qual também foi feito com o Arguido. Evocou memórias de ..., nomeadamente uma acusação injusta que foi feita por terceiros a um empregado de seu pai, e a cruel punição que ao primeiro deixou a palma de cada uma das mãos transformada numa bolha dolorosa; sendo que seu pai, que não tivera qualquer intervenção em tal, ao ver o que fora feito ao seu empregado, lhe pegou nas mãos e disse “Eu peço-te perdão”. No que respeita ao Arguido, esclareceu a depoente que sempre foi um prazer trabalhar com o mesmo, encontrando-se sempre que alguém é atacado. Recordou que se bate pelas mesmas causas que o Arguido defende, e que este é uma pessoa cuidadosa. A depoente afigurou-se objectiva e isenta.
O Tribunal atendeu ao depoimento de VV, ..., o qual afirmou que conhece o Arguido desde finais dos anos 90. Interpretou a frase escrita pelo Arguido no Facebook, por referência ao Acórdão do S.T.J., como aludindo a uma “autoria moral colectiva”; sendo que existem ideias assassinas. Mais esclareceu que conhece o Arguido de movimentos sociais nos quais o depoente também está envolvido. Definiu o Arguido como um activista diferente, que junta o conhecimento académico ao activismo político. Um homem cosmopolita, frontal e conhecedor, com coragem cívica. No entender do depoente, este tipo de questão é uma questão política. O depoente afigurou-se objectivo e isento.
Mais atendeu o Tribunal ao depoimento escrito, prestado pela ... WW, onde, nomeadamente, se pode ler:
Conheci pessoalmente BB quando, na qualidade de ..., o recebi em audiência, com uma conhecida académica e investigadora na área das ciências sociais, cujo trabalho tem incidência particular em matéria de políticas públicas de educação orientadas para os problemas de exclusão escolar de crianças e jovens afrodescendentes.
BB integrou, pelo menos, o grupo de trabalho para a …, constituído em 2020 no âmbito da área Governativa da Cidadania e Igualdade, como consta do Despacho …, de …, do competente membro do Governo, publicado no DR …, nº… de … 2021.
BB fez parte do Grupo de Trabalho em representação da ....
Não tendo tido responsabilidades na sua nomeação, a minha resposta é meramente opinativa. Creio que a integração de BB, como representante da ... se ficou a dever ao reconhecimento do relevante papel que a instituição e os titulares dos seus órgãos têm assumido no combate ao racismo e na pedagogia anti racista.
Não tendo tido participação direta no Grupo de Trabalho, não tenho condições para descrever o resultado e o sentido do trabalho especificamente desenvolvido por BB, sabendo apenas que foi um dos defensores da inscrição de dados étnico-raciais da população nacional no Census. Posso, no entanto, confirmar que o Grupo produziu e tomou público, em março de 2021, um Relatório Preliminar e, em fevereiro de 2022, um Relatório Final e Complementar, com propostas para políticas públicas de combate ao racismo e à discriminação (disponíveis ambos para consulta na Internet), que deram origem ao Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial aprovado pela RCM nº 101/2021, de 15 de julho, publicada no DR, P série, nº145, de 28 de julho de 2021. Enquanto titular da pasta da … não só acompanhei os trabalhos de elaboração do Plano, que tem uma importante componente na área da Justiça e direitos fundamentais, como participei na sua discussão e aprovação.
O encontro referido foi suscitado por BB com o objetivo de propor a realização de um estudo sobre a composição étnico racial da população prisional, área em que haveria uma sobre representação de afro descendentes, por relação com a expressão quantitativa da população afro descendente no todo nacional.
Desse contacto pessoal com BB e dos contactos escritos que se sucederam resultou para o Ministério da … a necessidade de aprofundar a informação sobre os percursos da população prisional, a sua origem social, racial e étnica e de fortalecer o trabalho de articulação com outras áreas governativas, nomeadamente a cidadania e igualdade, a educação, a segurança social e o trabalho, para melhorar as condições de prevenção do crime e reduzir os índices de reincidência criminal.
BB é um cidadão honesto e empenhado. Um homem comprometido com a causa antirracista que defende à outrance. BB é um ativista. Nessa qualidade usa, por vezes, linguagem dura, linguagem que choca, linguagem de efeito e para produzir efeito. Para gerar o necessário sobressalto.
Tanto quanto sei, BB está perfeitamente inserido na sociedade portuguesa e comporta-se como um cidadão exigente, dinâmico e politicamente ativo. Tem uma consciência aguda de um problema crítico para o desenvolvimento harmonioso da sociedade portuguesa, como de qualquer outra sociedade que o enfrente: a discriminação racial - e luta ativamente contra ela.
Tive conhecimento das ameaças de morte dirigidas a BB no ano de 2020, primeiro através de uma carta com uma imagem de uma bala em que era instado a abandonar ... e depois, de uma segunda ameaça envolvendo BB e outras pessoas, nomeadamente três senhoras deputadas. Essa segunda ameaça, também envolvia uma sugestão de abandono do País e foi seguida de uma concentração contra o ativista em frente à sede da ..., o que lhe conferiu maior seriedade e risco de efetividade. BB estava em posição fragilizada, havendo o receio de menor recetividade das instâncias de controle formal às suas necessidades de proteção, em resultado de declarações que proferira a propósito da intervenção da PSP no ..., num episódio violento, envolvendo uma família de afro descendentes.
Intuí a existência desse receio e asseverei que tanto a PSP, enquanto força de segurança responsável pela proteção pessoal, como a Polícia Judiciária, a quem competiria a investigação criminal, cumpririam as suas funções no estrito respeito pela Lei.
Na leitura que faço do texto que deu origem à acusação, BB não imputa a CC o assassinato de AA. Refere-o pela sua relevância como agente político e pela sua associação às pessoas e circunstâncias em que teve lugar o homicídio de AA, num contexto em que critica a imprensa por ter a atenção concentrada naquele e não dar o mínimo destaque às atitudes do indivíduo condenado como autor material do homicídio. A depoente afigurou-se objectiva e isenta.
Ainda atendeu o Tribunal aos documentos juntos aos autos, considerando, de entre eles, os que dizem respeito ao concreto objecto do presente processo, o qual se resume a uma frase da publicação do Arguido, na sua página de Facebook.
Não atendeu o Tribunal a expressões conclusivas ou de Direito.
Não atendeu o Tribunal a considerandos de natureza política, nem a meras opiniões, nomeadamente jornalística, crónicas, artigos de opinião, nem a outros acontecimentos e matérias, nomeadamente que tenham sido objecto de julgamento noutros processos. Sendo que as testemunhas prestam depoimento sobre factos, e sobre factos com relevância para a decisão da causa. Pelo que o carácter - ainda que extremamente interessante - das intervenções das testemunhas arroladas pela Defesa, do ponto de vista do combate ao racismo, padece, não obstante, dessa característica de não terem corporizado verdadeiros testemunhos, pois dos factos aqui em discussão não tinham as mesmas conhecimento directo. Traduziram-se, repetimos, em opiniões e convicções pessoais, o que lhes não permite constituir arrimo para o Tribunal, na análise daquele que é o objecto do presente processo, e na sua decisão. Efectivamente, de intervenções se tratou, e não de depoimentos sobre os factos que, aqui, estão em causa.
