COMPETÊNCIA INTERNA
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO CÍVEL
TRIBUNAL CÍVEL
TRIBUNAL DO TRABALHO
EX-CÔNJUGE
CONTRATO-PROMESSA
CONTRATO DE TRABALHO
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
DIVÓRCIO
SOCIEDADE COMERCIAL
SÓCIO GERENTE
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Sumário


I - A competência em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é apresentada pelo autor na petição inicial;
II - É o tribunal cível e não o tribunal de trabalho o competente em razão da matéria para conhecer de uma acção proposta por um ex-cônjuge contra o outro, em que se alega o incumprimento pelo réu de um contrato promessa de partilha subsequente a divórcio no qual o réu se obrigou a assegurar a celebração de um contrato de trabalho entre a autora e uma sociedade comercial de que é sócio-gerente.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, instaurou contra BB, acção declarativa sob a forma comum pedindo que seja declarado o incumprimento definitivo, imputável ao Réu, do contrato promessa de partilha subsequente à dissolução do casamento entre ambos por divórcio, condenando-se o Réu a pagar-lhe:

1. €57.500,00 correspondente ao valor mínimo garantido de €2.500,00, nos termos do art. 5º, 1, ii) do contrato promessa de partilha;

2. €165.000,00 a título de indemnização pelo não cumprimento do estabelecido em 5ª, 1, ii), do mesmo acordo, correspondente ao valor mínimo garantido de €2500,0/mês, computado desde a Abril de 2022 até à reforma da Autora, que prevê ocorrer em Março de 2044;

3. €30.000,00 pela cedência da partilha em 50% da potencial venda das três lojas do atelier a que refere o art. 5º, nº2, 4, do acordo de partilha;

4. €20.000,00 pela cedência do direito exclusivo ao uso do automóvel e pagamento mensal do telemóvel, com transferência da titularidade do número para a Ré, referente ao art. 5º, do mesmo contrato.

Citado, o Réu apresentou contestação, na qual se defendeu por excepção, invocando a impropriedade do meio processual e a incompetência do tribunal em razão da matéria, por a competência caber ao tribunal de família e ainda por impugnação.

Ouvidas as partes, o Réu foi absolvido da instância, decisão assim fundamentada:

“Está em causa, tal como ficou já dito, o incumprimento do acordo celebrado entre o ex-casal no que se refere à continuidade do contrato de trabalho com a empresa de que o réu era sócio gerente, contrato que se manteve por 20 meses, sendo – alegação da autora – devido ao comportamento do réu, que a impediu de trabalhar, não exerceu qualquer atividade para a empresa desde dezembro de 2021, não lhe foi paga quantia de € 2500/mês nem, por consequência a percentagem do valor dos trabalhos que realizasse. Porque a situação se tornou insustentável, criou a sua própria empresa, tendo deixado de beneficiar de outro direito que tinha por via do contrato de trabalho, uso de veículo automóvel e pagamento de telemóvel – cfr. cláusula 5.ª, fls. 17.

Ora, questões relativas a contratos de trabalho devem ser julgadas pelo Juízo de Trabalho – art. 126.º, n.º 1, al. b), da referida LOSJ.

A incompetência absoluta, na qual se inclui a incompetência em razão da matéria, está regulada nos arts. 96.º, al. a), 97.º, 98.º, 99.º, n.º 1, e 288.º do Código de Processo, tendo por consequência a absolvição do réu da instância.

Assim, com fundamento na incompetência em razão da matéria absolvo o réu BB da instância, no que refere aos pedidos formulados pela autora AA, sob os nºs1), 2) e 4) da petição inicial.

Desta decisão, interpôs a Autora recurso para o Tribunal da Relação de Évora.

Este Tribunal, por acórdão de 07.11.2023, julgou a apelação procedente, revogou a decisão recorrida e determinou o prosseguimento dos autos.

