REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICAL
INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Sumário


I- A relevância jurídica prevista no art. 672.º, nº 1, a), do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa assumir uma dimensão paradigmática para casos futuros.

II- Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais da vivência comunitária, suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação.

III- O acórdão-fundamento versou sobre uma situação em que, tendo as partes estipulado que o local de trabalho do trabalhador seria no Porto, a empregadora decidiu transferi-lo, com carácter definitivo, para os Açores. Ao invés, no caso dos autos, está em causa a transferência temporária entre estabelecimentos que distam entre si pouco mais de um quilómetro, o que não causa ao A. qualquer dificuldade ou mero transtorno, sendo ainda certo, para além do mais, que é prática na empresa empregadora a prestação de trabalho pelos seus trabalhadores em qualquer dos estabelecimentos hoteleiros por si explorados na cidade de Viseu e nos concelhos limítrofes, situação que lhes é explicada aquando da sua contratação.

IV- Por outro lado, naquele primeiro caso, o contrato de trabalho não continha a mínima referência que permitisse concluir pela determinabilidade dos locais de trabalho, limitando-se a estabelecer a faculdade da empregadora transferir, temporária ou definitivamente, o trabalhador para outro local de trabalho, sendo que não existiam quaisquer factos que permitissem concluir que trabalhador sabia (ou que era possível e exigível que tivesse previsto) que estava a aceitar a possibilidade de ser transferido para os Açores.

V- Diferentemente, no litígio dirimido pelo acórdão recorrido, “o local de trabalho contratualmente acordado é determinável pela referência (…) ao local onde a ré exerça ou venha a exercer a sua atividade”, ao que acresce que, “com toda a certeza, o autor sabia, ou não podia desconhecer, que a ré exercia a sua atividade” nos dois hotéis em causa, que distam um do outro pouco mais de um quilómetro, pelo que não se verifica o condicionalismo previsto no art. 672º, nº 1, c), do CPC.

Texto Integral




Processo n.º 3487/22.7T8VIS.C1.S1 (revista excecional)


MBM/RP/JG


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA intentou ação com processo comum contra Empreendimentos Turísticos M... Sociedade de Turismo e Recreio S.A., peticionando, nomeadamente, que se declare a ilicitude, por violação do CCT aplicável e da lei, da transferência de local de trabalho imposta pela ré ao autor, transferindo-o de um estabelecimento do empregador para outro.


2. A ação foi julgada improcedente na 1ª Instância.


3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) confirmou esta decisão.


4. O A. veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a), b) e c), do CPC1.


5. A R. contra-alegou.


6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.


7. Está em causa determinar se o recurso de revista excecional deve ser admitido no tocante à questão de saber é ilícita a cláusula do contrato de trabalho, mediante a qual o trabalhador consente em prestar serviço em qualquer estabelecimento em que a empresa empregadora exerça a sua atividade, por indeterminabilidade do local de trabalho.


E decidindo.


II.


8. Com relevo para a decisão, foram fixados pelas instâncias os seguintes factos:


1- A Ré dedica-se à indústria hoteleira, de restauração, empreendimentos turísticos e similares; prestação de serviços inerentes, serviços de catering e de organização de eventos, culturais e recreativos e locação de espaços para os indicados fins; prestação de serviços e comercialização de produtos com aqueles relacionados, exploração de atividades de danceteria e kartódromo, exploração e gestão de aldeamentos turísticos, incluindo alojamento e atividades conexas, explorações agrícolas e vitivinícolas, industrialização de bebidas e seu comércio e produção artesanal de cerveja, exploração, gestão e arrendamento de imóveis próprios e alheios, aluguer de veículos ligeiros de passageiros, de motociclos e veículos de mercadorias com ou sem condutor e Rent-a-car.


2- O Autor foi admitido ao serviço da Ré, através de contrato de trabalho a termo, para (…) desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de Rececionista de 2.ª, com início em 23.03.2016 (…).


3- Tal contrato (…) converteu-se em contrato de trabalho sem termo, encontrando-se o Autor presentemente classificado como rececionista 1.ª


(…)


5- No contrato de trabalho celebrado em relação ao local de trabalho do Autor, consta o seguinte: “Local de Trabalho: Hotel M..., dando já o trabalhador o seu consentimento para prestar serviço em qualquer outro estabelecimento em que a empresa exerça/ou venha a exercer a sua atividade ou, ainda, em qualquer outro local que temporariamente a função obrigue.”


