LAUDO PERICIAL
LIVRE APRECIAÇÃO
RENÚNCIA DE DIREITOS / ACIDENTE DE TRABALHO
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
Sumário

I – Nos processos emergentes de acidente de trabalho o laudo pericial (seja do exame médico singular, seja do exame por junta médica), não tem força vinculativa obrigatória, estando sujeito à livre apreciação do julgador (artigos 389.º do Código Civil e 489.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo, todavia, de a eventual divergência dever ser devidamente fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária por se tratar de matéria em que o Juiz não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos.
II – É inadmissível a renúncia aos direitos emergentes de acidente de trabalho, quer direta, quer indiretamente, através da falta de reclamação na tentativa de conciliação.
III - A reparação emergente de acidente de trabalho tem natureza indisponível e inderrogável, como resulta do disposto nos artigos 12.º e 78.º da NLAT, enquadrando-se nas questões, a que se reporta o artigo 74.º do Código de Processo do Trabalho, que poderão ser objeto de condenação extra vel ultra petitum.

[elaborado pela sua relatora nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil (cfr. artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho)]

Texto Integral

Apelação/Processo nº 1837/22.5T8OAZ.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis



Relatora: Germana Ferreira Lopes
1ª Adjunta: Teresa Sá Lopes
2ª Adjunta: Eugénia Pedro




Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I - Relatório
O presente processo especial para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho foi iniciado na sequência da participação do acidente ocorrido em 12-07-2021, sofrido pelo autor/sinistrado AA, quando este trabalhava por conta de A... Unipessoal, Lda., a qual havia transferido a sua responsabilidade infortunística laboral para a seguradora B...- Companhia de Seguros, SA.

Foi solicitado ao INMLCF, Gabinete Med. Legal e Forense de Entre Douro e Vouga, a realização de perícia médica ao Sinistrado, a qual foi efetuada, constando o respetivo relatório final de exame médico na refª citius 14122318 datada de 7-02-2023.
Nesse relatório, datado de 2-02-2023 consta, para além do mais, o seguinte:
- No item “B. Dados Documentais”
“Da documentação clínica que nos foi facultada consta cópia de registos da Companhia de Seguros B..., da qual se extraiu o seguinte:
Terá sido vítima de acidente de trabalho, no dia 12/07/2021, do qual resultou entorse do joelho direito.
Foi observado nos serviços clínicos da Companhia de Seguros, em 20/07/2021. Ao exame físico apresentava sinais sugestivos de rotura meniscal interna. Solicitado RMN do joelho.
A 26/07/2021, foi realizada RMN do joelho direito, a qual revelou (…).
Prescrito tratamento fisiátrico.
A 27/08/2021, foi atribuída alta administrativa por recusa de nexo causal.
(…)”
- No item “B Exame Objetivo”
“1. Estado geral
O Examinando apresenta-se: consciente, orientado, colaborante, com bom estado geral, idade aparente de harmonia com a idade real.
O Examinando é dextro e apresenta marcha normal, sem apoio nem claudicação
2. Lesões e/ou sequelas relacionáveis com o evento
O examinando apresenta:
Membro inferior direito:
· Sem atrofia da coxa
· Joelho: sem edema ou sinais inflamatórios; sem dor à palpação; sem derrame articular; aparente laxidez ligamentar anterior (simétrico ao joelho contralateral); manobras meniscais negativas; mobilidades completas e indolores.”
- No item “Discussão”
“1. Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a um etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões e se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo.
2. A data da cura das lesões é fixável em 27-08-2021, tendo em conta os seguintes aspetos: o tipo de lesões resultantes, o tipo de tratamentos efetuados e a data da alta clínica.
3. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes:
- Incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 20/07/2021 até 27/08/2021, fixável num período total de 39 dias.
- Incapacidade temporária parcial (correspondente ao período durante o qual foi possível à vítima desenvolver a sua atividade profissional, ainda que com certas limitações), desde 13/07/2021 até 19/07/2021 (20%), fixável num período total de 7 dias.
4. Do evento traumático em análise não resultaram sequelas, passíveis de valorização em termos de incapacidade permanente parcial (IPP).”
- No item “Conclusões”
“- A data da cura das lesões é fixável em 27-08-2021;
- Incapacidade temporária absoluta fixável num período total de 39 dias;
- Incapacidade temporária parcial fixável num período de 7 dias;
- Do evento traumático não resultaram sequelas, passíveis de valorização em termos de IPP”.

Em 8-03-2023 teve lugar a tentativa de conciliação a que se refere o artigo 108.º e seguintes do Código de Processo do Trabalho, conforme consta do respetivo auto de não conciliação refª citius 126312023.
Do identificado auto de não conciliação consta o seguinte (transcrição):
Auto de não conciliação
(…)
Presentes:
Sinistrado: AA (…).
A mandatária do sinistrado: Dr.ª BB, com procuração junta aos autos.
Entidade Responsável: B...-Companhia de Seguros, S.A.(…), representada por CC, com procuração arquivada nestes serviços.

Iniciada a diligência pelo sinistrado foi dito que no dia 12-07- 2021, cerca das 10:36 horas, em Oliveira de Azeméis, foi vítima de acidente de trabalho, quando, com a categoria profissional de técnico de telecomunicações, mediante o salário mensal de € 1.019,67 x 14 meses, trabalhava sob as ordens, direção e fiscalização de A... Unipessoal, Lda, cuja responsabilidade infortunística se encontrava transferida para a B... - Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ...90, na modalidade de prémio fixo; que o acidente consistiu em, quando ao descer de uma escada, o pé direito ficou preso num degrau, torcendo o joelho direito, tendo resultado entorse do joelho direito, o que lhe ocasionou as lesões e incapacidades descritas no relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls.38 a 39; que o Ex.mo Perito do GML de Entre Douro e Vouga fixou a consolidação médico-legal das suas lesões no dia 27-08-2021 e que do evento traumático não resultaram sequelas em termos de IPP, com o qual CONCORDA; que nada recebeu da seguradora pelos períodos de incapacidade temporária sofridos e que despendeu a quantia de € 30,00 em despesas de transporte, com as suas deslocações obrigatórias ao aludido Gabinete Médico-Legal e a este Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis.
Em face do exposto, e tendo em conta IPP de 0,00% nada reclama a título de capital de remição.
Apenas reclama as quantias de € 30,00 e de € 1.106,05 respeitante a despesas de transporte, com as suas aludidas deslocações obrigatórias e pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, respetivamente.
Reclama também os respetivos juros de mora, à taxa legal (4,00%), contados a partir do vencimento das prestações e até efetivo e integral pagamento
Nesta altura, pela representante da Seguradora foi dito que a sua representada não aceita a existência do acidente, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofridas, uma vez que o evento em apreço, não configura, legalmente, um acidente de trabalho.
Apenas aceita a categoria profissional e a transferência da responsabilidade infortunística, nos termos da citada apólice de seguro, em função da retribuição anual ilíquida de € 14.275,38.
Consequentemente, nada aceita pagar a este, a título de capital de remição ou a qualquer outro título.
Seguidamente, pela Exma Procuradora da República, foi proferido o seguinte DESPACHO:
Atentas as posições assumidas pelas partes e sendo as mesmas capazes, dou esta diligência por encerrada e aquelas por NÃO CONCILIADAS, determinando que os autos aguardem, por 20 dias, a apresentação de petição inicial por parte do sinistrado, de harmonia com as disposições conjugadas dos arts 117º nº 1 al. a) 119º nº 1 do CPT. Notifique.
Seguidamente, foram os presentes notificados.
Para constar se lavrou o presente auto que vai ser devidamente assinado.”.

Com data de 28-03-2023, o Sinistrado apresentou petição inicial a que se refere o artigo 117.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo do Trabalho - refª citius 14367287 (45156828) -, peticionando a condenação da Ré B...-Companhia de Seguros, SA (adiante designada por Ré ou Recorrente) no seguinte:
- a reconhecer que o A foi vitima de acidente de trabalho no dia 12/07/2021;
- a reconhecer a existência do nexo de causalidade entre o acidente e as lesões/sequelas que o mesmo apresenta;
- a pagar ao Autor a quantia de € 1.576,08 referente aos períodos de incapacidade temporária sofridos;
- a pagar ao Autor a quantia de € 30,00 respeitante a despesas de transporte com as deslocações ao GML e ao Tribunal de Santa Maria da feira;
- a pagar ao Autor a quantia de € 80,00 referente às despesas de deslocação para os tratamentos médicos relacionados com o acidente;
- a pagar ao Autor juros de mora já vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que sofreu um acidente de trabalho de que resultaram lesões que exigiram tratamentos e períodos de incapacidade temporária e, após evoluíram para cura clínica, tendo feito despesas de deslocação para presença em tratamentos e diligências ao GML e ao Tribunal.

Em 19-04-2023 a Ré apresentou a contestação refª citius 14462393, pugnando pela improcedência da ação e respetiva absolvição do pedido.
Sustentou, em síntese, que o autor não fez prova de um acidente em sentido naturalístico e da existência de nexo causal entre o mesmo e as lesões, e que por isso não é devedora de qualquer quantia ao Autor seja a que título for.

Não foi requerida realização de junta médica.