É a vez do Réu interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça ao abrigo do disposto nos arts. 671º, nº2, alínea a) e 629, nº2, a) do CPC, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

a) O Acórdão proferido viola o disposto no artigo 674.º n.º 1 a) do CPC na medida em que há violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação ou de aplicação, na medida em que o Acórdão conhece e declara situações fácticas fora do âmbito do objeto de recurso que não lhe é lícito conhecer;

b) O Acórdão recorrido viola ainda o disposto no artigo 674.º n.º 1 b) do CPC, na medida em que há violação ou errada aplicação da lei de processo atento que a lei de processo não permite ao tribunal da relação apreciar questões de facto não incluídas na delimitação do objeto dorecurso interposto, muito menos fixar matéria de facto que não chegou a ser objeto de prova estando ainda as partes a tempo quer de juntar documentos ou produzir prova, sendo tais factos não foram apreciados pela primeira instância;

c) Viola ainda o disposto no artigo 674.º n.º 1 c) na medida em que há nulidade de excesso de pronuncia quanto a tudo que extravasa o ínsito no despacho proferido pela primeira instância, previstas nos artigos 615.º n.º 1 alíneas d) e e) e 666.º todos do CPC.

d) Há erro de julgamento – artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC, na medida em que o douto tribunal para lá dos poderes que dispunha, fixou matéria contra a prova junta aos autos tendo ainda decidido da competência desconsiderando o pedido e causa de pedir configurados pela Autora, como deveria;

e) Viola ainda os arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, na medida em que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal a da Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, pelo que o Acórdão recorrido violou o art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

f) Não podiaigualmente o Tribunal conhecer de questões novas que nãotenhamsido objeto de apreciação na decisão recorrida, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação), tendo-o feito incorreu ainda em excesso de pronuncia, pelo que é nulo nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea d) do CPC;

g) Decorre do disposto no artº 635 do C.P.C. que a atuação do tribunal ad quem está delimitadaobjetivamente pelas questões que tenham sidoobjetode discussão e decisão pelo tribunal recorrido, desfavoráveis ao recorrente e por ele impugnadas, estando-lhe vedado conhecer de questões novas, ou seja, nunca antes invocadas pela parte vencida nem decididas pelo tribunal recorrido e que não sejam de conhecimento oficioso.

h) O despacho proferido peloTribunal da primeira instância não aprecia da veracidade ou não dos factos vertidos pelas partes, nem ordenou qualquer produção de prova, tendo-se limitado, e bem, a apreciar a questão da competência material do mesmo em função do pedido e da causa de pedir formuladas pela Autora, não chegou a conhecer do mérito da causa (não se envolveu na resolução material do litígio), pelo que é vedado à Relação fazê-lo desta forma.

i) Não é uma questão de conhecimento oficioso concluir se foram pagos valores, a que titulo ou por quem foram pagos, se os valores atribuídos pelas partes na escritura de partilha de bens eram verdadeiros ou não, até porque para este enquadramento legal bastaria a apreciação da petição inicial apresentada pela autora, e nessa medida não haveria necessidade de efetuar qualquer produção de prova.

j) Tampouco podia concluir e dar por provados factos à revelia do vertido pelas partes e documentos juntos, pelo que nesta parte impõe-se necessariamente a sua alteração pois que é manifesto o erro de julgamento e excesso de pronuncia já que decidiu contra lei expressa ou contra factos apurados.

k) Ao fazê-lo, violou a aplicação da lei de processo, pelo que assiste ao Supremo Tribunal de Justiça alterar a decisão proferida nessa medida, devendo, pois, o Tribunal da Relação cingir-se ao objeto de recurso, sendo-lhe vedado conhecer de factos que constituem objeto do recurso interposto nem tampouco a 1.ª instância apreciou conforme dispõe o artigo 674.º n.º 1 alínea b) e n.º 3 do CPC.

l) Tal também se reconduz a uma violação da lei processual, o que determina a existência de erro de julgamento da decisão de facto.

m) Há excesso de pronuncia termos do artigo 615.º n.º 1 alínea d) do CPC, sendo nulo o acórdão quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, e salvo melhor opinião, não podia o tribunal da Relação concluir como conclui que oRéu nadapagou à Autora,sendo reconhecidopelo próprio tribunal que há evidente confusão, revelada nos articulados, não tendo ainda sido produzida prova e para alem disso, não tendo sequer sido agendada a audiência prévia, sempre poderia o Réu ainda requerer produção de mais prova quanto a tal facto.

n) De facto, há excesso de pronúncia quando o douto tribunal a quo refere - a autora alega ter recebido do réu “através da sociedade”, ao passo que o R. afirma ter pago, verificando-se embora, desde logo pelo teor dos documentos juntos, que nada pagou, tendo sido tudo pago pela sociedade, pessoa coletiva com personalidade jurídica e judiciária distinta dos sócios tal facto não pode manter-se, impondo-se asua retificação/alteração ou mesmo eliminação já que o objecto do recurso não é a matéria de facto carreada mas sim sobre qual o tribunal competente para decidir da causa.”

