POSSE
USUCAPIÃO
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - A contradição entre factos declarados provados e/ou declarados não provados e entre factos provados e a decisão de mérito não integra a oposição entre os fundamentos e a decisão estabelecida como causa de nulidade da sentença na alínea c), do nº 1, do artº 615º. Aquela poderia eventualmente suscitar a aplicação da alínea c), do nº 2, do artº 662º. Esta, constitui um caso exemplar de erro de julgamento.
II - A posse é uma situação de facto que a lei protege juridicamente, dada a aparência da existência de um direito real que resulta da actuação de certa pessoa, que é o possuidor. A posse decompõe-se, ela própria, em dois elementos: o corpus, que se identifica com os actos materiais (detenção/fruição) praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre ela; o animus, elemento psicológico, que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.
III - A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião – artigo 1287.º do Código Civil.
A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo.
IV - O abuso de direito, pressupondo a existência de um direito subjectivo, existe quando o seu titular exorbita dos fins próprios desse direito ou do contexto em que é exercido.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 1911/16.7T8STS-G.P1


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Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 7

RELAÇÃO N.º 106

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Maria da Luz Seabra

               Alexandra Pelayo


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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES

AA.: AA e

BB

RR.: Massa Insolvente de “A..., Lda.”

Credores da massa insolvente e

Devedora “A..., Lda.”


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Os AA. [2], sendo a A. BB  à data da instauração da ação menor e representada pelo seu tutor CC, ambos por si e em representação da Herança Jacente De DD, intentaram a presente ação de restituição e separação de bens, sob a forma de processo comum, contra os RR..

Formulam os seguintes pedidos:

a) ser judicialmente declarado que beneficiam da acessão da posse de todos os anteriores antepossuidores nos termos expostos e nos termos do disposto nos art.º 1255.º, 1256.º, n.º 1, 1293.º, alínea a), 1297.º e 1300.º, n.º 1, todos do Código Civil;

b) serem os Réus condenados a reconhecer o seu direito de propriedade sobre a citada fração, não só pela forma derivada – sucessão –, mas também através de aquisição originária, por usucapião, de harmonia com as disposições conjugadas dos art.º 1263.º, alínea a), 1268.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º e 1316.º, todos do Código Civil;

c) ser judicialmente declarada a nulidade da apreensão efetuada pela Massa Insolvente quanto ao imóvel sub judice, porque tal apreensão configura apreensão de bens alheios e é nesta medida nula (ex vi do disposto nos art.º 892.º e 939.º, ambos do Código Civil);

d) serem cancelados todos os registos prediais que contrariam a invocada propriedade, mormente o de apreensão a favor da massa insolvente do imóvel sito na Rua ..., ..., Fração B, R/C C, freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, sendo os mesmos residentes na mesma morada supra mencionada, com a respetiva matriz atual sob o artigo ..., que teve origem no artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ......;

e) Ocorrendo a venda do imóvel supra mencionado, seja judicialmente declarada a nulidade de tal ato por configurar a venda de bens que pertencem a terceiro nos termos expostos, ex vi do disposto no art.º 892.º do Código Civil;

f) ser a Massa Insolvente condenada a reconhecer o seu direito de propriedade sobre todos os móveis que estão no interior do imóvel melhor identificados e descritos na presente peça processual e a restituir-lhes os mesmos;

g) ser judicialmente declarado que eles e seus antepossuidores realizaram as benfeitorias necessárias de adaptação melhor descritas supra no imóvel sub judice, no valor de pelo menos 15.000,00€;

h) serem os Réus condenados a procederam à restituição e separação da massa do bem imóvel sito na Rua ..., ..., Fração B, R/C C, freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, sendo os mesmos residentes na mesma morada supra mencionada, com a respetiva matriz atual sob o artigo ..., que teve origem no artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o n.º ......;

Subsidiariamente:

i) ser judicialmente declarado que lhes assiste o direito de retenção por incumprimento da promessa da vendedora, previsto no art.º 755.º, alínea f), do Código Civil e, em conformidade, ser a Massa Insolvente condenada a abster-se da prática de todos os atos lesivos deste direito até que se resolva e transite em julgado toda a situação submetida a juízo e ínsita em todo o petitório final apresentado;

j) ser judicialmente declarado que tal direito se sobrepõe a todos os demais credores nos termos da lei, mormente sobre que figuram no registo predial do imóvel sub judice;

k) ser judicialmente declarado e julgada a execução específica do contrato promessa sub judice habilitando-os com sentença que substitua como título a declaração do promitente vendedor faltoso habilitando-os então a procederem ao registo do bem a favor dos herdeiros da de cujus DD em comum e sem determinação de parte ou direito;

l) Caso assim não se entenda, de novo de forma subsidiária, que seja reconhecido o valor integralmente pago com os serviços supra mencionados de empreitada prestados pela empresa “B..., Lda.” e a esta pagos pela de cujus DD do imóvel supra mencionado e a restituição do preço integralmente pago pelo imóvel supra mencionado e ainda seja declarado o abuso de direito dos Réus por violação do princípio da boa-fé, nos termos do disposto nos art.º 1207.º, 798.º, 433.º e 289.º todos do CC.

Requerem, ainda, a suspensão da liquidação, a manutenção provisória da posse na pendência da ação e até ao trânsito em julgado da ação e o registo da ação, encontrando-se tais questões prejudicadas face à já ordenada suspensão da liquidação nesse mesmo apenso e a prolação da presente sentença neste momento.

Alegam, em síntese e no essencial: serem herdeiros da falecida DD, que adquiriram por usucapião a fração B do prédio n.º ... apreendida indevidamente para a Massa Insolvente; que a posse lhes adveio por sucessão na sequência do óbito de DD e na sequência de celebração de contrato-promessa com traditio entre a insolvente e a sociedade “B...” e posteriores cessões de posição contratual de promitente-compradora para DD; pretendem a acessão da sua posse com a dos anteriores ante-possuidores, incluindo aqui a própria sociedade insolvente. Invocam a titularidade dos bens móveis existentes no interior do imóvel e a realização das benfeitorias descritas na petição inicial. Alegam, ainda, o incumprimento do contrato-promessa por parte da sociedade insolvente e massa insolvente, invocando direito de crédito com direito de retenção; invocam ainda o abuso de direito da massa insolvente, por violação do princípio da boa fé.

A ré MASSA INSOLVENTE DE “A..., LDA.” deduziu contestação, deduzindo a exceção de ilegitimidade ativa e a exceção de caducidade do direito invocado (considerando que a ação deveria ser intentada no prazo de 30 dias fixado para a reclamação de créditos, atento o disposto no art. 141.º CIRE), defendendo-se ainda por impugnação. Pugna pela improcedência da ação.

Em sede de resposta, os autores pugnam pela improcedência das exceções deduzidas pela ré massa insolvente.

No apenso de Liquidação fora determinada a suspensão da liquidação da verba n.º 8 (fração B em causa nos autos), atenta a pendência da presente ação.

A instância esteve suspensa, nos termos do art. 272.º, n.º 4, CPC, não tendo sido possível alcançar acordo nos autos.

Em sede de audiência prévia, realizada a 03.06.2020, foi julgada verificada oficiosamente a exceção dilatória da falta de personalidade judiciária da autora Herança Jacente de DD.

Esta decisão fora revogada por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.11.2020, determinando-se o prosseguimento dos autos com a herança jacente de DD como Autora.

Ademais, por despacho proferido a 14.10.2021 foram os ora autores AA e BB habilitados como únicos e universais herdeiros da referida DD, face aos documentos juntos pelos autores a 23.04.2021.

Realizou-se audiência prévia e audiência de julgamento.

Em sede de sentença foram fixadas as seguintes questões:

- O alegado direito dos autores obterem o reconhecimento da propriedade sobre o imóvel apreendido, sito na Rua ..., ..., Fracção B – R/c C, ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim e, consequentemente, a respetiva separação da massa insolvente e restituição; e

- O alegado direito dos autores à restituição dos bens móveis existentes no interior do referido imóvel e reconhecimento de obras realizadas na fração.

- Subsidiariamente, da existência da garantia do direito de retenção; e

- Do direito de os autores obterem a execução específica do contrato-promessa referido na petição inicial; e

- Subsidiariamente, do direito de os autores obterem a restituição do preço pago pelo imóvel pela de cujus DD.


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DA DECISÃO RECORRIDA


Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA julgando parcialmente procedente a demanda, nos seguintes termos:

Nestes termos, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:

- condeno a Ré Massa insolvente a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre a mobília e roupas existentes no interior da fração apreendida n.º ...-B e a restituir aos autores esses mesmos bens móveis;

- declaro que os autores e a sua falecida mãe realizaram na fração apreendida n.º ...-B as benfeitorias/ obras/adaptações/melhoramentos de pinturas e descritas no ponto 43 dos Factos Provados, no valor de pelo menos € 15.000,00; e

- absolvo os Réus dos demais pedidos formulados nos autos.“.


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DAS ALEGAÇÕES

Os AA., vêm desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Pelo exposto, deve ser julgada verificada as arguidas nulidades, impõe-se a revogação da douta sentença ora recorrida e a sua substituição por outra que em conformidade julgue nos termos peticionados supra pelos ora Recorrentes …“.


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Os ora recorrentes apresentam as seguintes CONCLUSÕES:

1. Com a devida vénia pelo doutamente decidido, e salvo melhor opinião, entendem os Recorrentes que a douta sentença padece de erro de julgamento da matéria de facto provada e não provada e encerra insanáveis contradições entre factos provados, prova e decisão que agora se passam a evidenciar em sede recursiva e cuja reapreciação se suscita.

2. Com o devido respeito e salvo melhor opinião, primeiramente a douta sentença padece de erro ao ter considerado os pontos A), B), E) e G) como matéria integrante dos factos não provados, em razão da prova produzida, deveriam ter sido dados como provados.

3. Novamente, com o respeito que apraz, a douta sentença padece também de incongruência entre os factos dados como provados e os factos não provados, em pormenor, os pontos A), B), E) e G) dos factos não provados, com contraposição aos pontos 24., 27., 37., 38. e 39. dos factos dados como provados.

4. Nestes termos, e porque se considera que a fundamentação da decisão carece de contradição, deve a Relação determinar que o tribunal a quo deva proceder à sua anulação, nos termos do disposto do artigo 662.º n.º 2, al. c) do CPC e que melhor se irá descrever infra.

5. Do manancial fáctico e dos fundamentos dos “factos não provados”, na perspectiva dos Recorrentes, existem factos ínsitos nos pontos A), B), E) e G) da matéria de facto dados como “não provados” que, quer pela prova produzida quer pela prova carreada, deveriam ter sido dados como “provados”.

6. Não entendem os Recorrentes como pode a digníssima sentença ter considerado estes factos como não provados quando reconhece, em primeiro, que desde o início dispuseram do imóvel como bem entenderam, alterando o interior da fração a seu gosto, com a realização de diversas benfeitorias (reconhecidas na sentença), em razão de não dependerem da autorização nem consentimento de ninguém para o fazerem, comportando-se como donos e proprietários, como o eram.

7. Em segundo, que tal como resulta da prova que melhor de explorará infra a intenção inicial do casal sempre foi adquirir uma casa a favor da falecida DD.

8. E para além de ter existido o pagamento integral do preço do imóvel, a de cujus DD em razão disso ter disposto do imóvel como entendia.

9. Também os documentos juntos aos autos na petição inicial e a prova testemunhal afirmaram que os Recorrentes se arrogavam proprietários da dita fração.

10. Em razão disso, a douta sentença padece de erro na apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, erro esse que resulta do decalque efectuado pelo julgador a quo quando apreciou indevidamente as declarações em sede de prova testemunhal e dos documentos juntos aos autos e os depoimentos prestados nos presentes autos.

11. A douta sentença não interpretou a situação em concreto de acordo com as provas carreadas para os autos, ignorando a prova feita sobre esse facto, quer a documental, quer a testemunhal, quer as declarações de parte, quer por último as regas jurídicas do 1263.º, do CC;

12. Com a devida vénia e salvo melhor opinião, entendem os Recorrentes que o  julgamento dado aos pontos A), B), E) e G) do elenco da matéria de facto não provada padece de erro na apreciação da prova, fruto da deficiente e/ou incompleta análise da prova produzida, mormente do decalque das declarações do Autor/Recorrente e do depoimento das testemunhas Dra. EE e FF.

13. Assim, deve a douta sentença ser revogada, sendo alterada a resposta dada aos pontos A), B), E) e G) considerando-se tais pontos como matéria provada.

14. Acresce que, a douta sentença padece também de incongruência entre os factos dados como provados e os factos não provados, em pormenor, os pontos A), B), E) e G) dos factos não provados, com contraposição aos pontos 24., 27., 37., 38. e 39. dos factos dados como provados.

15. Apesar de todo o devido respeito, não pode aceitar-se que ao mesmo tempo a MM juiz a quo considera que a fração adquirida se destinava a ser a habitação própria de DD (ponto 37. dos factos provados) e de seguida dá como não provado que o negócio de cessão da posição contratual de GG a DD no contrato-promessa só repôs a intenção inicial de ambos de que a fração “B” fosse adquirida pela (ponto E) dos factos não provados)…

16. Também não se entende que a MM juiz tenha considerado – e bem - que a falecida DD se arrogava proprietária da fração (facto 38. dos factos provados) e ao mesmo tempo considera matéria não provada que a mesma pessoa, DD, não possuía a convicção de que era efetivamente proprietária da fração e de que exercia um direito próprio e que era a única e exclusiva dona e proprietária da fração (pontos A e G dos factos não provados)…

17. E, ainda deu como provado que a de cujus posterior a 25.05.2003 e anterior a 20.02.2006 que a promitente vendedora entregou a chaves à de cujus DD passando a mesma a ter o uso exclusivo, dando inclusive de arrendamento a fração a terceiros, arrogando-se como proprietária, à vista de todos e sem oposição de ninguém.