(…)


7- Mais consta de tal contrato como “Instrumento e Regulamentação: Contrato Coletivo de Trabalho para a Indústria Hoteleira publicado no BTE nº 26 de 15 de Julho de 2007, com as alterações posteriores (AHP).”


8- Nos dois primeiros meses de execução do contrato de trabalho o local de trabalho do Autor foi o Hotel M....


(…)


10- Passados dois ou três meses da sua contratação o Autor passou a prestar trabalho no Hotel P..., embora por vezes fosse prestar trabalho para outros hotéis.


11- No Hotel P... o Autor inicialmente prestava trabalho em regime de turnos rotativos e passado cerca de meio ano passou a fazer essencialmente horário noturno, como night auditor, na sequência da disponibilidade que o Autor manifestou para esse efeito, mas também fazia, por vezes, horários diurnos.


12- Em Julho de 2022 foi comunicado verbalmente ao Autor que se deveria apresentar a partir do dia 01 de Agosto no Hotel M... onde faria turnos variados.


13- Na sequência de tal comunicação verbal o Autor recusou-se a ir trabalhar no Hotel M....


14- E, manteve a sua apresentação ao trabalho no Hotel P....


15- Nos dias 1 e 2 de agosto o Autor apresentou-se para trabalhar no Hotel P... acompanhado de elementos do sindicato e da família tendo-lhe sido referido que devia ir prestar trabalho no Hotel M..., pelo que o mesmo não prestou qualquer trabalho no Hotel P... nesses dias.


(…)


20- Após a comunicação escrita que a Ré fez ao Autor o mesmo comunicou que não aceitava a transferência, mas passou a trabalhar no Hotel M... a partir do dia 15 de agosto prestando trabalho em horários rotativos.


(…)


23- À relação laboral, por força do princípio da filiação (dupla filiação) aplica-se o CCT celebrado entre a AHRESP – Associação Hotelaria Restauração e Similares de Portugal e a FESAHT – Federação dos Sindicatos da Agricultura, Alimentação, Bebidas, Hotelaria e Turismo de Portugal publicado no BTE n.º 27 de 22.7.2017.


24- Desde 1 agosto até ao presente que o Hotel P... se manteve a funcionar, aberto ao público e nos mesmos termos que nos meses anteriores, designadamente carecendo e mantendo no período noturno, e concretamente das 00h00 às 08h00 um rececionista noturno, tendo sido colocado um colega de outra unidade mais pequena, a cumprir o horário do Autor.


25- O posto de trabalho e funções correspondentes a um rececionista noturno – night auditor – continuam a ter de ser desempenhados por um rececionista em período noturno no Hotel P....


26- Não se verificou, nem se verifica, desde 1 agosto de 2022 nenhuma diminuição nos serviços e/ou clientes deste estabelecimento da Ré, o Hotel P....


27-Foi colocado no Hotel P... a fazer o horário do Autor o colega BB, que foi deslocado do Hotel P....


(…)


30- É prática na empresa Ré a prestação de trabalho pelos seus trabalhadores em qualquer dos estabelecimentos hoteleiros explorados pela Ré situados na cidade de Viseu e nos concelhos limítrofes, situação que lhes é explicada aquando da sua contratação, sendo o consentimento dos mesmos para tal situação condição para a sua contratação.


(…)


32- O Autor já anteriormente a agosto de 2022 tinha prestado trabalho nos diversos estabelecimentos hoteleiros da Ré na área de Viseu, sem deduzir qualquer oposição, designadamente, aceitando prestar trabalho no M..., Hotel ... e Hotel C....


(…)


34- O Autor apenas em agosto de 2022 veio exigir que a Ré lhe comunicasse por escrito a ordem de transferência já transmitida verbalmente, adotando uma conduta contrária ao seu comportamento anterior e ao constante do contrato que celebrou com a Ré.


(…)


37- A mudança temporária do Autor foi justificada pela circunstância de o trabalhador se encontrar escalado para o turno da noite do Hotel P..., durante o qual o serviço de receção é mais escasso, conjugado com a necessidade de suprir a falta de colaboradores no serviço de receção no M... durante o mês de agosto.


(…)


39- Na comunicação que endereçou ao Autor a Ré informou ainda que a transferência teria a duração previsível de 1 mês, precisamente, o período de tempo para assegurar as necessidades de reforço do serviço da receção do M..., motivadas pela ausência de colaboradores em gozo de período de férias e baixa medica.


40- A transferência temporária de local de trabalho do Hotel P... para o M..., não causa ao Autor qualquer dificuldade ou mero transtorno, porque os estabelecimentos distam entre si pouco mais de um quilómetro.