o) Destarte, a Autora não diz que o Réu nada lhe pagou, tendo reconhecido que recebeu os referidos €50.000,00 sem identificar cabalmente quem os pagou.

p) Reconhece a Autora que trabalhou em projetos da referida sociedade e que recebeu montantes por esse trabalho e ainda que o contrato de trabalho vigorou por 20 meses, e que o Réu deixou de lhe dar trabalhos.

r) Quanto aos montantes pagos refere a Autora na sua Petição Inicial é o seguinte: “O Réu, através da sua sociedade procedeu entre Setembro de 2018 e Abril de 2020 ao pagamento dos trabalhos efectuados pela Autora e ao pagamento das mensalidades fixadas no artigo 5.º, 1, i.” Vide artigo 18 da Petição Inicial.

s) E realmente, apercebeu-se o Réu que no documento junto sob a forma de documento 1 junto com a contestação e que seriam os comprovativos de pagamento de montantes monetários à Autora, feitos da sua conta bancária pessoal, apenas consta uma transferência, contudo é patente que a conta da qual é feita é a conta pessoal do Réu –Arquitecto BB, e não, como diz o douto Tribunal a quo da sociedade comercial H..., Lda. Veja-se o print do documento junto com a contestação, tal como o documento junto ao presente recurso o comprova para que dúvidas não possam subsistir. O Réu detém declaração bancária que atesta todos os valores transferidos a titulo pessoal à Autora para fazer prova em sede própria, devendo o Tribunal da Relação imiscuir-se nessas questões de facto nada relevantes para aferição do tribunal competente.

t) A Autora vem peticionar em suma o incumprimento da Cláusula 5 do referido contrato, não tendo jamaissolicitadoopagamentodasreferidas tornas àquela clausula condicional. Não o fez porque não quis.

u) Esse pedido e causa de pedir conforme foi configurado pela Autora na Petição Inicial são bem claros e subsumem-se sumariamente ao que está no contrato promessa – clausula 5.ª – que é “a celebração de um contrato de trabalho, sem termo certo, entre a outorgante AA e a sociedade com a firma H..., Lda, contrato esse que previa a atribuição à Autora de determinada remuneração e regalias.

v) Nos presentes autos, como bem refere o despacho proferido pelo tribunal de primeira instância, está em causa, pois o alegado incumprimento do acordo celebrado entre o ex-casal no que se refere à elaboração de um contrato de trabalho com a empresa de que o réu era sócio gerente, contrato que se manteve por 20 meses, sendo – alegação da autora – devido ao comportamento do réu, que a impediu de trabalhar, não exerceu qualquer atividade para a empresa desde dezembro de 2021, não lhe foi paga quantia de € 2500/mês nem, por consequência a percentagem do valor dos trabalhos que realizasse. Porque a situação se tornou insustentável, criou a sua própria empresa, tendo deixado de beneficiar de outro direito que tinha por via do contrato de trabalho, uso de veículo automóvel e pagamento de telemóvel – cfr. cláusula 5.ª, fls. 17.

w) Ora, questões relativas a contratos de trabalho e relações estabelecidas com vista á celebração de contratos de trabalho devem ser julgadas pelo Juízo de Trabalho – art. 126.º, n.º 1, al. b), da referida LOSJ, não tendo competência para asseverar do incumprimento de um contrato desta natureza um tribunal cível.

x) Não há qualquer questão sobre o Réu não ter outorgado o prometido tal contrato na qualidade de sócio-gerente ou outra, pois o contrato foi devidamente apresentado à Réu para que esta iniciasse funções.

y) É facto assente que a Autora recusou outorgar o contrato de trabalho constante da clausula 5.ii conforme é facilmente constatável do email datado de 20/08/2018 e contrato anexo, bem como resposta da Autora ao Réu datada de 24/08/2018 junto pelo Réu como documento 2 junto com a contestação apresentada.

z) Tendo o Réu pago pessoalmente valores que ascendem a €50.000,00 (cinquenta mil euros) até porque por via desta conduta não podia ser de outra forma pois uma sociedade comercial não pode sem mais transferir valores destes montantes para uma pessoa singular sem nenhum documento ou fatura que titulasse tal operação.