Antecedentes criminais: C.R.C. junto aos autos.
*
2.4. - Aspecto jurídico da causa
Ao arguido BB é imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, com publicidade e calúnia, p. e p. pelos art.ºs 180º, nº 1 e 183º, ambos do C. Penal.
Dispõe o art.º 180º, nº1, do C. Penal: "Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias".
O art.º 183º (Publicidade e calúnia) determina: “1. Se no caso do(s) crime(s) previsto(s) no(s) artigo(s) 180º (...): a) A ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação; ou b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação (...) são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.
Torna-se essencial saber a que critérios se deverá apelar para definir o que seja objectivamente injúria ou difamação.
É que nem tudo aquilo que se considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração reveste tal natureza: nesta conformidade, não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrém tudo aquilo que o visado entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, segundo a sã opinião das pessoas de bem, deva considerar-se ofensivo dos valores sociais e culturais vigentes.
Quanto ao tipo subjectivo deste crime, cumpre salientar que basta a verificação de dolo genérico, em qualquer das formas previstas no art.º 14º do C. Penal, não se exigindo qualquer dolo específico.
Basta que o agente saiba que está a atribuir um facto, ou a formular um juízo de valor cujo significado é ofensivo da honra ou consideração alheias o que conhece, e o queira fazer.
Como se pode ler no Acórdão 16/07.6 S6LSB.L1-3, relatado pela Ex.ma Srª. Desembargadora Maria José Costa Pinto (Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ – Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa):
«O bem jurídico protegido com a incriminação é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa.
Os direitos à integridade moral e ao bom-nome e reputação dispõem de respaldo no texto constitucional e são emanação da base primeira que sustenta e legitima a República: a dignidade da pessoa humana (art.º 1.º da Lei Fundamental).
Dispõe efectivamente o n.º 1 do artigo 25.º da Constituição da República que “[a] integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
E o artigo 26.º estabelece que “[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo, traduz-se na vontade livre de praticar o acto com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei (vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 2009.10.21, processo n.º 1/08.0TRLSB.S1, sumariado in www.stj.pt). O dolo específico (o chamado «animus injuriandi vel diffamandi», ou seja, a intenção concreta de ofender determinada pessoa) não integra o tipo subjectivo, enquanto parte do tipo de ilícito.
Quanto ao elemento objectivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o agente imputa à vítima factos desonrosos ou dirige-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração.».
Algumas considerações prévias sobre a necessidade de delimitar aquele que é o objecto do presente processo.
No presente processo, não se discute o empenhamento político do Arguido nas causas em que acredita.
No presente processo, não se questiona o imperativo do combate ao racismo, em qualquer das formas que o mesmo assuma, e seja qual for a direcção em que se projecte.
No presente processo, não se suscita qualquer dúvida sobre a homenagem devida à memória de AA.
Assim como, no presente processo, se não discute a mundividência do Assistente; não cura o Tribunal de saber quais os blusões que são do seu agrado, nem se aprecia camisolas com as cinco quinas. Cinco quinas que constituem, na verdade, parte integrante da bandeira de ....
No presente processo cumpre averiguar, sim, se foi praticado algum facto com relevância criminal, no que respeita à honra do Assistente.
Honra que é algo de intrínseco a todo o Ser Humano. E não algo por alguém atribuído, sob condição ou a termo.
Mesmo aqueles que “tropeçam pelo caminho” e cometem erros não podem, por esse facto, ser despojados da sua honra.
Traduzir-se-ia num brutal e imenso retrocesso civilizacional, e estaria nos antípodas daquele que é o nosso Direito, se assim não fosse.
Razão pela qual é imperativo, por exemplo, garantir que as pessoas que cumprem penas de prisão, por terem praticado crimes e ainda que os tenham praticado, sejam tratadas com dignidade, e salvaguardadas de qualquer forma de abuso ou de tortura, física ou moral.
Elas não perderam a sua dignidade como Seres Humanos.
Não se tornaram seres desonrados, nem proscritos, nem, como em séculos recuados da França da monarquia, seres marcados a ferro em brasa, no seu corpo, concretamente no seu ombro, com a flor-de-lis da infâmia.
A Ordem Jurídica portuguesa é rica em Princípios plasmados, desde logo, na nossa Lei Fundamental, a Constituição da República Portuguesa; como também no nosso ordenamento jurídico-penal, onde impera o Princípio da Culpa.
E repetiremos, aqui, aquilo que já deixámos afirmado, em momento anterior, neste processo:
Nos presentes autos, é arguido BB.
Por sua vez, CC intervém, nos mesmos, na qualidade de Assistente.
Recordaremos que, e sendo facto do conhecimento público que CC teve, no seu passado, contacto com o sistema da Justiça e com o sistema prisional, na realidade, já cumpriu a pena em que foi condenado, já expiou a sua culpa, e já pagou a sua dívida para com a sociedade.
Todo o nosso sistema penal é focado no objectivo da ressocialização; sendo imperativo assegurar que este se não torne num mero acervo de belas intenções e de belas palavras “lançadas ao vento”.
Sistema penal que é, também, orientado no sentido de obstar ao efeito estigmatizante das penas, que não são, nem podem ser eternas.
Estigmatização que, como que corporizaria uma verdadeira “grilheta” inamovível para aqueles que tivessem o infortúnio de ter praticado factos com relevância criminal. Porém, cumprida a sua pena, não podem os mesmos ser indelevelmente “marcados”, até ao fim das suas existências. A Criminologia tem muito a dizer-nos a este respeito.
Vejamos, pois, se no presente caso, foi praticado algum facto com relevância criminal.
O que o Arguido escreveu, reportando-se ao Assistente, na publicação em causa, não constitui a formulação de uma simples opinião; traduz a imputação de um facto.
Não constitui um mero juízo de valor, nem pura adjectivação mais contundente; traduz a imputação de um facto.
A saber, e no entender do Arguido, a participação de CC, como uma das principais figuras, no assassinato de AA. Imputação repetida até à exaustão, mais de 20 anos após o processo relativo ao homicídio de AA.
Mas, facto que é falso.
Facto que é indiscutivelmente ofensivo da honra e da consideração do Assistente, por lhe estar a ser imputada a prática, exactamente, do crime punível com a moldura de limite máximo mais elevado, de entre as que se encontram previstas no nosso Código Penal.
No que respeita ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que o Arguido citou na primeira sessão, e abundantemente invocado ao longo deste julgamento, cumpre fazer a seguinte reflexão:
Não obstante as considerações que foram tecidas pelo Ex.mo Relator do Acórdão, na verdade, o mesmo não extraiu de tal, nem concluiu pela imputação ao Assistente, fosse da autoria, fosse da co-autoria, sequer da cumplicidade do mesmo na prática do crime de homicídio de AA. É dentro destas categorias, e só destas, que nos movemos em Direito Penal.
