RESPONSABILIDADES PARENTAIS
DECISÃO PROVISÓRIA
FUNDAMENTAÇÃO
OMISSÃO DE FACTOS
NULIDADE
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
Sumário

I - Para que se possa proferir decisão, mesmo que provisória, acerca da regulação do exercício das responsabilidades parentais é mister que o tribunal fixe, ainda que sumariamente, os factos provados e não provados que se mostrem relevantes, que faça a análise crítica da prova e que proceda ao enquadramento jurídico dos factos.
II - Havendo absoluta falta de fundamentação de facto e de direito, a decisão é nula, por violação do disposto no art. 615º nº1 b) do Código de Processo Civil.
III - Não tendo sido fixados quaisquer factos provados, devem os autos ser remetidos à primeira instância, para prolação de nova decisão, devidamente fundamentada, interpretando-se restritivamente a regra da substituição prevista no art. 665º nº1 do Código de Processo Civil, a fim de se garantir o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
IV - De qualquer forma, não constando dos autos todos os elementos necessários e essenciais para a definição do superior interesse da criança, sempre se impõe remeter os autos à 1ª instância, face ao disposto na parte final do art. 665º nº2 do Código de Processo Civil, para produção das provas pertinentes.

Texto Integral

Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO:
A…. intentou contra B… a acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que constitui o processo principal, a qual se encontra pendente.
Por apenso àquela acção, corre termos, como apenso A, acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas aos filhos de ambos, C… e D…, sendo requerente A… e requerida B….
Realizou-se conferência de pais, no âmbito da qual foram tomadas declarações aos menores. Não se tendo mostrado possível a obtenção de acordo,  foi proferida decisão provisória, nos termos do art. 28º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível,  com o seguinte teor:
«1. Os menores C… e …. D… ficam confiados à guarda e cuidados de ambos os progenitores, residindo com a mãe e com o pai, alternadamente, por períodos de sete dias. A semana com cada progenitor inicia-se à sexta-feira. Iniciando-se esta sexta-feira com o progenitor;
2. No dia 15 de cada mês, o progenitor partilha a respectiva escala de voo para os 30 dias seguintes, sendo que quando estiver a voar, estes dias caberão à mãe, tratando depois de compensar quando o pai já tiver em terra;
3. O pai, não obstante estar na …, assegurará as deslocações à escola;
4. Assegurarão cada um dos progenitores as frequências das actividades extracurriculares que os menores tenham durante a semana;
5. Relativamente às férias escolares de Verão, os menores passarão períodos de 15 dias com cada um dos pais;
6. Os menores passarão com o pai, o dia do pai e o dia de aniversário deste, com pernoita;
7. Os menores passarão com a mãe, o dia da mãe e o dia de aniversário desta, com pernoita;
8. No dia de aniversário dos menores, estes tomarão uma refeição com cada progenitor;
9. Até ao final deste ano lectivo, o pai manter-se-á a pagar o colégio dos filhos, bom como todas as despesas escolares e extracurriculares dos filhos,
10. Para além disso, o pai pagará todas as despesas meéicas, medicamentosas, consultas (incluindo-se de psicologia) e tratamentos;
11. Para além disso, e não obstante ser um regime de guarda alternada, atendendo a que a mãe nesta fase ainda não se reorganizou para começar a proceder ao seu sustento, bem como ao sustento dos filhos, que é algo que ambos os progenitores estão obrigados a prover, fixo, a título provisório, a título de pensão de alimentos, a quantia mensal de €300,00, para cada menor, a pagar pelo pai à mãe até dia 15 de cada mês».
Não se conformando com este despacho, dele apelou o Requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
«1. No âmbito da conferência de pais, realizada nos autos a quo em 12/05/2023, foi fixado regime provisório quanto às responsabilidades parentais relativas aos menores C… e D….