aa) A Autora nunca cumpriu o contrato promessa outorgado, com contrato de trabalho escrito ou não, pelo que qualquer incumprimento decorre de culpa sua, seja cível ou laboral.

bb) O Réu, ainda mantém nos dias de hoje a Autora na posse de um BMW SERIE 5 GRAN TURISMO com a matrícula69-NS-83, uso esse exclusivo e ininterrupto durante mais de 5 anos, com todos os custos associados, bem como o pagamento do telemóvel e serviços móveis, que considera jamais serem devidos à Autora.

cc) O que a Autora invoca materialmente nas alegações apresentadas não são o pedido e causa de pedir, pelo que não pode o douto tribunal basear-se em tal para decidir qual o tribunal competente.

dd) Foi a Autora que referiu ter um contrato de trabalho que vigorou por 20 meses, sendo que neste enquadramento nem podia abrir um atelier exatamente com o mesmo objeto social, concorrencial ao primeiro quando o fez – em Abril de 2021 – inviabilizando total e definitivamente a manutenção do acordado, fosse este configurado como contrato de trabalho ou prestação de serviços. Note-se que em 3 Agoste de 2019, já informava que não queria mais colaborar com a dita sociedade, tendo, contudo, recebido valores por parte do Réu e da sociedade até Maio de 2020 o que é assumido pela própria.

ee) A Autora, mesmo demonstrando ao Tribunal que abriu uma sociedade comercial com o mesmo objecto da sociedade e actividade desenvolvida pelo Réu, não secoíbe de peticionar logo em 1) 57.500,00 correspondente ao valor mínimo garantido de 2.500/mês que deixou de ser pago desde Maio de 2020 até Março de 2022 referente ao artº 5º, 1, ii) do contrato de promessa de partilha, valores após esta confessadamente já estar a exercer, sozinha, atividade por conta própria concorrencial ao Réu e à sociedade comercial para a qual antes trabalhava.

ff) Quanto ao valor da referida quota, que a Autora diz na sua Petição Inicial que o valor seria “emtermos conservadores”€300,000,00, sempre se diga quea declaraçãofeita pelas partes perante o notário e exarada na escritura pública é dotada de força probatória plena no que respeita a que essa declaração foi feita, e não teria afectado a validade do documento se lá constasse outro valor – o resultado era exatamente o mesmo – até porque a ideia naquela altura era a continuação da sua colaboração, como arquiteta.

gg) Vem ainda o douto tribunal concluir que “A causa de pedir invocada, independentemente do mérito, assenta no incumprimento de um contrato que não temnaturezalaboral,nemtãopoucose pode falar de relaçõesestabelecidas com vista à celebração de um contrato de trabalho subordinado, desde logo porque o aqui R. não seria o empregador.

hh) Labora em erro o douto tribunal –o R. era o Empregador na medida em que remeteu o referido contrato de trabalho por este prometido na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial e a Autora declinou.

ii) Nos termos elencados pela Autora na sua Petição Inicial “A A. viu, assim, o seu trabalho criativo, emocional e de autor, ser desrespeitado e aproveitado pelo R., ao mesmo tempo que era afastada do desenvolvimento desses trabalhos e impedida do acompanhamento das obras respetivas, sem justificação do R. perante A A. ou perante Os Clientes com quem assumiu compromissos, contribuindo o R., dessa forma, com tal comportamento, para comprometer a imagem e o percurso profissional da A.” Vide artigo 23.º da Petição Inicial

jj) E que o Réu nem atribuiu, de forma deliberada, à A., após essa data, qualquer outro trabalho de arquitetura, privando com isso a A. De continuar a desenvolver novos trabalhos para o R.,” Vide artigo 25 da Petição Inicial.

kk) Ainda na Réplica apresentada diz a Autora:

“17ª. Astuciosamente, pretende o R. reconduzir a questão dos autos a um problema de tornas, bem sabendo que a questão não é essa.