E temos, aqui, um “rochedo” incontornável, que nem a mais brilhante argumentação, nem a mais hábil estratégia de diversão, conseguem, com sucesso, ultrapassar:
CC não assassinou AA, e o mais elevado Tribunal deste País, o Supremo Tribunal de Justiça, absolveu-o da prática deste crime.
Parece-nos, assim, redundante insistir em algo que é patente: o pendor ofensivo de se apodar como homicida alguém que nunca o foi.
Por outro lado, é notória a vontade evidenciada pelo Arguido de denegrir, de diminuir o Assistente na sua honra e consideração, imputando-lhe uma conduta homicida, que sabia não corresponder à verdade. E não colhe a argumentação com uma responsabilidade moral, nem com uma, hipotética, responsabilidade colectiva, que não existe no nosso ordenamento jurídico-penal.
As ofensas reportadas à pessoa do Assistente foram propaladas, pelo Arguido, através do Facebook, circunstância que agravou o potencial de difusão e de permanência das mesmas. Arguido que é uma pessoa escutada por um vasto auditório. Sendo que qualquer destinatário médio entenderia (e entendeu) que o Arguido chamou assassino ao Assistente.
Sendo que esta conduta do Arguido conduziu a um grave impacto não só na vida do Assistente, mas também da sua família, nomeadamente dos seus filhos, da sua mulher, e de sua mãe, o que, por sua vez, se repercutiu, de novo, no mesmo.
Assistente que, ainda assim, não deduziu qualquer pedido de indemnização cível nos autos. Visivelmente, não é uma compensação monetária aquilo que o move.
Entende, pois, o Tribunal que o Arguido praticou os referidos factos pretendendo que os mesmos tivessem o mais amplo impacto possível na pessoa do Assistente, difamando-o perante a vasta rede que constitui o Facebook. A conduta do Arguido integra a previsão do art.º 180º, do C. Penal, agravadas nos termos sobreditos (art.º 183º, nº1, a) e b) do mesmo diploma legal).
Porém, dentro de uma visão tripartida do facto punível que perfilhamos (na esteira de vasta doutrina, Portuguesa e Alemã, como a que vem de ser citada supra), o facto além de ser típico, tem de ser ilícito e culposo.
Todavia, não se verifica, no caso em apreço, nenhuma causa de justificação do facto nem de exclusão da culpa (não se vislumbra nenhuma actuação em legítima defesa, direito de necessidade, estado de necessidade desculpante, etc., ou seja, nenhum dos tipos justificadores consagrados no nosso Código Penal), susceptíveis de paralisar a responsabilidade penal do Arguido, o qual é imputável e actuou com plena consciência da ilicitude do facto, bem sabendo que a respectiva conduta era proibida por lei.
*
2.4 – Consequências Jurídicas do Crime
(…)
Ao crime de difamação corresponde a punição com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias, penas elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
O Código Penal atribui à pena um conteúdo de reprovação ética, sem deixar de atender aos fins de prevenção geral e especial.
A culpa é o limite inultrapassável da pena concreta; fundamenta e limita a pena.
A defesa do ordenamento jurídico exige que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, ou seja, que corporize um exemplo, um contra-motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos.
A teoria da margem da liberdade, a qual encontra eco na nossa Jurisprudência, visando a concordância possível dos fins das penas no caso concreto, reconhece que a pena adequada à culpabilidade não é uma medida exacta.
A pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa) intervindo os outros fins das penas – prevenção geral e especial – dentro daqueles limites (cfr. Claus Roxin, in Culpabilidad Y Prevencion en Derecho Penal, pág. 4 e ss.).
Segundo o ensinamento do Prof. Figueiredo Dias, a culpa dolosa é a expressão, documentada no facto, de uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal; a culpa negligente é a expressão, documentada no facto, de uma atitude descuidada ou leviana em face das exigências daquele mesmo dever-ser.
(…)
Sendo assim, a determinação da pena concreta far-se-á em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial, ponderando, para o efeito, as agravantes e atenuantes gerais apuradas relativamente ao Arguido.
Na fixação concreta da pena, cumpre ponderar as circunstâncias a que alude o art.71º do C. Penal. Há, por isso, a considerar que:
• o grau de ilicitude é elevado, tendo em conta os efeitos efectivamente produzidos pelo Arguido com a sua conduta, num meio de ampla divulgação como o é uma rede social, e a perturbação e incómodo que causou na vida da Assistente, e da sua família, que ainda hoje sofre as consequências dos termos em que foi escrita, pelo Arguido, aquela publicação no Facebook, relativamente ao Assistente;
• o dolo é directo e, porque directo, intenso, denotando aquela atitude contrária ou indiferente ao Direito, pois o Arguido, pessoa inteligente, culta, sabedora e estudiosa, profundamente conhecedora do conteúdo do Acórdão do STJ que quis, parcialmente, ler (e leu) em audiência, não hesitou em escrever algo que sabia ser falso;
• as motivações são de natureza interior, traduzindo-se em sentimentos de acrimónia e hostilidade, sentimentos esténicos que, à luz das concepções jurídico-penais dominantes, antes que motivo de desculpa devem, ao invés, onerar o Arguido;
• o Arguido é uma pessoa familiar e socialmente integrada, estimada pelos seus pares.
Ao nível da prevenção geral, é este um crime que causa alarme e perturbação social, cumprindo desmotivar reacções de desrespeito perante a honra e consideração alheias, nomeadamente quando ganham a amplitude que sempre alcançaram, quando têm lugar perante um número grande de pessoas, no universo de uma rede social.
Quanto às exigências de prevenção especial, sendo de considerar a este nível que o Arguido é primário, são as mesmas diminutas.
Afigura-se adequado graduar a pena concreta, relativamente ao crime de difamação, em 240 dias de multa.
No que concerne ao quantitativo diário a aplicar, atendendo ao disposto no art.º 47º, nº2, do C. Penal, e ponderando o que foi apurado a respeito das condições pessoais e económicas do Arguido, o qual se encontra a fazer um doutoramento no ..., recebendo um apoio financeiro de 300€ por semana, e tendo dois jovens filhos que ajuda, reputa-se como adequado fixar a taxa diária de 10€.
Entende o Tribunal fixar a pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 10€, no montante de 2.400€.
*
3 - DECISÃO
Nos termos de facto e de Direito expostos, o Tribunal decide julgar a Pronúncia procedente, por provada, e, em consequência:
a. condenar o arguido BB pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180º, nº1, e art.º 183º, nº1, a) e b), ambos do Código Penal, na pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 10€, no montante de 2.400€;
b. fixar 160 dias de prisão subsidiária (art.º 49º, nº1, do C. Penal);
c. condenar o Arguido na taxa de justiça que se fixa em duas UC, e nas legais custas.
Boletim ao registo criminal.
(…)»
***
**
*
2.3 Conhecendo do mérito do recurso
2.3.1 Da incompetência territorial do Tribunal a quo
Defende o Arguido que o Tribunal de Primeira Instância territorialmente competente é o que tem jurisdição na Comarca de Lisboa Norte, sediado em Loures, onde se encontra um DIAP, devendo pois o processo ser reenviado para inquérito, a correr termos no DIAP de Loures, nos termos previstos pelo art.º 33º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Sublinha que essa competência territorial é a que resulta da circunstância de o Assistente ter morada em ... e por aplicação do disposto nos arts. 19º, nº 1 do Código de Processo Penal e 7º, nº 1 do Código Penal ou, por interpretação analógica, o art.º 38º, nº 5 da Lei de Imprensa.
Cumpre apreciar.
A incompetência territorial do tribunal do julgamento apenas pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento [arts. 32º, nº 2, alínea b) e 119º, alínea e) do Código de Processo Penal].
Uma vez que essa pretensa incompetência não foi suscitada antes do início da audiência de julgamento, mostra-se esgotada a janela processual para o efeito, assim tendo ficado definitivamente estabelecido, com o início da audiência de julgamento, no dia 10 de maio de 2023, a competência territorial do Tribunal de 1ª Instância que a essa audiência procedeu.
Para além disso, importa notar que não tendo jamais a competência do tribunal de primeira instância sido antes posta em crise, esta Relação conheceria em primeira linha de jurisdição dessa questão que podia ter sido já colocada no Tribunal a quo, o que sempre representaria um desvio às atribuições da Relação como tribunal de recurso.
Nega-se consequentemente provimento ao recurso, neste ponto.
*
2.3.2 Da nulidade por ausência no processo físico de documentos juntos pelo Arguido
Defende o Arguido que todos os documentos que juntou aos autos devem figurar no suporte físico dos mesmos, o que não sucede e que, nessas circunstâncias, verifica-se a nulidade prevista pelo art.º 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal.
Entende o Arguido que os documentos que juntou, não tendo sido retirados do processo por despacho fundamentado, nos termos do art.º 28º da Portaria nº 280/2013, de 26/08, enquadram-se no conceito de documentos essenciais para a descoberta da verdade, o que remete para a nulidade prevista naquela norma do Código de Processo Penal.
E tanto é assim, acrescenta, que o Arguido encontra-se teoricamente impedido de impugnar a matéria de facto com referência concreta e legalmente obrigatória de documentos, uma vez que estes inexistem no processo.
Vejamos.
À semelhança do que dissemos atrás a respeito da não invocação da incompetência territorial junto do Tribunal de 1ª Instância, também aqui se verifica que o Arguido invoca diretamente junto da Relação uma suposta nulidade processual prévia à sentença, não tendo jamais essa nulidade sido suscitada perante o Tribunal de 1ª Instância; ao assim proceder, esta Relação conheceria em primeira linha de jurisdição, o que representaria um desvio às atribuições da Relação como tribunal de recurso.
De todo o modo, sempre se deixarão algumas considerações sobre a problemática levantada.
Primeiro aspeto: a tramitação eletrónica dos autos está regulada na Portaria nº 280/2013, de 26/08, que tem aplicação ao processo penal, para o que aqui releva, à luz do que prescreve o seu art.º 1º, nº 2, a partir do recebimento dos autos para julgamento, nos termos do art.º 311º, nº 1 do Código de Processo Penal; de tal sorte que a prática de atos no processo físico pode até ser configurada como uma irregularidade processual (cfr. Acs. da RG de 26-09-2022 e da RP de 15-11-2018, relatados por Anabela Varizo Martins e Maria Dolores da Silva e Sousa, in www.dgsi.pt ).
Essa tramitação eletrónica é válida também para documentos (cfr. art.º 4º, nº 1 da Portaria nº 280/2013).
Ora, congruentemente com o objeto e o espírito do diploma, consagra o seu art.º 28º, nº 1 a regra inversa à apontada pelo Arguido no seu recurso, isto é, a regra a de que «do suporte físico do processo apenas devem constar as peças, os autos e os termos processuais que, sendo relevantes para a decisão material da causa, sejam indicados pelo juiz, em despacho fundamentado em cada processo (…)»
Vale o exposto por dizer que, na ausência de despacho fundamentado do juiz, os documentos devem figurar apenas no processo eletrónico.
Segundo aspeto: os documentos a que o Arguido se refere, pelo mesmo oferecidos na fase de julgamento, nomeadamente por via dos requerimentos que formulou nos dias 9 de janeiro, 1 de fevereiro e 7 de março de 2023, encontram-se efetivamente juntos aos autos – sucede tão só que não se encontram no suporte físico do processo, mas apenas na sua versão eletrónica.
Significa isto que tudo quanto de probatoriamente for possível extrair de tais documentos, se acaso estivessem eles no suporte físico do processo, não deixa de o ser por figurarem apenas no processo eletrónico; e acrescente-se que se o Arguido entendesse referir-se a qualquer de tais documentos no seu recurso, não estava disso impedido, apenas tendo que cuidar da sua identificação precisa, em termos idênticos aos que sempre teria que observar se os documentos figurassem no processo físico.
Não se vê destarte que haja sido omitido algum ato legalmente obrigatório, cominado com nulidade, como não se vê que a incorporação dos documentos no suporte físico dos autos seja essencial para a descoberta da verdade, não colhendo em suma pertinência a invocação, neste contexto, do art.º 120º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Penal.
Nega-se consequentemente provimento ao recurso, neste ponto.
2.3.3 Da omissão de disponibilização do registo das sessões da audiência
Alega o Arguido que o registo das duas últimas sessões da audiência de julgamento não se encontravam disponíveis na plataforma Citius Mandatários, o que configura a omissão de entrega de gravações prevista pelo art.º 101º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Acrescenta que as gravações deviam estar disponíveis a partir de 11 de julho de 2023.
Cumpre apreciar.
Assiste inegavelmente a todos os sujeitos processuais o direito de acesso à gravação de todas as sessões de prova, nos termos previstos pelo art.º 101º, nº 4 do Código de Processo Penal, aplicável na fase de julgamento por via do art.º 364º, nº 6 do mesmo diploma.
E é manifesto que esse acesso será imprescindível se o sujeito processual tiver legitimidade para recorrer e, nesse âmbito, quiser servir-se de passagens da prova, desde logo porque, pretendendo impugnar a matéria de facto, impõe-se-lhe que faça as especificações previstas pelo art.º 412º, nºs 3, alíneas b) e c) e 4 do Código de Processo Penal.
Assim é que a eventual indisponibilidade total ou parcial das gravações pode bem condicionar e, na parte em causa, impedir, o efetivo exercício do direito de recurso e, com isso, no caso do Arguido, a concretização prática de uma das suas garantias de defesa, densificada, entre o mais, nos arts. 61º, nº 1, alínea j), 399º, 401º, nº 1, alínea b), 412º, nº 3 e 428º do Código de Processo Penal, e com cobertura ampla no art.º 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), no art.º 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no art.º 2º do Protocolo Adicional nº 7 à mesma Convenção.
Verificando-se falta ou anomalia na disponibilização atempada das gravações da audiência de julgamento, impõe-se porém a quem nisso tenha interesse, neste caso, impunha-se ao Arguido, que sinalizasse o problema junto do Tribunal da 1ª Instância e, persistindo ele, competia-lhe mesmo arguir, no limite, a nulidade que se conjeturasse existir, de resto nos termos e no prazo para que aponta o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 13/2014, o que não fez, com o que sempre estaria aquela sanada, tanto mais que, não o ignoremos, o Arguido teve acesso aos autos em 25 de outubro de 2023, dado que recebeu-os então para consulta.
Por outro lado, o que sucede (à semelhança do já atrás dito a respeito das questões da incompetência territorial do Tribunal a quo e da ausência dos documentos no suporte físico do processo), é que está o Arguido a suscitar o dito vício perante o Tribunal da Relação como se este fosse a 1ª Instância.
Em suma, improcede também este segmento do recurso.
2.3.4 Do não preenchimento dos requisitos da incriminação – questão prévia do incumprimento do dever de fundamentação da sentença
De acordo com o preceituado pelo art.º 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, exige-se que a sentença contenha «[uma] enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal»; e exige-se ainda que «[não] deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar», pois se acaso o fizer, incorre numa nulidade – é o que nos diz o art.º 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal.
Ora, de entre as questões a apreciar estão todos os «factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes (…)», estabelece o art.º 339º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Estamos diante concretizações no plano do direito adjetivo do dever geral de fundamentação dos atos decisórios previsto pelo art.º 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, que por sua vez constitui uma imposição plasmada no art.º 205º, nº 1 da CRP e igualmente presente na CEDH, por via do conceito de processo equitativo para que aponta o seu art.º 6º, nº 1.
Cabe aos tribunais expor os fundamentos das decisões que dirimam os litígios que lhes sejam submetidos. E embora a extensão desse dever de fundamentação possa variar em função da natureza da decisão e das circunstâncias do caso, e embora, ainda, se não exija uma resposta detalhada a todos e cada um dos argumentos expostos pelas partes, impõe-se que haja uma apreciação explícita em relação àqueles que se prefigurem como decisivos para o desfecho dos autos (cfr. Acs. do TEDH Moreira Ferreira v. ... (nº 2) [GC], nº 19867/12, § 84, de 11/07/2017, Boldea v. Romania, nº 19997/02, § 30, de 15/02/2007, Lobzhanidze and Peradze v. Georgia, nºs 21447/11 e 35839/11, § 66, de 27/02/2020 – in https://hudoc.echr.coe.int/eng#{%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22]} - todos os acórdãos do TEDH que citarmos doravante sem indicação da fonte de pesquisa devem ser reportados a este sítio).
Como já tem sido afirmado, a fundamentação das decisões judiciais cumpre vários propósitos, de ordem endoprocessual e extraprocessual (vide sobre esta matéria o Ac. do STJ de 21/03/2007, relatado por Henriques Gaspar, e Emanuel Alcides Romão Pinto, in Do dever de fundamentação das decisões judiciais como garantia constitucional: em especial a sentença penal, file:///C:/Users/mj01969/Downloads/9218-Artigo-15418-1-10-20200701.pdf):
- em termos endoprocessuais, constitui «uma garantia de racionalidade, de imparcialidade e de ponderação da própria decisão judicial, como um elemento imprescindível de autocontrolo judicial, mormente quanto à apreciação dos argumentos da defesa, da livre convicção do juiz em matéria probatória, bem como da interpretação e aplicação do direito; e visa também assegurar o direito ao recurso, o que só é possível mediante a exteriorização dos fundamentos da decisão adotada, tornando explícita para a defesa qual foi o seu concreto juízo decisório, possibilitando, desse modo, o controlo impugnativo por parte desta» (José Tomé de Carvalho, “Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão penal final no ordenamento jurídico português”, in Julgar, n.º 21, 2013, Coimbra Editora, p. 81);
- em termos extraprocessuais, «um controlo externo sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, de modo a garantir a transparência do processo e da decisão (…), o que possibilitará um controlo difuso sobre o exercício da jurisdição» (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 2.ª edição, Coimbra: Almedina Editora, 1998, p. 621).
Dito isto, a fundamentação da sentença no caso concreto demandaria então que o Tribunal a quo ponderasse toda a matéria de facto, insista-se, incluindo a que resultasse da prova produzida em audiência, como se lhe exigiria que ponderasse todas as soluções jurídicas pertinentes. Não seria necessário, insista-se também, que tomasse posição sobre todas as razões invocadas pelos sujeitos processuais, mas impôr-se-lhe-ia uma apreciação explícita em relação aos argumentos expostos que se prefigurassem como decisivos para o desfecho dos autos.
Só com uma abordagem deste jaez pode a sentença cumprir suficientemente o seu papel ao nível da fundamentação; menos que isso torna a sentença uma peça que decide o pleito, sim, mas sem qualquer capacidade, sequer teórica, de persuasão, visto que adere a uma visão dos factos ou do direito ou de uns e de outro sem uma estruturação sólida.
Ora, no caso concreto, face (i) ao teor do despacho de pronúncia e às matérias aí debatidas; (ii) aos factos nesse despacho considerados indiciados e imputados; (iii) à documentação junta pelo Arguido na fase de julgamento, nomeadamente nos dias 9 de janeiro, 1 de fevereiro e 7 de março de 2023; (iv) ao teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que a própria sentença recorrida diz em dado passo ter sido «abundantemente invocado ao longo d[o] julgamento»; (v) ao conteúdo das declarações prestadas pelo Arguido no início da audiência, em que se sabe ter lido uma parte daquele acórdão, formulado a sua interpretação do mesmo e procurado contextualizar a sua atuação; (vi) e aos depoimentos provindos de todas as testemunhas indicadas pela Defesa, que a sentença não deixa de descrever (embora acabe por as desconsiderar totalmente, ao categorizá-las como «intervenções»);
face a isto que vimos de mencionar, dizíamos, afigura-se-nos incontornável que se ponderasse e debatesse na sentença, em suma, se agiu ou não o Arguido no exercício legítimo da liberdade de expressão e, em caso negativo, porquê.
Trata-se de um ponto absolutamente central nestes autos, sem cuja discussão nenhuma sentença poderá cumprir os critérios mínimos de fundamentação.
E não é manifestamente suficiente o que se lê nesta matéria na sentença, nomeadamente quando, a pretexto de debater a existência de eventuais causas de justificação do facto ou de exclusão da culpa, se lê apenas e de forma conclusiva, o seguinte:
«Todavia, não se verifica, no caso em apreço, nenhuma causa de justificação do facto nem de exclusão da culpa (não se vislumbra nenhuma actuação em legítima defesa, direito de necessidade, estado de necessidade desculpante, etc., ou seja, nenhum dos tipos justificadores consagrados no nosso Código Penal), susceptíveis de paralisar a responsabilidade penal do Arguido, o qual é imputável e actuou com plena consciência da ilicitude do facto, bem sabendo que a respectiva conduta era proibida por lei.»
Não deixa de ser sintomático, aliás, que não se aluda à «liberdade de expressão», na sentença, uma única vez.
Dito isto, e aprofundando um pouco as coisas, há ainda que ter presente que a sentença recorrida assenta em duas premissas que temos por incorretas.
Uma das premissas prende-se com isto que ali se lê em dado passo: «o que o Arguido escreveu, reportando-se ao Assistente, na publicação em causa, não constitui a formulação de uma simples opinião; traduz a imputação de um facto. Não constitui um mero juízo de valor, nem pura adjectivação mais contundente; traduz a imputação de um facto. A saber, e no entender do Arguido, a participação de CC, como uma das principais figuras, no assassinato de AA».
Imputação de um facto. E que facto é esse? Segundo o Tribunal a quo, é a participação de CC, como uma das principais figuras, no assassinato de AA. Ora, a expressão «participação [do aqui Assistente] no assassinato». não consta da publicação em causa; o que aí consta é, para o que aqui releva, isto: «ao contrário de uma das figuras principais do assassinato de DD, o ... CC (…)».
O que resta, quanto à frase em si, é, pois, a afirmação de que o Assistente é «uma das figuras principais do assassinato de DD».
Mas se é assim, qual é o facto imputado? O que é que a frase aponta concretamente ao Assistente?
O dizer-se que alguém foi uma das figuras principais num dado acontecimento é um juízo conclusivo formulado por quem se apoia (justificada ou injustificadamente) em algo que o leva a emitir esse juízo, mas que não deixa de o ser – um juízo, ou seja, uma opinião.
Esse «algo que leva à formulação do juízo» pode aliás ser uma convicção subjetiva absolutamente destituída de sentido ou justificação; pode prender-se com a verbalização de uma opinião generalizada sobre um dado assunto, com ou sem algum suporte fáctico; ou pode ainda ter na base factos concretos, conhecidos do próprio e/ou da comunidade em geral.
Que não estamos na presença de um facto, e apenas de um juízo ou de uma opinião, insista-se, surge-nos ainda ilustrado pela circunstância de ser de todo impossível encetar uma hipótese de enquadramento jurídico-penal dessa «participação» no assassinato de DD que a sentença recorrida diz que a frase imputa ao Assistente. Resulta da frase que se imputa ao Assistente a autoria material do homicídio? Que foi um dos coautores materiais dele? Que foi autor moral? Que foi um dos autores morais? Que foi cúmplice? Instigador? Ou que foi criador ou cocriador, ao tempo, de um ideário nacionalista, racista e violento que fomentou ou participou do fomento de um caldo de cultura donde emergiram ou no qual se integraram os acontecimentos da noite em que a vítima DD foi assassinada?
Todas estas hipóteses explicativas são em tese compatíveis com a expressão «uma das figuras principais», mas por isso mesmo também não cremos que estejamos aqui diante a imputação de um facto, posto que este, se o fosse, logo nos permitiria perceber o conteúdo material do gesto a que se referia; o que existe é a formulação conclusiva de um juízo, de uma opinião, sobre o papel do Assistente no homicídio, papel esse que não está factualmente densificado.
A outra das premissas que temos por incorreta em que assenta a sentença recorrida, relacionada ainda com a anterior, é ilustrável pelo que pode ler-se numa sua outra passagem: «Ainda atendeu o Tribunal aos documentos juntos aos autos, considerando, de entre eles, os que dizem respeito ao concreto objecto do presente processo, o qual se resume a uma frase da publicação do Arguido, na sua página de Facebook».
Ora, conforme de algum modo decorrerá do que fomos adiantando, não pode dizer-se de forma alguma que o concreto objeto do presente processo se resuma à frase da publicação.
Correndo assumidamente o risco de alguma simplificação, diremos que num caso de alegada difamação, de duas uma: ou as palavras que visam terceiro são de todo gratuitas ou desgarradas de qualquer substrato fáctico ou de um debate de ideias e então sim são elas, as palavras, que estão em causa e nada ou pouco mais; ou as palavras têm um contexto, que até pode ser controverso, e neste caso a decisão judicial, para ser ponderada, judiciosa e pelo menos em tese persuasiva, não pode deixar de o convocar e a ele atender.
As palavras têm que lidas e analisadas em si mesmas, decerto, mas esse é apenas o ponto de partida; não podem ser olhadas de forma atomística, isolada e estática, tendo antes que o ser também - diremos mesmo inevitavelmente -, no seu contexto e na sua dinâmica, para que se lhe possa fixar o seu sentido exato, a sua envolvência, a lógica com que surgiram, o seu papel no mundo exterior, a própria intenção com que foram usadas e percebidas no ambiente cultural em que se enquadram.
Nesta esteira, há dois aspetos a realçar.
O primeiro é este: a frase não pode deixar de ser lida, antes de mais, no conjunto do texto em que se insere; e aí é manifesto ter-se presente que é feita uma distinção nos termos em que o Arguido se refere a EE e ao Assistente:
- por um lado, quanto àquele primeiro, é dito, entre o mais, o seguinte: «com a participação de EE que, com a sua matilha, depois de ter participado em diversas agressões a pessoas negras na noite de 10 de Junho de 1995, assassinou AA. Sobre o assassino lê-se num excerto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: (…)»; «(…) escolho mostrar a cara do monstro assassino de AA (…)»; «EE é autor moral e material da morte de AA (…)»;
- por outro lado, quanto ao Assistente, é dito «ao contrário de uma das figuras principais do assassinato de DD, o ... CC (…)»; e «Portanto não é só ao CC (…) que temo [sic] de prestar atenção.»
Daqui decorre que o próprio texto, quanto ao homicídio de que foi vítima AA:
i. afirma um facto - «EE (…) depois de ter participado em diversas agressões a pessoas negras na noite de 10 de Junho de 1995, assassinou AA» - e formula sobre esse facto um juízo de perfil jurídico-conclusivo ao dizer que «EE é autor moral e material da morte de AA»;
ii. e expressa uma opinião – a de que o Assistente foi «uma das figuras principais do assassinato de DD».
O segundo aspeto a realçar, que se prende também com a exata compreensão desta destrinça ínsita no texto e em particular com aquilo que é dito a propósito do Assistente, é este: o contexto histórico-cultural-cívico em que surgem as palavras.
Isto porque, se o trágico «caso AA» releva de gestos de extrema violência motivada por ódio racial; se esses gestos encontram guarida numa certa ideologia; se o Assistente cultivava ativamente e em lugar de protagonismo essa ideologia e dela se não afastara e, para mais, se esteve presente e participou nos acontecimentos alargados da noite em que veio a morrer AA; e se o Arguido é pessoa que combate o ódio racial e nesse sentido é um defensor dos direitos humanos e em particular da não discriminação, com intervenção cívica significativa e até visibilidade mediática;
se tudo isto é no fundo a lógica da Defesa que transparece da prova documental e testemunhal que apresentou, bem assim como das declarações prestadas pelo Arguido em audiência, então não pode o Tribunal a quo pura e simplesmente desconsiderar toda essa realidade como não relevando para a discussão da causa, sob a invocação, como vimos pouco rigorosa, de que o objeto da causa está circunscrito à frase que se tem por ofensiva.
Toda aquela matéria, em si mesma, tem a maior relevância e não pode portanto o Tribunal a quo deixar de se pronunciar sobre ela, extraindo da prova produzida os factos correspondentes, que poderão até não estar, vários deles, diretamente ligados à publicação em apreço, mas que é passível de lhe servir de enquadramento e contextualização.