Foi proferido despacho saneador com a refª citius 127757638. Nessa decisão foi foi fixada a matéria de facto assente [alíneas A a G, sendo que a alínea F dos factos assentes tinha a seguinte redação: “Na tentativa de conciliação, realizada a 08/03/2023, o autor concordou com o coeficiente de desvalorização que lhe foi atribuido pelo Exmo. SPerito Médico do GML de Entre Douro e Vouga, em que lhe atribui uma IPP de 0%. Reclamou da 1ª ré o pagamento do das incapacidades temporárias parcial e absoluta sofridas no valor de €1.576,08. Mais reclamou o pagamento de € 110,00 de despesas de transporte e de deslocação para tratamentos médicos em virtude do acidente. Por seu turno, a 1ª ré seguradora não aceita a existência do acidente de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofrida, uma vez que o evento em apreço, não configura legalmente, um acidente de trabalho. Apenas aceitou a categoria profissional e a transferência da responsabilidade infortunistica pela retribuição anual ilíquida de € 14.275,38, nada aceitando pagar, a qualquer titulo”]. Foram ainda fixados os temas de prova [temas 1 a 3, sendo: 1 - Da existência e descrição do acidente; 2 – Das consequências do acidente (atente-se neste tema inseriram-se, para além do mais, as seguintes questões: “Em consequência do acidente, o autor permaneceu sem trabalhar até ao dia 15 de Setembro de 2021?”; “Em virtude das lesões, esteve afectado de: - Incapacidade Temporária absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 15/09/2021, num total de 58 dias - Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 19/07/2021 (20%), num total de 7 dias?”); 3 – Os tratamentos efetuados (neste tema inseriu-se a seguinte questão: “O autor foi acompanhado pelos Serviços Clínicos da companhia de Seguros no Centro médico da Praça ..., durante cerca de 1 mês e meio, tendo sido submetido a cerca de 20 sessões de fisioterapia?”; 4 – As despesas do autor (neste tema inseriu-se a seguinte questão: “ O autor despendeu ainda em despesas de transporte para os tratamentos a que foi submetido cerca de € 80,00 e a quantia de €30,00 para deslocação ao IML?”].

A Ré apresentou reclamação ao despacho saneador, conforme requerimento refª citius 14746027, pugnando pela alteração do teor da alínea F dos factos assentes, no sentido de ser substituída onde se diz “Reclamou da 1ª ré o pagamento das incapacidades temporárias parcial e absoluta sofridas no valor de €1.576,08. Mais reclamou o pagamento de €110,00 de despesas de transporte e de deslocação para tratamentos médicos em virtude do acidente”, por “Reclamou da Ré o pagamento das incapacidades €1.106,05. Mais reclamou as quantias de €30, respeitante a despesas de transportes, com as suas aludidas deslocações obrigatórias.”

Em 13-07-2023, o Mm.º Juiz proferiu o despacho refª citius 128407356, no qual consta, para além do mais, o seguinte:
”Existe efetivamente um lapso material na petição inicial que depois fizemos constar dos factos assentes (Facto F) que deve ser corrigido, pois o que consta do auto de não conciliação são os valores de €1.106,05 e €30 nos termos alegados na reclamação.
Por isso, defere-se a reclamação efetuada e determina-se a correção do Facto F nos termos requeridos.
Proceda às correções no local próprio.
(…)”.

Realizou-se a audiência de julgamento, conforme resulta da respetiva ata refª citius 129403392.

O Tribunal a quo proferiu sentença (decisão refª citius 129406700), concluída com o seguinte dispositivo:
«III – Decisão.
Pelo exposto, julgo procedente a ação e, em consequência, declaro que o autor sofreu um acidente de trabalho em 12 de julho de 2021 com alta médica em 15 de setembro de 2021 e, por conseguinte, condeno a ré a pagar ao autor as seguintes quantias:
A quantia de €1.626,22, a título de indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento; e
A quantia de €110, a título de despesas de deslocação, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte à tentativa de conciliação até integral pagamento.
Mais condeno a ré no pagamento das custas.
Valor da causa: € 1.736,22.
Registe e notifique.».

Inconformada com a identificada sentença, na parte em que fixou a indemnização pelos períodos de incapacidades temporárias no valor de € 1.626,22 e as despesas de deslocação em € 110,00 e a condenou no pagamento desses valores ao Autor, a Ré Seguradora, apresentou recurso de apelação (refª citius 15249289), visando que, com a procedência do recurso, seja condenada apenas no montante de €1.106,05 a título de incapacidades temporárias e €30,00 a título de despesas de deslocação.
Formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1. O presente Recurso vem interposto da sentença proferida nos autos, cujo ofício de notificação tem a referência citius 129406700, que aqui se transcreve:
“Pelo exposto, julgo procedente a ação e, em consequência, declaro que o autor sofreu um acidente de trabalho em 12 de julho de 2021 com alta médica em 15 de setembro de 2021 e, por conseguinte, condeno a ré a pagar ao autor as seguintes quantias:
A quantia de €1.626,22, a título de indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento; e
A quantia de €110, a título de despesas de deslocação, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte à tentativa de conciliação até integral pagamento.
Mais condeno a ré no pagamento das custas”.
2. Acontece que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo, deveria ter proferido decisão diferente da que proferiu, com base nos elementos documentais que se encontram nos autos, concretamente:
a. Auto de Não Conciliação, seu teor, e confissão judicial espontânea do Autor, a fls…dos autos, em diligência presencial onde lhe foi explicado o seu teor e conteúdo;
b. Despacho Saneador, que fixou devidamente os factos assentes quanto aos valores a serem indemnizados pela ora Recorrente;
c. Relatório do INML, que fixou devidamente os períodos de incapacidade temporária absoluta e parcial.
3. Concretizando, contrariamente ao pedido formulado pelo Autor na Petição Inicial, no Auto de Não Conciliação datado de 08.03.2023, consta o seguinte:
“Em face do exposto, e tendo em conta IPP de 0,00% nada reclama a título de capital de remição.
Apenas reclama as quantias de €30,00 e de €1.106,05 respeitante a despesas de transporte, com as suas aludidas deslocações obrigatórias e pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, respetivamente. […]” (negritos e sublinhados nossos). Tal facto equivale a confissão com força probatória plena, uma vez que o Autor reclamou os exatos montantes devidos.
4. Posteriormente, saneado o processo, foi proferido Despacho Saneador que fixou matéria assente com o seguinte teor, respeitante ao facto da alínea F.: “[…] Reclamou da 1ª ré o pagamento das incapacidades temporárias parcial e absoluta sofridas no valor de €1.576,08. Mais reclamou o pagamento de €110,00 de despesas de transporte e de deslocação para tratamentos médicos em virtude do acidente. […]”.
5. Face à contrariedade dos factos entre o pedido formulado pelo Autor e o teor do Auto de Não Conciliação, veio a Ré, aqui Recorrente, reclamar do Despacho Saneador, tendo o Tribunal a quo, posteriormente, decidido proceder à correção dos factos assentes para os valores que constam do auto de não conciliação, nomeadamente €1.106,05, a título de incapacidades temporárias, e €30,00, a título de despesas de deslocação.
6. Assim, tendo em conta a correção do Tribunal a quo dos factos assentes do Despacho Saneador para os valores que constam do Auto de Não Conciliação, a sentença em crise, é contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto, pelo que, ao invés de condenar a Ré no pagamento da quantia de €1.736,22, o Tribunal a quo deveria ter condenado a Ré no pagamento de €1.136,05, sob pena de estarmos perante um enriquecimento sem causa, ao abrigo do disposto no artigo 473.º do Código Civil, o que se requer expressamente.
7. Por outro lado, da sentença que agora se recorre, resultaram provados os seguintes factos:
“[…] 5. Na perícia de avaliação do dano corporal, o Perito Médico do GML de Entre Douro e Vouga, fixou a consolidação medico legal as lesões no dia 27/08/2021 e não arbitrou ao autor um coeficiente de desvalorização a título de IPP. […]
12. Em consequência do acidente, o autor permaneceu sem trabalhar desde a data da participação até ao dia 15 de setembro de 2021”.
8. Primeiramente, do Auto de Não Conciliação ficou a constar que o Sr. Perito do GML de Entre Douro e Vouga fixou a consolidação médico-legal das lesões do Autor no dia 27-08-2021, tendo o Autor, ora Recorrido, concordado com o teor do Auto e não requerendo qualquer exame por Junta Médica tendo sido tal matéria, posteriormente, fixada como assente no Despacho Saneador.
9. No entanto, o Tribunal a quo considerou, salvo o devido respeito, erradamente, para efeitos de cálculo de incapacidades temporárias, que a data da alta médica foi no dia 15 de setembro de 2021, não obstante não ter sido produzida prova que infirme o constante do exame médico singular, uma vez que não foi ouvido nenhum médico do Autor, nem foi junto qualquer elemento probatório para se considerar que a data da alta foi no dia 15 de setembro de 2021.
10. Por sua vez, foi comprometido o cálculo da incapacidade temporária absoluta, uma vez o cálculo que o Tribunal deveria ter feito seria o seguinte:
€ 14.275,38 x 0,7 / 365 x 39 dias (desde 20/07/2021 a 27/08/2021).
11. Face ao exposto, deverá o facto 12 constante do elenco dos factos provados ser dado como não provado e substituir-se pelo facto X, ao elenco dos factos provados, com o seguinte teor, que se requer: “Em consequência do acidente, o Autor permaneceu sem trabalhar desde a data da participação (dia 20/07/2021) até à data da cura/consolidação médico legal (dia 27/08/2021)”, o que se requer.
12. Consequentemente, deverá o facto 14 constante do elenco dos factos provados ser dado como não provado e substituir-se pelo facto Y, ao elenco dos factos provados, com o seguinte teor, que se requer:
“Em virtude das lesões, esteve afetado de:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até
27/08/2021, num total de 39 dias;
- Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde 13/07/2021 até 19/07/2021 (20 %), fixável num período total de 7 dias”, o que se requer.
13. Finalmente, a sentença de que se recorre contém um manifesto lapso de escrita relativamente às datas fixadas que estabelecem o período de Incapacidade Temporária Parcial, devendo, ao abrigo do disposto no artigo 614.º do CPC, ser corrigido para as seguintes datas:
“Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde 13/07/2021 até 19/07/2021 (20%), fixável num período total de 7 dias”, conforme é indicado no Relatório de INML.
14. A decisão do Tribunal a quo aqui em crise viola, entre outras normas e princípios do sistema jurídico, os seguintes artigos: 413.º, 607.º, n.º 4 e n.º 5 parte final todos do Código de Processo Civil, 352.º, 355.º, n.º 1 e 2, 356.º, 358.º n.º 1, 473.º n.º 1 todos do Código Civil.
15. Assim, deverá ser procedente o presente recurso, e a Ré, a ser condenada apenas no montante de € 1.106,05, a título de incapacidades temporárias e € 30,00, a título de despesas de deslocação.»
Terminou pugnando pela procedência do recurso e seja a sentença recorrida substituída por acórdão de acordo com as conclusões apresentadas, com todas as demais consequências.