“28. É falso o vertido nos artigos 45º, 46º, 47º, 48º, 49º, 50º e 51º, que, por tal, se impugnam, porquanto foi o R. que apresentou à A. um contrato de trabalho que não estava de acordo com o que tinham assumido no contrato de partilha, nomeadamente quanto ao valor mensal do contrato, numa tentativa de reduzir o valor previsto na cláusula 5ª, sendo o email enviado pela A. daí decorrente, afirmando isso mesmo, sendo certo que não foi contraditado pelo R, aceitando que realmente o contrato de trabalho apresentado não cumpria o acordado, nem em qualquer momento o R. propôs outra versão que sanasse o que não estava em conformidade.”

ll) É apodítico que quer o pedido quer a causa de pedir incidem sobre a promessa de contrato de trabalho, que foi apresentado e que a Autora não aceitou.

mm) Como pressuposto processual que é a competência material afere-se em função, quer do pedido, quer da causa de pedir, padronizada nos moldes em que a relação jurídica é configurada pelo Autor.

nn) Com efeito, compete aos tribunais de trabalho conhecer, em matéria cível, não só das questões emergentes de relações de trabalho subordinado, mas também de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho, como no caso em apreço.

oo) Como é sabido dentro da organização judiciária, os tribunais judicias gozam de competência genérica enquanto aos restantes tribunais é atribuída a competência especializada, por força do nº 2 do artº 40º da LOSTJ e do nº 2 do artº 211º da Constituição da República Portuguesa.

pp) Com competência especializada, que faz ceder a competência genérica, encontram-se os Tribunais do Trabalho, a quem compete, entre outra matéria cível, por força das alíneas b) do nº 1 do arts. 126 da LOSJ, conhecer as “Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”.

qq) De tudo o exposto, resulta igualmente manifesto para o ora recorrente que o acórdão ora em apreço, deverá ser revogado, devendo ser substituído por um que declare a procedência da exceção de incompetência absoluta em razão da matéria e consequente absolvição do réu da instância, com fundamento na aplicabilidade, ao caso, do artigo 126º da LOSJ, determinando, pois, a absolvição do Ré da Instância.


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Contra alegou a Recorrida pugnando pela improcedência da revista e a confirmação do acórdão recorrido, tendo formulado as seguintes conclusões:

A) Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão da 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, prolatado, em 7 de Novembro de 2023 (refª 8706813), nos autos de Apelação nº 862/22.0T8PTM-A.E1, o qual, por unanimidade, decidiu revogar a decisão da 1ª instância que, com fundamento na incompetência em razão da matéria, havia absolvido o R. BB da instância, ordenando que aquela decisão seja substituída por outra que determine a tramitação dos autos, por serem os tribunais comuns os competentes para decidir o litígio;

B) A competência material do Tribunal afere-se à luz da pretensão deduzida pela autora e respectivos fundamentos, ou seja, em face do pedido e da causa de pedir;

C) Atenta a causa de pedir e o consequente pedido deduzidos pela A., é manifesto que constituem matéria da competência dos Juízos Cíveis, nos termos do preceituado nos artigos 80º e 117º, nº 1, al. a) da LOSJ, inexistindo, “in casu”, matéria que deva ser submetida à jurisdição laboral, nos termos do artigo 126º da LOSJ, porquanto não se discute a existência, ou validade, de qualquer contrato de trabalho subordinado celebrado entre A. e R. ou a sociedade H..., Lda, que nunca existiu ou esta empresa prometeu, nem a indemnização peticionada tem natureza de crédito laboral;

D) Pese embora conste do contrato promessa de partilha a obrigação expressa de o R. promover as diligências necessárias à celebração de um contrato de trabalho entre a sociedade H..., Lda e a A., a colaboração da A. com esta empresa nunca se efectivou ao abrigo de qualquer contrato de trabalho subordinado, antes consistindo numa prestação de serviços, tanto assim sendo que nunca lhe foi passado qualquer recibo de vencimento, ou efectuado qualquer desconto ou retenção na fonte, relativamente às 20 mensalidades pagas à A. entre Setembro de 2018 e Abril de 2020, tendo todas as restantes verbas que recebeu daquela empresa sido tituladas por “recibos verdes” emitidos pela A., como se evidenciou no articulado de Réplica;

E) Não há, como nunca houve, nenhum contrato de trabalho entre a A. e a sociedade de que o R. era, e é, sócio gerente e de que a ora A. foi, igualmente, sócia gerente, até à cedência da sua quota ao R. em partilha subsequente ao divórcio;