Só depois de feita essa transposição para a matéria de facto provada é que poderá então encetar-se uma judiciosa apreciação dos termos do litígio.
E os termos do litígio, reitere-se, passam inevitavelmente pela ponderação direito à honra versus liberdade de expressão, ponderação essa de natureza jurídica para cujo conseguimento idóneo se requer um prévio enunciado completo da matéria de facto relevante à luz de todas as soluções plausíveis de Direito.
E aqui é incontornável que tenhamos com efeito presentes alguns dos dados da equação.
O direito à honra, tutelado pelo art.º 180º do Código Penal, é garantidamente, ninguém o questiona, um direito fundamental protegido desde logo pela nossa CRP, no seu art.º 26º/1, e é tutelado ainda e entre o mais pelo art.º 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e pelo art.º 8º da CEDH, neste caso enquanto dimensão da reserva da vida privada [a este propósito, vide os Acs. do TEDH Axel Springer AG v. Germany (GC), nº 39954/08, § 83, 07.02.2012; e Chauvy and Others v. France, nº 64915/01, § 70, 29.06.2004)].
É bem sabido, contudo, que o direito à honra não tem um perfil absoluto, na medida em que há outros direitos, potencialmente com a mesma dignidade, com que tem que conviver e em face dos quais, em função das especificidades de cada caso, poderá ter em alguma medida que ceder; pense-se naturalmente na clássica liberdade de expressão, protegida pelo art.º 37º da CRP, pelo art.º 19º do PIDCP e pelo art.º 10º da CEDH.
A liberdade de expressão reveste-se com efeito de uma importância nuclear numa sociedade democrática, traduzindo-se, em geral, no direito de exprimir e divulgar opiniões, ideias e informações, sem qualquer interferência, nomeadamente por via de perseguição criminal, aqui se incluindo não só opiniões, ideias e informações recebidas de forma favorável ou tidas por inofensivas, mas também as que ofendam, choquem ou perturbem uma parte da população (Ac. do TEDH Handyside v. the United Kingdom, nº 5493/72, de 7/12/1976, § 49).
Na verdade, como bem refere o Arguido no seu recurso, citando Teixeira da Mota, a liberdade de expressão não serve para proteger quem emite opiniões ou transmite informações inócuas ou favoráveis aos visados; a liberdade de expressão serve justamente para proteger quem, pelo que diz ou faz, incomoda ou até mesmo ofende alguém.
O direito à honra e a liberdade de expressão, pelas suas próprias naturezas, têm uma especial vocação para se confrontarem na dinâmica geral da vida em sociedade, não podendo dizer-se logo em abstrato, isto é, no plano jurídico-conceptual, que um deles deva necessariamente ter prevalência sobre o outro.
No campo da CEDH, veja-se que o art.º 10º, consagrando no seu nº 1 a liberdade de expressão, não deixa de estatuir, no seu nº 2, que o exercício desta liberdade, «porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a (…) a proteção da honra ou dos direitos de outrem (…)»; e que o art.º 8º, consagrando no seu nº 1 o direito ao respeito pela vida privada e familiar, englobando o direito à honra, prevê no seu nº 2, também, que «não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.»
E aqui importa esclarecer que, numa situação como a presente, a responsabilidade do Estado à luz da CEDH tanto pode, em abstrato, decorrer de uma eventual violação da liberdade de expressão por via de uma condenação criminal do Arguido por ter exprimido uma opinião, como de uma eventual violação do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, na dimensão do direito à honra, por não ter adotado os procedimentos necessários em ordem a punir adequadamente o Arguido pela eventual difamação cometida. No primeiro caso, a ingerência ilegítima na liberdade de expressão decorreria da condenação criminal do Arguido, ou da natureza e peso das sanções aplicadas (Ac. TEDH Cumpănă and Mazăre v. Romania [GC], no 33348/96, de 17/12/2004, § 111); e no segundo caso, a ingerência ilegítima no direito à honra decorreria do incumprimento, pelo Estado, de obrigações positivas de atuação que sobre si impenderiam em ordem a garantir que não houvesse injustificadas ofensas, por particulares a particulares, a direitos previstos pela CEDH ou que, ocorrendo elas, o sistema de justiça lhes desse uma resposta adequada [cfr. Frédéric Sudre, Droit Européen et International des Droits de l’Hoarguido BBe, 7ª edição, PUF (2005), pgs. 241-244; cfr. ainda os Acs. do TEDH Dickson v. the United Kingdom, nº 44362/04, de 4/12/2007, § 70 e Codarcea v. Romania, nº 31675/04, de 2/06/2009, § 104].
Assim é que não pode, logo no plano abstrato, insista-se, conferir-se prevalência a um direito sobre o outro; importa sempre atentar ao circunstancialismo da situação concreta, em todas as suas valências [Acs. do TEDH Von Hannover v. Germany (no. 2) (GC), nºs. 40660/08 e 60641/08, de 7/12/2012, §§ 104-107, e Axel Springer AG v. Germany, nº 39954/08, de 7/02/2012, §§ 85-88), Couderc and Hachette Filipacchi Associés v. France [GC], nº 40454/07, de 10/11/2015, §§ 90-93, e Perinçek v. Switzerland (GC), nº 27510/08, de 15/10/2015, § 198].
Continuando a olhar para a jurisprudência de Estrasburgo, é patente com efeito a importância nela reconhecida à liberdade de expressão, e importa perceber o contexto e os termos em que uma tal importância é afirmada com essa ordem de grandeza, a partir de alguns pontos de apoio:
- a liberdade de expressão é apontada como um dos fundamentos essenciais de qualquer sociedade democrática e uma das condições primordiais para a sua promoção e para o desenvolvimento de cada indivíduo, sendo que são marcas fulcrais de qualquer sociedade democrática as ideias de pluralismo, tolerância e espírito de abertura…;
- …e dentro da liberdade de expressão ganha particular realce o desempenho de quem observa, acompanha e vigia a coisa pública, os chamados «public watchdogs», como sejam a imprensa (Ac. do TEDH Barthold v. Germany, nº 8734/79, de 25/03/1985, § 58); os bloggers e outros utilizadores de redes sociais (Ac. do TEDH Falzon v. Malta, nº 45791/13, de 20/03/2018, § 57); e organizações não governamentais (Ac. do TEDH Association Burestop 55 and Others v. France, nºs 56176/18 e cinco outros, de 1/07/2021, § 88); ou o papel de quem participa no debate político ou de outros assuntos de interesse público (Ac. do TEDH Castells v. Spain, nº 11798/85, de 23/04/1992, §§ 42-43);
- dada a importância da liberdade de expressão, as limitações previstas no art.º 10º, nº 2 da CEDH devem ser interpretadas em termos estritos, devendo a «necessidade» de cada uma de tais limitações ser estabelecida de forma convincente (Acs. do TEDH Lingens v. Austria, nº 9815/82, de 8/07/1986, § 41, e Nilsen et Johnsen v. Norway [GC], no 23118/93, § 43), tanto mais que, acrescente-se, uma condenação nesta área pode produzir um efeito dissuasor («chilling effect») sobre a prática daquela liberdade, o que é particularmente delicado em assuntos de interesse público (Acs. do TEDH Karsai v. Hungary, nº 5380/07, de 1/12/2009, § 36 e Magyar Jeti Zrt v. Hungary, nº 11257/16, de 4/12/2018, § 83).
- o adjetivo «[formalidades, condições, restrições ou sanções] necessárias», no quadro do art.º 10º, nº 2 da CEDH, implica a existência de uma «necessidade social imperiosa», gozando os Estados de uma certa margem de apreciação para a aferir (Ac. do TEDH Janowski v. Pologne [GC], no 25716/94, § 30).
Para a exata perceção do âmbito e do alcance da liberdade de expressão no contexto da CEDH concorrem ainda os contributos decorrentes da problemática criada pelos chamados discursos de ódio.
Com efeito, seja pela ideia de que o exercício da liberdade de expressão implica também «deveres e responsabilidades», como logo estatuído pelo art.º 10º, nº 2 da CEDH, seja pela ideia da proibição do abuso de direito, prevista pelo art.º 17º da CEDH, seja pela ligação da liberdade de expressão ao conceito de sociedade democrática e aos valores que lhe estão subjacentes, não poderá à partida, esperar uma ampla proteção da liberdade de expressão quem professe, incite, promova ou justifique discursos ou práticas de ódio ou de intolerância (cfr. Acs. do TEDH Gündüz v. Turkey, no. 35071/97, § 40, de 4/12/2003; Nur Radyo Ve Televizyon Yayıncılığı A.Ş. v. Turkey, no. 6587/03, § 28, 27/11/2007), ou que encorajem a violência (cfr. Ac. do TEDH Dilipak v. Turkey, no. 29680/05, § 62, de 15/09/2015).
Como recentemente sintetizado nesta matéria pelo TEDH, sempre que estejam em causa questões de interesse público, a CEDH garante uma proteção alargada da liberdade de expressão, e o contrário ocorre quando se esteja diante discursos ou práticas de violência, ódio, xenofobia ou outras formas de intolerância (Ac. do TEDH Zearguido BBour v. France, nº 63539/19, de 20/12/2022, § 49).
Ora, a lógica da Defesa que perpassa, insista-se, da documentação que juntou aos autos e da prova que ofereceu em julgamento, é a de que o Arguido se perfila no debate público contra ideias e práticas de discriminação, de racismo e de violência; que associa o Assistente a uma ideologia que as promove, que considera como tendo estado na origem ou que contribui largamente para os episódios do dia 10 de junho de 1995; e que é no contexto do que entende ser o desconhecimento público do papel de EE no homicídio de AA por comparação com a exposição mediática do Assistente que surge o texto em questão.
Ora, tudo isto tem que ser convocado à discussão, devendo pois o Tribunal a quo fazer refletir na matéria de facto o que neste domínio for suscetível de ser dado como provado, não se esquecendo, insista-se, que «a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes (…)» (art.º 339º, nº 4 do Código de Processo Penal).
Só depois de efetuada essa operação – que não pode deixar de ter lugar em 1ª Instância, porque é do alargamento da matéria de facto já descrita aquilo de que se trata e não vertida na pronúncia/acusação ou em eventual contestação que haja sido junta, com prévio cumprimento do contraditório nos termos que se tiverem por aplicáveis -, é que ficarão os autos em condições idóneas a permitirem a também imperativa discussão da temática jurídica do conflito direito à honra/liberdade de expressão que se deixou sinalizado, na certeza de que, entendendo-se esta última como prevalecente, a solução jurídico-penal haverá que passar por uma aplicação da CEDH, parte integrante da legislação interna à luz do art.º 8º, nº 2 da CRP, e do 31º/1 e 2, alínea b) do Código Penal, que nos diz que «o facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua globalidade» e que de entre esses casos se acha aquele em que o agente atua «no exercício de um direito».
Para além da ponderação desse alargamento da matéria de facto, impor-se-á ainda que o Tribunal a quo, à luz da prova a considerar para esse alargamento, retire eventuais consequências que se tenham por relevantes sobre matéria que na sentença recorrida se lê neste momento como provada, como seja a vertida nas seguintes alíneas:
c) - a qual de resto se nos afigura ter um pendor largamente conclusivo, sobretudo na parte em que se diz que o Assistente nunca esteve envolvido (…) «indiretamente» no assassinato de AA;
g) – na parte em que se lê que o Arguido quis ofender a honra e dignidade do Assistente, o que conseguiu; e
n) – na parte em que se lê que o Arguido atuou bem sabendo que a sua conduta é punida por lei, com a intenção de ofender a honra e consideração do Assistente, o que conseguiu.
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Aqui chegados e em suma e ao abrigo ainda do preceituado pelos art.ºs 379º, nº 2 e 426º, nº 1 do Código de Processo Penal:
- anular-se-á a sentença recorrida por falta de fundamentação, determinando-se o reenvio dos autos para novo julgamento, cingido à ponderação, após contraditório, do alargamento da matéria de facto provada à luz da documentação junta aos autos pela Defesa e das declarações e depoimentos produzidos em audiência de julgamento, que permitam a devida contextualização da publicação em causa, mormente no que toca à ideologia e práticas do Assistente ao tempo da morte de AA conotáveis com ideários percebidos como violentos e discriminatórios e ao papel cívico desempenhado entretanto nessas matérias pelo Arguido.
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3 – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acorda-se em conceder parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos:
3.1 Nega-se provimento ao recurso quanto à invocada incompetência territorial do Tribunal a quo;
3.2 Nega-se provimento ao recurso quanto à invocada ausência, no suporte físico do processo, dos documentos juntos pelo Arguido na fase de julgamento;
3.3 Nega-se provimento ao recurso quanto à invocada ausência de acesso à gravação das duas últimas sessões da audiência de julgamento;
3.3 Anula-se a sentença recorrida por falta de fundamentação, determinando-se o reenvio dos autos para novo julgamento, cingido à ponderação, após contraditório:
3.3.1 Do alargamento da matéria de facto que se tenha por provada à luz da documentação junta aos autos pela Defesa e das declarações e depoimentos produzidos em audiência de julgamento, que permitam a devida contextualização da publicação em causa, mormente no que toca à ideologia e práticas do Assistente ao tempo da morte de AA, conotáveis com ideários percebidos como violentos e discriminatórios, e ao papel cívico desempenhado entretanto nessas matérias pelo Arguido.
3.3.2 Da eventual alteração da matéria de facto dada como provada na sentença, em função dos meios de prova mencionados em 3.3.1, designadamente nos pontos que se deixaram atrás sinalizados [alíneas c), g) e n) dos Factos Provados];
3.3.3 Da subsunção jurídico-penal ulterior.
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Condena-se o Assistente em metade das custas devidas até ao momento e em três unidades de conta de taxa de justiça [arts. 515º/1, alínea b) e 518º do Código de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III anexa].
Notifique.
Lisboa, 11 de abril de 2024
(processado pelo Relator e por todos revisto)
Jorge Rosas de Castro
Maria Ângela Reguengo da Luz
Cristina Luísa da Encarnação Santana