2. Foi decidido que os menores ficariam em regime de residência alternada semanal com cada um dos progenitores e que o progenitor paga o colégio dos filhos, bom como todas as despesas escolares e extracurriculares dos filhos, assim como “atendendo a que a mãe nesta fase ainda não se reorganizou para começar a proceder ao seu sustento, bem como ao sustento dos filhos, que é algo que ambos os progenitores estão obrigados a prover, fixo, a título provisório, a título de pensão de alimentos, a quantia mensal de €300,00, para cada menor, a pagar pelo pai à mãe até dia 15 de cada mês”
3. Desta decisão vem o ora Recorrente recorrer no que diz respeito a ter sido fixado o regime de residência alternada semanal quanto ao menor D... e ter sido fixado montante de alimentos a pagar pelo progenitor.
4. Realizou-se audição dos menores, sendo que, entre outras afirmações, o menor D… relatou (Ficheiro áudio n.º 20230511154512):
a) 00:01:42.0
D…
“ E depois ela começou a gritar comigo e decidiu sentar em cima das minhas costas.
Não conseguia respirar e mordeu-me e bateu-me nas minhas costas. Então, tinha de fugir de casa.
00:03:57.1
Juiz
Começou a bater-te. Foi a primeira vez que a tua mãe te bateu?
00:04:00.4
D…
Não. Foi segunda.
(…)
00:04:39.7
Juiz
Mas tu estavas com medo da tua mãe?
00:04:41.1
D...
Sim. “
b) 00:04:52.2
D...
“ Porque agora ela está mais excitada e eu não sei o que é que ela vai fazer, porque ela está, está todas as noites, está bêbada.
00:05:01.1
Juiz
A tua mãe está todas as noites embriagada, é isso?
00:05:03.8
D...
Sim, agora sim, porque fecha no quarto e começa a beber.”
c) 00:16:56.7
“Juiz
Tu ... tu ... tu quando dizes que a tua mãe se embriaga, tu quer dizer, tu assistias ao jantar a tua mãe embriagar-se, como era?
00:17:03.9
D...
Quando ela bebe, ela tranca no quarto e bebe.”
5. Da audição do menor resulta, ainda, que, quando o pai voa em trabalho, pode ficar com os avós:
00:25:41.7
“Juiz
Nem te eu pedia isso, mas se fosses tu aqui a decidir como é que ias aqui organizar a tua vida?
00:25:47.8
D...
Quando o pai está a voar podia ir a casa dos avós.”
6. Assim, resulta claro e inequívoco da audição do menor D... que este foi agredido pela mãe, que esta se embriaga diariamente e que o menor tem medo dela e que, quando o pai voa, pode ficar com os avós paternos.
7. Dados estes factos, a decisão do regime provisório ao determinar a residência alternada semanal quanto a este menor não salvaguarda o superior interesse do menor, pois este não se encontra em segurança quando está entregue à guarda da progenitora.
8. Acresce que no passado dia 24 de maio de 2023, já depois da realização da Conferência de Pais no dia 12 de maio, houve novo incidente entre o D... e a mãe, conforme auto de notícia que ora se junta e dá por reproduzido.
9. Conforme dispõe o art. 4º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, também aplicável ao RGPTC por força do disposto no art. 4º, nº1, “a intervenção do tribunal deve ser a necessária e adequada à situação de perigo em que a criança ou jovem se encontram, no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade.”
10. Assim sendo, segundo o princípio da atualidade, a situação de perigo constitui princípio norteador da própria intervenção, pelo que efetivamente não existem condições para, atualmente o menor D... ser confiado, em regime de residência alternada semanal, à guarda da progenitora.
11. A Recorrente recorre, também, da decisão que fixou os alimentos, ao determinar que o progenitor, para além de pagar todas as despesas escolares (incluindo colégios) e extracurriculares, tem que pagar 300,00 € mensais para cada um dos filhos, por tal decisão não estar fundamentada.
12. A afirmação de que a mãe ainda não se reorganizou é uma mera conclusão e não explicada por factos indicados na decisão.
13. Tal como tem sido o entendimento jurisprudencial:
“1. Uma decisão provisória proferida no âmbito de providência tutelar cível de regulação do exercício do poder paternal instaurado no âmbito do art. 150º da O.T.Menores, sendo processo de jurisdição voluntária, deve ser fundamentada, por lhe serem aplicáveis as disposições que constam dos arts. 302º a 304º do C.P.Civil, por força do disposto no art. 1409º, nº 1 deste último diploma.