F) As obrigações assumidas pelo Réu na cláusula 5ª do contrato promessa de partilha, reafirmadas no Aditamento ao mesmo celebrado em 18 de Junho de 2018 (cfr. doc. 6 junto com a P.I.), visavam compensar a A. pelo não recebimento de tornas e, principalmente, compensar a A. pelo justo valor da quota societária de que abdicava a favor do R. por exigência deste, e tinham como pressuposto que a A. tivesse garantido um rendimento mensal mínimo líquido de € 2.500,00 e o uso do carro e telemóvel, como contrapartida da divisão não igualitária dos bens do casal, nomeadamente quanto ao valor real da quota da sociedade, abdicando a A., sob essa contrapartida, do recebimento de tornas e de deixar de ser sócia e gerente da sociedade.

G) As obrigações assumidas pelo R. foram-no a título estritamente pessoal, não tendo a sociedade H..., Lda, que não outorgou no contrato promessa celebrado entre A. R., assumido qualquer obrigação, designadamente a promessa de celebrar com a A. um contrato de trabalho subordinado, não sendo (nem podendo ser), por isso, sequer demandada nos presentes autos.

H) O fundamento da acção radica no incumprimento, pelo R., do contrato promessa de partilha celebrado em 20 de Abril de 2018 e do Aditamento ao mesmo celebrado em 18 de Junho de 2018 e não em qualquer questão de natureza laboral;

I) O acórdão recorrido, ao decidir pela revogação da decisão da 1ª instância que, com fundamento na incompetência em razão da matéria, havia absolvido o R. BB da instância, ordenando que aquela decisão seja substituída por outra que determine a tramitação dos autos, por serem os tribunais comuns os competentes para decidir o litígio, não merece reparo, por conforme ao Direito.


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Objecto do recurso:

- Nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia;

- Competência em razão da matéria para conhecer do pedido formulado na acção.

Fundamentação.

Elementos que relevam para a decisão:

A) Autora e Réu foram casados um com o outro, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio consensual decretado em 29 de Maio de 2018;

B) Em 20 de Abril de 2018, Autora e Réu celebraram um contrato promessa de partilha, nos termos do qual se obrigaram a celebrar escritura de partilha pelo modo ali indicado, que previa, além do mais, a adjudicação ao Réu das quotas da sociedade “H..., Lda”, com o valor atribuído de €50.000,00;

C) As partes acordaram ainda o que ficou acordado na cláusula 5ª do mencionado acordo:

“Sem prejuízo do previsto na cláusula anterior, os outorgantes dão completa quitação da sua meação nos bens comuns do casal, prescindindo reciprocamente de tornas, desde que o outorgante BB assegure:

1. A celebração de um contrato de trabalho, sem termo certo, entre a outorgante AA e a sociedade com a firma H..., Lda, que preveja:

i) Nos primeiros 20 (vinte) meses de vigência do contrato de trabalho, uma remuneração fixa líquida no valor mensal de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), acrescida de uma remuneração variável correspondente a 35% do valor destinado aos trabalhos de arquitectura cujo desenvolvimento lhe seja atribuído pela entidade patronal;

ii) Após o decurso dos primeiros 20 (vinte) meses do contrato, uma remuneração correspondente a 35% (trinta e cinco por cento) do valor destinado aos trabalhos de arquitectura cujo desenvolvimento lhe seja atribuído pela entidade patronal, assegurando um rendimento mínimo garantido de € 2.500,00 mensais;

iii) A obrigação de pagamento do rendimento mínimo garantido previsto no ponto anterior cessa caso tal valor não atinja 35% (trinta e cinco por cento) de 40% (quarenta por cento) do volume de negócios referente a trabalhos de arquitectura que sejamadjudicados à entidade patronal no trimestre imediatamente anterior; contudo, essa obrigação será retomada sempre que no final de cada trimestre aquele percentual seja atingido;

iv. O direito à utilização exclusiva de um veículo automóvel, suportando a entidade patronal todas as despesas inerentes à viatura;

v. A manutenção do contrato de telecomunicações com serviço pós-pago, referente ao número + ... ... .91 491.

2. A divisão em partes iguais do produto de uma eventual venda das fracções autónomas designadas pelas letras “P”, “Q” e “T”, correspondentes às lojas n.ºs 14, 15 e 18 do prédio sito na Avenida das ... Edifício ..., na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 184 e inscrito na matriz sob o artigo 7006.”