O Autor não apresentou contra-alegações.

O Tribunal a quo admitiu o recurso de apelação, a subir imediatamente e nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (refª citius 130261197).

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto junto deste Tribunal de recurso emitiu o parecer a que alude o artigo 87.º, n.º 3, do CPT no sentido de que o recurso não merece provimento, pronunciando-se, no essencial, como se segue:
«[…]

*

B... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., vem interpor recurso de apelação da douta sentença que a condenou nos pagamentos constantes nos termos do segmento decisório, por ter sido dado como provado que o sinistrado e recorrido sofreu “um acidente de trabalho em 12 de julho de 2021 com alta médica em 15 de setembro de 2021”, de que lhe resultou uma “Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 15/09/2021, num total de 58 dias;”, bem como uma “Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 19/07/2021 ( 20%), num total de 7 dias.”.
Impugna por erro de julgamento a matéria de facto quanto aos seus pontos nº.s 12 e 14 e, bem assim, a matéria de direito.
Pugna pela revogação da sentença recorrida, a ser substituída por outra que a condene nos termos da 15ª. conclusão que formulou.
Não foram apresentadas contra alegações.
A sentença recorrida apreciou devidamente as provas oferecidas e encontra-se correctamente fundamentada, a ponto dela a recorrente ter apelado como melhor lhe aprouve, por ter compreendido o seu sentido e alcance. A factualidade apurada têm sustentação no despacho saneador. Não se vislumbra o cometimento de qualquer vício de erro de julgamento.
A sentença recorrida emitiu a devida pronúncia sobre a obrigação de reparação da totalidade do dano que foi apurado por via da verificação do sobredito acidente de trabalho e suas consequências para o trabalhador recorrido.
Sobre o mérito do recurso: improcedem as conclusões formuladas.
A decisão recorrida merece ser mantida na ordem jurídica.
[…]».

A Recorrente respondeu ao sobredito parecer, pugnando pela procedência do recurso nos termos já antes propugnados.

Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
***

II - Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado e das que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras [artigos 635.º, n.º 4, 637.º n.º 2, 1ª parte, 639.º, n.ºs 1 e 2, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho].
Assim, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
* Da impugnação da decisão quanto à matéria de facto [que incide sobre os pontos 12 e 14 dos factos provados];
* Da pretendida alteração da sentença recorrida quanto ao valor da indemnização referente aos períodos de incapacidade temporária e ao valor das despesas de deslocação a liquidar ao Autor/Sinistrado pela Ré/Seguradora.
***

III – FUNDAMENTAÇÃO
1 - A Recorrente pretende a revogação da sentença recorrida na parte em que considerou a data da alta médica em 15-09-2021 e a condenou nos montantes de €1.626,22 a título de indemnização por incapacidades temporárias e de € 110,00 a título de despesas, pugnando pela fixação da data da alta em 27-08-2021 e, bem assim, pela respetiva condenação apenas no montante de € 1.106,05 a título de indemnização pelas por incapacidades temporárias e no montante de € 30,00 a título de despesas de deslocação.
Para o conhecimento do recurso, haverá que ter em consideração o que consta do precedente relatório (sob o ponto I), que se encontra documentado nos autos, conforme resultou da consulta efetuada no suporte informático citius.
Atenta a sua relevância para a decisão do recurso, consignam-se ainda os factos dados como PROVADOS na sentença de 1ª instância, objeto de recurso, que se passam a transcrever:
« 1. Factos provados:
1. O autor é sócio-gerente da empresa A..., unipessoal, Lda.
2. A sua actividade, além da gerência, de “Técnico de Telecomunicações” consistia na prestação de serviços de reparação e manutenção básica a nível das telecomunicações.
3. O autor auferia a retribuição anual ilíquida de € 14.275,38, correspondente à retribuição base mensal de €1.019,67x14.
4. Em 27/08/2021 a ré atribuiu ao autor alta administrativa por recusa do nexo causal.
5. Na perícia de avaliação do dano corporal, o Perito Médico do GML de Entre Douro e Vouga, fixou a consolidação medico legal as lesões no dia 27/08/2021 e não arbitrou ao autor um coeficiente de desvalorização a título de IPP.
6. Na tentativa de conciliação, realizada a 08/03/2023, o autor concordou com o coeficiente de desvalorização que lhe foi atribuido pelo Perito Médico do GML de Entre Douro e Vouga, em que lhe atribui uma IPP de 0%. Reclamou da 1ª ré o pagamento do das incapacidades temporárias parcial e absoluta sofridas no valor de € 1.106,05. Mais reclamou o pagamento de € 30 de despesas de transporte e de deslocação para tratamentos médicos em virtude do acidente. Por seu turno, a 1ª ré seguradora não aceita a existência do acidente de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofrida, uma vez que o evento em apreço, não configura legalmente, um acidente de trabalho. Apenas aceitou a categoria profissional e a transferência da responsabilidade infortunistica pela retribuição anual ilíquida de €14.275,38, nada aceitando pagar, a qualquer titulo.
7. À data do acidente a responsabilidade infortunística da sociedade empregadora, encontrava-se validamente transferida para a 1ª ré, nos termos do contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulada pela Apólice nº ...90, com base na retribuição anual de € 14.275,38.
8. No dia 12/07/2021, pelas 10:36, o autor encontrava-se a efectuar uma passagem de um cabo num poste de telecomunicações e, para o efeito, teve de recorrer ao auxílio de uma escada.
9. Ao executar o serviço, ao descer a escada, quase a chegar ao solo, no segundo degrau da escada, o autor ficou com a bota de segurança presa no degrau.
10. Assim que tentava soltar o pé fez uma rotação no joelho direito, batendo com o mesmo na escada, sofrendo traumatismo de entorse, sofrendo dores.
11. Em consequência, apresentava sinais sugestivos de rotura parcial do ligamento colateral interno e discreto derrame articular, mais concretamente rotura parcial (cerca de 50%) do ligamento colateral medial ao nível da inserção do ligamento patelofemoral-entorse grau II, com ligeiro espessamento e edema do ligamento meniscofemoral; sinais de contusão do menisco interno, embora sem traços de fratura; e focos de contusão óssea na região posterior do côndilo femoral e prato tíbia lateral.
12. Em consequência do acidente, o autor permaneceu sem trabalhar desde a data da participação até ao dia 15 de Setembro de 2021.
13. Em consequência do acidente, o autor ficou com as seguintes sequelas: Postura e deslocamentos e transferências: dificuldade em colocar-se em pé após estar algum tempo com o joelho direito fletido; Fenómenos dolorosos: dor no joelho direito ao colocar-se em pé e realizar movimentos de rotação axial do membro, não carece de medicação analgésica; e Aparente laxidez ligamentar anterior (simétrico ao joelho contralateral) no joelho direito.
14. Em virtude das lesões, esteve afectado de:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 15/09/2021, num total de 58 dias;
- Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 19/07/2021 ( 20%), num total de 7 dias.
15. O autor foi acompanhado pelos Serviços Clínicos da companhia de Seguros no Centro medico da Praça ..., durante cerca de 1 mês e meio, tendo sido submetido a cerca de 20 sessões de fisiatria.
16. O autor despendeu ainda a quantia total de cerca de €110 em despesas de transporte para os tratamentos a que foi submetido e para deslocação ao IML.»
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2 – Da impugnação da decisão quanto à matéria de facto
A Recorrente insurge-se contra a decisão da matéria de facto, pugnando pela sua alteração, nos termos explicitados na sua alegação e respetivas conclusões.
Dispõe o artigo 662.º do Código de Processo Civil (adiante CPC), que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Aqui se enquadram, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da matéria de facto feita pelos recorrentes.
Claro está que a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo citado normativo não pode confundir-se com um novo julgamento.
Em conformidade, refere-se no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 17-04-2023 [processo n.º 1321/20.1.T8OAZ.P1, Relator António Luís Carvalhão - acessível in www.dgsi.pt, site onde também se encontram disponíveis os restantes Acórdãos infra a referenciar)] que no caso «de impugnação da decisão sobre a matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, é necessário que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal a quo quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal a quo, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou assinalando a insuficiência dos elementos considerados para as conclusões tiradas. É que, a reapreciação pelo Tribunal da Relação da decisão da matéria de facto proferida em 1ª instância não corresponde a um segundo (novo) julgamento da matéria de facto, apenas reapreciando o Tribunal da Relação os pontos de facto enunciados pelo interessado (que circunscrevem o objeto do recurso).».
O artigo 640.º, n.º 1, do CPC, impõe ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:
a) “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” (tem que haver indicação inequívoca dos segmentos da decisão que considera afetados por erro de julgamento);
b) “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (tem que fundamentar os motivos da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios de prova produzidos – constantes dos autos ou da gravação – que, no seu entender, implicam uma decisão diversa da impugnada);
c) “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Por sua vez, e no que respeita ao ónus previsto na alínea b), determina o legislador no n.º 2 do mesmo artigo que se observe o seguinte:
a) “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”;
b) “independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”.
O citado artigo 640.º impõe, pois, um ónus rigoroso ao recorrente, pelo que, e como evidencia António Santos Abrantes Geraldes [in “Recursos em Processo Civil – Recursos nos Processos Especiais, Recursos no Processo do Trabalho”, Almedina, 7ª edição atualizada, 2022, págs. 200 e 201], a rejeição do recurso (total ou parcial) respeitante à matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações (o elenco indicado tem por base o entendimento jurisprudencial que vem sendo sufragado nesta matéria, máxime pelo STJ):
a - Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto [artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do CPC)];
b - Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados [artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC)];
c - Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d - Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e - Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento de impugnação.
No que respeita à situação plasmada na alínea e), tenha-se presente que o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 12/2023 [publicado no DR, Série I, n.º 220/2023, de 14-11-2023 – cujo sumário foi retificado pela Declaração de Retificação n.º 35/2023, de 28 de novembro, publicado no DR, Série I, de 28-11-2023], uniformizou jurisprudência nos seguintes moldes:
«Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.».
Como também sublinha António Abrantes Geraldes, as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconformismo. Contudo, importa que não exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador [obra citada, págs. 201 e 202].
Feitas estas considerações, e transpondo o regime exposto para o caso vertente, terá de concluir-se que a Recorrente cumpriu o ónus a seu cargo decorrente do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Importa ter em conta que não estão em causa depoimentos gravados, apenas prova documental e pericial, sendo que a Recorrente impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos que tendo sido considerados provados, em seu entender, se mostram incorretamente julgados e a resposta que considera dever ser dada aos mesmos.
Acresce que, quanto aos factos que impugna, indicou os elementos probatórios (relatório do INML de avaliação do dano corporal constante dos autos – prova pericial referente à perícia médico legal singular realizada na fase conciliatória; prova documental – auto de não conciliação) e invocou as razões pelas quais, na sua perspetiva, se justifica a pretendida alteração dos factos impugnados.
Estão, pois, reunidas as condições para este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
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Atento o processo em causa, emergente de acidente de trabalho e que se inicia por uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público, tendo por base a participação do acidente, previamente à pronúncia sobre aquela primeira questão, importa tecer algumas considerações genéricas sobre a tramitação de tal processo, caraterizado como um processo especial com natureza urgente e oficiosa [cfr. artigos 26.º, n.ºs 1, alínea e), e 3 e Título IV, Capítulo II, artigos 99.º e seguintes do Código de Processo do Trabalho – diploma legal a que se reportam as demais disposições infra a referenciar, desde que o sejam sem menção expressa em sentido adverso].
O processo para efetivação de direitos resultantes de acidente de trabalho encontra-se regulado nos artigos 99.º a 150.º.
Tal processo compreende duas fases distintas, a saber: uma primeira, denominada fase conciliatória, de realização obrigatória e dirigida pelo Ministério Público; e, uma segunda, a fase contenciosa, de realização eventual e sob a direção do Juiz.
A fase conciliatória visa, como decorre da sua própria designação, alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente do trabalho para o sinistrado, mediante uma composição amigável, embora necessariamente sujeita a regras legais imperativas, pela natureza indisponível dos direitos (cfr. artigos 78.º e 12.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro), atendendo aos interesses de ordem pública envolvidos.
A tramitação da fase conciliatória, tendo em vista alcançar o referido objetivo, compreende, por sua vez, três fases, mais precisamente: uma primeira de instrução, que tem em vista a recolha e fixação de todos os elementos essenciais à definição do litígio, de modo a indagar sobre a “(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo suscetível de ser homologado (artigos 104.º, n.º 1, 109.º e 114.º); uma segunda, que consiste na realização do exame médico singular, devendo este no relatório “indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico”(artigos 105.º e 106.º); e, finalmente, a tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, com a finalidade primordial de obtenção de acordo suscetível de ser homologado pelo Juiz (artigo 109.º) [conforme se expõe no Acórdão desta Relação e Secção de 17-04-2023 (processo n.º 2040/20.4T8VLG.P1, Relator Jerónimo Freitas, que neste particular seguimos de perto, o qual, por seu turno, apela a João Monteiro, Fase conciliatória do processo para a efetivação do direito resultante de acidente de trabalho – enquadramento e tramitação, Prontuário do Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Coimbra Editora, pp. 135 e seguintes].
Na fase conciliatória, avultam, pois, a realização de exame médico singular, a realizar por perito do Tribunal (ou do Instituto de Medicina Legal), com vista à determinação das lesões e sequelas e à avaliação da correspondente incapacidade, seguida de tentativa de conciliação, na qual as partes se pronunciam sobre as questões relevantes à determinação da reparação [artigos 105.º e 109.º].
Não sendo obtido o acordo a fase conciliatória, conforme decorre do artigo 112.º, n.º 1, no auto da tentativa “(..) são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”.
O objetivo é reduzir a litigiosidade das fases subsequentes e encaminhar a tramitação posterior dos autos, que será tanto mais simples quanto menos forem as questões controvertidas.
O início da fase contenciosa, como decorre do artigo 117.º, alíneas a) e b), tem por base a apresentação de petição inicial ou o requerimento a que se refere o n.º 2 do artigo 138.º [que se reporta ao requerimento de perícia por junta médica].
O referido requerimento é o meio processual próprio a apresentar quando o interessado “se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação da incapacidade para o trabalho” (alínea b) do n.º 1 do artigo 117.º), o qual deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos (artigo 117.º n.º 2), a fim de serem respondidos pelos senhores peritos médicos no exame por junta médica previsto no artigo 139.º, n.º 1.
Por sua vez, a apresentação da petição inicial é necessária quando a discordância entre as partes na tentativa de conciliação não se fique pela questão da incapacidade.
Nas situações reconduzíveis à alínea b) do n.º 1 do artigo 117.º, o processo segue uma tramitação simplificada que apenas prevê a realização da perícia por junta médica – e eventuais diligências relacionadas com a finalidade deste ato, tendo em vista obter elementos complementares para a emissão do laudo – a que se seguirá a decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º, por remissão do n.º 1 do artigo 140.º [este último normativo dispõe que “Se a fixação da incapacidade tiver lugar no processo principal, o juiz profere decisão sobre o mérito, realizadas as perícias referidas no artigo anterior, fixando a natureza e o grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º”]. Daqui decorre que a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da identificação das partes e da sucinta fundamentação de facto e de direito do julgado [artigo 73.º, n.º 3].
Já quando a fase contenciosa tem início com uma petição inicial (artigo 117.º, n.º 1, alínea a), seguem-se os demais articulados previstos e se, para além das demais questões, estiver em causa também a discordância da incapacidade, deverão as partes nos articulados, requerer a perícia por junta médica (cfr. artigo 138.º, n.º 1). Proferido o despacho saneador e selecionada a matéria de facto, se estiver também em causa a fixação da incapacidade, deverá o juiz determinar a abertura de apenso para o efeito, no qual se decidirá a questão da fixação da incapacidade, fixando-se a natureza e grau de desvalorização, mas podendo a decisão ser impugnada no recurso a interpor da sentença final (cfr. artigos 126.º, n.º 1, 132.º, n.º 1 e 140.º, n.º 2). Todas as demais questões são decididas no processo principal, após a tramitação legalmente prevista, que inclui audiência final de julgamento.
Importa ainda ter presente que, como decorre do disposto nos artigos 112.º e 131.º, n.º 1, alínea c) [conquanto que este último se reporte à fase contenciosa que tenha por base a tramitação a que respeita o artigo 117.º, n.º 1, alínea a), e preceitos correspondentemente aplicáveis], os factos sobre os quais tenha havido acordo na tentativa de conciliação levada a cabo na fase conciliatória do processo (e que deverão ficar consignados no respetivo auto) não poderão vir a ser posteriormente discutidos em sede de fase contenciosa (tenha esta por base a tramitação a que respeita a alínea a) ou a alínea b) do artigo 117.º). Isso mesmo decorre, aliás, do disposto no artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, nos termos do qual se deverão ter, na sentença, como assentes os factos que estejam admitidos por acordo.
No caso dos autos, frustrou-se a conciliação na fase conciliatória, sendo certo que resulta do auto de não conciliação que:
- Não existiu acordo acerca da existência e caraterização do acidente.
- Existiu acordo quanto à categoria profissional de técnico de telecomunicações do Autor e quanto à transferência da responsabilidade infortunística (decorrente de acidentes sofridos pelo trabalhador Autor) da sociedade A... Unipessoal, Lda., para a Ré B... - Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ...90, na modalidade de prémio fixo, em função da retribuição anual ilíquida de € 14.275,38.
- O Autor aceitou na íntegra o resultado da perícia de avaliação do dano corporal do INML, Gabinete Médico Legal de Entre Douro e Vouga, ou seja, quer quanto aos períodos de incapacidade temporária aí fixados [ITA (correspondente ao período durante o qual o sinistrado esteve totalmente impedido de realizar a sua atividade profissional), desde 20-07-2021 até 27-08-2021; e ITP (correspondente ao período durante o qual foi possível ao sinistrado desenvolver a sua atividade profissional, ainda que com certas limitações), desde 13-07-2021 a 19-07-2021], quer quanto à data aí fixada como data da cura das lesões [27-08-2021], quer ainda quando ao facto de do evento não terem resultado sequelas passíveis de valorização em termos de IPP.
Já a Ré declarou não aceitar o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas.
Assim, não existiu acordo acerca do nexo de causalidade entre as lesões e o acidente.
Os presentes autos seguiram, como se impunha, a tramitação prevista no artigo 117.º, n.º 1, com a apresentação de petição inicial pelo Autor a que se seguiu a contestação da Ré.
Não foi requerida junta médica.
No despacho saneador foram considerados como assentes os factos aí enunciados sob as alíneas A a G, correspondentes aos pontos 1 a 7 dos factos provados, já com a retificação decorrente da reclamação apresentada pela Ré no que respeita à alínea F do saneador que corresponde ao facto provado sob o ponto 6 da sentença.
Refira-se que, relativamente aos factos sobre os quais houve acordo na tentativa de conciliação e nos articulados para efeitos do artigo 131.º, n.º 1, alínea c), no rigor dos princípios os mesmos reconduzem-se às alíneas A a E e G dos factos assentes, traduzidos nos pontos 1 a 5 e 7 dos factos provados da sentença recorrida.
Já a alínea F dos factos assentes que corresponde ao ponto 6 dos factos provados na sentença, não traduz qualquer factualidade sobre a qual tenha havido acordo das partes na tentativa de conciliação ou nos articulados, traduzindo tão só, sim, as posições que foram assumidas pelas partes no auto de tentativa de conciliação.
Atente-se que a Seguradora declarou não aceitar o acidente nem o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas, o que significa que não pode afirmar-se que aceitou totalmente o resultado da perícia de avaliação do dano corporal do INML, Gabinete Médico Legal de Entre Douro e Vouga, na medida em que no mesmo foi afirmado o sobredito nexo de causalidade, o que desde logo conduz a que tenha colocado em crise as lesões e os períodos de incapacidade temporária reconhecidos no sobredito exame como sendo consequência do evento em causa nos presentes autos.
Quanto ao facto de o Autor não ser portador de IPP, o Autor aceitou expressamente esse facto, sendo certo que a Ré também não o colocou em crise, razão pela qual, aliás, nenhuma das partes requereu perícia por junta médica para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho. Ou seja, e sem cuidar da questão do nexo de causalidade com o acidente, ambas as partes não colocaram em crise que o Autor não é portador de sequelas passíveis de valorização em termos de IPP.
Logo no despacho saneador foi, aliás, consignado na alínea E o resultado da perícia de avaliação do dano corporal da fase conciliatória no que respeita ao facto de ter fixado a consolidação médico legal das lesões no dia 27-08-2021 e não ter arbitrado ao Autor um coeficiente de desvalorização a título de IPP [mais rigorosamente a expressão utilizada na referida perícia foi “A data da cura das lesões é fixável em 27-08-2021”, mas como também fala em não ser portador de sequelas passíveis de valorização em termos de IPP, é ainda admissível que se fale em consolidação médico legal das lesões]. Nessa mesma decisão foi também referido que não estava em causa a questão da incapacidade permanente, o que não mereceu qualquer contestação das partes.
A matéria atinente às lesões e períodos de incapacidade temporária sofridos em consequência do acidente, como é óbvio, contende com questões médicas, relativamente às quais tem especial relevo a denominada prova pericial.
A prova pericial tem por objeto, conforme estatuído no artigo 388.º do Código Civil, “a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devem ser objeto de inspeção judicial”.
Do transcrito normativo decorre que a prova pericial incide sobre determinados factos e destina-se a elucidar o tribunal sobre o seu significado e alcance, no pressuposto que a respetiva natureza e complexidade técnica exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui.
Ora, como constitui entendimento uniforme na jurisprudência, na fixação da natureza e grau da incapacidade atribuída (onde se incluem os períodos de incapacidade temporária) e, bem assim, na questão do respetivo nexo de causalidade com o acidente, o juiz não pode deixar de se servir da prova obtida por meios periciais, no caso o exame médico singular realizado na fase conciliatória (já que não foi requerida nem realizada junta médica na fase contenciosa).
Pese embora a função preponderante deste meio de prova, tal não significa que o julgador esteja vinculado ao parecer dos peritos, já que o princípio da livre apreciação da prova permite-lhe que se desvie do parecer daqueles, seja ele maioritário ou unânime. Como a esse propósito elucida o Professor Alberto dos Reis, “(..) É dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe em atenção à análise critica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas. Pode realmente, num ou noutro caso concreto, o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo (..); mas isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra elas quaisquer outras provas; pode significar, também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante.” [Código do Processo Civil Anotado Vol. IV, Coimbra Editora, Reimpressão, 1987, pp. 185/186].
Com efeito, o laudo pericial (seja do exame médico singular, seja do exame por junta médica), não tem força vinculativa obrigatória, estando sujeito à livre apreciação do julgador (artigos 389º do Código Civil e 489º do Código de Processo Civil), sem prejuízo, todavia, de a eventual divergência dever ser devidamente fundamentada em outros elementos probatórios que, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, levem a conclusão contrária por se tratar de matéria em que o Juiz não dispõe dos necessários conhecimentos técnico-científicos.
Porém, quer adira ou quer se desvie, para que decida de acordo com a sua livre convicção, em qualquer caso é sempre necessário que o Juiz conte com um resultado do exame pericial devidamente fundamentado. O laudo deve convencer pela sua fundamentação, pois só assim cumpre o propósito de facultar ao juiz os elementos necessários para fixar a natureza e o grau de incapacidade.
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Isto posto, e regressando à análise da questão da impugnação da matéria de facto, importa decidir se deve ou não ser alterada a matéria impugnada pela Recorrente (pontos 12 e 14 dos factos provados).
O teor dos pontos em causa é o seguinte:
“12. Em consequência do acidente, o autor permaneceu sem trabalhar desde a data da participação até ao dia 15 de Setembro de 2021. “
“14. Em virtude das lesões, esteve afectado de:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 15/09/2021, num total de 58 dias;
- Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 19/07/2021 (20%), num total de 7 dias.”
Em concreto, defende a Recorrente os referidos pontos devem passar a ter a seguinte redação, respetivamente:
12 – “Em consequência do acidente, o Autor permaneceu sem trabalhar desde a data da participação (dia 20/07/2021) até à data da cura/consolidação médico legal (dia 27-08-2021)”.
14 - “Em virtude das lesões, esteve afetado de:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20/07/2021 até 27/08/2021, num total de 39 dias;
- Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde 13/07/2021 até 19/07/2021 (20%), fixável num período total de 7 dias”.
Alega a Recorrente, em substância, que com base nos documentos juntos aos autos e não infirmada por qualquer outro documento médico, deveria ser fixada a data da alta clínica/consolidação médico legal a 27-08-2021 e, consequentemente, os períodos de incapacidade temporária absoluta desde 20-07-2021 até 27-08-2021, e parcial desde 13-07-2021 até 19-07-2021 (20%), conforme relatório médico do INML, elaborado pelo Perito Médico do GML de Entre o Douro e Vouga de 2 de fevereiro de 2023. Argumenta que deveria ter sido fixado que o Autor permaneceu sem trabalhar desde a data da participação (20-07-2021) até à data da alta clínica/cura das lesões (27-08-2021) fixada pela referida perícia e não até ao dia 15-09-2021, com a consideração dos períodos de incapacidade temporária e absoluta atribuídos nessa mesma perícia. Mais argumenta que não foi produzida prova que infirme o constante do exame médico singular, pelo que o Tribunal a quo não se devia ter afastado da posição assumida pelo perito no exame médico singular.
No que respeita aos períodos de incapacidade temporária parcial plasmados no ponto 14 dos factos provados, a Recorrente dá ainda conta que o mesmo padece de um manifesto lapso de escrita relativamente às datas fixadas que estabelecem o período de incapacidade temporária parcial. Refere que, nessa parte, se escreveu «Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde Incapacidade Temporária Absoluta (ITA) desde 20-07-2021 até 19-07-2021 (20%), num total de 7 dias”, devendo ser corrigido para «Incapacidade Temporária Parcial (ITP) desde 13-07-2021 até 19-07-2021 (20%), num período total de 7 dias”, conforme é indicado no relatório do INML.
Quanto ao invocado lapso material das datas dos períodos de incapacidade temporária parcial, o mesmo verifica-se sem margem para dúvidas. Basta atentar nas datas inicial e final para constatar a sua verificação. Acresce que, se verifica também lapso quanto à menção a “desde Incapacidade Temporária Absoluta (ITA)” nesse segmento fáctico que é apenas atinente ao período de incapacidade temporária parcial.
Tais lapsos nas datas e menção de ITA no segmento referente ao período de ITP de 20% verificava-se já no artigo 36. da petição inicial, sendo que o Mmº Juiz a quo, à semelhança do que reconheceu ter sucedido na versão inicial da alínea F dos factos assentes no saneador, fez constar esse lapso no ponto 14 dos factos provados da sentença recorrida
Nesta decorrência, impõe-se desde logo a retificação dos indicados lapsos materiais manifestos no ponto 14 dos factos provados quanto ao segmento do período de incapacidade temporária parcial, face ao preceituado nos artigos 146.º e 614.º do CPC.
Resta saber se assiste razão à Recorrente quanto às demais alterações visadas relativamente aos pontos 12 e 14 dos factos provados.
Tendo em conta a tramitação seguida nos presentes autos - de que se dá conta no relatório sob o ponto I e também no consignado supra nesta sede de fundamentação - e analisada a prova pericial constante dos autos – exame médico singular realizado na fase conciliatória, e ponderando, aliás, a própria fundamentação da sentença recorrida, forçoso é concluir que de facto se impõe a este Tribunal da Relação a alteração dos pontos 12 e 14 dos factos provados nos termos pretendidos pela Recorrente.
Vejamos porquê.
O próprio Tribunal a quo, como decorre da fundamentação da matéria de facto, referiu o seguinte: “No que respeita às consequências do acidente e tratamentos médicos acolhemos inteiramente o relatório médico-legal.”
Se o Tribunal refere que acolhe inteiramente esse laudo pericial singular é porque o mesmo lhe mereceu credibilidade, sendo certo que nas consequências do acidente se integram, como é evidente, a matéria das lesões sofridas em consequência do acidente, o período de incapacidade temporária absoluta (ITA – período em que o sinistrado esteve totalmente impedido de realizar a sua atividade profissional) e de incapacidade temporária parcial (ITP – período em que foi possível ao desenvolver a sua atividade profissional, ainda que com certas limitações) de que o sinistrado esteve afetado em consequência das lesões sofridas como consequência do acidente e, bem assim, a questão da data da alta/cura/consolidação médico legal das lesões sofridas em consequência do acidente – matéria que constava dos temas de prova (tema de prova 2) e sobre a qual versam os pontos 12 e 14 enunciados na decisão recorrida.
Mas, se é assim, então relembre-se o que consta do sobredito relatório médico-legal do INML a propósito das consequências do acidente, na matéria relevante para os sobreditos pontos cuja alteração é pretendida.
Nesse relatório consta:
«1. Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a um etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões e se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo.
2. A data da cura das lesões é fixável em 27-08-2021, tendo em conta os seguintes aspetos: o tipo de lesões resultantes, o tipo de tratamentos efetuados e a data da alta clínica.
3. No âmbito do período de danos temporários são valorizáveis, entre os diversos parâmetros de dano, os seguintes:
- Incapacidade temporária absoluta (correspondente ao período durante o qual a vítima esteve totalmente impedida de realizar a sua atividade profissional), desde 20/07/2021 até 27/08/2021, fixável num período total de 39 dias.
- Incapacidade temporária parcial (correspondente ao período durante o qual foi possível à vítima desenvolver a sua atividade profissional, ainda que com certas limitações), desde 13/07/2021 até 19/07/2021 (20%), fixável num período total de 7 dias.
(…)
Conclusões
- A data da cura das lesões é fixável em 27-08-2021;
- Incapacidade temporária absoluta fixável num período total de 39 dias;
- Incapacidade temporária parcial fixável num período de 7 dias;
(…)»
Perante o resultado deste exame pericial, nas sobreditas matérias, o qual o Tribunal a quo referiu acolher inteiramente em sede de consequências do acidente, nem sequer se alcança fundamento para a redação dada aos pontos 12 e 14 dos factos provados na parte em que divergem frontalmente do sobredito relatório pericial e muito menos, diga-se desde já, para a menção em sede de dispositivo da sentença da data da alta médica como sendo em 15 de setembro de 2021!
A menos que também aqui a divergência entre a fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo e a redação que fez constar nos sobreditos pontos se tenha devido mais uma vez a lapso material pelo facto de ter usado o suporte informático da petição inicial que nessa parte (períodos de incapacidade temporária resultantes do acidente) não era coincidente com o resultado do exame pericial singular do INML (cfr. artigos 31. e 36. da petição inicial).
Seja como for, o certo é que o laudo pericial em referência se encontra devidamente justificado, de forma clara e objetiva, inexistindo fundamentos para questionar a respetiva avaliação.
Sublinhe-se também que não foram produzidos nem constam nos autos quaisquer outros elementos probatórios com a virtualidade de colocar em crise a perícia de exame médico singular do INML de realização obrigatória nos termos e com os formalismos previstos nos artigos 105.º e 106.º.
Nesta conformidade, considera-se que, de facto, é de acompanhar inteiramente o resultado da prova pericial médica produzida na matéria fáctica em questão, prova essa que por si impõe a alteração dos pontos da matéria de facto impugnados pela Recorrente, sendo essa alteração, no essencial, no sentido por si pretendido.
Atente-se que não será seguida exatamente a redação proposta pela Recorrente no que respeita ao ponto 12 , mais precisamente não será mantida a expressão “desde a data da participação” que constava nesse ponto, antes sendo apostas as datas (início e fim) referentes ao período em que em consequência do acidente o Autor permaneceu sem trabalhar, em consonância com o resultado da referida prova pericial [atente-se que a menção “desde a participação”, não é desde logo clara, na medida em que não concretiza a data de início, nada relevando aliás essa menção para o objeto do litígio dos autos – a julgar pela documentação junta aos autos pela Seguradora na fase conciliatória a participação a que se terá feito referência era a participação feita pela entidade empregadora à Seguradora que está datada de 20-07-2021].
Pelo exposto, na procedência da impugnação deduzida quanto à decisão de facto e, bem assim, retificando o lapso material verificado nos termos apontados no que respeita ao período de incapacidade temporária parcial, altera-se no conjunto dos factos assentes/provados da sentença recorrida os pontos 12 e 14, que passam a ter a seguinte redação:
“12 – Em consequência do acidente, o autor permaneceu sem trabalhar desde dia 20-07-2021 até à data da cura/consolidação médico legal (dia 27-08-2021)”.
“14 – Em virtude das lesões, esteve afetado de:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA), desde 20-07-2022 até 27-08-2021, num total de 39 dias;
- Incapacidade temporária parcial (ITP) desde 13-07-2021 até 19-07-2021 (20%), fixável num período total de 7 dias.”
Em conclusão, atentas as sobreditas alterações introduzidas no elenco dos factos provados constante da decisão recorrida, tais factos são os seguintes:
1. O autor é sócio-gerente da empresa A..., unipessoal, Lda.
2. A sua actividade, além da gerência, de “Técnico de Telecomunicações” consistia na prestação de serviços de reparação e manutenção básica a nível das telecomunicações.
3. O autor auferia a retribuição anual ilíquida de €14.275,38, correspondente à retribuição base mensal de €1.019,67x14.
4. Em 27/08/2021 a ré atribuiu ao autor alta administrativa por recusa do nexo causal.
5. Na perícia de avaliação do dano corporal, o Perito Médico do GML de Entre Douro e Vouga, fixou a consolidação medico legal as lesões no dia 27/08/2021 e não arbitrou ao autor um coeficiente de desvalorização a título de IPP.
6. Na tentativa de conciliação, realizada a 08/03/2023, o autor concordou com o coeficiente de desvalorização que lhe foi atribuido pelo Perito Médico do GML de Entre Douro e Vouga, em que lhe atribui uma IPP de 0%. Reclamou da 1ª ré o pagamento do das incapacidades temporárias parcial e absoluta sofridas no valor de € 1.106,05. Mais reclamou o pagamento de € 30 de despesas de transporte e de deslocação para tratamentos médicos em virtude do acidente. Por seu turno, a 1ª ré seguradora não aceita a existência do acidente de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e as lesões sofrida, uma vez que o evento em apreço, não configura legalmente, um acidente de trabalho. Apenas aceitou a categoria profissional e a transferência da responsabilidade infortunistica pela retribuição anual ilíquida de €14.275,38, nada aceitando pagar, a qualquer titulo.
7. À data do acidente a responsabilidade infortunística da sociedade empregadora, encontrava-se validamente transferida para a 1ª ré, nos termos do contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulada pela Apólice nº ...90, com base na retribuição anual de € 14.275,38.
8. No dia 12/07/2021, pelas 10:36, o autor encontrava-se a efectuar uma passagem de um cabo num poste de telecomunicações e, para o efeito, teve de recorrer ao auxílio de uma escada.
9. Ao executar o serviço, ao descer a escada, quase a chegar ao solo, no segundo degrau da escada, o autor ficou com a bota de segurança presa no degrau.
10. Assim que tentava soltar o pé fez uma rotação no joelho direito, batendo com o mesmo na escada, sofrendo traumatismo de entorse, sofrendo dores.
11. Em consequência, apresentava sinais sugestivos de rotura parcial do ligamento colateral interno e discreto derrame articular, mais concretamente rotura parcial (cerca de 50%) do ligamento colateral medial ao nível da inserção do ligamento patelofemoral-entorse grau II, com ligeiro espessamento e edema do ligamento meniscofemoral; sinais de contusão do menisco interno, embora sem traços de fratura; e focos de contusão óssea na região posterior do côndilo femoral e prato tíbia lateral.
12 – Em consequência do acidente, o autor permaneceu sem trabalhar desde dia 20-07-2021 até à data da cura/consolidação médico legal (dia 27-08-2021)”.
13. Em consequência do acidente, o autor ficou com as seguintes sequelas: Postura e deslocamentos e transferências: dificuldade em colocar-se em pé após estar algum tempo com o joelho direito fletido; Fenómenos dolorosos: dor no joelho direito ao colocar-se em pé e realizar movimentos de rotação axial do membro, não carece de medicação analgésica; e Aparente laxidez ligamentar anterior (simétrico ao joelho contralateral) no joelho direito.
“14 – Em virtude das lesões, esteve afetado de:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA), desde 20-07-2022 até 27-08-2021, num total de 39 dias;
- Incapacidade temporária parcial (ITP) desde 13-07-2021 até 19-07-2021 (20%), fixável num período total de 7 dias.”15. O autor foi acompanhado pelos Serviços Clínicos da companhia de Seguros no Centro medico da Praça ..., durante cerca de 1 mês e meio, tendo sido submetido a cerca de 20 sessões de fisiatria.
16. O autor despendeu ainda a quantia total de cerca de € 110 em despesas de transporte para os tratamentos a que foi submetido e para deslocação ao IML.
*

3 - Da pretendida alteração da sentença recorrida quanto ao valor da indemnização referente aos períodos de incapacidade temporária e ao valor das despesas de deslocação a liquidar ao Autor/Sinistrado pela Ré/Seguradora.
Nesta sede, defende, em primeira linha, a Recorrente que tendo em conta a correção do Tribunal a quo dos factos assentes no despacho saneador para os valores que constam no auto de não conciliação como reclamados pelo Autor, mais precisamente o valor de € 30,00 a título de despesas de deslocação e de €1.106,05 a título de incapacidades temporárias, a sentença em crise é contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto, pelo que ao invés de condenar a Ré no pagamento da quantia de €1.736,22 (€1.626,22 a título de incapacidades temporárias+€110,00 a título de deslocações), o Tribunal a quo deveria ter condenado a Ré no pagamento da quantia de € 1.136,05 (€1.106,05 a título de incapacidades temporárias+€30,00 a título de deslocações).
Mais sustenta que o Tribunal a quo considerou para efeitos de cálculo da indemnização dos períodos de incapacidades temporárias que a data da alta médica foi no dia 15-09-2021, ao invés de, como se impunha, considerar como tal a data de 27-08-2021 fixada pela perícia de avaliação do dano corporal como data de consolidação médico legal das lesões. Mais refere que tal circunstância comprometeu o cálculo da incapacidade temporária absoluta, o qual devia ter sido com reporte a 39 dias (desde 20-07-2021 a 27-08-2021) e não a 58 dias (desde 20-07-2021 a 15-09-2021).
Que dizer?
Começando pela questão do valor indemnização devida pela Ré seguradora ao Autor sinistrado pelos períodos de incapacidade temporária de que este esteve afetado em consequência das lesões sofridas no acidente dos autos, como é evidente, perante a alteração operada em sede da matéria de facto, terá necessariamente que ser refeito o cálculo do valor dessa indemnização.
De facto, embora se mantenha o período de 7 dias de ITP de 20%, o período de ITA alterou-se de 58 dias para um período de 39 dias.
Assim, tendo em conta os períodos de incapacidade temporária sofridos pelo Sinistrado em consequência do acidente (pontos 12 e 14 dos factos provados – ITA de 20-07-2021 a 27-08-2021 e ITP de 20% de 13-07-2021 a 19-07-2021) e a retribuição anual a considerar de € 14.275,38 (pontos 3 e 7 dos factos provados), nos termos do disposto nos artigos 48.º, n.º 3, alíneas d) e e) e 71.º, n.ºs 1 a 3 da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro (adiante NLAT), a quantia a liquidar pela Seguradora/Recorrente ao Autor/Sinistrado a título de indemnização por incapacidades temporárias ascende ao montante global de € 1.106,05.
Tal quantia foi calculada nos seguintes termos:
- Período total de ITA – 39 dias (de 20-07-2021 a 27-08-2021);
- Período total de ITP de 20% - 7 dias (de 13-07-2021 a 19-07-2021);
- Ao período de ITA (39 dias) corresponde o valor indemnizatório de € 1.067,72 - €14.275,38/365x0.70x39;
- Ao período de ITP de 20% (7 dias) corresponde o valor indemnizatório de € 38,33 - €14.275,38/365x0.70x0,20x7;
Conclui-se, pois, que o valor a liquidar pela Seguradora/Recorrente ao Autor/Sinistrado a título de indemnização por incapacidades temporárias ascende ao montante global de €1.106,05 e não o valor de €1.626,22 fixado pelo Tribunal a quo, havendo que alterar a decisão recorrida em conformidade.
Importa consignar que tal acontece apenas por força dos períodos de incapacidade temporária que foram apurados em sede fática como tendo resultado do acidente de trabalho dos autos (atenta a alteração decorrente da procedência da impugnação da matéria de facto conhecida no ponto 2 supra) e da aplicação do regime jurídico de reparação de acidentes de trabalho previsto na Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro (cfr. artigos 23.º, alínea b), 48.º, n.ºs 1, 3 alíneas d) e e), e 4, 50.º, n.ºs 1 e 3, 71.º e 72º, n.º 3 da NLAT), e não, por decorrência de qualquer confissão judicial espontânea do Autor em sede de auto de não conciliação e muito menos por o despacho saneador ter fixado os factos assentes quanto aos valores a serem indemnizados como defende a Recorrente.
Ao contrário do sustentado pela Recorrente, e sempre ressalvando o devido respeito por posição divergente, o auto de não conciliação no que se refere à declaração aí expressa pelo Sinistrado de que “Apenas reclama as quantias de € 30,00 e de € 1.106,05 respeitante a despesas de transporte, com as suas aludidas deslocações obrigatórias e pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, respetivamente.”, não equivale a uma confissão judicial com força probatória plena contra o confitente para efeitos dos artigos 352.º, 355.º, n.º 1, 356.º e 358., n.º 1, do Código Civil (adiante CC).
Nos termos do artigo 352.º do CC, confissão é um reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
Estamos a falar de confissão como meio de prova, sendo certo que a confissão está inserida no capítulo II do Código Civil, atinente às provas.
A confissão é uma declaração de ciência, isto é, uma informação sobre uma realidade.
Conforme aponta José Lebre de Freitas, o que subjaz à confissão, enquanto meio com determinada força probatória é a premissa retirada da normalidade das coisas de que “ninguém mente contrariamente ao seu interesse”, formando-se a “…presunção da realidade do facto (desfavorável ao confitente) ou invés, da inocorrência do facto (favorável ao confitente) que dela é objecto” [A Ação Declarativa Comum, 4.ª edição págs. 295-296].
Ora, perante aquela declaração o Autor não está a confessar qualquer facto e muito menos um que lhe seja desfavorável e favoreça a parte contrária (no caso a Seguradora). Atente-se que a Seguradora não aceitou a existência do acidente nem a sua caraterização como acidente de trabalho e nada aceitou pagar a título da respetiva reparação.
O Autor apenas anunciou em sede de tentativa de conciliação da fase conciliatória os valores que reclamava a título de reparação do acidente de trabalho em causa nos autos, não tendo confessado nessa diligência qualquer facto que lhe fosse desfavorável.
Tanto basta para afastar a referida linha argumentativa da Recorrente, sem necessidade sequer de entrar na questão de haver hipóteses em que os factos são insuscetíveis de prova por confissão, como é o caso dos relativos a direitos indisponíveis (cfr. artigo 354.º, alínea b), do CC – a confissão não faz prova contra o confitente se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis).
Por outro lado, e ao contrário do também defendido pela Recorrente, no auto de não conciliação e no despacho saneador não ficaram de modo algum assentes os valores a serem indemnizados pela mesma.
A retificação operada na sequência da reclamação ao despacho saneador apresentada pela Recorrente aconteceu porque, como resulta do despacho que a deferiu, a alínea F na sua redação inicial, por lapso material, não plasmava os valores que constavam no auto de não conciliação como reclamados pelo Autor a título de incapacidades temporárias de despesas de deslocação.
Essa alínea F, já retificada, e depois o ponto 6 dos factos provados que a reproduz, apenas traduz o que consta do auto de não conciliação em termos de posições aí assumidas pelas partes, em face do que aí declararam, nada mais.
Não se desconhece que no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de outubro de 2019 [processo n.º 5068/17.8T8LRA-A.C1, Relator Felizardo Paiva] se entendeu que: Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto. Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.”
Seguramente será esse o entendimento seguido pela Recorrente.
No entanto, não é essa a posição que se tem seguido nesta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto.
Sobre esta matéria se pronunciou, entre outros, o Acórdão desta Secção Social de 15-12-2021 [processo 2658/20.5T8VNG-A.P1, Relator Rui Penha], que passamos a transcrever por espelhar a posição que tem sido seguida nesta Secção e a respetiva linha argumentativa, que se sufraga.
Assim, expõe-se nesse Acórdão o seguinte:
«Conforme se refere no acórdão deste Tribunal de 16 de Dezembro de 2015, processo 19/14.4TUVNG.P1, acessível em www.dgsi.pt, citado pelo Ilustre Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “Do teor do citado normativo [art. 112º do CPT] conclui-se que só os factos admitidos por acordo, e consignados na acta de tentativa de conciliação, é que são considerados assentes, todos os outros com interesse para a decisão da causa passam a ser factos controvertidos e, como tal, sujeitos a discussão na fase contenciosa da acção – cf. artigo 131.º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPT).” Este mesmo colectivo pronunciou-se no mesmo sentido no acórdão de 11 de Abril de 2018, processo 3273/15.0T8PNF.P1, ainda acessível em www.dgsi.pt, no qual se acrescenta, a propósito de despesas não reclamadas no processo, ainda que já efectuadas: “não há caso julgado quanto a esta questão. O tribunal a quo não foi confrontado com o pedido destas despesas na sentença e, logo, não emitiu qualquer pronúncia sobre elas. O tribunal quando fez constar da sentença que “Foram-lhe pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta", procede a uma afirmação genérica e parte do que foi alegado pelas partes. Ora, nem a sinistrada nem a autora sujeitaram ao tribunal qualquer pedido de apreciação sobre essas despesas.”
Efectivamente, conforme se salienta no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Novembro de 2019, processo 1989/16.3T8AVR.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt, “No campo da reparação emergente de acidente de trabalho, prevista na Lei 98/2009, de 04.09, os direitos dela decorrentes têm natureza indisponível como decorre do disposto no art. 78º do citado diploma, o qual dispõe que: “[o]s créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho”. E, bem assim, no art. 12º da citada Lei, nos termos do qual: : “1. É nula a convenção contrária aos direitos ou garantias conferidos na presente lei ou com eles incompatível. 2. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos na presente lei. 3. (…)” Por outro lado, essa irrenunciabilidade, e consequente indisponibilidade, estende-se também à questão da determinação da entidade responsável pela reparação, não podendo o titular do direito à reparação prescindir do direito de que porventura possa ser titular em relação a alguma das entidades que pudessem eventualmente vir a ser responsabilizadas (seguradora ou empregadora).”
Assim, entende-se ser inadmissível a renúncia aos direitos emergentes de acidente de trabalho, quer directa, quer indirectamente, através da falta de reclamação na aludida tentativa de conciliação. Como, em nosso entender, resulta da redacção dos referidos arts. 111º e 112º, nº 1, do CPT, esta apenas vincula as partes relativamente aos pontos directamente abordados e acordados pelas partes e não para além destes.
No mesmo sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de Setembro de 2019, processo 144/07.8TTLMG.2.G1, acessível em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta: “O processo destinado à efectivação de direitos emergentes de acidente de trabalho, atenta a imperatividade, indisponibilidade, irrenunciabilidade e oficiosidade que lhes são inerentes, pode ser reaberto para conhecimento de direitos que, por qualquer razão, não tenham sido apreciados até à decisão final, só se verificando caso julgado relativamente aos que foram expressa e concretamente apreciados.” Vejam-se ainda os acórdãos do STJ de 14 de Dezembro de 2006, processo 06S789, igualmente acessível em www.dgsi.pt, e de 11 de Maio de 2017, processo 1508/10.5TTLSB.L1.S1, acessível em www.direitoemdia.pt. ».
A lei, de facto, comina de nulos todos os atos que se traduzam na renúncia ou que sejam contrários a direitos e garantias do regime de reparação dos acidentes de trabalho – artigo 12.º da NLAT. Trata-se de matéria considerada de relevante interesse social e público, imperativa, em que o grau de oficiosidade é maior, optando o legislador por subtrair a sua resolução ao domínio privado, com as necessárias consequências daí resultantes que se espelham no seu regime jurídico.
Por outro lado, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-12-2018 [processo n.º 620/16.1.T8LMG.C1.S1, Relator Ribeiro Cardoso], que aqui se acompanha inteiramente (citação):
«O direito do trabalhador, vítima de acidente de trabalho, à “justa reparação” tem assento no art. 59º, nº 1, al. f) da Constituição da República Portuguesa.
Positivando este direito constitucional, estabelece o art. 283º, nº 1 do Código do Trabalho: “[o] trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional”, remetendo o art. 284º a regulamentação da referida reparação para legislação específica.
Preceitua por seu turno o art. 78.º da LAT: “[o]s créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.”
É por isso que nos termos do art. 114º do CPT, o acordo obtido na fase conciliatória do processo apenas é homologado pelo juiz “se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais”. E que, estandoem discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na acção qualquer entidade que julgue ser eventual responsável(art. 127º, nº 1 do CPT).
Estipula o art. 74º do CPT “[o] juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 514º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”.
Este dever oficioso do juiz, privativo do processo laboral, nos termos do qual “[o] tribunal pode movimentar-se na acção, sem que a limitação dos termos em que foi proposta ou contestada constitua impedimento a fazer coincidir o que é direito” – pretensão substantiva – “com a intenção do demandante em pedir tudo a quanto tem direito” – pretensão processual – “eventualmente condenando em conformidade” ([3]), contrapõe-se ao princípio do dispositivo estabelecido no art. 264º do CPC, pese embora também este não seja absoluto, mesmo no regime processual civil, como resulta da ressalva do art. 608º, nº 2, in fine, do mesmo diploma.
(…)
Como é referido no acórdão desta 4ª Secção de 30.09.2004 ([5]) «[t]êm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, como é o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho do direito ao salário na vigência do contrato, considerando que a condenação “extra vel ultra petitum” só se justifica neste segundo tipo de direitos que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante).
Nestes casos, a actividade do julgador não deve confinar-se ao pedido formulado pelo autor no seu aspecto quantitativo e qualitativo, pois tal equivaleria a frustrar o carácter público e a finalidade social daquelas leis pela aceitação tácita e implícita da sua renunciabilidade. Com o dever que impõe ao juiz de definir o direito material fora, ou para além, dos limites constantes do pedido formulado, o legislador pretendeu reduzir ao mínimo aquele risco».
O direito de reparação por acidentes de trabalho é um direito que a lei quer não só que exista, como também que seja exercido. É nestes direitos que a vontade das partes se torna irrelevante, quer no plano prático, quer no plano jurídico.
O regime excepcional do artigo 74º do CPT só se justifica, realmente, considerando que a condenação em quantidade superior ao pedido, ou em objecto diverso dele, tem em vista o suprimento pelo juiz.
(…) Esta possibilidade de o magistrado judicial condenar para além do pedido, resulta da circunstância nada despicienda de estarmos na presença de direitos imbuídos de uma natureza muito específica. Respeitam a aspectos de assistência na doença e na invalidez. Buscam, portanto, a sua indisponibilidade absoluta em razões de interesse e de ordem pública, isto é, em interesses supra-individuais.
Destarte, é da mais elementar justiça material que, se o interessado não actua, exercendo os direitos com vista à indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional (reitere-se, direitos de exercício necessário), o juiz se lhe deve sobrepor, atribuindo-lhe e arbitrando-lhe as indemnizações resultantes de previsão legal no ordenamento jurídico-laboral nacional” ([6]).
Temos assim por assente que, tratando-se, como se trata de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso, devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente dos valores peticionados.
Por consequência, não tendo ocorrido o trânsito em julgado da decisão sobre a matéria de facto e sobre a culpa da empregadora, ainda que a questão daqueles valores não tivesse sido suscitada, como foi, pelo Ministério Público no âmbito do disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, e apesar de nem a A. nem o MºPº terem apelado, deveria a Relação ter fixado a indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte de acordo com as normas legais e os factos provados, nos termos dos arts. 74º, do CPT, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, ambos do CPC, estes “ex vi” do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT.»
Analisando o caso concreto, e como se pode verificar da leitura do auto de não conciliação já acima transcrito, os únicos pontos de acordo dizem respeito à categoria profissional de técnico de telecomunicações do Autor e à transferência da responsabilidade infortunística (decorrente de acidentes sofridos pelo trabalhador Autor) da sociedade A... Unipessoal, Lda, para a Ré B... - Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice nº ...90, na modalidade de prémio fixo, em função da retribuição anual ilíquida de € 14.275,38.
Não houve acordo quanto à ocorrência e caraterização do acidente como de trabalho, nem acerca do nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, não podendo sequer afirmar-se que tenha existido acordo quanto às consequências do acidente suscetíveis de reparação. A Seguradora nada aceitou pagar a título de reparação do acidente.
Por essa razão, teve lugar a fase contenciosa do processo, apresentando o Autor, como se impunha, a petição inicial.
Na petição inicial é certo que o Autor acabou por peticionar a condenação da Ré em termos de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária num valor superior ao que havia anunciado reclamar em sede de tentativa de conciliação da fase conciliatória e, bem assim, formulou, para além das despesas de transporte com as deslocações a que se havia reportado naquela diligência (no valor de € 30,00), o pedido de condenação da Ré no pagamento da quantia de € 80,00 referente a despesas de deslocação para os tratamentos médicos relacionados com o acidente.
Em face da posição sufragada, acima transcrita, não se pode considerar que o Autor estivesse impedido de formular tais pedidos em sede de petição inicial nos termos do artigo 138.º, n.º 1, isto sem prejuízo, como é óbvio, da posterior apreciação da questão da prova dos factos que suportavam tais pedidos e do mérito do peticionado. Como, aliás, se veio a verificar no que respeita à indemnização pelos períodos de incapacidade temporária em que, tendo em conta os factos provados e o regime jurídico de reparação aplicável, apenas assistiu ao Autor o direito a receber o montante de € 1.106,05 e não o valor peticionado na petição inicial de € 1.626,22. Quanto ao montante de € 80,00 referente a despesas de deslocação para os tratamentos médicos relacionados com o acidente, para além de, como vimos, nada obstar à sua formulação em sede de petição inicial, os factos que resultaram provados nos pontos 15 e 16 (que não foram sequer objeto de impugnação) suportam o direito do Autor a receber também esse montante. Estão em causa direitos indisponíveis, devendo a reparação ser fixada de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente dos valores reclamados na tentativa de conciliação da fase conciliatória e/ou dos próprios valores peticionados em sede de petição inicial (artigo 74.º).
Uma última palavra para dizer que não procede de todo a argumentação da Ré no sentido de que a condenação em valor superior ao reclamado pelo Autor em sede de tentativa de conciliação equivaleria a um enriquecimento sem causa.
Quanto aos períodos de incapacidade a questão já nem se coloca, na medida em que perante a alteração fáctica e do valor de indemnização da responsabilidade da Seguradora que foi atrás determinada, o valor da condenação é coincidente com o valor que tinha sido reclamado e que corresponde aos períodos de incapacidade temporária sofridos em consequência do acidente.
Relativamente às despesas de deslocações para tratamentos médicos não se perfila, como é evidente, nenhum enriquecimento sem causa.
Segundo o disposto no artigo 473.º, n.º 1 do Código Civil “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Conforme se expõe no recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-10-2023 [processo nº 1510/22.4T8PRT.P1, Relator Carlos Portela], são os seguintes os requisitos cumulativos do instituto do enriquecimento sem causa:
1º) A existência de um enriquecimento, o qual “consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial”, e pode traduzir-se “num aumento do activo patrimonial”, “numa diminuição do passivo”, “no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio”, ou mesmo “na poupança de despesas”;
2º) Que tal enriquecimento careça de causa justificativa, quer porque nunca a teve, quer porque, tendo-a inicialmente, a perdeu entretanto.
3º) Que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa de quem requer a restituição.”
No que se refere às despesas de deslocação que a Recorrente foi condenada a pagar ao Autor inexiste qualquer enriquecimento do Autor e muito menos sem causa. Do que se tratou, sim, foi de reconhecer ao Autor o direito à reparação prevista na NLAT tendo em conta a factualidade provada sob os pontos 15 e 16 e o disposto nos artigos 39.º e 40.º da NLAT, sendo certo que a Seguradora não alegou que disponibilizou o transporte em causa ao Sinistrado.
Nenhuma censura merece a condenação da Recorrente a pagar ao Autor a quantia de 110,00 a título de despesas de deslocação, não procedendo nesta parte o recurso.
A apelação é, pois, parcialmente procedente.
As custas da 1ª instância serão suportadas por Autor e Ré na proporção do decaimento (artigo 527.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.
As custas do recurso ficam a cargo da Recorrente, face ao disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho.
***