2. Assim, o julgador, em consonância com o preceituado no art. 304º, nº5 do C.P.Civil, deve fundamentar tanto no plano fáctico, como no plano jurídico, a decisão por si proferida.
3. A não fundamentação destas decisões implica a sua nulidade (cfr. art. 668º, nº 1, al. b) do C.P.Civil).
4. Também ocorre a nulidade da sentença quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial.” - Acórdão do TRC de 15/01/2013, Proc. 718/11.2TMCBR-A.C1, Relator Desembargador Luís Cravo, in www.dgsi.pt
“I-A imposição da fundamentação das decisões está consagrada no art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa e no art.º158.º (actual art.º 154.º) do Código de Processo Civil.
II-O princípio da motivação das decisões judiciais constitui uma das garantias fundamentais do cidadão no Estado de Direito.
III-E este princípio aplica-se a todas as decisões que incidam sobre qualquer pedido controvertido, incluindo, por conseguinte, a decisão a que respeita os presentes autos - regulação provisória do exercício das responsabilidades parentais - por força do princípio da aplicação subsidiária do código de processo civil, estabelecido no art.º 161.º da OTM.
IV-A decisão recorrida é totalmente omissa na referência às razões que, à luz dos princípios legais aplicáveis, – a defesa do superior interesse da criança – justificariam a mesma. Logo, é nula, por força do disposto no art.º 668.º n.º 1 b), actual art.º615.º n.º1 b) do Código de Processo Civil.” - Acórdão do TRL de 07/11/2013, Proc. 7598/12.9TBCSC-A.L1-6, Relatora Desembargadora Maria de Deus Correia, in www.dgsi.pt
“I) A fundamentação das decisões judiciais é expressão da legitimidade de exercício jurisdicional imposta pelo artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e densificada pela lei, nomeadamente pelo artigo 158.º do CPC, que a impõe na apreciação de todos os pedidos controvertidos e dúvidas suscitadas.
II) A fundamentação deve em consequência incidir sobre a explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia ou dúvidas no sentido em que o fez, devendo ser a necessária à explicitação das razões da decisão enquanto opção e a suficiente a que essas razões resultem patentes para os intervenientes processuais e para a sociedade.” - Acórdão do TRL de 25/10/2012, Proc. 4547/11.5TBCSC-A.L1-6, Relatora Desembargadora Ana de Azeredo Coelho, in www.dgsi.pt Ac TRP de 23.01.2023, Relator Eugénia Cunha:
“ III – No âmbito do processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, a falta de acordo dos progenitores, na conferência, demanda decisão provisória, obrigatória. (…)
V – Os alimentos a fixar têm de respeitar a proporcionalidade entre os meios daquele que houver de os prestar e as necessidades daquele que houver de os receber (art. 2004º, do Código Civil).
VI – Devendo a prestação de alimentos ser proporcional aos rendimentos dos progenitores e às necessidades do filho, em caso de desproporção dos rendimentos daqueles a quota-parte da prestação de alimentos por cada deles um deverá ser aferida, equitativamente, em concreto, segundo as circunstâncias do caso.
VII - Assim, a definição da medida dos alimentos, que será efetuada com base numa ideia de proporcionalidade entre as possibilidades do devedor e as necessidades do credor, tem de conter a equitativa ponderação das reais possibilidades, atuais, dos progenitores.”
14. Ora, a não fundamentação da decisão ora recorrida no que respeita à fixação dos alimentos, sendo omissa na referência às razões que, considerando o princípio do superior interesse da criança, justificariam a mesma, implica a nulidade dessa decisão, por força do disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil, aplicável por via do princípio da aplicação subsidiária do código de processo civil, como estabelecido no artigo 33.º do RGPTC.
15. A decisão ora recorrida, no que respeita ao menor D..., viola as normas jurídicas constantes dos artigos 69.º, n.º 1 da C.R.P., do artigo 5º do RGPTC (no que respeita a ter em consideração a opinião do jovem), 3º, nº 1, 12º, nº 1 e 19º, nº 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança, do artigo 28.º, n.º 1 do R.G.P.T.C. e do artigo 1906.º, n.º 5, 1ª parte, do C.C..
Por todas as razões expostas, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, porque provado, devendo, em conformidade, a decisão ora recorrida:
a) Que decidiu a residência alternada no que respeita ao menor D..., ser declarada nula e revogada e, assim ser alterada, sendo fixada a residência com o Recorrente, com visitas vigiadas à Recorrida;
b) Ser considerada nula, no que respeita à fixação de pensão de alimentos, por falta de fundamentação, sendo omissa na referência às razões que, considerando o princípio do superior interesse da criança, justificariam a mesma, por força do disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil, aplicável por via do princípio da aplicação subsidiária do código de processo civil, como estabelecido no artigo 33.º do RGPTC.
Assim, farão V. Exas. a Costumada Justiça.»
Igualmente inconformada com a mesma decisão, dela interpôs recurso a Requerida, apresentando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões:
« A) A decisão provisória é nula, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, por falta de fundamentação de facto e de direito que justifiquem a decisão.
B) O regime provisório, atenta a realidade em que as crianças estavam inseridas, deve ser alterado, de imediato, sob pena de causar prejuízos irreversíveis às crianças, designadamente no seu saudável e estável desenvolvimento;
C) O Tribunal a quo não tomou em devida consideração que, apesar de as crianças terem vivido na mesma residência que o Recorrido/Pai, sempre foi a Recorrente/Mãe quem esteve presente e quem assegurou as suas necessidades básicas e outras, por indisponibilidade do Pai/Recorrido;
D) O Tribunal a quo, na fixação do regime provisório, não tomou em consideração que o Recorrido, devido à sua impaciência, impulsividade, agressividade e inexperiência no acompanhamento das crianças – o que resulta de forma evidente dos episódios relatados no requerimento de resposta ao requerimento inicial e no requerimento de aditamento de novos factos – não revela ter quaisquer condições para conviver com as crianças sem a supervisão de terceiros, muito menos em regime de guarda alternada;
E) Por conseguinte, deve ser alterado o regime provisório, passando a constar que o Recorrido apenas pode estar com as crianças em fins de semana alternados (quando estiver em Portugal), desde sexta-feira a seguir às atividades escolares, devendo entregá-los em casa da Mãe/Recorrente no domingo às 20:00 horas ou fora dos fins-de-semana e quando estiver em Portugal (a seguir às atividades escolares), para lanchar em local público, devendo acordar previamente com a Recorrente o dia, hora e local para o efeito, desde que, em qualquer caso, devidamente acompanhado durante esses períodos por terceiro da confiança da Recorrente ou por técnico(s) da Segurança Social, conforme requerido no requerimento inicial 02.05.2023, referência citius 23275235, documento 23;
F) Considera ainda a Recorrente que deve ser alterado o n.º 11 do regime provisório, passando a constar do mesmo que a pensão de alimentos a suportar pelo Recorrido ascende ao montante de €3.000,00 mensais por cada menor, atendendo à realidade em que as crianças estão inseridas e ao projeto de vida que as aqui Partes definiram para as mesmas;
G) A quantia mensal de €3.000,00 inclui todas as despesas que a Recorrente terá de suportar com os menores, exceto as despesas escolares, as quais devem ser pagas diretamente pelo Recorrido ao estabelecimento de ensino em causa;
H) Neste contexto, importa não esquecer que o Recorrido aufere mensalmente uma quantia líquida não inferior a €15.000,00 (quinze mil euros);
I) Manter a pensão de alimentos no valor de €300,00 mensais por cada menor permitirá agudizar a diferença de estilo de vida das crianças quando estão com a Mãe, por falta de possibilidades económicas, por comparação com os programas que o Pai propõe às crianças, com o claro objetivo de criar perante as crianças a imagem de pai rico e poderoso e de mãe pobre e fraca, imagem que se impõe eliminar mediante a alteração do valor da pensão de alimentos.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o mui douto suprimento de Vossas Excelências Senhores Desembargadores, deverá o recurso apresentado ser julgado procedente, pelos motivos supra expostos, e, em consequência:
a) Ser declarada a nulidade da decisão por falta de fundamentação, nos termos do disposto na alínea b), n.º 1 do art. 615.º do CPC e, em conformidade, ser a mesma alterada de acordo com o proposto no documento 23 do requerimento inicial apresentado pela Requerente;
Caso assim não se entenda,
b) ser alterado o regime provisório de regulação das responsabilidades parentais, em conformidade com supra descrito, em concreto, nos números 12, 13 e 33 supra e que, inclusivamente, se encontra descrito no documento 23 junto com o requerimento inicial.
Pois só assim se fará a costumada justiça».
Os recorridos e a D.M. do Ministério Público contra-alegaram, pugnando pela improcedência dos recursos.
O tribunal recorrido, no despacho que admitiu os recursos, não se pronunciou sobre as nulidades arguidas, tendo ordenado a subida daqueles.
QUESTÕES A DECIDIR
Conforme resulta dos arts. 635º nº4 e 639º nº1 do Código de Processo Civil, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, as quais desempenham um papel análogo ao da causa de pedir e do pedido na petição inicial. Ou seja, este Tribunal apenas poderá conhecer da pretensão e das questões [de facto e de direito] formuladas pelos recorrentes nas conclusões, sem prejuízo da livre qualificação jurídica dos factos ou da apreciação das questões de conhecimento oficioso (garantido que seja o contraditório e desde que o processo contenha os elementos a tanto necessários – arts. 3º nº3 e 5º nº3 do Código de Processo Civil). Note-se que “as questões que integram o objecto do recurso e que devem ser objecto de apreciação por parte do tribunal ad quem não se confundem com meras considerações, argumentos, motivos ou juízos de valor. Ao tribunal ad quem cumpre apreciar as questões suscitadas, sob pena de omissão de pronúncia, mas não tem o dever de responder, ponto por ponto a cada argumento que seja apresentado para sua sustentação. Argumentos não são questões e é a estes que essencialmente se deve dirigir a actividade judicativa”. E, por outro lado, não pode o tribunal de recurso conhecer de questões novas que sejam suscitadas apenas nas alegações / conclusões do recurso – estas apenas podem incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, salvo os já referidos casos de questões de conhecimento oficioso [cfr. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2022 – 7ª ed., págs. 134 a 142].
Nessa conformidade, são as seguintes as questões que cumpre apreciar:
- a nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação;
- o mérito da decisão recorrida, relativamente ao regime fixado quanto à guarda, às visitas e aos alimentos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A decisão sob recurso não enunciou os factos provados e não provados.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Nulidade da decisão recorrida
Reportam-se os recorrentes à nulidade da decisão do tribunal a quo, por falta de fundamentação.
O tribunal recorrido, no despacho que admitiu o recurso, não se pronunciou, como lhe incumbia, sobre a nulidade arguida (cfr. arts. 617º nº1 e 641º nº1 do Código de Processo Civil).
No entanto, considerando que os elementos constantes dos autos permitem o conhecimento daquela nulidade, entende-se ser dispensável a baixa dos autos à 1ª instância (cfr. nº5, daquele art. 617º)[1] e passar-se-á, de imediato, à sua apreciação.
Nos termos do art. 607º nº3 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 33º nº1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, na fundamentação da sentença, deve «o juiz discriminar quais os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final».
Por outro lado, refere o art. 615º nº1 b), do mesmo diploma, que é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Como ensina o Prof. Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, 1984, págs. 139 a 141), «as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença; e tem mesmo necessidade de o saber, quando a sentença admita recurso, para poder impugnar o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior. Este carece também de conhecer as razões determinantes da decisão, para as poder apreciar no julgamento do recurso. Não basta, pois, que o juiz decida a questão posta; é indispensável que produza as razões em que se apoia o seu veredicto». No entanto, «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto[2]». Acresce que «relativamente à fundamentação de direito tem sido entendido que está fundamentada a decisão que, aplicando normas jurídicas, não as identifica (…) Está-se, com isto, a dizer que o juiz não tem de especificar os artigos ou demais fontes legais de que fez uso, embora não possa deixar de enunciar (de modo expresso ou de modo implícito, desde que inteligível, i.e., não ambíguo ou não obscuro) o teor material da regra ou princípio em que se apoiou[3]».
É ainda certo que as exigências de uma fundamentação [fáctica e jurídica] mais ou menos completa variam consoante estejamos perante uma decisão final ou perante um mero despacho interlocutório, assim como variam conforme exista, ou não, oposição, e ainda consoante estejamos perante uma decisão definitiva ou perante uma decisão meramente provisória e modificável. Aliás, o próprio Regime Geral do Processo Tutelar Cível contém, entre outros, nos seus arts. 4º nº1 a), 12º[4], 28º e 38º, várias normas de simplificação processual, que apontam no sentido de poderem ser sumárias, quer as diligências probatórias, quer as decisões proferidas, em sede de fixação de um regime provisório, o que significa que são aligeiradas as exigências de fundamentação. No entanto, a licitude de uma fundamentação menos detalhada não equivale, nem pode equivaler, à licitude de uma completa falta de referência a elementos de facto e de direito - nem poderia ser de outra forma, atenta a exigência a que alude o art. 205º nº1 da Constituição da República Portuguesa.
Ora, no caso dos autos, a decisão recorrida limita-se a fixar um regime provisório, sem que, previamente, tenha fixado quaisquer factos provados e não provados, sem que tenha feito qualquer alusão aos meios probatórios em que fundou a sua convicção, sem referir as regras por que se pautou (enquadramento jurídico) e sem que tenha explanado quaisquer razões para optar por aquele concreto regime (e não por um diverso). É evidente que, tratando-se de uma decisão meramente provisória e liminar, não teria de escalpelizar todos os factos e provas de modo exaustivo, nem de invocar todas as normas aplicáveis, mas teria de o fazer, ao menos, de forma resumida, para que, quer as partes, quer o tribunal superior, pudessem sindicar a decisão, quer a nível factual, quer a nível jurídico.
Como se refere no Ac. RL de 19/12/2017[5], totalmente transponível para os presentes autos:
«As decisões judiciais (sejam elas sentenças ou simples despachos) carecem de ser fundamentadas: assim o impõem, desde logo, o art. 205°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa e, ao nível da lei adjectiva ordinária, o art. 154°, n° 1, do actual CPC (que, ao incluir no universo das decisões carecidas de fundamentação todas as que sejam proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo», apenas exclui do dever de fundamentação as decisões de mero expediente).
Um despacho que, na pendência duma Acção de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais, decide instituir, cautelarmente, um regime provisório de exercício das responsabilidades parentais, para vigorar até à sentença final (ao abrigo do disposto no art. 28.º, n.ºs 1, 3 e 4, do cit. Regime Geral do Processo Tutelar Cível aprovado pelo Artigo 1.º da Lei n° 141/2015, de 8 de Setembro), não constitui (nem de perto, nem de longe) uma decisão de mero expediente.
Por outro lado, essa fundamentação, salvo tratando-se de despachos interlocutórios em que a contraparte não haja apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade, «não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição” – cfr. o n.º 2 do mesmo art. 154.º. O que, todavia, não significa que a fundamentação não possa ser integrada, além do mais, por remissões para os fundamentos invocados pelas partes.
O Despacho sob censura que, em rigor, configura uma verdadeira Sentença, já que decide (embora a titulo provisório) do mérito da causa, regulando até à Decisão final (ou até que seja eventualmente proferida uma nova Decisão provisória de conteúdo diverso) o exercício das responsabilidades parentais relativamente aos menores de que curam os autos - omitiu completamente a discriminação dos factos tidos por provados (ou, pelo menos, minimamente indiciados) pelo tribunal de 1.ª instância, assim incorrendo na nulidade prevista na cit. alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Novo Código de Processo Civil.
A circunstância de se tratar duma decisão de natureza provisória não altera os dados da questão: o facto de, no momento em que tal decisão foi proferida, a única diligência até então realizada ter sido a Conferência de Pais que teve lugar no próprio dia em que o despacho recorrido foi proferido, imediatamente antes deste, não impediu o tribunal de tomar declarações (…), fazendo (inclusivamente) constar da Acta da diligência um extracto dessas declarações. Pois bem: diante desse material probatório acabado de coligir, o que o tribunal “a quo” não podia deixar de consignar, antes de instituir um regime provisório de exercício das responsabilidades parentais (ao abrigo do cit. art. 28.º do RGPTC), era a listagem dos factos indiciariamente já tidos por provados. Sem a explicitação desses factos, o regime provisório de exercício das responsabilidades parentais instituído pelo tribunal não tem qualquer base factual que suporte as opções tomadas quanto à guarda dos menores, regime de visitas e montante da prestação alimentícia imposta ao progenitor a quem os menores não são confiados. Se, porventura, o tribunal considera que, nesta fase indiciária do processo, ainda não dispõe de elementos de facto que lhe permitam estabelecer uma base factual mínima, então é prematura a imediata instituição dum regime provisório de exercício das responsabilidades parentais no próprio dia da conferência de pais, sendo mais avisado só o fixar depois de realizadas as diligências probatórias (ainda que sumárias) tidas por imprescindíveis. O que o tribunal não pode fazer é instituir um regime provisório de exercício das responsabilidades parentais (confiando os menores à guarda e cuidados dum dos progenitores, estabelecendo um regime de visitas e arbitrando pensões alimentícias) à míngua da mais pequena factualidade relevante para a decisão dessas questões».
Conclui-se, assim, que a decisão recorrida é nula, ao abrigo do art. 615º nº1 b) do Código de Processo Civil, nulidade que se impõe declarar.
Prevê o art. 665º nº1 do Código de Processo Civil que, «ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objecto da apelação». Assim, atentas as questões supra enunciadas, cumpriria apreciar o mérito da decisão recorrida, relativamente ao regime de exercício das responsabilidades parentais.
Mas, para que tal pudesse ocorrer, teria este tribunal de recurso de ter, previamente, fixados factos que permitissem concluir da bondade, ou não, do regime estabelecido. O que, como vimos, não ocorreu. Ora, como se refere no Ac. RL de 21/3/2012[6], «omitindo-se, em termos suficientes e adequados a explicitação dos factos da causa, [tal] inviabiliza o controle interno da decisão, a reponderação a esse respeito do juízo de facto, para além de afectar as vias de defesa das partes. A ausência de decisão sobre a matéria de facto não pode deixar de se entender como a situação - limite da decisão deficiente a que alude o n.º 4 do artigo 712.º do CPC» [actual art. 662º nº2 c), do Código de Processo Civil], o que significa que cabe anular a decisão proferida e reenviar o processo à primeira instância, para prolação de nova decisão.
Com efeito, embora da literalidade do citado art. 665º nº1 pudesse decorrer que competiria à segunda instância fixar os factos provados, suprindo totalmente a falta de fundamentação, não pode ser assim. O dever de substituição a que alude aquela norma «compreende-se bem e é exequível nas demais nulidades previstas no Artigo  615º, nº1, do Código de Processo Civil. Todavia, o mesmo já não sucede quanto à nulidade da falta de fundamentação de facto.
Na verdade, um dos princípios basilares do actual sistema recursório civil é o da garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto (cf. Artigos 640º e 662º do Código de Processo Civil; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2021, Vieira e Cunha, 513/19, de 26.5.2021, Luís Espírito Santo, 3277/12 e 31.6.2016, Garcia Calejo, 1572/12; Rui Pinto, O Recurso Civil. Uma Teoria Geral, AAFDL, 2017, p. 228).
Na análise de Rui Pinto, ao direito de acção universal, contrapõe-se um direito ao recurso mínimo que cumpra a função de válvula de segurança residual. Concretizando esse direito ao recurso mínimo, afirma que «o direito à verdade material imporá um recurso por erro de facto, não para todas, mas para as situações mais graves e manifestas» - Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL, 2020, pp. 120-122.
O dever de substituição previsto no Artigo  665º, nº1, visa, em primeira linha, conduzir a uma resolução célere do litígio, no pressuposto de que o Tribunal da Relação disponha dos elementos necessários para tal (cf. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 381). Todavia, a esse valor da celeridade há que contrapor o da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, afigurando-se que este valor é mais garantístico e proeminente para a realização de um processo equitativo, na vertente de um processo que permita, num prazo razoável, a descoberta da verdade material e a prolação de uma decisão ponderada (Artigo  20º, nº4, da Constituição; cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I,  2ª ed., p. 441). Havendo que se sacrificar um dos valores, cremos que deverá ser o da celeridade, tanto mais que a situação em apreço nem contém contornos que demandem particular urgência na sua definição final.
Assim sendo, justifica-se uma interpretação restritiva do Artigo 665º, nº1, do Código de Processo Civil, nos termos da qual em situações como a presente, em que ocorre uma total ausência de fundamentação de facto da decisão impugnada, ocorra a anulação da decisão impugnada, ordenando-se ao tribunal a quo que a fundamente, garantindo-se efectivamente o duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto.
Confluindo neste sentido e com citação de jurisprudência, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11.2.2021, Elisabete Valente, 1433/20[7]».
Deste modo, deverá o tribunal a quo, como se disse, proferir nova decisão, devidamente fundamentada de facto (com enumeração dos factos provados e não provados e com análise crítica da prova) e de direito (com referência, ainda que breve, ao enquadramento jurídico da causa).
Aliás, ainda que não se perfilhasse esta interpretação restritiva, sempre se impõe a remessa dos autos à 1ª instância, nos termos do disposto na parte final do art. 665º nº2 do Código de Processo Civil, já que dos autos não constam todos os elementos necessários a uma decisão conscenciosa acerca do regime provisório de regulação do exercício das responsabilidades parentais. Com este efeito, este regime pauta-se, forçosamente, pelo superior interesse da criança, a averiguar consoante as circunstâncias de cada caso - cfr. arts. 1906º do Código Civil, 4º da L 147/99 de 1-9 (aplicável por força do art. 4º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível) e 3º nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança (aprovada pela resolução da A.R. nº20/90 e ratificada pelo Dec. do P.R. nº49/90 de 12-9, publicada no DR, I Série, de 12-9-90). Para a definição (ainda que provisória e cautelar) deste interesse e, consequentemente, do regime a aplicar, torna-se, por um lado, necessário considerar os elementos que possam constar do processo principal e de outros apensos (que pendem apenas perante a 1ª instância). Por outro lado, no âmbito da conferência de pais, foram apenas tomadas declarações aos menores, quando poderiam e deveriam ter sido tomadas declarações aos progenitores, sendo estes confrontados, pelo menos, com os factos alegados em todas as peças processuais anteriores à realização da diligência e sendo devidamente ponderadas tais declarações.

DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em declarar nula a decisão recorrida, por falta de fundamentação, determinando-se a devolução dos autos à primeira instância, para que aí se profira nova decisão, devidamente fundamentada, nos termos supra expostos. 
Custas de cada um dos recursos pela parte vencida a final – arts. 527º do Código de Processo Civil e 6º nº2, com referência à Tabela I-B, do Regulamento das Custas Processuais –, sem prejuízo do apoio judiciário concedido à Requerida.

LISBOA, 9/4/2024
Alexandra de Castro Rocha
Ana Rodrigues da Silva
Paulo Ramos de Faria
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[1] Conforme refere António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., pág. 215, «a omissão de despacho do juiz a quo sobre as arguidas nulidades ou sobre a reforma da sentença não determina invariavelmente a remessa dos autos para tal efeito, cumprindo agora ao relator apreciar se aquela intervenção se mostra ou não indispensável».
[2] No mesmo sentido, podem ver-se, a título de exemplo, os Ac. STJ de 20/11/2019 (proc. 62/07) e de 2/6/2016 (proc. 781/11), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Prof. Rui Pinto, Os meios reclamatórios comuns da decisão civil, in Julgar Online, Maio de 2020, pág. 12, estudo disponível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/20200525-JULGAR-Os-meios-reclamat%C3%B3rios-comuns-da-decis%C3%A3o-civil-Rui-Pinto-v2.pdf.
[4] Este, com referência ao art. 987º do Código de Processo Civil.
[5] Proc. 5499/17, disponível em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=5341&codarea=58&%E2%80%9D
[6] Proc. 1359/11, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Ac. RL de 22/3/2022, proc. 2274/19, disponível em, http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, e disponível no mesmo sítio, pode ver-se a DS RG de 3/11/2022, proc. 2000/22.