De direito.

O recurso de revista, para além de nele se imputarem várias nulidades ao acórdão, foi interposto com fundamento na violação das regras de competência em razão da matéria, o que preenche o fundamento de recorribilidade previsto no art. 629º, nº2, alínea a) do Código de Processo Civil (CPC).

Importa previamente apreciar a imputação de nulidade feita ao acórdão, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº1, alínea d), do CPC), por ter conhecido de questões não incluídas nas conclusões da apelação e fixado a matéria de facto sem que tenha sido produzida prova.

Concretamente, o Recorrente acusa o acórdão de i) ter apreciado a veracidade de factos alegados, ii) de ter concluído e dado como provado que “o réu nada pagou à Autora e que tudo foi pago pela sociedade, não podendo manter-se tal facto”, questão que por não ter sido suscitada no recurso de apelação, nem ser de conhecimento ofícios, não podia ser objecto de conhecimento da Relação.

Mas não tem razão, com o devido respeito.

É pacífico, e decorre do art. 653º, nº3 e 639º, nº1, do CPC, que as conclusões do alegação do recorrente delimitam o âmbito do recurso, não podendo o tribunal “ad quem” conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se se tratar de matérias de conhecimento oficioso. No caso vertente, o acórdão recorrido não infringiu esta regra básica, ao contrário do que sustenta o Recorrente.

A Relação não fixou a matéria de facto, nem reapreciou a factualidade vinda da 1ª instância, tendo-se limitado a decidir com base nos factos alegados e nos documentos juntos aos autos, como evidencia o trecho do acórdão que se transcreve:

“A Autora alegou ter celebrado com o R. em Abril de 2028 o contrato promessa de partilha que fez juntar aos autos, nos termos do qual não haveria lugar a tornas desde que este assegurasse a celebração de um contrato de trabalho entre a apelante, sua ex-mulher, e a sociedade de que ficou único sócio, com determinado conteúdo ao nível da remuneração que àquela seria devida e outras regalias, como uso de viatura automóvel e telemóvel.

Ora, para lá da evidente confusão, revelada nos articulados, entre o património da sociedade e dos sócios – a autora alega ter recebido do réu “através da sociedade”, ao passo que o R. afirma ter pago, verificando-se embora, desde logo pelo teor dos documentos juntos, que nada pagou, tendo sido tudo pago pela sociedade, pessoa colectiva com personalidade jurídica e judiciária distinta dos sócios – e independentemente da validade das cláusulas convencionadas, certo é, porém, que a autora alega ter sido incumprido o contrato promessa de partilha, no que se refere à cláusula 5ª que acima se transcreveu, incumprimento que imputa ao R., em consequência do que sofreu os prejuízos cujo ressarcimento reclamou.”

Patentemente que o acórdão recorrido não conheceu de matérias que lhe estava vedado conhecer; decidiu apenas a questão objecto do recurso - saber se a competência para conhecer do pedido cabe a um juízo cível ou a um juízo de competência especializada, como é o de trabalho (art. 81º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei nº 62/2013 de 26.08) – com base nos elementos constantes dos autos.

A imputação de nulidade ao acórdão por ter conhecido de questões que lhe estava vedado conhecer (art. 615º, nº1º, alínea d)), carece, assim, de fundamento.


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Se o acórdão recorrido decidiu bem ao julgar competente para a causa o juízo cível e não o juízo laboral.

A competência material reconduz-se a um pressuposto processual cuja apreciação se impõe que necessariamente preceda a do fundo da causa.

A competência (ratione materie) respeita à distribuição do poder jurisdicional pelas diversas espécies e ordens consideradas no mesmo plano, isto é horizontalmente, sem que eles exista uma qualquer relação de subordinação ou dependência hierárquica.

Na base da competência em razão da matéria está o princípio de especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores de Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, pag. 207).

O acórdão, depois de recordar as pertinentes normas legais – artigos 64º e 65º do CPCivil, e 81º e 126º da LOSJ – ponderou:

“Decorre do que vem de se referir que o tribunal comum, cuja competência é residual, será o competente no caso de a presente acção não se encontrar atribuída ao juízo de competência especializada laboral, o que se vincula à análise e interpretação da causa de pedir e pedidos formulados.