18. Pelo que, a decisão proferida é injusta ao caso, em razão dos factos carreados nos autos e da prova produzida.

19. Em razão de tudo o exposto, e por mera cautela de patrocínio, caso seja improcedente o erro de julgamento supra mencionado, sempre se dirá que ocorreu um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão proferida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la incorrendo na nulidade, por manifesta oposição dos factos considerados provados e não provados da sentença, prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil.

20. Verifica-se, no caso em apreço que tal nulidade, uma vez que existe contradição entre os fundamentos e a decisão porque o julgador considerou não haver posse plena titulada e registada e impediu a aplicação do instituto da usucapião.

21. A alínea b), do artigo 1263.º, do Código Civil confere igual valor à tradição material e à tradição simbólica, sendo a primeira realizada através de um ato físico de entrega e recebimento da própria coisa e a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos ou expressões.

22. É válida e eficaz a tradição para os promitentes compradores, ainda que meramente simbólica, da fração objecto do contrato promessa que aqui se discute, por estar provado, que a promitente vendedora transmitiu à promitente compradora a “posse” com a entrega das chaves a de cujus DD e passou dela a ter o uso e o acesso exclusivo (factos 24 e 39 dados como provados na douta sentença), à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

23. Pelo que, também quanto a este concreto aspecto, a sentença é nula nos termos do artigo 615.º, nº 1, alínea c) do CPC, nulidade esta que aqui se invoca e argui.

24. Alterando-se o julgamento dado à matéria de facto nos termos que se expuseram e em conformidade, igualmente se terá de alterar o julgamento dado à matéria de direito nos termos que se passa a expor.

25. Mas, mesmo que se não altere o julgamento da matéria de facto ou apenas se altere parcialmente subsistem questões de direito autónomas do recurso em matéria de facto para as quais se suscita diferente entendimento e se apela.

26. Apesar de ao longo de toda a sentença a Juiz ter dado como provado e considerado que os Recorrentes demonstraram o corpus possessório, através da demonstração efetiva da ocupação da fração e o uso da mesma a fls… 26 da sentença e ainda a demonstração do animus possidendi, através do facto provado em 38., produziu uma decisão incoerente ao caso.

27. Chegados aqui, é precisamente neste ponto que discordamos da digníssima sentença, que peca por defeito quanto a esta consideração de que os Autores/Recorrentes não detinham o animus possessório.

28. Não sendo possível a tomada de declarações da falecida DD, em razão do seu falecimento, os filhos desta, aqui Recorrentes, foram perentórios ao afirmar que a fração em discussão era pertença da mãe destes.

29. A própria sentença reconhece que a mesma deu de arrendamento a fração à vista de toda a gente e sem oposição da promitente vendedora ou quem quer que fosse (cfr. factos provados 38 e 39).

30. Não podemos descurar de que cotejada toda a prova produzida em julgamento foi dado como provado o pagamento integral da fração, e o uso exclusivo da de cujus DD (Cfr. factos provados 24 e 36).

31. O promitente comprador só adquire o animus possidendi quando, de forma inequívoca, passe a exercer um domínio sobre a coisa como titular de um direito de propriedade, contra quem atuava como dono dessa mesma coisa, sem oposição a este.

32. Acresce ainda, como bem consta dos factos provados os Recorrentes, e aqui inclua-se a falecida DD, disponham da fração como destes se tratasse, investindo em obras para melhorar as condições de habitabilidade, benfeitorias essas reconhecidas na sentença, e até dispuseram da fração para a dar de arrendamento, dispondo e preservando de um imóvel como sendo sua propriedade.

33. Relembrando que, os requisitos dos quais depende a aplicabilidade da usucapião são a posse, a boa-fé e a posse reiterada no tempo, por dez anos contados do registo, nos termos do artigo 1294.º, alínea a), do Código Civil.

34. Quando não haja registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa-fé, e de vinte anos, se for de má-fé, conforme determina o artigo 1296.º do Código Civil.

35. In casu, com a celebração do contrato-promessa com traditio, existe um título de aquisição, tendo sido feito o registo deste, conforme o facto 30. dos factos provados, nos termos do artigo 2.º, n.º 1, al. f) do Código de Registo Predial.

36. E, desde a data da entrega das chaves da fração, 23/05/2003, até pelo menos, Janeiro de 2018, decorreram mais de 10 anos.

37. Aliás, o Recorrente AA ainda atua e age com posse na fração, ocupando a mesma com os seus parcos haveres, mobílias e roupas que se encontram no interior do imóvel.

38. A douta sentença que aqui se recorre não foi omissa nessa questão, tendo aliás reconhecido o direito do Recorrente AA a ser restituído de todos os bens móveis e das roupas existentes no interior da fração (Cfr. dispositivo da douta sentença).

39. Ora, nesse sucedâneo, os Recorrentes alegaram e demonstraram o preenchimento para operar o instituto da usucapião, através do artigo 1294.º, alínea a) do Código Civil.

40. A douta sentença reconheceu e deu como assente a entrega das chaves da fração e a posse sem qualquer oposição à vista de todos, assim como pagamento integral do preço.

41. Reconheceu ainda que a sociedade insolvente nunca interpelou os promitentes-compradores para a celebração da escritura pública de compra e venda.

42. Nos factos dados como provados na douta sentença não é reconhecido qualquer ato ou atuação expressa de oposição à posse dos Recorrentes.

43. Com o pagamento total do preço e a entrega das chaves à de cujus DD materializou-se a intenção de transferir para este os poderes sobre a coisa, faltando apenas legalizar uma situação de facto já consolidada.

44. E tanto assim é que a sociedade vendedora não mais arrogou qualquer direito sobre a fração ou interferiu com o uso e plena fruição que os Recorrentes desde então dela vem fazendo, conforme a factualidade apurada ilustra de forma exuberante.

45. Estamos, portanto, perante uma das referidas situações de exceção, em que a entrega da fração foi acompanhada da intenção, comum aos contraentes, de operarem a transferência da propriedade, de modo a que o imóvel passasse a ser dos Recorrentes, que assim passaram a considerá-la.

46. Vale isto por dizer que os Recorrentes, pela tradição material da fração, mantêm uma verdadeira posse, nos termos da al. b) do artigo 1263.º do CC, e não a mera detenção ou uma posse precária ou em nome alheio.

47. Havendo título de aquisição e registo, a usucapião tem lugar quando a posse, sendo de boa-fé, tenha durado 10 anos contados do registo, ou 15, no caso de ser de má-fé.

48. Estes referidos prazos, não existindo registo do título ou da mera posse, elevam-se para 15 e 20 anos, consoante estejamos perante posse de boa ou de má-fé (cf. Artigos 1294.º a 1296.º do CC).

49. A posse, define-a a lei como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real, artigo 1257.º do CC.

50. A atuação de facto correspondente ao exercício do direito por parte do possuidor constitui o “corpus”, resultando ainda da lei a exigência do “animus” ou intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela.

51. Todavia, consciente da dificuldade, senão impossibilidade de “fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o n.º 2 do artigo 1252.º, do CC, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (“corpus”), tendo o STJ afirmado a doutrina de que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” o que equivale a dizer, numa outra formulação, que “no exercente do poder de facto presume- se o “animus” (Cf. o AUJ de 14 de Maio de 1996, in DR n.º 144 de 24/6/96).

52. Tendo-a adquirido de boa-fé, os Recorrentes passaram a exercer atos de verdadeira posse pública, pacífica e de boa-fé sobre a mesma fração, como se fossem seus proprietários, atuação que manteve imperturbada e sem interrupção, até Janeiro de 2018 (Cfr. art.igos 1257.º, 1292.º e 323.º do CC) e ainda se mantém com a ocupação com moveis e demais haveres do R. AA.

53. Sendo que, desde esta última referida data, a Administradora da Insolvência da R. Massa Insolvente, decidiu, por sua vontade e sem motivos válidos, tentar cessar a posse dos Recorrentes, de forma violenta, através de mudança da fechadura da porta principal de acesso à fração sub judice, mas nunca tendo logrado afastar a efectiva ocupação do imóvel que ainda hoje se mantém com os haveres do jovem AA;

54. Aliás e em boa verdade, esta atuação da Administradora da Insolvência constitui a prática de um ato típico e ilícito criminal, a perturbação da posse contra o legítimo possuidor da coisa, que ainda hoje tem lá os seus parcos haveres (roupas e mobílias).

55. Por diversas vezes os Recorrentes solicitaram a restituição da posse da fração, em que foi através de esbulho, com violência, vedada.

56. Apesar disso, a Exm.a A.I. atuou em manifesto abuso de direito, pois não tinha a faculdade social e moral, de acordo com os bons costumes de no caso concreto de optar pela execução ou não do contrato quando ocorreu, a circunstância dos promitentes- compradores terem cumprido na íntegra a sua obrigação, como aconteceu nestes casos com a promitente compradora, com o pagamento integral do preço.

57. Ou seja, a atuação da Ex.ma A.I. nos presentes autos após ser informada da existência do contrato-promessa e do total pagamento do preço, ao ter trocado a fechadura, violou a lei, pois a mesma tinha incumbência legal de se pronunciar sobre os negócios em curso ex vi do artigo 102.º do CIRE, tendo omitido totalmente essa obrigação e dever legal.

58. Em suma, a Ilustre Administradora de Insolvência ignorou a posse dos Recorrentes, fez olhos fechados à realidade factual e esta atitude ignóbil da mesma só veio depois a ser contrariada pelo Tribunal ao proibir a venda e a manutenção dos haveres do AA no apartamento – situação que ainda se mantém.

59. Para evitar consequências maiores, a venda da fração foi ordenada suspensa em apenso ao presente processo, em razão da posse reconhecida dos Recorrentes nesse mesmo apenso!

60. Os Recorrentes investiram muito na fração ao longo dos anos, muito para além das meras obras de conservação, antes se inscrevendo numa estratégia de introdução de verdadeiras e substanciais melhorias no imóvel, procedendo ao pagamento das quotas do condomínio, em tudo procedendo como é próprio de um proprietário.

61. E fizeram-no, conforme igualmente se apurou, convencidos de que detinham essa mesma qualidade e com intenção se atuar como titular do direito correspondente -elemento subjetivo que, em todo o caso, sempre seria de presumir.

62. Em conclusão, a qualificação da natureza da posse do promitente-comprador que, no âmbito de um contrato promessa de compra e venda de um bem obtém a tradição deste, não emerge do contrato promessa, que não tem, por regra, eficácia translativa, decorrendo, antes, do acordo negocial de entrega antecipada e da efetiva entrega do bem pelo promitente vendedor tendo em vista a antecipação dos efeitos translativos do contrato definitivo, pelo que, para tanto, impõe-se valorar às especificidades do caso concreto e caso a caso, os termos e o conteúdo do negócio, as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração.

63. Assim, se dessa ponderação casuística resultar comprovada a intenção do promitente vendedor de transferir, desde logo, para o promitente-comprador, a posse da coisa correspondente ao direito de propriedade como aconteceu no caso sub judice, designadamente por o promitente-comprador já ter pago a totalidade do preço ou por as partes, por razões específicas, não terem o propósito de realizar o contrato definitivo, impõe-se considerar o promitente-comprador com tradição do imóvel como sendo um verdadeiro possuidor, o que determina, a seu favor, o início da contagem do prazo necessário para a verificação da usucapião, nos termos dos artigos 1251º, 1263º, al. b) e 1287º, todos do Código Civil.

64. A posse do promitente-comprador sobre o bem entregue pelo promitente vendedor, iniciada como precária só é apta a conduzir à usucapião se, supervenientemente, se converter em posse em nome próprio mediante a inversão do título de posse, prevista no artigo 1265º, do Código Civil, que pressupõe que aquele torne diretamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía, através da prática de atos positivos, inequívocos e reveladores, a sua intenção de passar a atuar como titular do direito de propriedade.

65. A distinção entre posse titulada e não titulada releva - tal como a distinção entre posse de boa-fé ou de má fé - para efeitos de usucapião, na determinação do prazo a esta conducente.

66. O contrato-promessa de compra e venda foi apresentado a registo, em cumprimento à alínea f) do artigo 2.º do Código do Registo Predial.

67. Para tentar refutar a existência de uma posse plena, registada e titulada, a digníssima sentença entra em contradição entre a sua decisão e fundamentação, numa tentativa de justificar a sua incoerente e injusta decisão.

68. Conforme já dito, ao longo do alegado nos articulados e da prova feita em momento próprio, foi alegada e demonstrada a existência de uma forma de aquisição originária em favor dos Recorrentes, em pormenor, a usucapião.

69. Os Autores/Recorrentes cumpriram com o ónus que lhes incumbia e ilidiram a presunção de registo de que beneficia a sociedade insolvente e, posteriormente, a Massa Insolvente.

70. Pelo que, importaria a decisão ter condenado os Recorridos nos termos peticionados nos pedidos principais, formulados nas alíneas a) a d), e com especial relevância, reconhecer aos Recorrentes o direito de propriedade sobre a citada fração, não só pela forma derivada – sucessão –, mas também através de aquisição originária, por usucapião, de harmonia com as disposições conjugadas dos art.º 1263.º, alínea a), 1268.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º e 1316.º, todos do Código Civil, com as demais consequências legais daqui ora advindas.

71. No entanto, caso assim não fosse entendimento da MM Juiz, a sentença peca ainda por indevida apreciação dos pedidos formulados a título subsidiário, em pormenor, nas alienas i) a l).

72. Primeiramente, importa esclarecer que, no processo que correu termos sob o apenso E, houve uma absolvição dos réus, por ter sido considerada a ação extemporânea.

73. Importa ainda ponderar que a caducidade ocorreu em razão da forma da acção proposta, conter um prazo processual especial, para ser instaurada, prazo esse processual e não prazo do direito que se pretendia fazer valer, ter caducado.

74. Ao confundir a transito em julgado da decisão de um incidente de mera verificação ulterior de créditos com o transito em julgado de uma acção de separação e restituição de bens que tem objecto e configuração totalmente diversos, para além de violar os artigos 141.º, n.º 1 e 146.º, ambos do CIRE, a douta sentença violou também nessa medida o caso julgado e o disposto nos artigos 619.º e 621.º, ambos do CPC;

75. Por via da constatado erro de julgamento do instituto da usucapião e por via da constatada violação dos 141.º, n.º 1 e 146.º, ambos do CIRE e artigos 619.º e 621.º, ambos do CPC, acabaram não apreciados e julgados vários pedidos dos Recorrentes;

76. Não poderá jamais olvidar-se que, ainda que não seja aplicado o instituto da usucapião ao caso, importa reflectir e dar resposta aos direitos que decorrem da prova efectiva do pagamento integral do preço do apartamento e do inerente direito de retenção;

77. Por isso, os Recorrentes terão pelo menos direito a receber o valor pelo preço integralmente pago pelo imóvel aqui em discussão e o inerente direito de retenção, nos termos do disposto nos artigos 798.º, 433.º e 289.º todos do CC, conforme os pedidos formulados na PI.

78. No caso concreto, a recusa no cumprimento do contrato-promessa pela Ex.ma A.I. foi abusiva, quando o preço já estava total totalmente pago (contrato-promessa com antecipação dos efeitos do contrato- prometido).

79. No caso sub judice, tal como se provou, a promitente-compradora já tinha pago integralmente o preço e a recusa do cumprimento do contrato-promessa em tais circunstâncias por parte do AI, sem que, concomitantemente, se disponha a restituir os valores que se vierem a apurar terem sido pagos, sob a invocação formal de que este não reclamou o seu crédito nos autos de insolvência, constitui um abuso na utilização do poder contido na estrutura do direito, sendo clamorosamente ofensivo do sentimento de justiça e dos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais, que aqui se invoca e argui para todos os legais efeitos.

80. E ainda, caso se equacione se não deveriam os Recorrentes terem reclamado créditos do valor pago pelo imóvel (ambos numa altura em que lhe tinham matado toda a família e tinham o pai preso sendo ambos menores), tenha-se presente que à data em que decorria o prazo para apresentação da reclamação de créditos no processo de insolvência, esclareça-se que os Recorrentes jamais tinham conhecimento que a Ilustre Administradora de Insolvência iria incumprir com o contrato-promessa celebrado, pelo que, não exista à data este crédito para que fosse reclamado.

81. Entendimento que a douta sentença foi omissa em apreciar o pedido l) do petitório com a falta de condenação da massa à restituição do pagamento do preço, incorrendo em nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC, que aqui se invoca e argui para todos os legais efeitos, por violação do artigo 607.º do CPC, porque deixou de se pronunciar sobre questão que devia apreciar, nulidade esta que expressamente se invoca e requer seja reconhecida com as devidas consequências legais.

82. Salvo melhor entendimento, a douta sentença ao ignorar estas realidades e o pagamento integrado do preço, violou os ditames legais supra mencionados, o que aqui se invoca e argui para todos os legais efeitos.

83. O douto Tribunal ao não ter condenado os Recorridos nos termos peticionados incorreu em clara violação do disposto nos artigos 349.º, 892.º, 939.º, 1255.º e seguintes, todos do CC, na justa medida em que ignorou o peso e valor jurídico da presunção fundada na posse que emerge destes preceitos.

84. Com o devido e merecido respeito, o Tribunal recorrido não analisou devidamente a prova junta aos autos, para concluir que ao caso não se aplica a usucapião, pelo que a sentença enferma de nulidade por violação dos princípios da livre apreciação da prova, da imediação e da oralidade.

85. Decidindo da forma como foi, há claramente uma ofensa às disposições legais (artigos 1263.º, al. a), 1268.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º, 1316.º e, 798.º, 433.º e 289.º, todos do Código Civil e artigo 607.º, n.º 5, do CPC e 106.º, n.º2, 104.º, n.º5, e 102.º, n.º3, do CIRE) que foram preteridas pelo Tribunal recorrido e que se exigia esta prova para comprovar a existência dos factos que foram alegados pelos ora Recorrentes, fixando, desta forma, a força destes meios probatórios.

86. Como não houve a devida valoração da prova por parte do Tribunal a quo, evidentemente que, a fundamentação a que chega o Tribunal enferma de uma nulidade por erro sobre a apreciação da prova, nos termos do nº 5 do artigo 607º, 608.º, nº 2 e da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

87. Perante todos os factos e prova que existem no processo, deve a decisão ser alterada e condenados os Recorridos, nos termos peticionados pelos Recorrentes, sob pena de violar o disposto nos artigos 1263.º, al. a), 1268.º, n.º 1, 1287.º, 1296.º, 1316.º e, 798.º, 433.º e 289.º, todos do Código Civil e artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.

88. Por todas as razões expostas no presente recurso, pelas quais deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por uma outra decisão judicial que, com base nos fundamentos expostos, condene os Recorridos julgando procedente os pedidos principais da PI, nas alíneas a) a h), ou, subsidiariamente, os pedidos formulados em i) a l) da PI. “.


*

A R. Massa Insolvente de A..., apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

Apresentou as seguintes conclusões:

a) A decisão recorrida não padece de qualquer erro de julgamento da matéria de facto provada e não provada, nem tampouco encerra insanáveis contradições entre factos provados;

b) Também não padece de erro de raciocinio lógico estando consistentemente fundamentada de facto e de direito;

c) O facto de ter resultado provado que DD passou a ter a chave da fracão, que dela passou a ter uso e acesso exclusivo, que houve cessão da posição contratual a GG e DD, que esta terá dado de arrendamento o referido apartamento e que recebia as rendas à vista de todos e sem oposição da sociedade insolvente ou de quem quer que fosse até à apreensão a favor da aqui recorrida não tem de pressupor que DD possuisse a convicção de que era efectivamente a proprietária da fracção e de que exercia um direito próprio;

d) Em verdade, quer a falecida DD, quer GG sabiam que enquanto não se realizasse a escritura do imóvel, a fracção não lhes pertencia;

e) Para tal encetaram vários esforços junto da sociedade insolvente/promitente vendedora, no sentido de realizarem a escritura;

f) O que só por si demonstra clara consicência de que a fracção apenas seria deles quando a mesma se realizasse;

g) Por sua vez a sociedade insolvente nunca logrou marcar data para a realização da mesma, invocando a garantia da Banco 1... que recaia sobre o imóvel, demonstrando que a expectativa dos promitentes compradores virem a poder celebrar o contrato definitivo era muito frágil;

h) O próprio GG em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, referiu que os legais representantes da insolvente andaram sempre a enganar e que era esta que autorizava a DD a arrendar o imóvel;

i) O próprio AA aqui Recorrente, em sede de declarações de parte referiu-se à suposta propriedade da mãe com incertezas utilizando expressões como “este apartamento penso que seja da minha mãe…não tenho bem a certeza mas penso que foi pela empresa… aquilo parecia totalmente…propriedade dela”;

j) Também a testemunha Dra EE explicou que fora advogada de DD e GG nos processos de insolvência pessoal sendo que em nenhum momento terá arrolado a mencionada fracção na relação de bens, nos termos do artº 24º CIRE pois que aqueles diziam que na verdade nada estava registado em nome deles;

k) Demonstrando claramente que sabiam que não eram proprietários da fracção;

l) Também a Sra. Administradora de insolvência explicou em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, que o condominio não era pago por ninguém antes da declaração de insolvência da A... e que, depois desta, passou a ser paga pela aqui Recorrida;

m) Pelo que se conclui, como bem concluiu a sentença recorrida, que tinham o corpus, porém, não tinham o animus sobre a fracção;

n) Por outro lado, ainda que ouvesse a convicção de que era proprietária da fracção, sempre cairia o pedido de reconhceimento por usucapião por não se encontrarem preenchidos os prazos legais para o mesma, pois que na hipotese de DD ter adquirido a alegada posse em 2003, com a entrega das chaves da fracção, em 2016 quando a aqui Recorrente faz a apreensão do imóvel, ainda não tinham decorridos 15 anos;

o) Também o alegado abuso de direito por parte a Sra. Administradora Judicial, ao apreender a fracção, não ficou demonstrado pois que pelo menos até à Audiênca de Disucussão e Julgamento, em nenhum momento os Recorrentes lograram provar o pagamento do preço da fracção prometida comprar;

p) Mais se diga que ao contrário do alegado pelos Recorrentes, sempre deviam os mesmos ter reclamado créditos nos autos de insolvência, à cautela, não colhendo a tese dos mesmos quando defendem que não sabiam se a Sra. Administradora judicial iria ou não optar pela apreensão do imóvel;

q) Pois que, como se disse, em nenhum momento haviam provado através de qualquer documento, o pagamento do preço, limitando-se a Sra. Administradora judicial a efectuar as diligências necessárias a que estava adstrita devido à sua nomeação;

r) Devendo mater-se na integra a decisão recorrida.“.


***

*
II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:

A) Nulidades da sentença

i) Incongruência entre os factos provados e os factos não provados – os pontos A), B), E) e G) dos factos não provados, com contraposição aos pontos 24., 27., 37., 38. e 39. dos factos dados como provados – conclusões 3.ª, 14.ª 20.ª.

ii) Nulidade da sentença, artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, por não se entender que não existe posse, quando ocorreu tradição da coisa – entrega das chaves, da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda – conclusões 21.ª a 23.ª.

iii) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto ao pedido formulado em l) – nos termos d artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil – conclusões 71.ª a 81.ª.

iv) Nulidade por erra sobre a apreciação da prova – artigos 607.º, 608.º, n.º 2 e da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

B) Modificação da decisão da matéria de facto.

Os factos das alíneas A), B), E) e G) dos factos não provados deveriam ser dados como provados – conclusões 5.ª a 13.ª.

C) Violação de caso julgado – decisão de verificação ulterior de créditos

C) Alteração da decisão de direito em conformidade com a alteração dos factos – conclusão 24.ª.

Conhecimento da existência do animus por parte do recorrente, e subsequente aquisição por usucapião do bem em causa pelo recorrente – conclusões 25.ª a 52.ª, 62.ª a 70.ª.

C) Conhecimento do abuso de direito – conclusões 53.ª a 61.ª.


**

*
OS FACTOS


A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.

Factos Provados:

1. AA e BB (doravante designados por AA.) nasceram, respetivamente, a 12 de maio de 1998 e a 10 de fevereiro de 2005, na freguesia e concelho de Póvoa de Varzim.

2. AA e BB são irmãos germanos e são filhos de GG e DD.

3. Entre 1995 e 2013, os pais dos AA. viveram em união de facto.

4. A mãe dos AA. DD, era filha de HH e de II.

5. Os aqui AA. tinham um irmão uterino JJ, que nasceu a ../../1991, filho de KK e de DD.

6. No dia 28 de abril de 2015, o pai dos aqui AA., GG atingiu a tiro a respetiva mãe, DD, os avós maternos (HH e II) e o irmão uterino (JJ) tendo sido nessa sequência todos privados da vida na residência e café contíguo à mesma “C...”, na Rua ..., na ..., Póvoa de Varzim.

7. Nesta sequência o pai dos AA. foi preso preventivamente à ordem do Processo n.º 1183/15.0JAPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto- Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 3.

8. Naquela data de 28 de abril de 2015, os AA. viviam com a mãe (DD), com o irmão uterino maior JJ e os avós maternos (II e HH), falecidos e dado que eram ambos menores, fora nomeado como tutor o tio paterno, CC, por sentença proferida no processo n.º 436/16.5T8BCL - Comarca de Braga - Instância Central de Barcelos - 2.ª Secção de Família e Menores - J1.

9. À data da instauração da ação, pendia o processo n.º 149/17.0T8PVZ, a correr termos no Tribunal da Comarca de Braga - Juízo de Competência Genérica de Cabeceiras de Basto, para determinação da ordem dos óbitos das vítimas de homicídio supra mencionadas.

10. Por Acórdão da Relação do Porto de 10.11.2020 proferido nos autos fora determinando o prosseguimento dos autos com a herança jacente de DD como Autora, sendo que por despacho proferido a 14.10.2021 foram os ora autores AA e BB habilitados como únicos e universais herdeiros da referida DD.

11. A sociedade A..., Ld.ª foi declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais a 15.09.2016, transitada em julgado em 06.10.2016.

12. O anúncio da sentença foi publicado no portal Citius em 16.09.2016 e o edital da sentença foi afixado em 26.09.2016.

13. Naquela sentença foi fixado o prazo de trinta dias para a reclamação de créditos, sem que AA e BB ou a Herança Jacente aqui autora tenham reclamado crédito sobre a insolvente.

14. Em 08.11.2016, a Sra. AI apresentou a lista definitiva de créditos, não reconhecendo qualquer crédito aos aqui autores ou à Herança Jacente de DD.

15. No âmbito do processo de insolvência, a Sra. Administradora da Insolvência procedeu à apreensão, além do mais, da fração B do prédio urbano sito na rua ..., ... da freguesia e concelho da Póvoa de Varzim descrita na CRP da Póvoa de Varzim n.º ...-B (verba n.º 8), juntando o auto de apreensão de bens ao apenso C a 07.04.2017 e tendo procedido ao registo da apreensão e declaração de insolvência naquele prédio n.º ...... pela AP. ... de 2016/09/21.

16. Da certidão de registo predial da fração n.º ...-B resulta que:

- pela AP. ... de 2004/06/25 fora registada Hipoteca Voluntária (que abrange no total 114 frações), a favor da Banco 1..., S.A., com o montante máximo assegurado de 1.052.450,00 Euros e para garantia de mútuo contraído por A..., LDª

- pela AP. ... de 2016/09/06 fora registada penhora a favor da Banco 1..., S.A. e sendo o sujeito passivo A..., LDª.

17. AA e BB souberam, no decurso do ano de 2017, que tinha sido decretada a insolvência da sociedade A..., L.da, e consequentemente estaria iminente a liquidação dos bens apreendidos nos presentes autos, tendo a 04.09.2017 intentado a ação de verificação ulterior de créditos, que correu termos sob o apenso E, peticionado, além do mais, o reconhecimento de crédito da falecida DD, com direito de retenção, decorrente de alegado incumprimento de contrato-promessa (também em causa nos presentes autos), alegando o pagamento integral do preço do imóvel.

18. Os AA. após terem intentado aquela ação de verificação ulterior de créditos, apresentaram proposta de aquisição da dita fração B mediante a dispensa de preço (artigo 815.º do CPC), tendo a Sra. Administradora de Insolvência respondido por carta data de 15.09.2017 referindo a “inoportunidade da proposta apresentada”, e ainda que devem os ocupantes das frações “desocupar de imediato as mesmas”.

19. A referida ação de verificação ulterior de créditos (apenso E) foi julgada improcedente, por extemporânea, por sentença de 03.06.2018.

20. A 25 de maio de 2003, a aqui insolvente A... celebrou com a sociedade B..., Lda. um contrato promessa de compra e venda, pelo qual a ora insolvente prometeu vender e a sociedade B..., L.da prometeu comprar as frações “B” e “G”, do prédio urbano, sito na Rua ..., ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim.

21. De acordo com a Cláusula terceira daquele contrato-promessa, o preço das fracções é de € 254.386,92 (sendo € 124.699,47 correspondente à fração B e € 129.687,45 correspondente à fração G). O preço seria pago por acerto de contas correntes e dação em pagamento pelos serviços prestados pela sociedade promitente-compradora (sociedade “B..., Lda”) no âmbito de contrato de empreitada celebrado com a ora insolvente.

22. Consta da cláusula quarta daquele contrato-promessa o seguinte:

“1 – O comprador fica autorizado a ceder a sua posição no presente contrato, e até ao dia que vier a ser designado para a realização da escritura de compra e venda, devendo para o efeito o cessionário celebrar novo contrato promessa com a Primeira Outorgante.”

23. No referido contrato promessa de compra e venda, ficou acordado que a promitente-vendedora realizava a escritura de compra e venda assim que a fração estivesse concluída, registado e inscrito o regime de propriedade horizontal e desde que em vigor a licença de utilização, sendo que esta avisava por escrito com a antecedência mínima de 15 dias à promitente-compradora a data, hora e local da realização da escritura (cfr. cláusula nona do contrato).

24. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 25.05.2003 e anterior a 20.02.2006, a promitente-vendedora (aqui insolvente) entregou à promitente-compradora as chaves da fração “B” que dela passou a ter o uso e acesso exclusivo, assim como a gerente daquela sociedade, DD.

25. Foi acordado entre a insolvente A... e a sociedade B..., L.da que esta última iria ceder a posição do contrato supra referido quanto à fração “G” a terceiros, tendo entretanto a fração “G” sido alienada a terceiros, conforme cópia da descrição da referida fração G.

26. O preço da referida fração “B” fora integralmente pago à sociedade insolvente através de dação em pagamento com os serviços prestados pela sociedade B..., L.da.

27. A sociedade B..., L.da cedeu a posição contratual relativamente à fração “B” prometida-comprar a GG e a DD, em acordo com a aqui insolvente A..., L.da, passando GG e DD a usufruir e a utilizar da fração B.

28. O referido contrato resultou de um acordo prévio realizado verbalmente pelas partes.

29. Ficou acordado com a aqui insolvente A... Lda, que a mesma iria realizar registo provisório de aquisição a favor do GG e da DD.

30. Nessa sequência, em 20.02.2006, a sociedade aqui insolvente A..., L.da apresentou a registo pedido de registo provisório de aquisição a favor de GG e de DD, do imóvel sito na Rua ..., ..., Fração B – R/c C, ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, ali constando que os mesmos eram residentes naquela morada, correspondente à fração n.º ...-B da Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim, constando como declaração complementar: “Declaro que pretende vender pelo preço de 121.886,92”.

31. Na mesma data, GG e de DD apresentaram a registo pedido de registo de hipoteca provisório por natureza a favor do Banco 2..., S.A., no montante de 90.000,00€ de capital e juros devidos à taxa de 3,37% acrescido do juro de 4% em caso de mora, a título penal.

32. GG e DD encetaram todos os esforços para que a sociedade A..., L.da celebrasse a escritura definitiva do contrato-promessa da fração B, estando esta constantemente a protelar no tempo a escritura definitiva, com a justificação da dificuldade no cancelamento da hipoteca voluntária que existia a favor da Banco 1..., S.A., registada em 25.06.2004, com o capital de 700.000,00€ e no montante máximo assegurado de 1.052.450,00€.

33. Ulteriormente, GG e DD acordaram verbalmente nova cessão de posição contratual a favor de DD, sendo que a parte do imóvel que pertencia ao GG foi cedida à DD.

34. Em razão que antecede, naquela altura foi dado conhecimento dessa cessão à aqui insolvente sociedade A... para que a escritura de compra e venda fosse realizada a favor da DD, não tendo a insolvente se oposto a tal.

35. Ora, apesar de todos os esforços e contactos realizados pela DD e ainda pelo GG, a sociedade aqui insolvente A... protelou de novo a celebração da escritura compra e venda da fração B, referindo sempre que estavam com dificuldades em realizar o cancelamento da hipoteca voluntária da Banco 1....

36. O preço da fração B prometida comprar fora integralmente pago e a sociedade insolvente nunca interpelou extrajudicialmente por qualquer forma que fosse a DD para pagar o que pago estava ou para a marcação da escritura de compra e venda.

37. Inicialmente, a fração B destinava-se à habitação própria de DD, mas por razões diversas a mesma nunca residiu naquele apartamento.

38. Por contrato de arrendamento datado de 15.07.2008, DD (arrogando-se proprietária da fração) deu de arrendamento a fração B a LL e MM, pelo período de cinco anos, recebendo as respetivas rendas, tendo passado dois recibos de pagamentos da renda juntos como Doc. 22 na PI.

39. O uso da fração B por DD, designadamente através do seu arrendamento, fora feito à vista de toda a gente, sem oposição da sociedade insolvente ou de quem quer que fosse até à apreensão daquela fração no âmbito da presente insolvência.

40. O aludido arrendamento perdurou até ao mês de junho do ano de 2017, data em que os arrendatários abandonaram a fração.

41. Após esse abandono do arrendatário, AA celebrou contrato de eletricidade e de fornecimento de água, em seu nome, e entre setembro e dezembro de 2017 ali se instalou, residindo aos fins-de-semana, sendo que durante a semana se encontrava a estudar e a viver em Viana do Castelo.

42. O aqui A. AA, com ajuda de terceiros, procedeu no Verão de 2017 à instalação do recheio no apartamento fração B (tal como: camas, cadeiras, tapete de WC, toalhas de casas de banho), sendo o recheio (mobília e roupas) existente na fração B pertencente aos autores e procedeu a reparações, tais como pinturas.

43. Acresce, ainda, que pela sua falecida mãe DD já haviam sido realizadas obras e reparações/adaptações de melhoramento do apartamento, a saber, trabalhos de carpinteiro (rodapés e portas), eletricista e canalizador, colocação/substituição janelas, vidros, estores, assim como a colocação de 6 radiadores de aquecimento central, aquecedor de água, móveis de cozinha, a colocação de roupeiros dos quartos e do corredor (portas, gavetas e prateleiras), móveis e loiças (com torneiras, etc.) de casa de banho e cinco motores de estores.

44. As reparações/adaptações/melhoramentos supra mencionados na fracção importaram um custo de pelo menos € 15.000,00.

45. Foi com o conhecimento e acordo de BB e seu tutor, que AA passou a ocupar aquela fração B.

46. Em janeiro de 2018, quando o A. AA chegou à residência na Póvoa de Varzim, após algumas semanas de ter estado ininterruptamente na residência universitária de Viana do Castelo, apercebeu-se que estava impossibilitado de entrar no dito imóvel por ter sido alterado o canhão da fechadura.

47. A 24.02.2018, AA apresentou queixa junto da Polícia de Segurança Pública, dando conta da alteração da fechadura de residência (imóvel em discussão nos presentes autos) contra desconhecidos.


Factos não provados:

A - Desde 2003 a falecida DD, e após a sua morte, os seus herdeiros, aqui autores, atuaram sobre a fração n.º ...-B apreendida com a convicção de que era efetivamente proprietária da fração e de que exercia um direito próprio;

B - As chaves da fração B foram entregues pela insolvente à promitente-compradora “B...” logo aquando da outorga do contrato-promessa, passando esta a atuar com a convicção de que era efetivamente a proprietária da fração.

C - Por sua vez, a sociedade B..., L.da recebeu do GG e da DD o preço de 124.699,47€;

D - Na sequência de nova cessão de posição contratual no contrato-promessa da fracção B a favor de DD, DD compôs ao GG a parte do preço que lhe competia;

E - O negócio de cessão da posição contratual de GG a DD no contrato-promessa só repôs a intenção inicial de ambos de que a fração “B” fosse adquirida pela DD já que, como o casal necessitava de dinheiro na época, resolveu lançar mão de uma hipoteca tendo sido o Banco 2... a exigir que o GG, também ficasse vinculado para que o empréstimo fosse realizado.

F - DD residiu na fração B;

G - DD ao arrendar a fração B e ao fazer uso da chave do apartamento estava convencida de que já era a única e exclusiva dona e proprietária da fração;

H - A falecida DD e anteriormente a sociedade “B...” e então casal GG e DD, procederam ao pagamento das quotas de condomínio devido pela fração B, pagando as competentes contribuições e impostos, quer diretamente como taxas municipais de saneamento e lixo, quer indiretamente quando lhe eram apresentadas pela insolvente.


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A demais matéria vertida nos articulados das partes não se supra indicou por se tratar de matéria de natureza conclusiva ou de direito, ou ainda por não se tratar de factos essenciais à boa decisão da causa.“.

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*
DE DIREITO.

A)


Nulidades da sentença

Nos termos do artigo 617.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, arguida nulidade da sentença, incumbe ao juiz que proferiu a sentença “apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso”.

A Senhora Juíza não apreciou as arguidas nulidades, como se lhe impunha.

A Lei processual, contudo, permite que em caso de omissão de tal pronúncia, se se entender que é dispensável mandar baixar os autos para que seja proferido tal despacho, não ocorrerá tal acto.

Dadas as nulidades arguidas, entendemos que é de dispensar a baixa dos autos à primeira instância., em face da simplicidade das questões suscitadas e delas se poder conhecer nesta instância de recurso.


*

i) Incongruência entre os factos provados e os factos não provados – os pontos A), B), E) e G) dos factos não provados, com contraposição aos pontos 24., 27., 37., 38. e 39. dos factos dados como provados – conclusões 3.ª, 14.ª 20.ª.

De modo sucinto e lacónico, argumentam os AA. existir “incongruência” entre os factos provados 24, 27, 37, 38 e 39 e os factos não provados das alíneas A), B), E) e G).

Entendem que há “manifesta oposição dos factos considerados provados e não provados da sentença”.

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, o seguinte:

1 - É nula a sentença quando: (…)

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; “.

Em nosso entender, os apelantes não têm razão e, portanto, não se encontra verificado nenhum dos apontados vícios da decisão proferida pela primeira instância.

Vejamos.

A contradição lógica susceptível de inquinar a decisão à luz do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil é a que se verifica entre a fundamentação de direito e a decisão final, não uma, eventual, contradição entre os factos julgados provados e o direito tido por aplicável

Em sustento, ao que atrás foi exposto, vejamos o que a doutrina, pela pena de JOSÉ LEBRE DE FREITAS E ISABEL ALEXANDRE, in Código de Processo Civil Anotado, 3.ª ed., pág. 734 e seguintes, em anotação ao artigo 615.º, afirmam quanto à apontada nulidade:

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art. 186-2-b).

Não se vislumbra que ocorra a apontada. É cristalina a decisão do M.ma Juíza. Distinta seria a situação de entre factos provados, poder ocorrer contradição, o que não é caso.

Como ensina ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, 1981, pág. 553, uma resposta é contraditória com outra quando em ambas se façam afirmações inconciliáveis entre si, de modo a que a veracidade de uma exclua a da outra, ou seja "A nulidade aqui em causa traduz-se na oposição entre os fundamentos e a decisão, e verifica-se quando falta sintonia lógica entre a motivação e a decisão, isto é, quando existe um vício real no raciocínio do julgador, seguindo a decisão num sentido e apontando a fundamentação em sentido oposto (cf., entre muitos outros, o Acórdão do STJ de 08.10.2015, P. 1143/06 (Sumários, 2015, p. 540).

A propósito desta causa de nulidade, Abrantes Geraldes e outros (Código de Processo Civil anotado, I, pag.748), observam que esta “situação, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução diferente.”

Posto isto, a contradição entre factos provados e factos não provados não integra a nulidade do nº1, alínea c) do art. 615º do CPC, já que não se trata de contradição entre os fundamentos e a decisão.”, Ac do Supremo Tribunal de Justiça 960/21.8T8GRD.C1.S1, de 25.05.2023, relatado pelo Cons FERREIRA LOPES. No mesmo sentido Ac Tribunal da Relação de Guimarães 6225/13.1TBBRG.G1, de 30.03.2017, relatado pelo Des JOSÉ AMARAL, no qual se pode ler no seu sumário: “A contradição entre factos declarados provados e/ou declarados não provados e entre factos provados e a decisão de mérito não integra a oposição entre os fundamentos e a decisão estabelecida como causa de nulidade da sentença na alínea c), do nº 1, do artº 615º. Aquela poderia eventualmente suscitar a aplicação da alínea c), do nº 2, do artº 662º. Esta, constitui um caso exemplar de erro de julgamento.

Neste sentido veja-se LEBRE DE FREITAS, MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 664.

Nos presentes autos não é invocado ou apreendido que exista matéria de facto inconciliável entre si e que tenha sido dada como provada. Não há facto provado, que negue, anule ou contradiga um outro dado como provado.

Pelo exposto, não se verifica o apontado vício, pelo improcede a arguida nulidade.


*

ii) Nulidade da sentença, artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, por não se entender que não existe posse, quando ocorreu tradição da coisa – entrega das chaves, da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda – conclusões 21.ª a 23.ª.

Argumentam os apelantes que tendo ocorrido tradição da coisa prometida vender, adquiriram a posse sobre tal bem.

Quanto a esta nulidade, respigando o que atrás ficou expresso quanto ao quadro jurídico em causa, é manifesto que a questão não se coloca como de nulidade da sentença, mas sim como um caso de erro de julgamento.

Nas conclusões de recurso, os apelantes apresentam os citados argumentos para concluir pela ocorrência da apontada nulidade.

Em nosso entender, os apelantes não têm razão e, portanto, não se encontra verificado o apontado vício da decisão proferida pela primeira instância.

Vejamos.

O que verdadeiramente os apelantes discordam é da decisão de mérito que conheceu e decidiu de fundo, em sentido contrário ao por si pugnado.

Bem distinto será conhecer e decidir que corre erro de julgamento, como mais adiante se verá. Nas palavras de ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS PIRES DE SOUSA, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I, pág. 737, “Acresce ainda uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso. (…)

A nulidade a que se reporta a 1ª parte da al. c) ocorre quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente.

Pelo que, também, por esta via, improcede a invocada nulidade.


*

iii) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto aos pedidos formulados em i) a l) – nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil – conclusões 71.ª a 81.ª.

Argúem os apelantes que a sentença é nula, por omissão de pronúncia quanto ao pedido por si formulado e identificado sob a alínea l).

Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, o seguinte:

1- É nula a sentença quando: (…)

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento “.

Está votado ao insucesso a pretensão dos apelantes.

De modo claro e expresso a M.ma Juíza pronuncia-se sobre tal pedido. Para tanto basta uma leitura atenta da fundamentação da sentença.

Quanto ao direito de retenção invocado, importa ter presente que o direito de retenção apenas existe no processo de insolvência enquanto garantia real de crédito sobre a insolvência. E, conforme já salientado naquela sentença proferida no apenso E, os autores não reclamaram aquele invocado crédito com direito de retenção dentro do prazo previsto na sentença para as reclamações de créditos do art. 128.º CIRE, também não intentaram dentro do prazo fixado para as verificações ulteriores de créditos (146.º CIRE), sendo por isso extemporâneo esse requerimento para reconhecimento de crédito com direito de retenção, além de sobre tal questão já recair o manto do caso julgado, sendo certo que a Ré Massa insolvente voltou a invocar esta caducidade na contestação.

Assim, quanto aos pedidos subsidiários atinentes ao direito de retenção sobre a fração B e reconhecimento de crédito sobre a insolvente correspondente ao valor integralmente pago com os serviços de empreitada prestados pela empresa B..., L.da verifica-se a exceção do caso julgado, face à sentença proferida no apenso E, verificando-se identidade de partes, pedido, sendo o pedido da outra ação idêntico ao pedido do reconhecimento do crédito – pedido subsidiário formulado na alínea i), j) e l), e causa de pedir (contrato-promessa e traditio).

De notar, ainda, que não fora feita prova de que a falecida DD procedeu ao pagamento desses serviços à sociedade B..., Lda.

O que verdadeiramente pretendem os apelantes é “atacar” de decisão de fundo, da qual discordam.

Deste modo não há omissão de pronúncia, pelo que improcede a arguida nulidade.


*

iv) Nulidade por erro sobre a apreciação da prova – artigos 607.º, 608.º, n.º 2 e da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Vislumbram ainda os apelantes nas suas conclusões ocorrer uma outra nulidade.

Como não houve a devida valoração da prova por parte do Tribunal a quo, evidentemente que, a fundamentação a que chega o Tribunal enferma de uma nulidade por erro sobre a apreciação da prova, nos termos do nº 5 do artigo 607º, 608.º, nº 2 e da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC”.

Como é entendimento unânime na doutrina e na jurisprudência, as nulidades da sentença são somente aquelas que estão previstas no artigo 615.º, do Código de Processo Civil.

Ora, discorrendo pelos vários números e alíneas da citada norma legal, não se pode afirmar que ocorra a “apontada” nulidade.

Invocam os apelantes que a sua pretensão integra a alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

Não é invocada qual a questão que o Tribunal devia pronunciar-se ou que tivesse tomado conhecimento e não o podia.

Deste modo, improcede a sua pretensão.


**

*

B)


Modificação da decisão da matéria de facto.

Os factos das alíneas A), B), E) e G) dos factos não provados deveriam ser dados como provados – conclusões 5.ª a 13.ª.

Os factos em discussão:

A - Desde 2003 a falecida DD, e após a sua morte, os seus herdeiros, aqui autores, atuaram sobre a fração n.º ...-B apreendida com a convicção de que era efetivamente proprietária da fração e de que exercia um direito próprio;

B - As chaves da fração B foram entregues pela insolvente à promitente-compradora “B...” logo aquando da outorga do contrato-promessa, passando esta a atuar com a convicção de que era efetivamente a proprietária da fração.

E - O negócio de cessão da posição contratual de GG a DD no contrato-promessa só repôs a intenção inicial de ambos de que a fração “B” fosse adquirida pela DD já que, como o casal necessitava de dinheiro na época, resolveu lançar mão de uma hipoteca tendo sido o Banco 2... a exigir que o GG, também ficasse vinculado para que o empréstimo fosse realizado.

G - DD ao arrendar a fração B e ao fazer uso da chave do apartamento estava convencida de que já era a única e exclusiva dona e proprietária da fração;

Presentam como argumento os apelantes as seguintes ordens de razões:

i) Tendo dada como provado que os apelantes “dispuseram do imóvel como bem entenderam, alterando o interior da fração a seu gosto, com a realização de diversas benfeitorias (reconhecidas na sentença), em razão de não dependerem da autorização nem consentimento de ninguém para o fazerem, comportando-se como donos e proprietários, como o eram[3]”;

ii) Que da prova produzida, designadamente, declarações de parte de AA, das testemunhas EE, advogada, FF, contabilista;

iii) Que da prova documental existente nos autos, relata que os apelantes sempre se arrogaram proprietários;

iv) Que o “animus” dos actos praticados pelos apelantes deve decorrer da factualidade dada como provada e atinente à entrega das chaves da fracção e do uso que dela faziam os apelantes e seus ante possuidores.

Alegam os apelantes que a verdadeira discordância diz respeito à decisão de que os apelantes não detinham “animus” possessório.

Vejamos.

Como vimos são as conclusões do requerimento de recurso quem fixa o objecto do recurso.

Vejamos.

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.

a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;

b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;

c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;

d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).

Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).

Assim, será caso de rejeição total ou parcial do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, nos seguintes casos:

a) Ocorrer a falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.

b) Ocorrer a falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

c) Ocorrer a falta de indicação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes dos autos, designadamente, documentos, relatórios periciais, ou registados, designadamente, depoimentos antecipadamente prestados, ou nele gravados, com expressa indicação das passagens da gravação que funda diversa decisão.

d) E por fim, ocorrer a falta de indicação expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido por cada segmento da impugnação.

Como refere, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in ob. cit, 5.ª Ed., pág. 169, em anotação ao artigo supratranscrito, a apreciação rigorosa destes requisitos deve ocorrer sempre, pois só assim se dá efectiva validade ao princípio da auto-responsabilidade das partes. Com efeito, são as partes e não o Tribunal que fixam o objecto do recurso através das conclusões. O Tribunal de 2.ª instancia deste modo poderá proceder a um verdadeiro novo julgamento da matéria de facto, tendo como baliza a fixação do tema a decidir, os concretos pontos de facto.

Mais, é de atender ao decidido pelo recente Ac do Supremo Tribunal de Justiça de UJ de 14.11.2023, n.º 12/2023, do qual consta: “Nos termos do art. 640.º/1/c, do CPCivil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões do recurso a decisão alternativa pretendida, desde que essa indicação seja feita nas respetivas alegações “.

Na fundamentação do citado Ac. pode-se ler:

Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.

O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, c), do artigo 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”.

Passemos então a apreciar a parte restante da impugnação da decisão da matéria de facto.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.

Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.

Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.

A primeira instância fundamentou a sua convicção com relevância para os pontos em discussão, do seguinte modo:

Em primeiro lugar damos aqui por reproduzida a enumeração e descrição da prova documental que o Tribunal da primeira instância valorou, com especial realce:

(…) – auto de apreensão de bens e certidão de registo predial da fração 2488-B junto no penso de apreensão de bens. Destaca-se aqui a data do registo da hipoteca a favor da Banco 1... e para garantia de mútuo contraído pela sociedade insolvente, ato pela qual a sociedade insolvente claramente se arroga proprietária da fração, excluindo como proprietária a sociedade “B...” ou DD. Ou seja, trata-se de uma oposição ao exercício da posse, ainda que não haja oposição à mera detenção e uso do apartamento pela promitente-compradora. Destaca-se, ainda, a data do registo da apreensão da fração B a favor da massa insolvente, que configura também uma clara oposição a esta ocupação ou posse por parte da Herança então jacente de DD.

De notar, que nessa certidão predial não consta qualquer registo provisório de aquisição a favor dos pais dos autores e daí quanto ao registo provisório apenas se deu como provada a apresentação a registo e não o efetivo registo provisório. Não ficara provada a efetiva concretização daquele registo. De notar que os autores não juntaram qualquer certidão de registo predial da fração B com histórico, o que facilmente poderia ter sido feito, como de resto fora junto para a fração G.

(…)

- contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a sociedade insolvente e a sociedade “B..., Lda”. Este contrato-promessa incidia sobre duas frações, a fração B e G. Verifica-se que o preço das frações seria pago por acerto de contas correntes e dação em pagamento pelos serviços prestados pela sociedade promitente-comprador sociedade “B..., Lda”. Este contrato-promessa contém reconhecimento de assinaturas e fora confirmado pela prova oral produzida.

(…)

- Requisição e apresentação de registo predial n.º 2705 referente à fração n.º ...-B, tendo a sociedade ora insolvente apresentado pedido de registo de aquisição provisória por natureza a favor de GG e DD, constando como declaração complementar: “Declaro que pretende vender pelo preço de 121.886,92”. Esta apresentação a registo contém reconhecimento de assinatura.

Face a este documento, conjuntamente com a prova oral produzida, é possível dar como provado a vontade da sociedade “B..., Lda” transmitir a sua posição contratual no contrato-promessa quanto à fração B e o acordo da sociedade insolvente.

(…)

- contrato de arrendamento para habitação de duração limitada em regime de renda condicionada celebrado entre DD e os arrendatários LL e MM e referente à fração B. O contrato data de 15.07.2008, tendo sido corroborado pela prova oral produzida, designadamente os depoimentos testemunhais dos próprios arrendatários.

Ou seja, atenta a celebração deste contrato de arrendamento por DD, tal indicia que ocorreu a cessão de posição contratual em contrato-promessa de GG para

DD, o que fora também afirmado em depoimento por GG, embora não tenha

sido junto aos autos qualquer contrato de cessão de posição contratual no primitivo contrato-promessa; tão pouco fora junto posterior contrato-promessa celebrado entre a insolvente e DD, tudo levando a crer que se terá tratado de mero acordo verbal.

- recibos de renda juntos à petição inicial, corroborados pelos depoimentos testemunhais dos arrendatários;

- fatura de rescisão de eletricidade/ D... em nome da inquilina MM e referente a esta fração B, de julho de 2017, demonstrando a continuidade no tempo daquele contrato de arrendamento até àquela data, de resto corroborado pela prova oral produzida;

- contratos D... e de fornecimento de água referente a esta fração, remontando o início do contrato a 29.08.2017, em nome de AA. De notar que nesta data os autores já tinham conhecimento da apreensão da fração B para a Massa, conforme referido na PI e de resto já resultava pelo facto de a 04.09.2017 ter sido instaurada a ação de verificação ulterior de créditos. Ou seja, não podiam ignorar os autores esta oposição da Massa Insolvente à alegada posse da fração B, quando fora celebrados esses contrato de fornecimento de água e luz. (…)“.

Já quanto aos demais meios de prova, a M.ma Juíza valorou do seguinte modo:

- A Sra. Administradora da Insolvência prestou depoimento, esclarecendo as circunstâncias da apreensão desta fração, embora não se recorde de todos os detalhes que rodearam a apreensão desta fração, tal é compreensível, atento o elevado volume de serviço que terá como AI.

Questionada quanto ao pagamento da aludida fração no âmbito do contrato-promessa, refere não ter conhecimento, sendo que não teve acesso à contabilidade da insolvente.

Quanto ao pagamento das quotas de condomínio, esclareceu que não havia o pagamento destas quotas de condomínio por ninguém, sendo que ainda hoje é a Massa Insolvente que paga o condomínio desta fração, sendo que fora o Condomínio que requereu a insolvência.

Reconheceu que dentro da fração encontra-se mobília e recheio, tal como roupas, camas, mobílias de quarto, revelando desconhecer a quem pertence exatamente a mobília que se encontra dentro da fração.

- Os Autores AA e BB prestaram depoimento, considerando que aquele apartamento pertenceria à sua mãe. Porém, o que é compreensível, atento o facto de serem menores à data dos contratos em causa nos autos, não souberam explicar ao Tribunal os concretos contornos da alegada aquisição do apartamento (fração B) pela sua mãe e contratos-promessa e de cessão de posição contratual que estão por trás da obtenção da chave do apartamento. Reconhecem que a mãe nunca viveu no apartamento, referem que a mãe agia parecendo que a casa era dela, aludindo AA ao recebimento de rendas pela mãe.

AA referiu que chegou a residir aos fins-de-semana no apartamento no Verão de 2017, no início da Faculdade, tendo feito contrato de água e luz, tendo estado até final de 2017 e em janeiro de 2018, regressou ao apartamento depois de época de exames e detetou mudança de fechaduras, tendo então sido apresentada queixa na polícia.

De notar que, quando AA foi para lá viver, já havia uma clara oposição por parte da Massa Insolvente à alegada posse de AA, porquanto pela AP. ... de 2016/09/21 fora registada a declaração de insolvência de A..., LDª, sendo que os autores já teriam conhecimento dessa apreensão, dado que a 04.09.2017 fora intentada a ação que correu termos sob o apenso E.

AA esclareceu que dentro do apartamento, a mobília ali existente lhes pertence.

- GG, pai dos autores, relatou as circunstâncias em que receberam a chave do apartamento (fração B), o contrato-promessa inicial e subsequentes cessões de posição contratual. Do seu depoimento decorreu a consciência de que ainda não haviam adquirido a propriedade da fração (seja a sociedade B..., seja GG e DD em conjunto, seja apenas a falecida DD), referindo espontaneamente que os legais representantes da insolvente terão referido que só podiam fazer o registo provisório até pagarem a hipoteca, e que a insolvente nunca pagara a hipoteca ao Banco, e que os legais representantes da “A...” andaram sempre a enganar e nunca conseguiram fazer a escritura definitiva do apartamento. Esclareceu, ainda, que DD tinha autorização da A... para arrendar o apartamento.

Assim, e apesar de resultar dos depoimentos das testemunhas ouvidas que DD era vista como a proprietária da fração B pelas pessoas em geral, o tribunal não se convenceu que os promitentes-compradores (primitiva e subsequentes GG e DD ou mesmo apenas DD e autores) tenham atuado sobre a fração na convicção que a mesma efetivamente lhes pertencia e de que já eram os únicos e verdadeiros proprietários. De facto, resultou provado e fora alegado na petição inicial, que foram realizados vários esforços por GG e também por DD para que a sociedade “A...” celebrasse o contrato definitivo, o que denota preocupação com a realização da escritura de compra e venda e mais, denota, a consciência de que os promitentes-compradores precisavam da dita escritura para se sentirem, efetivamente, donos do apartamento em questão. Sabiam bem que havia uma outra dona do imóvel (a sociedade ora insolvente), a qual não outorgou a escritura definitiva por dificuldades em distratar a hipoteca, tendo dado a fração em garantia de empréstimo junto da Banco 1.... Perante tal facto (conhecimento das hipoteca e consciência da necessidade de celebração da escritura definitiva), conclui-se que GG e DD, e mais tarde apenas a falecida DD e seus herdeiros, sabiam que a propriedade do prédio em questão apenas seria transferida para si com a celebração da escritura pública de compra e venda.

GG confirmou que o preço deste apartamento fora integralmente pago através de serviços de construção prestados pela sociedade “B...” à sociedade insolvente, o que é corroborado pelo depoimento das testemunhas FF e NN.

Quanto às obras, descreveu de forma pormenorizada e convincente essas mesmas obras, mais esclarecendo sobre o valor das mesmas, corroborando assim o resultante da prova pericial.

- CC, tio paterno dos autores e tutor dos autores após o falecimento de DD, e OO, tia paterna dos autores, revelaram que consideram que aquele apartamento pertencia a DD, que se assumia como proprietária, arrendando o apartamento e recebendo rendas. Mais revelaram conhecimento da posterior ocupação do apartamento por AA e mobília ali existente.

- MM e LL depuseram de forma espontânea e credível, confirmando a existência do contrato de arrendamento de 2008 e primeiros recibos de renda, referindo que saíram do apartamento no verão de 2017. Pagavam a renda a DD, que se apresentava como proprietária.

Fizeram ainda referência a um documento anexo ao contrato de arrendamento e que necessitaram para o contrato de fornecimento de gás, no qual a sociedade A... atribuía a utilização do apartamento a DD por tempo indeterminado. Porém, notificada a testemunha MM para juntar tal documento, veio por e-mail junto aos autos a 3.08.2023 esclarecer que não tem em seu poder tal documento. A existência deste documento em que a sociedade A... autoriza o uso da fração também demonstra que DD teria conhecimento de que ainda não se podia considerar como a verdadeira proprietária da fração, já que ainda não havia celebrado a escritura definitiva, caso contrário, seria desnecessária aquela autorização.

(…)

- FF, a qual revelou conhecimento direto dos factos relativos ao contrato-promessa inicial celebrado entre a insolvente e sociedade “B...”, em virtude de ter prestado serviços de contabilista certificada à sociedade insolvente até 2011. Porém, já não se recorda de subsequentes contratos-promessa ou cedências de posições contratuais. Esclareceu o Tribunal que as chaves dos apartamentos prometidos vender (designadamente através deste tipo de permutas com serviços de construção a prestar em obra) apenas eram entregues depois do preço se encontrar pago. Referiu de forma clara e convincente que, se tinham a chave da fração B, então o preço do apartamento estava todo pago, pois era essa a prática da empresa. Esclareceu que ocorreram situações em que foram entregues as chaves do apartamento e não chegou a ser efetuada a escritura definitiva, em virtude da dívida da A... à Banco 1....

- NN, escriturária, a qual prestou serviços para a sociedade A... Lda., através de uma empresa do grupo, sendo que as empresas estavam todas sediadas não mesmo lugar, tendo acompanhado a construção deste prédio pela ora insolvente, bem como toda a evolução da obra e faturação, revelando por isso conhecimento direto dos trabalhos e serviços prestados pela sociedade “B...” para a insolvente nesta obra, esclarecendo que a sociedade “B...” prestou todos os serviços acordados, os quais foram pagos através de permuta de apartamentos, confirmando o contrato-promessa celebrado entre a insolvente e a sociedade “B...”. A testemunha também revelou recordar-se que chegou a encontrar DD e de que a mesma tinha as chaves do apartamento em causa nos autos, sendo perentória em afirmar que se a ora insolvente entregou as chaves do apartamento significa que todo o valor da permuta e preço das frações fora pago.

Estas duas últimas testemunhas depuseram de forma desinteressada e espontânea, revelando conhecimento direto das práticas e procedimentos da sociedade insolvente na celebração de contratos-promessa com subempreiteiros e entrega das chaves das frações prometidas vender, sendo os seus depoimentos essenciais para dar como provado que o preço daquela fração B fora integralmente pago pelos serviços prestados pela sociedade “B...”, recordando-se ainda de no caso concreto, as chaves se encontrarem em poder de DD.

Quanto aos factos dados como não provados, o Tribunal deu-os como tal, por sobre os mesmos não ter sido produzida prova suficiente e bastante, sendo que quanto a uns fora produzida prova em sentido contrário, conforme temos vindo a explicitar (designadamente quanto ao alegado animus), cumprindo ainda tecer umas últimas notas.

O Tribunal dera como não provado que: “As chaves da fração B foram entregues pela insolvente à promitente-compradora logo aquando da outorga do contrato-promessa.”, porquanto o primeiro contrato-promessa fora celebrado em 25.05.2003, numa altura em que de acordo com o contrato-promessa o edifício ainda não estaria concluído, prevendo-se a sua conclusão em janeiro de 2004 (cfr. cláusula nona).

Note-se que, nenhuma das testemunhas ouvidas soube esclarecer a data exata de entrega das chaves a DD. GG apontou a data de entrega das chaves para data próxima do arrendamento celebrado, embora não sabendo precisar a data do arrendamento, sendo que o mesmo remonta a 2008. Do depoimento das testemunhas FF e NN resultou que quando a sociedade insolvente fazia o pedido de registo provisório de frações prometidas vender, o preço da fração já estaria pago e sendo as chaves entregues pela insolvente. Logo, o tribunal apenas conseguiu apurar que a entrega das chaves terá ocorrido em data não concretamente apurada, mas posterior a 25.05.2003 (data da outorga do contrato-promessa) e anterior a 20.02.2006 (data da apresentação do registo provisório - Doc.19 e 20 da PI).(…)“.

Foi neste Tribunal ponderada a prova documental, mencionada na fundamentação de facto da sentença em crise, ouvida a prova produzida em audiência de julgamento, depoimento e declarações de parte, e a prova testemunhal, na sua integra.

Este Tribunal de recurso quanto à factualidade em discussão, não pode acompanhar a argumentação dos apelantes. Trazendo à colação os meios de prova, expressamente invocados ou chamados em auxílio pretensão apresentada pelos apelantes, os mesmos não são suficientes para atingir tal desiderato.

Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.

Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

A fundamentação elaborada pela M.ma Juíza de julgamento, supratranscrita, não merece qualquer reparo por parte deste Tribunal face à sua clareza e lógica.

Com efeito, de modo consistente, coerente e espontânea, a prova testemunhal, toda ela, afirmaram a realidade que o Tribunal a quo deu como demonstrada e provada, e bem como na sua vertente de não provada, como é p caso dos presentes autos. A prova testemunha, indicada, vem corroborada pela prova documental, tal como acertadamente vem referido na decisão em crise.

Do meio de prova testemunhal que foi produzido em audiência de julgamento não há dúvidas que a realidade factual que foi dada como não provada, deverá manter-se. Quer do depoimento /declarações de parte dos AA., AA e BB, não resulta a efectiva demonstração que as apontadas alíneas dos factos não provados, tenham assim ocorrido.

É certo que várias testemunhas vieram relatar que a mãe dos AA. arrendou o apartamento e era tida pelos seus familiares como dona. Contudo, dos seus depoimentos não se pode retira com a necessária certeza que ela assim agia sempre com a intenção de o fazer como se “dona” fosse do apartamento.

As declarações/depoimento de parte de AA, não se afiguram que tenha tal força probatória que permita afirmar factualidade distinta daquela que ficou fixada como não provada. Já as testemunhas EE e Mº FF, não apresentam relato directo dos factos em discussão. Relatam ideias ou conjecturas, sem que apresentem um relato de algo que presenciaram ou que consigo tenha ocorrido. A primeira testemunha relata ter tratado como advogada da insolvência da falecida DD, sabe que não foi indicado como património o apartamento aqui em causa. Que se falou num apartamento, mas que nada estava formalizado.

Na realidade, o conjunto das testemunhas, nada esclareceram quanto ao “animus” com que a falecida agia. Não explicam ou dão suficiente explicação, se ela para se sentir dona precisava ou não de realizar escritura pública. O que é facto, tal como assinalado pela M.ma Juíza, a falecida mãe dos AA. sempre diligenciou por realizar escritura pública e demais formalidades. GG, pai dos AA. companheiro da falecida mãe dos AA., expressamente relatou as várias diligencias que esta efectuou para que a insolvente realizasse a escritura pública. Por esta testemunha é referido expressamente que a insolvente autorizou que a falecida pudesse arrendar o apartamento. A testemunha MM, relata episódio de que o companheiro e aqui testemunha GG lhe veio pedir a renda e esta se recusou porque sabia que estava em situação de divórcio com a falecida, DD. Era esta que recebia as rendas. Após falecimento desta deixou de pagar as rendas.

Quem age e sente como verdadeiro dono, de acordo com as regras de experiência e da vida, não pede autorização para assim agir, nem diligencia para que a escritura pública se realize. Este tipo de comportamento não é conforme de quem age e se sente dono.

Pelo exposto, seguimos e aderimos na integra à fundamentação da decisão da matéria de facto da primeira instância.

A fim de evitar redundâncias de argumentação, este Tribunal chega à mesmíssima conclusão que a 1ª instância quanto à resposta a esta factualidade – factos não provados.

Pelo exposto, improcede o recurso quanto à matéria de facto.


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C)


Alteração da decisão de direito em conformidade com a alteração dos factos – conclusão 24.ª.

Conhecimento da existência do animus por parte do recorrente, e subsequente aquisição por usucapião do bem em causa pelo recorrente – conclusões 25.ª a 52.ª, 62.ª a 70.ª.

Em face da improcedência da pretensão dos apelantes quanto à factualidade, é manifesto que improcede igualmente a pretensão quanto ao direito.

Argumenta que o “animus” dos apelantes está demonstrado no ponto 38 dos factos provados[4]. Isto é, entendem que estando demonstrado que a falecido DD deu de arrendamento o apartamento e passou dois recibos de renda, está verificado o “animus”.

Os apelantes confundem o corpus e o animus.

Vejamos.

A posse é uma situação de facto que a lei protege juridicamente, dada a aparência da existência de um direito real que resulta da actuação de certa pessoa, que é o possuidor.

A posse decompõe-se nos seguintes elementos, autónomos, mas que devem coexistir:

a) O corpus que é elemento material da posse e que consiste na possibilidade física de exercer influência imediata sobre uma coisa sem entraves da parte de outrem.

Estamos perante um conjunto de actos materiais de detenção, uso gozo e transformação exercidos sobre a coisa. Quanto aos actos jurídicos, tais como o arrendamento e a venda, não podem constituir o corpus porque são possíveis mesmo por parte de quem não possui. São actos que respeitam ao direito de propriedade.

b) O animus, animus possidendi, ou intenção de possuir, que é o elemento moral da posse, introduzido pela teoria objectiva, pode definir-se como a vontade de se exercer o direito real que se traduz nos actos materiais, como se fora seu titular.

O legislador de 1966 aceitou a teoria subjectiva da posse - exigência do animus.

A actuação de facto correspondente no exercício do direito, por parte do possuidor, constitui o corpus da posse. O corpus apresentado neste artigo como elemento essencial da posse, o que não impede que, excepcionalmente, em casos de posse derivada, a lei pressuponha o corpus independentemente da apreensão material da coisa. É o que acontece, por exemplo, em relação aos sucessores, que são havidos como continuadores da posse do causante, desde o momento da morte deste, independentemente da apreensão material da coisa (art. 1255.º), e ainda nos casos de constituto possessório (art. 1264.º).

Ao elemento subjectivo – o animus – não se refere ostensivamente o artigo 1251.º, mas ele deriva de outras disposições do Código, especial- mente do preceito do artigo 1253.º. Não são havidos, na verdade, como possuidores, mas como meros detentores ou possuidores precários, nos termos da alínea a), «os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito»; nos termos da alínea b), «os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito» e, nos termos da alínea c), «os representantes ou mandatários do possuidor e, de uma maneira geral, todos os que possuem em nome de outrem».

Verifica-se, por estas sucessivas exclusões, que o nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, consagrada em alguns códigos estrangeiros (cfr., por ex., o § 854 do Código alemão, segundo o qual a posse sobre uma coisa se adquire pela obtenção do poder de facto). Para que haja posse, é preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto; é preciso que haja por parte do detentor a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela.

A aceitação desta concepção subjectiva da posse exigência do animus-levou o legislador, por motivos de equidade, a conceder excepcionalmente a defesa possessória em casos em que não existe posse por parte do detentor, por falta do animus possidendi: cfr. os arts. 1037.º, n.° 2, 1125.º, n.º 2, 1133.º, n.º 2, e 1188.º, n. 2. A causa de pedir, nas acções possessórias intentadas ao abrigo destes preceitos, não é a posse, mas antes a relação juridica de mera detenção (locação, parceria pecuária, comodato, depósito) a que a l lei estende a tutela possessória (neste sentido, acórdão da Relação de Évora, de 24 de Dezembro de 1977, sumariado no B. M. J., n. 273, pág. 329).

7. A outorga da tutela possessória a várias situações de mera detenção mostra que, no plano das soluções práticas, a diferença entre o sistema jurídico português e os que consagram a concepção objectiva de posse se encontra bastante esbatida.

Não pode, porém, sustentar-se, com base nas disposições excepcionais referidas na parte final da nota anterior, que, entre nós, os direitos pessoais de gozo sejam, genericamente, susceptíveis de posse – e, consequente- mente, de protecção possessória –, independentemente de saber qual o negócio que lhes deu origem (em sentido contrário, Vaz Serra, na Rev. de Leg. e de Jur., anos 110.º, págs. 172-173; 112.º, págs. 189-190, e 114.º, págs. 22 e segs.). E muito menos pode sustentar-se, como faz Menezes Cordeiro (cfr. Direitos reais, vol. 1, págs. 551 e segs., e Da natureza jurídica do direito do arrendatário, na Rev. da Ord. dos Adv., ano 40.0, págs. 364 e segs.), que o Código Civil consagrou a concepção objectiva de posse. A interpretação conjugada dos artigos 1251.º e 1253.º não deixa, a tal respeito, quaisquer dúvidas.

Sempre que, por conseguinte, a lei não estenda a protecção possessória a determinado direito pessoal de gozo, não poderá o respectivo titular, invocando apenas o exercício dos poderes correspondentes a esse direito, defender a sua posição jurídica pela via das acções possessórias ou dos embargos de terceiro. Tal será o caso, por exemplo, do mandatário com poderes de representação relativamente às coisas do mandante que detém em seu poder, ou, no comum das situações, o do promitente-comprador a quem foi antecipadamente entregue a coisa que constitui objecto do contrato prometido. Vide, neste sentido, os acórdão do S. T. J., de 29 de Janeiro de 1980 (sobre acções possessórias), na Rev. de Leg, e de Jur., ano 114.°, págs. 17 e segs., com anotação discordante de Vaz Serra, e de 28 de Dezembro de 1975 (sobre embargos de terceiro), na mesma Revista, ano 109.º, págs. 344 e segs. O contrato-promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário (cfr. os acórdãos do S. T. J., de 29 de Março de 1968, de 15 de Janeiro de 1974 e de 29 de Janeiro de 1980, respectivamente no B. M. J., n.º 175, págs. 272 e segs., n.º 233, págs. 173 e segs., e n.º 293, págs. 341 e segs.). São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira pose. “, ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado, 2.ª  ED., pág. 5 e seguintes.

No mesmo sentido, Código Civil Anotado, Cord ANA PRATA, 2017, em anotação ao artigo 1251.º, pág. 18 e seguintes, quando afirma “dever ter-se no animus possidendi um requisito positivo da posse.

A determinação concreta deste animus não é, naturalmente, psicologista, antes é feita de modo objetivo e razoável.

Assim, a intenção que se deve sopesar é a intenção ou vontade abstrata. Esta é a que: (a) ou se retira da atuação do sujeito com base num raciocínio de pre- sunção natural, firmado no corpus (i.e., firmado nas regras da experiência) - ex.: quem ocupa uma coisa imóvel tem normal e naturalmente também a intenção de atuar como titular do direito que aparenta; (b) ou se retira da função que o tipo de negócio ou ato em causa normalmente prossegue - ex.: se a compra e venda é apta a transmitir a posse, seja por tradição, seja por constituto possessório, já o mesmo não sucede no contrato-promessa de compra e venda, caso em que a sua função é preparar de modo vinculado a celebração do contrato prometido. Por isso, se um promitente-vendedor entregar antecipadamente a coisa objeto do contrato definitivo - p. ex., de um andar, nem por isso o promitente-comprador será possuidor, já que recebe a coisa de modo precário, pois não é segura a realização do contrato definitivo. O mesmo se pode dizer do arrendamento ou do comodato.

Mas a vontade concreta, se conhecida, pode determinar se estamos perante um possuidor um perante um detentor, apesar do que resultaria ou do corpus ou do tipo de negócio em questão. Assim, pode suceder, apesar do corpus, que o sujeito use a coisa com simples animus tenendi (al. a) do art. 1253.°) o que se indicia quer por declaração expressa quer por comportamento. Ex.: NN, após perceber que se enganou no andar que ocupa, telefona ao legítimo dono (que está no estrangeiro) dizendo que vai nele continuar por mais dois dias, apesar de o dono lhe dizer para abandonar de imediato o imóvel.

De igual maneira, pode suceder que se revele uma vontade concreta de teor oposto ao da vontade abstrata: no exemplo de tradição de coisa no contrato-promessa, pode o promitente-comprador demonstrar que, apesar do tipo de negócio, houve transmissão da posse. Ex.: PP quer vender o seu andar a QQ, mas sucede que sobre o mesmo se constituiu uma garantia hipotecária a favor de terceiro. Celebra, então, um contrato-promessa com QQ, nos termos do qual este entrega a totalidade do que seria o preço da compra e, em contrapartida, recebe o andar, com todas as obrigações condominiais, de telecomunicações, de energia e água inerentes. Aqui, QQ passa a ser o possuidor, desde que se faça prova de que PP quis deixar ter uma ligação de facto com a coisa e QQ aceitou poder comportar-se como se fosse proprietário.

A jurisprudência aponta em igual sentido. Entre muitos outros, podemos consultar, Ac Tribunal da Relação do Porto 0322806, de 10.07.2003, relatado pelo Des HENRIQUE ARAÚJO:

A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião – art. 1287º do CC.

A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo.

A posse decompõe-se, ela própria, em dois elementos: o corpus, que se identifica com os actos materiais (detenção/fruição) praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre ela; o animus, elemento psicológico, que se traduz na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.

Mas a posse conducente à usucapião tem ainda de revestir duas características: tem de ser pública e pacífica. Os demais requisitos de que a lei fala (boa ou má fé, título, etc.) apenas influem no prazo – v. Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 1967, pág. 112.

Questão discutida na doutrina e na jurisprudência é a de saber qual o relevo a dar à posse do promitente adquirente.

Exercerá o promitente comprador, que obteve do promitente vendedor a entrega da coisa objecto do contrato prometido, os poderes de facto com o animus de um direito real?

O contrato promessa é de natureza obrigacional, na medida em que cria a obrigação de contratar, ou, mais concretamente, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao contrato prometido.

Em muitos casos verifica-se a traditio do bem objecto do contrato prometido logo na data da feitura do contrato-promessa.

Embora isso não resulte expressamente do texto do contrato-promessa celebrado em 21.11.84 (fls. 37/38), o certo é que - conforme ficou provado -, os Réus RR e mulher passaram a ocupar o imóvel descrito em 1. desde essa data e de forma ininterrupta – v. 13., 14. e 22.

Não se põe em causa que essa posse, materializada nos actos descritos em 14. a 16. e 18. a 20., é legítima e que essa relação entre os Réus RR e mulher e o imóvel permite concluir pela verificação do corpus da posse.

Todavia, como refere o Prof. Antunes Varela, RLJ Ano 128, pág. 146, a posse não se esgota no corpus da actuação de quem materialmente detém a coisa; compreende ainda, como logo transparece no texto legal introdutório do instituto (art. 1251º), apesar da secura sintética dos seus termos, o animus com que a exploração económica da coisa é exercida. (...)

E o promitente-comprador, investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, precisamente porque sabendo ele, como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente-vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa.

Ele é apenas (...) o titular de um direito pessoal de gozo, destinado a perdurar como tal, até à celebração do contrato definitivo ou à adjudicação compulsória da coisa (resultante da execução específica: art. 830º do Cód. Civil) ou até à resolução ou anulação do contrato-promessa.

No entanto, os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, admitem a verificação de situações excepcionais de posse do promitente-comprador. Será, por exemplo, o caso em que o promitente-comprador pagou integralmente o preço e a coisa lhe foi entregue “como se sua fosse já”, praticando sobre ela, nesse estado de espírito, diversos actos materiais, correspondentes ao direito real de propriedade. Numa situação deste tipo, pode falar-se, efectivamente, em actos praticados “em nome próprio”, com intenção de exercer sobre a coisa um direito real de propriedade – “Código Civil Anotado”, Vol. III, págs. 6/7.

Por seu turno, o Prof. Menezes Cordeiro defende que se a traditio rei visa antecipar o cumprimento do próprio contrato definitivo, hipótese frequente nos casos em que o preço está todo ou quase todo pago; o promitente-comprador é, então, desde logo, investido num controlo material semelhante ao do proprietário, podendo falar-se em posse em termos de propriedade, ou seja, numa posse boa para usucapião, podendo proporcionar, por essa via, a aquisição do domínio – v. “A Posse – Perspectivas Dogmáticas Actuais”, Livraria Almedina, 2000, págs. 77/78.

Ora, na construção subjectivista do animus adoptada pelo CC, que distingue o exercício do poder de facto da intenção de agir como beneficiário do direito - art. 1253º, al. a), do CC - é pela própria relação jurídica que está na base da posse que se verifica qual o animus do possuidor (vontade abstracta ou da causa), nomeadamente nos casos em que a posse procede de outrem - v. Prof. Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 1978, págs. 247-249. (…)

O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 14.05.96, publicado no DR, II Série, de 24.06.96, escorando-se no disposto no art. 1252º, n.º 2, do CC, estabeleceu como doutrina que “podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem poder de facto sobre uma coisa”.

Segundo esse aresto, fica dispensada, em determinadas situações, a difícil prova da existência do elemento subjectivo da posse, como requisito de prescrição aquisitiva. Havendo o exercício de poderes de facto próprios do titular do direito de propriedade, a lei presume, no n.º 2 do art. 1252º do CC, a intenção de que o beneficiário se comporta como verdadeiro titular desse direito, excepto se tais poderes de facto corresponderem a simples detenção (art. 1253º - animus detinendi) ou se se provar que não existe a intenção de agir enquanto titular do direito real.

Ora, como se concluiu que a situação dos promitentes-compradores é de mera detenção, essa presunção legal não opera.

Sopesando a boa doutrina, acompanhada pela jurisprudência citada, entre outra, e regressando aos factos dados como provados – pois só a estes o julgador pode lançar mão para dizer o direito, e já não àqueles que pereceram no crivo da prova –, é inequívoco que a falecida DD e os seus ante possuidores não exerceram sobre tal bem imóvel/apartamento os poderes próprios de dono e convencida que era dona.

Com efeito, e como atrás afirmado, nos termos do artigo 1251.º do Código Civil, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real: detenção e intenção.

Provado apenas ficou que por um lado temos como promitentes compradora, sucedendo a uma sociedade originária promitente compradora, embora os AA. logrem fazer prova que a sua mão tenha sobre o identificado prédio, objecto prometido vender/comprar, praticado diversos actos, não prova que os tenha realizado como se dona fosse.

Como sintomático de tal – não prova –, temos a execução de determinados comportamentos e acções por parte da falecida, DD, mãe dos AA., com o conhecimento e vontade e autorização da “proprietária”, insolvente, os quais são manifestamente incompatíveis com tal corpus e animus dos AA., leia-se, sua falecida mãe. E de igual modo, temos a actuação da mãe dos AA. de como de mera promitente compradora – ao tentar marcar a escritura de compra e venda. Deste modo, e por esta via – usucapião – terá esta demanda que improceder.

Conclui-se assim, que os actos de mera tolerância, isto é, praticados por presumida concessão do verdadeiro possuidor, excluem o animus.


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C)


Conhecimento do abuso de direito – conclusões 53.ª a 61.ª.

Por fim argumentam os apelantes que a Administradora de Insolvência “atuou em manifesto abuso de direito, pois não tinha a faculdade social e moral, de acordo com os bons costumes de no caso concreto de optar pela execução ou não do contrato quando ocorreu, a circunstância dos promitentes-compradores terem cumprido na íntegra a sua obrigação, como aconteceu nestes casos com a promitente compradora, com o pagamento integral do preço. Ou seja, a atuação da Ex.ma A.I. nos presentes autos após ser informada da existência do contrato-promessa e do total pagamento do preço, ao ter trocado a fechadura, violou a lei, pois a mesma tinha incumbência legal de se pronunciar sobre os negócios em curso ex vi do artigo 102.º do CIRE, tendo omitido totalmente essa obrigação e dever legal.”, conclusões 56ª e 57ª.

A M.ma Juíza sentencia do seguinte modo: “Ora, analisada a factualidade assente, não obstante seja de todo triste e lamentável a situação dos autores (que, de forma trágica perderam a mãe, avós e irmão e face a todos os naturais posteriores constrangimentos/dificuldades e relatados na petição inicial apenas se aperceberam tardiamente da insolvência, não tendo reclamado tempestivamente o invocado crédito decorrente do incumprimento do contrato-promessa), o certo é que não é possível afirmar a existência de um abuso de direito por parte da Massa Insolvente ou da AI ao apreender a fração B, que se encontrava registada em nome da insolvente; não constituindo abuso de direito por parte dos réus a não aceitação da alegada aquisição da fração através de contrato-promessa, ou o não reconhecimento de um crédito que não fora tempestivamente reclamado na insolvência, tanto mais que nos autos não ficaram demonstrados os pressupostos necessários à aquisição da fração pelos autores e Herança de DD e ficara demonstrada a reclamação extemporânea do crédito.“.

Entendemos que foi bem sentenciado.

Haverá comportamento por parte da Administradora de Insolvência que se possa concluir por estar em abuso de direito – tal como vem alegado pelos apelantes, AA..

Vejamos.

O abuso de direito tem lugar quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – artigo 334.º do Código Civil.

O abuso de direito, pressupondo a existência de um direito subjectivo, existe quando o seu titular exorbita dos fins próprios desse direito ou do contexto em que é exercido. Mas, esse excesso há-de ser claro e manifesto, clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, no dizer de Vaz Serra, sem se exigir, todavia, a consciência de se estarem a exceder os limites do direito, dado ter sido adoptada pelo Código Civil uma concepção objectivista do abuso de direito. O abuso de direito existe quando o direito é exercido fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e com o fim de causar dano a outrem [É este o ensinamento que se colhe, entre outros dos Acs. S.T.J., de 98/11/12 e 00/05/10, in B.M.J., 497º-343 e C.J., VI-3º, 110 (S.T.J.)].

A teoria do abuso de direito, na formulação adoptada pela nossa lei, apresenta-se como um verdadeiro limite intrínseco do exercício dos direitos subjectivos ou, nas palavras de MANUEL ANDRADE [in R.L.J., Ano 87º, pág. 307], serve como válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação das normas legais obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.

É que todas as relações jurídicas entre as pessoas implicam um princípio de confiança e de auto-vinculação, criando expectativas futuras. E é precisamente esta confiança vinculativa que proíbe que alguém exerça o seu direito em manifesta oposição a uma tomada de posição anterior em que a outra parte acreditou e aceitou. Mas esta situação de confiança tem de radicar num comportamento que de facto possa ser entendido como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura [cfr. BAPTISTA MACHADO, in R.L.J., Ano 117º, pág. 321 e segs].

Como é referido no citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2010 (ALVES VELHO), “O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira «válvula de segurança» vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuridicidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito.

Quando tal sucede, isto é, quando o direito que se exerce não passa de uma aparência de direito, desligado da satisfação dos interesses de que é instrumento, e se traduz «na negação de interesses sensíveis de outrem» (COUTINHO DE ABREU, “Do Abuso de Direito”, pp. 43), então haverá que afastar as normas que formalmente concedem ou legitimam o poder exercido. (…)

Importa, pois, determinar se os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes saem ofendidos, designadamente de forma clamorosa, face às concepções ético-jurídicas dominantes, pois que é no âmbito da conduta tida por contrária à boa fé que há-de emergir o “venire”.

A boa fé, como princípio normativo de actuação – que é o conceito em que aqui releva (art. 762º-2 CCiv.) -, encerra o entendimento de que as pessoas devem ter um comportamento honesto, leal, diligente, zeloso, tudo em termos de não frustrar o fim prosseguido pelo contrato e defraudar os legítimos interesses ou expectativa da outra parte.””.

2. Uma primeira prevenção: para que estejamos perante abuso de direito, ponto é que o agente tenha algum direito; se se tratar de uma conduta a que não subjaz qualquer direito, ela poderá ser ilícita, mas não abusiva no exercício de um direito.

Por outro lado, o preceito não se aplica apenas a direitos subjetivos proprio sunsu: nele se incluem posições jurídicas ativas, como faculdades, poderes, liberdades (incluindo a liberdade contratual consagrada no art. 405.º). (…)

4. Dos limites ao exercício de um direito subjetivo destaca-se, em primeiro (e importante) lugar, a boa fé, cláusula geral que o CC refere com alguma frequência e que, se, nos primeiros tempos após a entrada em vigor do diploma, foi pouco utilizada (quando não praticamente ignorada pela jurisprudência), é hoje objeto de estudos doutrinários e não raro invocada pelos tribunais.

A paradoxal aparente descrença do legislador nesta noção - ou a convicção, como era frequente ao tempo, de que abuso do direito apenas tinha oportunidade de invocação a propósito da propriedade - levou a que, no n.º 2 do art. 762.º, se repita que o exercício do direito de crédito deve conformar-se com a boa fé.

5. Os bons costumes constituem a segunda limitação ao exercício de um direito: estamos perante uma cláusula geral de direito privado que remete para princípios morais sociais (que não, longe disso, necessariamente sexuais, religiosos ou ético-individuais) que devem regular o comportamento das pessoas honestas em todos os seus aspetos, incluindo, mas não restringindo, os económicos.

6. Outra importante limitação ao exercício de um direito subjetivo é o fim social ou económico do direito. E fácil compreender que assim seja: se o direito objetivo (hoc sensu) é sinteticamente um poder jurídico para realizar um interesse, está-se fora do domínio de permissão jurídica sempre que o interesse tutelado pelo direito não é aquele que é prosseguido pelo seu titular. Não significa isto necessariamente que cada direito tenha uma só finalidade, escopo ou razão de ser, mas que a permissão jurídicas tem objetivos que, defraudados, não se contêm nela. A violação desse fim, como qualquer outra situação de abuso, resulta em regra dos efeitos do exercício e não dele próprio em abstrato. Pode-se, naturalmente, formular esta ideia dizendo que a norma jurídica que confere o direito leva, na sua interpretação, ao recorte de poder (ou liberdade) que atribui ao respetivo titular.”, in Código Civil Anotado, 2ª ed., Coord. ANA PRATA, anotação ao artigo 334.º, pág. 441, 442.

Ora, da factualidade dada como provada, mormente, os factos atinentes à conduta da sra Administradora de Insolvência, revelada pela sucessão temporal dos vários contactos havidos com os pais dos AA., em especial com a falecida DD, mãe dos AA., e os subsequentes contactos entre estes e aquela, não revela qualquer comportamento antijurídico ou antiético que possa configurar, nos termos da Lei supracitada, um exercício abusivo do direito de exercer este direito.

O exercício do direito de sequela sobre o bem imóvel em causa, não comporta no caso uma desproporcionalidade. Não se nos afigura que ocorra um desequilíbrio ou desproporção intolerável do exercício do direito da sra Administradora de Insolvência e a pretensão dos AA. em ver declarado o seu direito de posse sobre o bem imóvel.

Alegam os recorrentes que a sra Administradora de Insolvência estaria a exceder o direito quanto procedeu à recusa de cumprimento do contrato promessa de compra e venda. E aqui face à clareza do decido, à qual aderimos na integra, soçobra a pretensão.

Porém, este contrato-promessa celebrado entre a sociedade insolvente e a sociedade “B...” não tem eficácia real.

Mesmo o registo provisório de aquisição a favor de GG e DD (conforme apresentação a registo junta aos autos) não confere àquele contrato-promessa a eficácia real.

Dado que o contrato-promessa em causa nos autos não era revestido de eficácia real era lícito à AI, não constituindo abuso de direito ou violação do princípio da boa fé, optar por não cumprir aquele contrato-promessa.

Atenta a declaração de insolvência da sociedade promitente-vendedora, ainda antes de celebrado o contrato definitivo, e não tendo o contrato-promessa eficácia real, era lícito à AI recusar o contrato-promessa ao abrigo do princípio geral quanto aos negócios em curso ainda não cumpridos previsto no art. 102.º CIRE, com o consequente crédito sobre a insolvência previsto no art. 106.º, n.º 2, 104, n.º 5 e 103.º, n.º 2, CIRE, e a reclamar nos termos do art. 128.º ou 146.º CIRE.

De notar, que declarada a insolvência do promitente-vendedor, e não tendo o contrato- promessa eficácia real (ainda que tenha ocorrido traditio), já não pode ser exigido pelo promitente-comprador a execução específica do contrato, nos termos do art. 830.º CC, atento o disposto nos art.s 102.º e 106.º CIRE. Com a declaração de insolvência, os negócios em curso (ainda não cumpridos) suspendem-se (princípio geral previsto no art. 102.º/ 1, não contrariado pelo art. 106.º CIRE), sendo lícito ao AI recusar o cumprimento do contrato.

Apenas na hipótese de contrato-promessa com eficácia real não é lícita ao AI a recusa do cumprimento do contrato-promessa – art. 106.º/1 CIRE, e nesse caso já pode o promitente- comprador recorrer à execução específica do contrato.“.

Carece, pois, por este fundamento a pretensão dos AA..


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, de 2024
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
Alexandra Pelayo
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pela Exma. Senhora Juíza.
[3] Alegação de recurso.
[4] 38. Por contrato de arrendamento datado de 15.07.2008, DD (arrogando-se proprietária da fração) deu de arrendamento a fração B a LL e MM, pelo período de cinco anos, recebendo as respetivas rendas, tendo passado dois recibos de pagamentos da renda juntos como Doc. 22 na PI.