(…)


43- A transferência temporária do Autor terminou a 4 de setembro de 2022 tendo o Autor voltado a prestar trabalho no Hotel P....


(…)


III.


9. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.04.2019, Proc. n.º 5280/17.0T8MAI.P1, indicado como acórdão-fundamento, versou sobre uma situação em que, tendo as partes contratualizado que o local de trabalho do trabalhador seria no Porto, a empregadora decidiu transferi-lo, com carácter definitivo, para os Açores.


Ao invés, no caso dos autos, está em causa a transferência temporária entre estabelecimentos que distam entre si pouco mais de um quilómetro, na área de Viseu, o que “não causa ao Autor qualquer dificuldade ou mero transtorno”, sendo ainda certo que a mudança visada pela empregadora era para o Hotel M..., sede do originário posto de trabalho, bem como que é prática nesta empresa a prestação de trabalho (pelos seus trabalhadores) em qualquer dos estabelecimentos hoteleiros por si explorados na cidade de Viseu e nos concelhos limítrofes, situação que lhes é explicada aquando da sua contratação, sendo o consentimento dos mesmos para isso condição da respetiva contratação (cfr., em especial, os pontos 5, 8, 10, 30, 32 e 40 da matéria de facto).


Por outro lado, naquele primeiro caso, a cláusula2 do contrato de trabalho atinente à matéria em causa não continha a mínima referência que permitisse concluir pela determinabilidade dos locais de trabalho, limitando-se a estabelecer a “(..) faculdade (da entidade empregadora) transferir, temporária ou definitivamente, o Segundo Contraente para outro local de trabalho”, nem, tão pouco, existiam quaisquer factos que permitissem concluir que, apesar da expressão genérica utilizada (outro local de trabalho), o autor sabia (ou que era possível e exigível que tivesse previsto) estar a aceitar a possibilidade de ser transferido “para locais nos quais existem aeroportos: Lisboa, Porto, Faro, Madeira e Açores”.


Diferentemente, no litígio dirimido pelo acórdão recorrido, como no mesmo se explana, “o local de trabalho contratualmente acordado é determinável pela referência, designadamente, ao local onde a ré exerça ou venha a exercer a sua atividade”, ao que acresce que, “com toda a certeza, o autor sabia, ou não podia desconhecer, que a ré exercia a sua atividade tanto no Hotel M... como no ..., que distam um do outro pouco mais de um quilómetro”.


Deste modo, na ausência de qualquer contradição na matéria em apreço, não se comprova o condicionalismo previsto no art. 672º, nº 1, c), invocado pelo recorrente.


10. Igualmente se encontram inverificados os fundamentos da revista excecional contemplados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do mesmo artigo.


Com efeito:


Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:


“Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).


– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).


– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).


“Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).


– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).


“Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02-02-2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).


11. Ora, relativamente aos termos em que a cláusula de mobilidade geográfica inserta no contrato de trabalho é (in)válida, o recorrente não invocou qualquer dimensão problemática suscetível de configurar uma questão nova, nem tão pouco controvertida, à luz da jurisprudência ou da doutrina.


Do que se trata é, tão somente, de uma mera divergência do recorrente relativamente ao enquadramento jurídico dos factos provados.


12. Por fim, quanto aos invocados interesses de particular relevância social, estando em causa a transferência temporária de um trabalhador entre estabelecimentos que distam entre si pouco mais de um quilómetro, na área de Viseu, situação que “não causa ao Autor qualquer dificuldade ou mero transtorno”, é patente que não estão em causa “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2), assuntos suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação (Acs. do STJ de 14.10.2010, P. 3959/09.9TBOER.L1.S1, e de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1), ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).


III.


13. Nestes termos, acorda-se em não admitir o recurso de revista excecional em apreço.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 12 de abril de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


Ramalho Pinto


Júlio Manuel Vieira Gomes





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1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

2. A cláusula 2 do contrato de trabalho em causa no acórdão-fundamento tinha o conteúdo seguinte:

«2.1 O local de trabalho do Segundo Contraente será nas instalações da D... no Porto, encontrando-se ainda adstrito às deslocações inerentes às suas funções ou indispensáveis à sua formação profissional.

2.2 Assiste à Primeira Contraente, quando necessidades ou conveniências de serviço o justifiquem, a faculdade de transferir, temporária ou definitivamente, o Segundo Contraente para outro local de trabalho, sem que este possa rescindir o contrato e/ou opor-se à transferência invocando prejuízo sério, o que o Segundo Contraente desde já aceita.”↩︎