NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DO RECORRENTE
PROCESSO EQUITATIVO
FACTOS CONCLUSIVOS
CATEGORIA PROFISSIONAL
ABUSO DO DIREITO
Sumário


I- Nos termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC (como todos os demais artigos citados), aplicável à apelação (ex vi do n.º 2 do art. 663.º, n.º 2) na fundamentação da sentença, o tribunal, mesmo oficiosamente, pode, e deve (art. 662.º, n.º 1), tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.

II- A impugnação da matéria de facto deve, em regra, especificar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, relativamente a cada um dos pontos da matéria impugnada.

III- Enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1, alíneas a), b) e c) do art. 640º implica a imediata rejeição do recurso, já quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2 do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso

IV- O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que todas as especificações referidas no seu n.º 1 constem das conclusões do recurso, sendo de admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 deste artigo, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.

V- Tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova -, o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto.

VI- Compete ao Supremo Tribunal de Justiça, por tal constituir matéria jurídica, apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado – consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objeto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita.

VII- Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos (jurídicos) geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes.

VIII- Para efeitos de apuramento da retribuição, o que importa não é, essencialmente, a denominação da categoria do trabalhador, mas o núcleo essencial das funções por si efetivamente exercidas ao longo da execução do seu contrato.

IX- Não age com abuso de direito quem atua no exercício de um direito legítimo e com respeito das finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito.

Texto Integral



Revista n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1


MBM/RP/DM


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra FIDELIDADE – Companhia de Seguros, S.A., pedindo que a esta seja condenada a reclassificá-lo como chefe de serviços e, consequentemente, na parte que ora releva, a pagar-lhe a quantia de 72.273,57 €, a título de diferenças salariais, acrescida de juros moratórios.


2. Na 1.ª Instância, a ação foi julgada totalmente improcedente.


3. O A. apelou, tendo o Tribunal da Relação do Porto (TRP), concedendo parcial provimento ao recurso, decidido condenar a R. a reconhecer que o A. tem direito – desde 01.11.2006 – à categoria profissional de chefe de serviços e ao nível remuneratório XIV, bem como a pagar-lhe a quantia correspondente às diferenças salariais que recebeu e que deveria ter recebido pelo nível remuneratório XIV, a liquidar em incidente de liquidação, relativamente: a) à remuneração de base, desde 01.11.2006 até à data da cessação do contrato de trabalho (de valor não superior a 53.145,91 €); b) ao “suplemento de procuração” a que se reporta a cláusula 46ª, nº 1, do CCT celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguradoras e o STAS (publicado nos BTE nº 34, de 15.09.2004 e nº 32, de 29.08.2008), desde 01.11.2006 a 30.08.2010, incluindo subsídios de férias e de Natal (em quantia não superior a 3.046,69 €); c) ao subsídio de isenção de horário de trabalho a que se reporta o nº 5 da mencionada cláusula 46ª, incluindo subsídios de férias e de Natal vencidos no período compreendido entre 01.09.2010 e a data da cessação do contrato de trabalho (em quantia não superior a 16.071,97 €).


4. A Ré interpôs recurso de revista, dizendo, em síntese, nas conclusões da sua alegação:


– O acórdão recorrido é nulo, por excesso de pronúncia;


– «Ao decidir conhecer da “impugnação da matéria de facto” requerida pelo Autor (…), pois o (…) Acórdão recorrido decidiu que foi dado cumprimento aos requisitos legais para a (…) impugnação da matéria de facto com prova gravada [aquando da impugnação das al. a) a d) dos factos “não provados” – que são os pontos 1 a 4 dos factos “não provados” (…) e que quanto aos factos das al. e) a i) dos factos “não provados” – que são pontos 5 a 9 dos factos “não provados” - , não era necessário dar cumprimento a tais requisitos, por – no entendimento do douto Ac. recorrido, conter matéria conclusiva e por isso que deveria ser retirada dos factos não provados], o (…) Acórdão recorrido, violou o disposto no art. 640º, nº 1, b) e c), e nº 2, a) do CPC, cometendo um erro de julgamento (…) [na parte em que conheceu da mencionada impugnação, e retirou os pontos 1 a 4 (alíneas a), b), c) e d) do elenco dos factos “Não provados” pela sentença, e aditou os factos descritos nos Pontos 9-A e 9-B ao elenco dos “factos provados”), bem como, eliminou pura e simplesmente do elenco dos factos dados como “não provados” pela sentença, os factos 5 a 9 [al. e), f), g), h) e i)], revogação essa que implicará a manutenção do decidido em primeira instância e a manutenção no elenco dos factos “não provados” dos factos 1 a 9 (isto é, a manutenção no elenco dos “factos não provados”, dos factos contidos nas referidas alíneas a), b), c), d), e), f), g), h) e i) – que são os Pontos 1 a 9 - dos factos “não provados” pela douta sentença), (…).» (sic).