IV – DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação da Ré, mais precisamente:
a) Procede a impugnação quanto à matéria de facto, alterando-se a redação dos pontos 12. e 14. dos factos provados da sentença recorrida, nos seguintes termos:
“12 – Em consequência do acidente, o autor permaneceu sem trabalhar desde dia 20-07-2021 até à data da cura/consolidação médico legal (dia 27-08-2021)”.
“14 – Em virtude das lesões, esteve afetado de:
- Incapacidade Temporária Absoluta (ITA), desde 20-07-2022 até 27-08-2021, num total de 39 dias;
- Incapacidade temporária parcial (ITP) desde 13-07-2021 até 19-07-2021 (20%), fixável num período total de 7 dias.”
b) Procede parcialmente a impugnação de direito, revogando e alterando o dispositivo da sentença recorrida, quanto à data da alta médica aí mencionada [que passará a ser “com alta médica em 27-08-2021”], e quanto ao segmento condenatório da Ré a título de indemnização por incapacidades temporárias, para condenar a Ré Seguradora a pagar ao Autor “A quantia de 1.106,05, a título de indemnização por incapacidades temporárias, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde o vencimento de cada prestação mensal até integral pagamento”, sendo por isso a ação parcialmente procedente.
As custas da 1ª instância serão, assim, suportadas por Autor e Ré na proporção do decaimento.
Valor processual da ação: €1.686,08.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
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Custas da apelação pela Recorrente.

Notifique e registe.


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(texto processado e revisto pela relatora, assinado eletronicamente)



Porto, 4 de março de 2024
Germana Ferreira Lopes [Relatora]
Teresa Sá Lopes [1ª Adjunta]
Eugénia Pedro [2ª Adjunta]