PRESTAÇÃO DE DECLARAÇÕES PELA ASSISTENTE
LOCAL/FORMA
Sumário

Nos termos do artº 323º, al. e), do C.P.P., cabe a quem está a presidir ao julgamento tomar todos as medidas preventivas de modo a garantir a segurança de todos os participantes processuais.
Significa isto que nada impede (sem prejuízo de audiência continuar a ser pública) que quem preside ao julgamento determine a retirada da sala não só da arguida como da sua família se tiver razões para concluir que elementos desta podem pôr em causa a espontaneidade do depoimento da assistente.
Outra, opção, e que dá cumprimento também ao disposto no artº 5.º da Lei n.º 130/2015, de 4/9 - “O contacto entre vítimas e os seus familiares e os suspeitos ou arguidos em todos os locais que impliquem a presença de uns e de outros no âmbito da realização de diligências processuais, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado, sem prejuízo da aplicação das regras estabelecidas no Código de Processo Penal.”, é a utilização da possibilidade prevista no artº 29º, al. b), da L. 130/2015 de 16/9 (aplicável por força do seu artº 1º, nº 3 e sendo certo que inexistem razões para que, para este efeito, a assistente não seja equiparada a testemunha, pois, como parece evidente, a mesma não pode ser prejudicada só porque por sua iniciativa tem um estatuto processual diferente), ouvindo a assistente por vídeo-conferência, estando esta numa outra sala do mesmo edifício, o que dependerá de meios técnicos existentes.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito do presente processo a assistente AA formulou o seguinte requerimento:

AA, assistente nos autos, vem requerer a V. Exa. A possibilidade de ser inquirida por videoconferência, por ter fundado receio de que a sua presença física no tribunal possa colocar em perigo a sua vida, integridade física ou liberdade pessoal.

Com efeito, da última vez que se deslocou ao Tribunal de Família e Menores de …, só não foi agredida por estar com o seu advogado, que se viu obrigado a pedir auxilio policial.

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Tal requerimento mereceu o seguinte despacho:

Por falta de fundamento legal e concordando com a promoção que antecede, indefiro a tomada de declarações da assistente mediante videoconferência.

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A assistente poderá, em sede de julgamento requerer que ao abrigo 352.º do Código de Processo Penal o afastamento dos arguidos da sala de audiências.

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Atentos os motivos invocados, solicite a presença da GNR na continuação da audiência de julgamento.

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A assistente recorreu do referido despacho, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“A. Mais de 500 mulheres foram assassinadas nos últimos 15 anos em contexto de relações de intimidade em Portugal;

B. Para o Tribunal recorrido é mais importante impedir o incómodo resultante da deslocação de um militar de … a …, do que zelar pela integridade física e a vida de uma mulher reiteradamente vítima de agressões;

C. Actualmente, a assistente encontra-se refugiada em casa dos pais em …, como é aliás do conhecimento do Tribunal, com o seu filho de 5 anos de idade, existindo a suspeita de o menor ter sido abusado sexualmente pelo próprio pai, suspeita que deu origem ao Inquérito com o n.º …;

D. Portugal é um dos países que subscreveu e ratificou a Convenção de Istambul, o que implica várias obrigações e compromissos, devendo ser assumidas medidas para prevenir a violência contra as mulheres e a violência doméstica.

E.A assistente é uma mulher pobre, perseguida pela arguida e pela família e tem fundado receio de ser agredida e até morta no percurso para o Tribunal, não lhe servindo de nada que no despacho recorrido, a senhora Dra. juíza tenha deliberado que “Atentos os motivos invocados, solicite a presença da GNR na continuação da audiência de julgamento.”

F. A decisão recorrida é ilegal por violar, entre outras disposições legais, o disposto no Estatuto da Vítima, consagrado na Lei 130/2015 de 16 de Setembro, nomeadamente o seu artigo 15.º, que consagra o direito da vítima a ser protegida;

G. O contacto entre vítimas e os seus familiares e os suspeitos ou arguidos em todos os locais que impliquem a presença de uns e de outros no âmbito da realização de diligências processuais, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado, sem prejuízo da aplicação das regras estabelecidas no Código de Processo Penal.”

H. Além do mais o despacho recorrido é inconstitucional, por violar o disposto no artigo 27.º da CRP, que determina que todos os cidadãos têm direito à Liberdade e à segurança.

Termos em que, deve ser revogado o douto despacho recorrido e, em sua substituição, ser determinado que a audição da vítima seja realizada por vídeoconferência.

Assim fazendo, V. Exas. farão a já costumada Justiça!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1. A Assistente nos presentes autos veio requerer prestar declarações através de videoconferência, tendo sido indeferida a sua pretensão por despacho proferido pela Mm.ª Juiz do Tribunal a quo.

2. Salvo o devido respeito por opinião contrária, considera-se que bem andou o Tribunal a quo.

3. Em primeiro lugar, a morada dos autos da assistente integra o município do Tribunal.

4. O motivo aventado em sede de requerimento é o risco pela integridade física da assistente.

5. Contudo, dos autos apenas está em causa um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º do Código Penal e a assistente não referiu onde pretendia prestar declarações ou outra morada na qual estivesse a viver.

6. Ademais, a Mm.ª Juiz salvaguardou a integridade física da assistente ao mandar diligenciar pela presença da G.N.R. no local.

7. Assim, salvo o devido respeito por opinião contrária, crê-se que não deverá proceder a argumentação expendida pela recorrente.

8. Em suma, crê-se que o Tribunal a quo com a decisão proferida não violou qualquer normativo legal e nenhuma censura se pode dirigir ao despacho recorrido, devendo improceder o recurso apresentado.

Face ao supra exposto e pelos fundamentos invocados, entende-se que deve ser negado provimento ao recurso interposto e, em consequência, manter-se o despacho recorrido, assim se fazendo Justiça.”

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Neste tribunal da relação, o Exmº P.G.A. emitiu parecer no qual refere com especial interesse o seguinte:

“Ora, em causa está a necessidade de, segundo as regras do direito e do bom senso, conciliar a salvaguarda dos direitos da vítima/assistente e do interesse na realização da justiça, que se satisfaz com a prestação de declarações ao abrigo do disposto no art.346.º do C.P.P. sem constrangimentos que inibam a declarante de dizer a verdade.

É certo que dispõe o art.352.º, n.º1, al. a), do C.P.P. que o tribunal ordena o afastamento do arguido da sala de audiência durante a prestação de declarações se houver razões para crer que a presença do arguido inibiria o declarante de dizer a verdade.

Mas também é certo que a assistente invoca residir em … e causas e fundamentos da pretensão suscetíveis de integrarem graves inconvenientes pessoais na sua deslocação, o que cai no âmbito de aplicação do art.318.º, n.º1, al. c), do C.P.P..

E assim sendo, e atentos os receios/perigos que fundamentam o requerido pela assistente, nada impõe que a mesma venha aos autos indicar a sua atual morada, nem tal é manifestamente imperativo para a realização do ato como pretende, já que para tal basta que indique o tribunal onde pretende prestar as declarações de forma à articulação da comunicação para o efeito entre tribunais e o respetivo Defensor.

Por outro lado, o cumprimento do art.352.º do C.P.P. nos termos que resultam do despacho recorrido - A assistente poderá, em sede de julgamento requerer que ao abrigo do disposto no art.352.º do C.P.P. o afastamento dos arguidos da sala de audiências - implica a presença concomitante da assistente e arguida na sala de audiência, nada resultando do despacho recorrido que o tribunal diligenciará para evitar o contacto que daí indubitavelmente resultará - nem que seja meramente visual, já de si potencialmente perturbador no contexto invocado - e que é pretendido seja evitado, sendo que a presença da GNR apenas é suscetível de evitar o confronto direto.

E por outro lado, ainda, a entender-se como necessária a presença da assistente em tribunal para a tomada de declarações por forma a se agilizarem procedimentos probatórios com o intuito de se salvaguardar a produção probatória com vista à descoberta da verdade com observância do princípio da imediação, sempre se dirá que nada impede que a tomada de declarações à assistente se realize no próprio tribunal onde se realiza a audiência, em sala previamente reservada para o efeito, o que possibilitará a realização subsequente de diligências que/se se vierem a afigurar necessárias sempre se assegurando o impedimento do referido contacto.

Ou seja, tudo ponderado, e partindo do princípio de que é partilhada a pretensão da salvaguarda da prestação das declarações pela assistente com plena salvaguarda dos seus direitos e sem inibições com reflexos negativos para a descoberta da verdade em conformidade com o postulado legal atinente, nos termos que claramente fluem da argumentação do Ministério Público e da assistente, bem como do despacho recorrido, junto da 1ª instância, neste aspeto essencial coincidentes, consistindo a vexata questio, como se apresenta, apenas nos termos da respetiva formalização, a respetiva solução reclama tratamento conciliando as regras legais com as do bom senso, nos termos que aqui vêm de ser preconizados.”

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Cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

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APRECIAÇÃO

A única questão a apreciar no presente recurso é a que se prende com o local/forma de depoimento da assistente no julgamento que está em curso.

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O que está em causa no julgamento em curso é apenas a prática de um crime de ofensa à integridade física simples do qual é vítima a assistente e que é imputado à arguida BB, mãe do companheiro da assistente.

Com efeito, consta na parte final da decisão instrutória proferida nos autos:

“Nesta conformidade, julgando-se improcedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida BB e procedente o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido CC, decido:

- Não pronunciar o arguido CC, dos factos e ilícito de violência doméstica p. e p. pelo Artigo 152º, nº 1, al. b) e nº 2, 4 e 5 do C.P..

- Pronunciar a arguida BB, pelos seguintes factos, abaixo narrados, a fim de ser julgada em processo comum e com a intervenção do tribunal singular:

CC e AA tiveram um relacionamento de namoro de cerca de um ano, sendo que, a partir do segundo mês desta relação, aqueles passaram a viver juntos, como se de marido e mulher se tratassem em casa dos progenitores de CC, mormente BB, sita na R. …, … coabitação que durou até ao dia 27 de Abril de 2019.

Do relacionamento entre o arguido CC e a AA, nasceu em … de Setembro de 2018, DD.

No dia 27 de Abril de 2019, cerca das 16h10m, no interior da residência onde viviam CC e AA, ocorrendo uma discussão entre a ofendida e a arguida BB, dizendo-lhe a arguida à ofendida que ela não fazia nada em casa para além de tomar conta do filho DD, tendo a ofendida respondido que era essa a sua função, a arguida tentou retirar o menor do colo da ofendida, agarrando-lhe na mão e puxando-lhe um braço, com força, tendo resultado como consequência da conduta da arguida BB, equimose de tonalidade levemente azulada em área como dedada, localizada à face antero-externa da prega do cotovelo esquerdo e também outra equimose com características semelhantes na face antero-externa da primeira falange do 2º dedo da mão esquerda.

Tais lesões determinaram para a ofendida AA um período de doença fixável em 3 dias, sem afectação da capacidade de trabalho geral e sem afectação da capacidade de trabalho profissional.

A arguida BB quis molestar fisicamente a ofendida AA, conforme molestou, o que conseguiu.

Com a conduta supra descrita, a arguida BB agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente de ser a sua conduta proibida e punida por lei.

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Incorrendo, assim, a prática pela arguida, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo Artigo 143º, nº 1 do C.P..”

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Desconhece-se se os referidos factos imputados à arguida têm, ou não, algo que ver com a alegada situação anterior em que o Sr. Advogado da assistente teve que solicitar auxílio policial.

Desconhece-se, porque a assistente não alegou no requerimento que mereceu o despacho recorrido, se a ora arguida teve, ou não, algo que ver com a anterior situação.

Seja como for, admite-se que independentemente do ocorrido na anterior situação, e independentemente dos factos aqui em causa, a assistente terá razões para temer pela sua segurança.

Acontece, porém, que a morada da assistente que consta no processo continua a ser da área do tribunal de .., não sendo directamente aplicável o disposto no artº 318º, nº 1, do C.P.P.. Seria, aliás, difícil proceder-se à sua inquirição em qualquer outro tribunal, sem que a sua alegada nova morada constasse nos autos, o que também poderia acarretar ainda maiores problemas de segurança.

Ao que parece a assistente continua a ser notificada na morada que consta nos autos.

Importa, contudo, na medida do possível e conciliando os vários interesses, como bem refere o Exmº P.G.A. no seu parecer, que se proteja a segurança da assistente, até para possibilitar um depoimento livre e espontâneo.

Dentro da sala de audiências a questão não se porá, pois que, por um lado, poderá ser determinado o afastamento da arguida (o que pode ser feito oficiosamente nos termos do artº 352º, nº 1, al. a), do C.P.P., sem necessidade de – mais um - requerimento prévio da assistente) e, por outro lado, aí estará a força policial, tal como já foi determinado no despacho recorrido.

Nada impede que a Srª Juiz que preside ao julgamento determine que se “aproveite” a já decidida força policial para “proteger” a assistente logo que esta entre no edifício do tribunal, devendo para que isso se concretize o ilustre mandatário da mesma comunicar previamente com os serviços da secretaria.

Esta é uma opção.

Outra, e que dá cumprimento também ao disposto no artº 5.º da Lei n.º 130/2015, de 4/9 - “O contacto entre vítimas e os seus familiares e os suspeitos ou arguidos em todos os locais que impliquem a presença de uns e de outros no âmbito da realização de diligências processuais, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado, sem prejuízo da aplicação das regras estabelecidas no Código de Processo Penal.”, é a utilização da possibilidade prevista no artº 29º, al. b), da L. 130/2015 de 16/9 (aplicável por força do seu artº 1º, nº 3 e sendo certo que inexistem razões para que, para este efeito, a assistente não seja equiparada a testemunha, pois, como parece evidente, a mesma não pode ser prejudicada só porque por sua iniciativa tem um estatuto processual diferente), ouvindo a assistente por vídeo-conferência, estando esta numa outra sala do mesmo edifício, o que dependerá de meios técnicos que este tribunal desconhece se existem, ou não.

Se assim se entender, esta segunda opção pode ser utilizada juntamente com a primeira.

Resta acrescentar que nos termos do artº 323º, al. e), do C.P.P., cabe a quem está a presidir ao julgamento tomar todos as medidas preventivas de modo a garantir a segurança de todos os participantes processuais.

Significa isto que nada impede (sem prejuízo de audiência continuar a ser pública) que quem preside ao julgamento determine a retirada da sala não só da arguida como da sua família se tiver razões para concluir que elementos desta podem pôr em causa a espontaneidade do depoimento da assistente (isto, como é óbvio, caso não se opte por proceder à inquirição por vídeo-conferência estando a assistente noutra sala do mesmo edifício).

Resulta do exposto que o presente recurso é parcialmente procedente, uma vez que a concreta pretensão da recorrente não é acolhida, mas o tribunal recorrido deverá tomar as providências acima referidas, parcial ou totalmente, não se devendo quedar pela mera retirada da sala de audiências (apenas) da arguida enquanto decorrer o depoimento da assistente.

É esta a decisão possível, tendo em conta os vários interesses e direitos em causa, e sendo certo que, repete-se, não está em causa qualquer situação de violência doméstica (sendo por isso desinteressantes algumas das considerações feitas na motivação de recurso) e que não cabe aos tribunais assegurar a segurança dos intervenientes processuais fora dos edifícios onde os mesmos se encontram instalados.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso parcialmente procedente nos termos referidos, devendo o tribunal recorrido proceder nos termos acima referidos.

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Sem tributação, uma vez que o decaimento não foi total.

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Évora, 9 de Abril de 2024

Nuno Garcia

Margarida Bacelar

António Condesso