– O Autor nunca reuniu os requisitos para que lhe fosse atribuída a categoria de “Chefe de Serviços”, tendo sido bem categorizado (como chefe de Secção/em 2008) e inserido em nível salarial (XIII) superior ao nível mínimo estipulado para aquela categoria (XII).


– O Autor, nos períodos a que alude, não comprovou que tivesse desempenhado funções semelhantes e iguais em termos de natureza e responsabilidade às da trabalhadora BB, com a qual se pretende – mas mal – comparar.


– O Autor, ao vir peticionar o pagamento de diferenças salarias supostamente vencidas ao longo dum período de 14 anos, em que foi exercendo as suas funções sem nunca ter reclamado ou indagado a Ré sobre esse assunto, age em claro abuso de direito.


5. O A. contra-alegou.


6. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do improvimento do recurso, em parecer a que as partes não responderam.


7. Em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC1), as questões a decidir2 são as seguintes:


– Se o acórdão da Relação é nulo, por excesso de pronúncia;


– Se o autor, ao impugnar a matéria de facto (na apelação), inobservou os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos no art. 640.º, n.º 1 e 2, do CPC.


– Se os números 9-A e 9-B, aditados à matéria de facto, têm natureza conclusiva.


– Se o A. tem direito à categoria profissional de chefe de serviços.


– Se o autor agiu com abuso de direito


Decidindo.


II.


8. Com relevo para a decisão, foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:


1. O A. foi admitido ao serviço da Companhia de Seguros Mundial Confiança, S.A., em 01/07/1976, para, sob as suas ordens e direção, e contra retribuição, exercer as funções correspondentes à categoria profissional de escriturário.


2. Essa empresa sofreu diversos processos de fusão com outras seguradoras (em 1976 com a Companhia de Seguros Confiança, S.A., em 1978 houve uma fusão desta com a Pátria Seguradora, S.A., em 2002 com a Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., em 2006 com a Companhia de Seguros Império Bonança, S.A., de que resultou a atual Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., em cujos quadros de pessoal está o A. integrado).


[…]


4. Até final de 2005 o A. foi assistente de seguros, com a categoria profissional de Escriturário e o nível XII de remuneração.


5. Após Janeiro de 2006 o A. trabalhou integrado na área de Tribunais de Trabalho e Pensões, sendo dela o responsável o chefe de serviços Dr. CC, que coordenava os vários sectores em que essa área se subdividia.


6. Até Outubro de 2006 essa área esteve dividida em quatro sectores, cada um com o seu responsável: a) Gestão de Tribunais e Pensões, ..., chefiado pelo Dr. CC, chefe de serviços com o nível XIV de remuneração, com 19 colaboradores (chefia que ele acumulou com as funções referidas no art.º 11.º); b) Apoio à Gestão de Tribunais, chefiado pelo A. com a categoria de escriturário e o nível XII, com 9 colaboradores; c) Gestão Tribunais de ..., chefiado pela Sr.ª BB, chefe de serviços com o nível XIV, com 14 colaboradores; d) Co-seguro, Resseguro e Representantes ..., chefiado pela Dr.ª DD, chefe de serviços com o nível XIV, com 1 colaborador.


7. Havia, pois, quatro sectores (secções), cada um com o seu responsável, sendo o A. o único de nível XII de remuneração (e Escriturário), e todos os demais com o nível XIV (chefe de serviços).


8. O nível de responsabilidade e exigência era semelhante para cada um dos responsáveis, e eram igualmente tratados pela Ré.


9. Em Novembro de 2006 o Dr. CC rescinde o contrato de trabalho celebrado com a Ré, e deixa os seus quadros de pessoal.


9-A. Com a saída, em novembro de 2006, do Dr. CC, o A. passou a chefiar, sendo o responsável, pelo setor Gestão de Tribunais e Pensões, ..., com 10 colaboradores, mantendo a chefia do setor de Apoio à Gestão dos Tribunais com, pelo menos, 9 colaboradores, e coordenando esses dois setores e seus colaboradores.3


9-B. A situação referida no 9-A dos factos provados manteve-se até junho de 2010.4


10. Continuou o A. com a categoria de escriturário de nível XII, apesar de os responsáveis dos outros sectores, em posição hierárquica paralela e apenas como responsáveis de um só sector, terem a categoria de chefe de serviços (nível XIV).5


11. De finais de 2006 a finais de 2007 a Sr.ª BB acumula a chefia de Gestão de Tribunais ... com a função de coordenação de toda a área de Tribunais de Trabalho e Pensões, e o A. continua como responsável pelo Sector Gestão Tribunal Trabalho e Pensões ... (10 colaboradores).


12. Em Novembro de 2007 a Sr.ª BB deixa a acumulação e fica apenas como responsável por Gestão Tribunais e Pensões ..., sendo substituída na função de coordenadora de toda a área pela Dr.ª EE.


13. Em Janeiro de 2008 a Ré promoveu o A. de escriturário a chefe de secção, e do nível XII ao nível XIII de remuneração.


[…]


15. Em Julho de 2010 a Ré começou a reestruturação das áreas de Tribunais de Trabalho e Pensões, simplificando os canais, e passando a haver um sector e um responsável a Norte e outro a Sul.


16. A Norte (...) continuou o A. como responsável único de todas as tarefas e com 21 colaboradores.


17. Continuou classificado como chefe de secção e no nível XIII.


18. A Sul ficou responsável de todas as tarefas, também num único sector, a Sr.ª BB, com 16 colaboradores, e com a categoria de chefe de serviços e o nível XIV de remuneração.


19. Com pequenas alterações sem influência nas funções do A., a situação manteve-se até 2016. 20. Em Dezembro de 2016 o A. ficou como responsável quer do mesmo sector a Norte quer a Sul, porque a Sr.ª BB reformou-se, sendo que então a Norte tinha 17 colaboradores e a Sul 6.


21. Continuou com a categoria profissional de chefe de secção e o nível XIII. 22. Esta situação manteve-se até Julho de 2018.


23. A partir de então a Ré impôs-lhe uma alteração tendo o A. voltado a ser responsável apenas pelo sector das Pensões a Norte, agora com a designação Tribunais I, e com 10 colaboradores. - (O.S. 15/2018).


24. A Sul (Tribunais II), ficou como responsável a Dr.ª FF, técnica, com o nível G.


25. O Dr. CC, chefe de serviços (nível XIV) ao qual o A. reportava, rescindiu o contrato de trabalho em Novembro de 2006.6


26. O Dr. CC acumulava as funções de chefe de serviços de toda a área com a de responsável pelo Sector de Gestão de Tribunais de Trabalho e Pensões.


27. Nas duas semanas anteriores à sua saída o Dr. CC passou os acessos, dossiers e situações pendentes ao A. e este passou a reportar diretamente ao Diretor de Acidentes de Trabalho; tendo-se mantido nessas funções até final de Janeiro de 2007.


28. Em 2015 teve de consultar um médico especialista em psiquiatria, que lhe diagnosticou um episódio depressivo major.


29. Segundo esse especialista, o A. ficou “desde 20/08/2015 em remissão completa e sob medicação quotidiana para prevenção de recaída”.


30. Esclareceu ainda que “a partir da consulta de 20/04/2016 relata tensões no local de trabalho progressivamente mais graves ao longo do tempo a partir de aí, e chegaram a configurar mobbing laboral (deduzido pela descrição do doente) com consequente e claro agravamento do quadro clínico durante o período”.


31. A tal facto não é alheia outra doença de que ficou a padecer, do foro oncológico.


32. Desde 1983 que o Autor teve classificado com as seguintes categorias profissionais:


- Em 1.3.1983 – Escriturário


- Em 1.1.2008 – Chefe de Secção- Em 1.1.2019 - Coordenador


33. Quanto às funções desempenhadas (e a partir de 1.1.2005):


- Em1.1.2005 – Assistente de Seguros


- Em 1.1.2006 – Coordenador da Área Funcional 2 - Em 1.1.2008 – Responsável de Sector 2.


- 1.1.2002 – Foi-lhe atribuído o nível XI - 1.1.2005 – Foi-lhe atribuído o nível XII


- 1.1.2008 – Foi-lhe atribuído o nível XIII


34. Em 2007, como consta da Ordem de Serviço nº 14/2007, de 17.7.2007, foi nomeada a trabalhadora BB para o cargo de responsável do Sector de Tribunais e Pensões.


35. Também nessa data o Departamento de Sinistros de Acidentes de Trabalho (cuja Responsável era GG) tinha então, 4 Sectores:


- Sector de Gestão Administrativa – cujo Responsável era HH


- Sector de Gestão de Processos – cujo Responsável era II


- Sector de Tribunais e Pensões – cujo Responsável era BB


- Sector de Assessoria Médica e Gestão Clínica – cujo Responsável era JJ.


36. O A. cessou as suas funções na R. há cerca de um ano, por reforma.


37. O A., no período de 01.11.2006 a 30.08.2010, tinha procuração para representar a Ré no Tribunal do Trabalho.7


38. O A., no período de 01.09.2010 a 31.10.209, tinha isenção de horário de trabalho.8


III.

a. Se o acórdão da Relação é nulo, por excesso de pronúncia.


9. A Relação aditou oficiosamente à matéria de facto a factualidade descrita em supra nº 37 e 38, com a seguinte fundamentação:


«O A., no art. 61º da p.i. alegou que tinha procuração para representar a Ré no Tribunal do Trabalho, reclamando diferenças salariais referentes ao período de 01.11.2006 a 30.08.2010. E, no art. 65 e 66 da p.i., reclamou diferenças salariais relativas ao suplemento por isenção de horário de trabalho referente ao período de 01.09.2010 a 31.10.209, dizendo que esteve “isento de horário de trabalho”.


A Ré, na contestação, não impugnou o art. 61º da p.i [impugnando embora os arts. 60º, 63º, 64º e dizendo impugnar “ainda os números, valores que não constem das tabelas salariais aplicáveis, cálculos e repudiando-se os pedidos ai descritos”] e, quanto ao subsídio de isenção de horário de trabalho, referiu aceitar que o Autor tinha isenção de horário de trabalho, impugnando todavia o demais.


Assim e porque, nessa parte, se encontra admitido por acordo das partes nos articulados [cfr. arts. 607º, nº 4, e 663º, nº 2, do CPC), adita-se à matéria de facto provada os nºs 37 e 38 com a seguinte redação: (…).»


Manifestamente sem razão, sustenta a recorrente que a Relação incorreu em “excesso de pronúncia”, ao decidir conhecer de matéria que o Autor não requereu que fosse levada à matéria de facto.


Na verdade, como se escreveu no Ac. de 10.05.2023 desta Secção Social, Proc. nº 4307/21.5T8SNT.L1.S19:


«[N[os termos do art. 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC, aplicável à apelação (ex vi do n.º 2 do art. 663.º, n.º 2) na fundamentação da sentença, o tribunal, mesmo oficiosamente, pode, e deve (cfr. art. 662.º, n.º 1), “tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”, mormente quando a decisão se funde em factos alegados pelas partes, como acontece no caso vertente.


Este é o sentido pacífico da doutrina10 e da jurisprudência11,, sendo ainda certo que a consideração na decisão de factos provados por confissão e acordo das partes, que não tenham sido já incluídos na matéria assente, não está sujeita a (novo) contraditório12 (o contraditório ocorreu no momento dos articulados e a sua consideração na sentença não constitui decisão surpresa, que exija a prévia pronúncia das partes).»

b. Se o autor, ao impugnar a matéria de facto (na apelação), inobservou os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecidos no art. 640.º, n.º 1 e 2, do CPC.


10. A propósito desta matéria, sintetiza o Acórdão de 29.02.2024, Proc. nº 27825/22.4T8LSB.L1.S1 (7.ª Secção):


“Em decisões sobre o modo de exercício dos poderes previstos no art. 640.º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça tem distinguido um ónus primário e um ónus secundário — o ónus primário de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação, consagrado no n.º 1, e o ónus secundário de facilitação do acesso “aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida”, consagrado no n.º 2. (cfr. acórdão do STJ de 02.06.2016, P. 725/12.8TBCHV.G1.S1, cuja distinção é retomada, p. ex., no acórdão do STJ de 3 de Outubro de 2019 — processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2).


Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso, já quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2 do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso. (cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 21.03.2019, P. 3683/16, de 17.12.219, P. 363/07, de 10.01.2023, P. 3160/16, e de 16.01.2024, P. 818/18).”


Conexamente, tem sido entendido que “o ónus do artigo 640.º do CPC não exige que as especificaçõesreferidas no seu n.º 1 constem todas das conclusões do recurso”, sendo de “admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo. 640.º, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações” (v.g., Ac. de 08.02.2024, Proc. nº 7146/20.7T8PRT.P1.S1, 7.ª Secção).


E, no tocante à impugnação “em bloco”, decidiu v.g. o Ac. de 01.06.2022, desta Secção Social (Proc. nº 1104/18.9T8LMG.C1.S1): “Tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova -, o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto.”.


11. Neste âmbito, ponderou a Relação:


«Como resulta das conclusões e das alegações o Recorrente poderia/deveria ter dado melhor cumprimento ao disposto no art. 640º, nº 1, als. a), b) e c), mormente se considerássemos todas as 9 alíneas que diz impugnar, sendo que, nas conclusões, não as identifica expressamente, nem diz expressa ou concretamente as respostas que pretende, assim como faz, nas alegações, uma impugnação em bloco, misturando factos com considerações jurídicas e conclusões que aduz, sem fazer a concreta relação dos depoimentos que invoca, com os concretos pontos da decisão da matéria de facto que diz impugnar.


Como já acima se disse, as als. e), f), g), h) e i) são meramente conclusivas não devendo ser levadas à decisão da matéria de facto provada, nem devendo ter sido levadas à decisão da matéria de facto não provada, sendo irrelevante a impugnação aduzida quanto às mesmas.


Quanto às als. a), b), c) e d) dos factos não provados delas consta que:


“a) O A. ficou a substituir o director CC, acumulou a chefia de Apoio à Gestão de Tribunais com a chefia do sector Gestão de Tribunais e Pensões até Janeiro de 2007.


b) Passou então a partir de Janeiro de 2008 o demandante a coordenar 10 colaboradores no sector de Gestão Tribunais e Pensões ..., e 11 colaboradores no Apoio à Gestão.


c) Sendo que o A. acumulava a coordenação de todas essas funções a Norte (nos dois sectores que chefiava).


d) Esta situação manteve-se até Junho de 2010.”


Diz o Recorrente, para além do mais, nas conclusões: “7. Na verdade, após a saída dos quadros da recorrida do Dr. CC, a 1 de novembro de 2006, o recorrente acumula 2 secções. Passa a ser responsável pela secção de gestão de tribunais e pela secção de apoio à gestão de tribunais tendo a obrigação de coordenar 28 trabalhadores (…). (Testemunha CC -00:12:07). (…).8. Tendo sido provado nos autos, quer por via dos factos dados como provados como pelas testemunhas Dr. CC, BB e KK que o recorrente coordenou duas secções, (…). 15. Assim, de acordo com a prova gravada e aqui trazida parece-nos que se impõe a alteração da matéria de facto aqui impugnada nos termos já alegados.” E, nas alegações, invoca os depoimentos de CC, BB e KK, transcrevendo os excertos que tem por relevantes e indicando a localização, na gravação, dos minutos correspondentes.


Do referido nas mencionadas conclusões decorre, com clareza, que o Recorrente impugna as als. a) a d) do elenco dos factos não provados, bem como que pretende que os mesmos sejam dados como provados. E, por outro lado, tais factos estão intimamente relacionados, a eles se reportando os mesmos meios de prova invocados, pelo que é de admitir a impugnação “em bloco” quanto aos mesmos.


Ora, assim sendo, afigura-se-nos não ocorrer motivo a justificar a rejeição da impugnação quanto às mencionadas als. a), b), c) e d) dos factos não provados.»


13. Neste âmbito, determinantemente, há ainda que ter presente que da resposta da ora recorrente à apelação do autor resulta que a mesma compreendeu perfeitamente qual era a concreta pretensão do autor no plano do recurso da matéria de facto: para além do mais, analisou detalhadamente o depoimento gravado da testemunha CC, tendo concluído que “o depoimento da referida testemunha não pode relevar”.


Acompanhamos, pois, o entendimento explanado pelo TRP, bem como o correspondente sentido decisório, que se encontra em conformidade com as linhas jurisprudenciais referenciadas em supra nº 10, sendo certo que a conduta processual das partes deve ser compreendida e valorada à luz das exigências de cooperação, boa-fé e lealdade processual a que se encontram adstritos aquelas e, em geral, todos os intervenientes no processo (cfr. arts. 7º e 8º).


No mesmo sentido apontam os já aludidos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos na ideia de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP, e 547º, do CPC), na sua dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), bem como um princípio geral de aproveitamento dos atos processuais, implícito em vários princípios estruturantes do nosso paradigma processual civil, como é o caso, para além dos já referidos, do direito à tutela judicial efetiva (art. 20.º, da CRP), da confiança (corolário dos princípios da boa-fé e da lealdade processual), da adequação formal e da prevalência do fundo sobre a forma (v.g., arts. 6º, 146º, nº 2, 278º, nº 3, 411º e 547º).

c. Se os números 9-A e 9-B, aditados à matéria de facto, têm natureza conclusiva.


14. A matéria de facto “não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”13, pelo que as questões de direito que constarem da seleção da matéria de facto devem considerar-se não escritas (embora o NCPC não contenha norma correspondente à ínsita no art. 646º, n.º 4, 1ª parte, do anterior CPC, chega-se à mesma conclusão interpretando a contrario sensu o atual art. 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os factos que julga provados).


Embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”14), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum15, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes.16


Vale isto por dizer, também na expressão de Anselmo de Castro, que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”.17


Identicamente - e com o mesmo critério, como tem sido sustentado pela jurisprudência18 -, são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, na expressão do Ac. de 09.12.2010 deste Supremo Tribunal (Proc. 838/06.5TTMTS.P1.S1), que invadam o domínio de uma questão de direito essencial.


Por outro lado, refira-se que, embora esteja vedado ao Supremo Tribunal de Justiça avaliar a bondade da decisão de facto propriamente dita, não lhe está vedado, todavia, por tal constituir matéria jurídica (cfr. arts. 662.º, n.º 4, 674.º, n.º 3, e 682.º, CPC), apreciar se determinada asserção – tida como “facto” provado – consubstancia na realidade uma questão de direito ou um juízo de natureza conclusiva/valorativa, caso em que, sendo objeto de disputa das partes, deverá ser julgada não escrita, nos termos sobreditos.


15. Posto isto.


Consta dos pontos 9-A e 9-B da factualidade provada:


9-A. Com a saída, em novembro de 2006, do Dr. CC, o A. passou a chefiar, sendo o responsável, pelo setor Gestão de Tribunais e Pensões, ..., com 10 colaboradores, mantendo a chefia do setor de Apoio à Gestão dos Tribunais com, pelo menos, 9 colaboradores, e coordenando esses dois setores e seus colaboradores.


– 9-B. A situação referida no 9-A dos factos provados manteve-se até junho de 2010.


Alega a recorrente que as expressões “chefiar”, “chefia” e “coordenando”, constantes destes factos, são conclusivas, apesar de nunca, ao longo do processo, ter questionado a sua utilização.


No contexto do conjunto da factualidade provada, é patente que estas formulações se encontram suficientemente concretizadas e situadas temporalmente, não suscitando a apreensão do seu sentido a menor dificuldade a um destinatário normal e, muito menos, a quem exerça atividade no setor segurador, como desde logo resulta dos depoimentos das testemunhas que foram ouvidas sobre o assunto. Acresce que a palavra “chefe” é usada no IRCT para se designarem determinadas categorias profissionais, como chefe de secção e chefe de serviços, e a palavra coordenar é utilizada no descritivo funcional dessas categorias.


Em suma, as expressões em causa fornecem indicações bastantes sobre “o que as coisas são e como são”, não podendo dizer-se que qualquer delas tenha conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, sem qualquer suporte factual.


16. A Relação considerou meramente conclusivas, e consequentemente não escritas, as alíneas e), f), g), h) e i) da matéria de facto provada. Embora a recorrente não seja clara quanto isso, parece que se insurge conta esta decisão no recurso de revista, embora manifestamente careça de legitimidade para tal, uma vez que se trata de factualidade alegada pelo autor.

a. Se o A. tem direito à categoria profissional de chefe de serviços.


17. Sobre esta matéria, refere, paradigmaticamente, a dado passo, o Acórdão de 17.03.2022, desta Secção Social do STJ, Proc. n.º 2837/19.8T8MTS.P1.S2:


“Pode suceder (…) que o objeto do contrato de trabalho seja determinado por remissão para uma categoria constante de uma convenção coletiva. A essa categoria enquanto descrição de funções pode corresponder um tratamento retributivo específico. Por outro lado, e para efeitos de apuramento da retribuição, o que importa não é, em primeira linha, o nome da categoria, mas as funções efetivamente exercidas pelo trabalhador ao longo da execução do seu contrato. Se o essencial das funções corresponder a outra categoria pode impor-se a reclassificação do trabalhador, mormente para efeito de determinação da retribuição devida.


Sublinhe-se que este procedimento não exige uma identidade perfeita entre as funções efetivamente exercidas e uma das descrições correspondentes a uma categoria, bastando que o essencial das funções exercidas caiba nessa descrição para que se deva proceder à reclassificação. Não se trata, em primeira linha, como dissemos, de reagir face à violação do princípio da igualdade de tratamento, mas sim face ao incumprimento do IRCT, pelo que o Autor não terá que invocar a existência de outro trabalhador com as mesmas funções e com uma maior retribuição (…). A reclassificação deve realizar-se mesmo que na empresa não exista qualquer outro trabalhador ou trabalhadora com a categoria em que é reclassificado o trabalhador (ou reclassificada a trabalhadora) que invoca com sucesso o incumprimento da convenção coletiva.”


18. Quanto ao caso concreto em análise, ponderou a Relação:


«No caso, o A. tinha atribuída, até dezembro de 2007, a categoria profissional de escriturário e o nível XII; em janeiro de 2008 a Ré atribui-lhe a categoria profissional de chefe de secção e o nível XIII.


O A. reclama, desde novembro de 2006, a categoria profissional de chefe de serviços e nível XIV.


Nos termos do Anexo III do mencionado CCT de 2004:


“2 — Categoria de serviços técnico-administrativos:


2.1 — Chefe de serviços. — É a categoria mínima que deve ser atribuída ao trabalhador que, dependendo directamente do órgão de gestão, de um director-coordenador, de um director de serviços ou de um chefe de serviços, coordena no mínimo duas secções, podendo ainda colaborar na elaboração da política e objectivos a alcançar pela área de acção dele dependente.


2.7 — Chefe de secção. — É a categoria mínima que deve ser atribuída ao trabalhador que coordena hierárquica e funcionalmente um grupo de, pelo menos, quatro trabalhadores que integram uma secção, entendida esta como uma unidade de trabalho definida na organização da empresa, à qual corresponde um conjunto de tarefas que, pela sua natureza e complementaridade, justifica a supervisão por um mesmo responsável.


2.22 — Escriturário. — É o trabalhador que executa serviços técnicos ou administrativos sem funções de coordenação do ponto de vista hierárquico.”


À categoria de escriturário correspondem os níveis IX e X; à de chefe de Secção, o nível XII; e à de chefe de serviços, o nível XIX (Anexo II)


Tais definições e enquadramento mantêm-se no CCT de 2008.


Tendo em conta a matéria de facto provada, as funções desempenhadas pelo A., no período de novembro de 2006 a dezembro de 2007 e mesmo que se considerassem, apenas, as de chefia do setor de apoio à Gestão dos Tribunais, não cabiam na categoria de escriturário [na qual o A. esteve enquadrado até final de dezembro de 2007], sendo que o A. chefiava um setor com nove colaboradores. Se se considerasse apenas a chefia deste setor, cabia-lhe a categoria de chefe de secção, questão que, contudo, e a nível remuneratório, é irrelevante uma vez que, apesar da categoria de escriturário, o A. tinha o nível XII, este o correspondente a chefe de secção.


Acontece que o A., a partir de novembro de 2006, com a saída de CC, passou a ser o responsável pelo setor Gestão Tribunal Trabalho e Pensões ..., com 10 colaboradores, mantendo as funções iniciais de chefia do setor de Apoio à Gestão dos Tribunais, que tinha, pelo menos, 9 colaboradores, o que perdurou não apenas até finais de 2007, mas também até junho de 2010, sendo que, com a reestruturação de julho de 2010, continuou como responsável único de todas as tarefas a Norte e com 21 colaboradores. Ora, em qualquer um dos mencionados períodos, não se pode deixar de considerar que as funções exercidas pelo A. se enquadravam no núcleo essencial das funções previstas na categoria de chefe de serviços, quais sejam de coordenação de duas secções.


Com efeito, e desde novembro de 2006 a final de dezembro de 2007, durante cerca de um ano, o A. passou a coordenar dois setores, os já referidos setores de Gestão Tribunal Trabalho e Pensões ..., com 10 colaboradores, e as de chefia do setor de Apoio à Gestão dos Tribunais, que tinha, pelo menos, 9 colaboradores, o que, desde logo e tendo em conta o mencionado período de tempo, lhe conferia o direito à categoria de chefe de serviços e sendo que, assim sendo, como foi, não poderia a Ré, depois, baixar a categoria profissional (arts. 122º, al. e), do CT/2003 e 129º, al. e) do CT/2009).


Mas mais. Tal perdurou até junho de 2010, ou seja, por mais dois anos e meio pelo que é evidente que tal período tempo é incompatível com o exercício transitório de funções inerentes a categoria profissional superior sem que esse exercício confira o direito à categoria correspondente.


E, após julho de 2010, o que releva não são as designações formais, mas sim a realidade e, a realidade, é que o A. continuou como responsável único de todas as tarefas, com 21 colaboradores (nota-se que em número parecido aos que já chefiava no âmbito da mencionada acumulação), sendo pois irrelevante que, no âmbito da reestruturação, a área de Tribunais de Trabalho e Pensões haja passado a deter apenas dois “setores” como tal designados pela Ré, quais sejam os Tribunais a Norte e os Tribunais a Sul. As tarefas que eram levadas a cabo no setor Apoio à Gestão dos Tribunais, que integrava a área de Tribunais de Trabalho e Pensões, não deixaram de existir ou, pelo menos, não consta da matéria de facto que tenham deixado de existir e/ou que não fossem levadas a cabo com a divisão Tribunais a Norte e Tribunais a Sul, designadamente que hajam deixado de ser executadas no que aos Tribunais Norte se refere e sendo o A. o seu único responsável. Não é, como referido, a mera alteração formal suscetível de alterar a realidade e, esta, é que o A. continuou como responsável único de toda essa área, com a inerente responsabilidade pela mesma, responsabilidade essa compatível, ou mais compatível, com a categoria de chefe de serviços.


Aliás, para o reconhecimento do direito à determinada categoria e, designadamente, havendo mais do que uma, não é necessária a coincidência absoluta entre a previsão do conteúdo funcional da categoria e as funções desempenhadas, devendo a qualificação aferir-se pela maior atração/afinidade entre as funções e a categoria. E, no caso, essa atração faz-se para a categoria de chefe de serviços e não chefe de secção.


Mas mais, agora no que concerne ao período de dezembro de 2016 até julho de 2018, com a saída de BB, o A. ficou responsável por ambos os setores, ou seja, pelos setores a Norte e a Sul. E sendo irrelevante que, em julho de 2018, tenha a Ré voltado a afetar o A. apenas ao setor de Pensões a Norte, sendo que, há muito, o A. já havia adquirido a categoria profissional de chefe de serviços, não podendo esta ser baixada, para além de que se remete para as considerações relativas à maior afinidade, tendo em conta toda a mencionada evolução, de tal categoria com as de responsável por esse setor.


Ou seja, e em conclusão, tem o A. direito à categoria profissional de chefe de serviços desde novembro de 2006, inclusive. E, a esta, corresponde o nível salarial XIV, pelo que tem o A. direito ao mesmo desde novembro de 2006.


E, assim sendo, como é, resultando o direito do Autor do instrumento de regulamentação coletiva, mostra-se irrelevante o apelo à violação do princípio da igualdade e da discriminação salarial.»


19. Em face da factualidade provada (que, como já se decidiu, é, nos seus precisos termos, a fixada pelo TRP), aderimos a esta consistente argumentação, que não nos suscita dúvidas ou reservas, bem como ao correspondente sentido decisório.


Uma nota complementar: a recorrente centra a sua argumentação na tentativa de demonstração de que in casu não se verifica violação do princípio da igualdade (concretamente, na dimensão trabalho igual salário igual), quando, como é evidente, à luz do exposto em supra nº 18, não foi esse o plano em que a Relação fundamentou a sua decisão.

b. Se o autor agiu com abuso de direito.


20. Em derradeiro termo, sustenta a recorrente que o A. agiu com abuso de direito.


“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (art. 334º, do C. Civil).


O abuso de direito pressupõe um manifesto excesso ou clamoroso desrespeito dos limites axiológico-materiais do direito invocado19, sendo naturalmente exigível a prova desse excesso a quem o invoca.


Com efeito, exige-se dos tribunais a maior ponderação na aplicação deste instituto, designadamente quando esteja em causa a violação de jus strictum, a fim de não introduzir no sistema fatores de insegurança jurídica sempre nefastos.


Nesta medida, de acordo com Menezes Cordeiro, “decidir de acordo com a boa-fé exige ao intérprete-aplicador um esforço analítico, conceptual e justificatório paradoxalmente muito superior ao requerido pela aplicação de normas estritas20. E prossegue o mesmo Autor: “Há que usá-lo sempre que necessário. Mas nunca pode ser banalizado: havendo solução adequada de Direito estrito, o intérprete-aplicador terá de procurá-la, só subsidiariamente se reconfortando no abuso de direito. Só conjunturas muito ponderosas e estudadas poderão justificar uma solução contrária à lei estrita.”.


Quanto à específica tutela da confiança que neste âmbito releva, refere Mário Júlio Almeida e Costa que “a confiança apenas se mostra digna de proteção jurídica se o destinatário se encontrar de boa-fé, em sentido subjetivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adotar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais ao tráfico jurídico”.21


Assim, como decidiu o Ac. de 06.12.2017 desta Secção Social (Proc. nº 1519/14.1TTLSB.L1.S1), “não age com abuso de direito quem atua no exercício de um direito legítimo e com respeito das finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito”.


Ora, in casu, como bem sinaliza o acórdão recorrido: “[O] que está em causa é o pedido do A. às diferenças salariais entre o que deveria ter auferido e o que auferiu decorrente da categoria profissional que a Ré lhe devia ter reconhecido e atribuído desde novembro de 2006 até à cessação do contrato de trabalho, mas que não atribuiu, direito esse que o A. exerceu e cujo exercício não contraria as regras da boa-fé, muito menos de forma manifesta ou intolerável, nem os bons costumes ou o fim social ou económico do direito, não consubstanciando, pois, exercício abusivo do direito ao pagamento dessas diferenças salariais, tendo o A. exercido tal direito de modo legítimo e dentro do prazo, de um ano após a cessação do contrato, que a lei faculta aos trabalhadores para tal.”.


Improcede, pois, também, esta questão.


IV.


21. Em face do exposto, acorda-se em negar a revista.


Custas pela recorrente.


Lisboa, 12 de abril de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


Ramalho Pinto


Domingos Morais





__________________________________________________

1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

3. Aditado pelo TRP.↩︎

4. Aditado pelo TRP.↩︎

5. Alterado pelo TRP, sendo a redação anterior a seguinte: “10. Continuou o A. com a categoria de escriturário de nível XII, apesar da referida acumulação e de chefiar dois sectores/secções, e apesar de os responsáveis dos outros sectores, em posição hierárquica paralela e apenas como responsáveis de um só sector, terem a categoria de chefe de serviços (nível XIV).”↩︎

6. Alterado pelo TRP, sendo a redação anterior a seguinte: “25. Desde logo porque o Dr. CC, chefe de serviços (nível XIV) ao qual o A. reportava, rescindiu o contrato de trabalho em Novembro de 2006.”↩︎

7. Aditado oficiosamente pelo TRP.↩︎

8. Aditado oficiosamente pelo TRP.↩︎

9. In www.dgsi.pt. Todos os acórdãos citados sem menção em contrário promanam do STJ e encontram-se disponíveis no mesmo sítio.↩︎

10. V.g. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pp. 318-319.↩︎

11. V.g. Ac. de 15.09.2021 desta Secção Social, Proc. n.º 559/18.6T8VIS.C1.S1, Ac. do STJ de 22.02.2022, Proc. n.º 5688/17.0T8GMR.G1.S1-6.ª Secção, e Ac. do STJ de 06.09.2022, Proc. nº 3714/15.7T8LRA.C1.S1-6.ª Secção.↩︎

12. V.g. Ac. do STJ de 30.11.2010, Proc. n.º 1136/06.0TBCTB.C1.S1-6.ª Secção.↩︎

13. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Processo Civil, 312.↩︎

14. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, 268-269.↩︎

15. “Pagar”, “arrendar”, “emprestar”, “vender”, etc.↩︎

16. Cfr. Anselmo de Castro, ibidem.↩︎

17. Ibidem.↩︎

18. V.g. Acs. de 23.09.2009, P. 238/06.7TTBGR.S1, de 15.12.2011, P. 342/09.0TTMTS.P1.S1, e de 11.07.2012, P. 3360/04.0TTLSB.L1.S1.↩︎

19. Cfr. Teixeira de Sousa, As Partes, o Objeto e a Prova, na Acão Declarativa, Lex, 1995, P. 201.↩︎

20. Tratado de Direito Civil, I, 244.↩︎

21. RLJ, Ano 129, p. 62.↩︎