A Autora alegou ter celebrado com o R. em Abril de 2028 o contrato promessa de partilha que fez juntar aos autos, nos termos do qual não haveria lugar a tornas desde que este assegurasse a celebração de um contrato de trabalho entre a apelante, sua ex-mulher, e a sociedade de que ficou único sócio, com determinado conteúdo ao nível da remuneração que àquela seria devida e outras regalias, como uso de viatura automóvel e telemóvel.

Ora, para lá da evidente confusão, revelada nos articulados, entre o património da sociedade e dos sócios – a autora alega ter recebido do réu “através da sociedade”, ao passo que o R. afirma ter pago, verificando-se embora, desde logo pelo teor dos documentos juntos, que nada pagou, tendo sido tudo pago pela sociedade, pessoa colectiva com personalidade jurídica e judiciária distinta dos sócios – e independentemente da validade das cláusulas convencionadas, certo é, porém, que a autora alega ter sido incumprido o contrato promessa de partilha, no que se refere à cláusula 5ª que acima se transcreveu, incumprimento que imputa ao R., em consequência do que sofreu os prejuízos cujo ressarcimento reclamou.

A causa de pedir invocada, independentemente do mérito, assenta no incumprimento de um contrato que não tem natureza laboral, nem tão pouco se pode falar de relações estabelecidas com vista à celebração de um contrato de trabalho subordinado, desde logo porque o aqui Réu não seria o empregador. Diversa seria a situação se a A. tivesse alegado que o R. interveio no acordo, nesta parte, em representação da dita sociedade “H..., Lda”, vinculando-a, mas não só não o alegou, como veio esclarecer e reafirmar que o apelado se obrigou apenas em seu nome pessoal. Acresce que as questões que integram a previsão da alínea b) do art. 126º da LOSJ são apenas aquelas que respeitam ao conteúdo essencial – que não acessório, complementar ou dependente – da relação de trabalho.

Deste modo, considerando a pretensão formulada pela A. e a causa de pedir que a suporta, afigura-se que estamos fora do conteúdo essencial da relação laboral, desde logo e de forma decisiva porque o “assegurar” a celebração de um contrato de trabalho com uma entidade terceira, no caso uma sociedade, independentemente da relação que com ela tinha o promitente, e como forma de compensar o ex-cônjuge pelos termos da partilha, sendo um sucedâneo das tornas devidas, não permite a caraterização do acordado como contrato de trabalho subordinado, nem tão pouco resulta do alegado que se tenha estabelecido uma relação entre as partes com a finalidade de vir a celebrar-se entre as partes contrato dessa natureza, estando em causa um contrato de natureza puramente civil (v. neste mesmo sentido, em situação com semelhanças, o acórdão do TRL de 27/10/2021, proferido no P. nº 6757/21.8T8LSB.L1, acessível em www.dgsi.pt).

Dissentindo do assim decidido, o Recorrente insiste que competência para a acção cabe ao foro laboral por estar em causa “o alegado incumprimento do acordo celebrado entre as partes no que se refere à celebração de um contrato de trabalho entre a Autora e a sociedade “H..., Lda”, estando assim preenchido o fundamento da competência dos juízos de trabalho que consta do art. 126º, nº1, b) da LOSJ: “compete aos juízos do trabalho, conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho.”

Mas também aqui lhe falece razão.

Não há, nem houve, à luz dos elementos carreados para os autos, nenhuma relação de trabalho subordinado entre a Autora e o Réu. O litígio também não emerge de relações estabelecidas com vista à celebração de um contrato de trabalho entre a Autora, como trabalhadora e o Réu como entidade patronal. Como bem observou o acórdão recorrido, o Recorrente obrigou-se em seu nome pessoal a assegurar que seria celebrado um contrato de trabalho entre a Autora e a sociedade “H..., Lda”, no âmbito de um acordo de partilha dos bens comuns mais vasto, acordo que a Autora alega que o Réu/recorrente incumpriu, sendo que também este imputa à Recorrida o incumprimento do acordo (cf. conclusões aa) a dd)).

Estamos em presença de um contrato de natureza puramente civil, para cuja resolução não é necessário convocar qualquer norma de direito do trabalho, pelo que é competente para conhecer do litígio dele emergente o juízo cível como decidiu a Relação.

Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões da Recorrente, não lhe assistindo razão na censura que dirige ao acórdão recorrido.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 04.04.2024

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Pinto Oliveira

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza