HORÁRIO DE TRABALHO FLEXÍVEL
RECUSA
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Sumário


I – O direito do trabalhador a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, nos termos do n.º 1 do art. 56.º, n.º 1, do Código do Trabalho, pode ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos.
II – Porém, para que este direito possa ser validamente exercido, é necessário que o trabalhador solicite ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, que pretende trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, fazendo constar em tal requerimento a indicação do prazo previsto, dentro do limite aplicável, e declaração de que o menor vive com ele em comunhão de mesa e habitação.
III – Para que um trabalhador tenha direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível não se exige que o outro progenitor tenha atividade profissional e que essa atividade seja incompatível com a satisfação das necessidades de acompanhamento do filho menor.
IV – A entidade empregadora apenas pode recusar o regime de horário de trabalho flexível com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.
V – Para que se declare a inversão do contencioso é necessário i) ter sido apresentado requerimento pelo requerente da providência cautelar a solicitar a inversão do contencioso; ii) esse requerimento seja apresentado tempestivamente; iii) ser garantido o exercício do contraditório; iv) ser procedente a providência cautelar interposta; v) a matéria factual apurada permitir formar a convicção segura acerca da existência do direito acautelado; e vi) a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral



Proc. n.º 2410/23.6T8FAR.E1
Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório
A requerente AA interpôs procedimento cautelar comum contra a requerida “Associação Social e Cultural da ...”, com inversão do contencioso, solicitando, a final, que seja decretado o presente procedimento cautelar comum e, em consequência, seja ordenado o deferimento do pedido de horário flexível solicitado pela requerente, fixando-se tal horário nos dias úteis, de segunda a sexta-feira das 7h às16h30, devendo tal horário vigorar até aos 12 anos da menor.
Alegou, em síntese, que, por ter uma filha menor de 12 anos, solicitou à requerida a atribuição de horário flexível, o qual deveria ser fixado nos dias úteis, de segunda a sexta-feira das 07h00 às 16h30, devendo o horário vigorar a partir de 7 de agosto de 2023 até aos 12 anos da menor.
Mais alegou que, em resposta, apesar de a requerida ter referido que deferiu o seu pedido, na realidade indeferiu o mesmo, aplicando-lhe um horário completamente diferente daquele que a requerente propusera e ainda mais gravoso do que aquele que estava a praticar.
Alegou igualmente que solicitou à requerida que submetesse a sua resposta à entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres para o devido esclarecimento, tendo a própria requerente enviado a tal comissão toda a situação, requerendo a elaboração do respetivo parecer, tendo, porém, recebido a resposta de que a comissão não tinha competência para elaborar parecer a pedido do trabalhador, informando-a de que a entidade empregadora não tinha solicitado qualquer parecer.

A “Associação Social e Cultural da ... – Instituição Particular de Solidariedade Social” veio opor-se à providência cautelar, requerendo a sua improcedência.
Invocou, em síntese, que a petição inicial é inepta, uma vez que existe contradição entre o pedido e a causa de pedir, visto que apesar de pretender que lhe seja fixado um horário flexível o horário que pretende é fixo.
Mais alegou que o pai da menor não possui qualquer constrangimento para ir buscar a menor à escola e a requerida não contrata trabalhadores que não possam trabalhar aos fins-de-semana e por turnos.
Concluiu, por fim, que se opõe à inversão do contencioso.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença em 05-10-2023, que julgou improcedente a invocada ineptidão da petição inicial e terminou com o seguinte teor decisório:
Em face do exposto julgo improcedente a providência cautelar peticionada.
Custas pela Requerente (cfr. art. 527º do CPC ex vi art. 1º nº 2 al. a) do CPT).
Fixo à providência o valor de € 30 000, 01 ( cfr. art. 303º nº 1 do CPC ex vi art. 1º nº 2 al. a) do CPT).
Notifique.
Registe

Inconformada com tal despacho, veio a requerente interpor recurso de Apelação, terminando as suas alegações com as conclusões que se seguem:
1. Em primeiro lugar o direito que a Requerente invoca a ter um horário de trabalho flexível existe claramente consagrado na lei e é em concreto admissível em face das provadas responsabilidades familiares, encontrando-se devidamente preenchidos os requisitos legais para a admissibilidade do procedimento cautelar, emanando dos autos que da postura de recusa da Requerida resulta lesão grave e prejuízo sério e de difícil reparação no âmbito da esfera jurídica da Requerente,
2. Existe a clara probabilidade da existência do direito (“fumus boni iuris”) da Requerente, sendo suficiente a prova produzida que permite um adequado juízo de verosimilhança da existência do direito ameaçado, atenta a instrumentalidade e provisoriedade da medida cautelar e sem prejuízo das regras relativas ao pedido de inversão do contencioso.
3. E dada a recusa e a postura da Requerida existe igualmente o fundado receio de lesão ou prejuízo grave e difícilmente reparável ao direito (“periculum in mora”), devendo-se atender à repercussão na esfera jurídica da Requerente e à dinâmica familiar existente de forma a lograr evitar a continuação da situação danosa e a garantia do efeito útil da possível acção (conforme resulta do n.º 1 do artigo 362.º do Código de Processo Civil).
4. A Douta Decisão recorrida aceita claramente a existência do direito da Requerente a ter um horário flexível, dado resultar provado que tem uma filha menor de 12 anos e também resulta provado que o horário escolhido pela Requerente corresponde a um dos vários horários existentes e praticados pela Requerida.
5. A boa aplicação da lei ao caso em análise implica que se considere as concretas dinâmicas familiares da Requerente, sendo evidente que cada agregado familiar tem direito às suas próprias circunstâncias e não tem que viver em função de posturas mais ou menos generalizadas e de parâmetros, procedimentos e hábitos externos.
6. Independentemente de ser mais ou menos frequente e generalizado é inequívoco que a Requerente tem direito a em concreto escolher um horário em que sai às 16:30 horas, sendo certo que a proposta da Requerente contempla a entrada às 7 horas (contrariamente à maioria dos trabalhadores que saem às 18 ou às 19 horas), assim perfazendo o pedido normal de trabalha diário.
7. Sendo importante frisar que o pretendido horário corresponde a um dos horários/turnos existente na instituição Requerida e por ela estipulado há muito na decorrência do poder diretivo e regulamentar.
8. Embora o contrato de trabalho celebrado entre as partes preveja o trabalho por turnos, mas não é menos evidente que a maternidade da Requerente é claramente uma circunstância superveniente que permite o exercício do direito previsto nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho.
9. Por outro lado não se pode aceitar que a existência e presença do marido da Requerente seja impeditivo da pretensão de esta terminar o trabalho às 16:30 horas, já que o número 1 do artigo 56.º do Código do Trabalho refere expressamente que o horário flexível pode “ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos” (sublinhado nosso), prevendo a lei a possibilidade de ambos os progenitores possuírem flexibilidade de horário e — consequentemente — de ambos estarem habitualmente presentes no dia a dia da menor de 12 anos, não sendo tal circunstância motivo para a recusa do direito a um horário flexível.
10.Sendo a divisão de tarefas e a entre-ajuda entre os progenitores uma componente da harmonização entre profissão e vida familiar que a lei quer proteger, acrescendo que em concreto o marido da Requerente na qualidade de gerente de uma empresa não está sujeito a horários fixos nem a responsabilidades que se limitam ao período de funcionamento e atendimento da empresa, sendo que o mesmo assume na organização familiar outras responsabilidades igualmente necessárias e distintas da elaboração da alimentação e dos banhos da menor.
11.De acordo com o previsto no artigo 56.º do Código do Trabalho as características próprias do agregado da Requerente e as dinâmicas familiares existentes justificam o direito a um horário flexível, que possa fixar o inicio e o término do período normal de trabalho diário e semanal nas horas e dias em concreto mais convenientes,
12.Não havendo prejuízo para a organização da Requerida que possui entre os vários horários precisamente o escolhido pela Requerente (e já antes praticado por ela) e que não recusou o pedido com base na existência de exigências imperiosas de funcionamento conforme prevê o n.º 2 do artigo 57.º do Código do Trabalho.
13.De acordo como texto e o espirito da lei, a Requerente tem direito a escolher horário flexível que permita o convívio de todo o agregado familiar nos fins de semana, e inclusive demonstrou sinceridade e boa-fé quando nas suas declarações no Tribunal “a quo” demonstrou disponibilidade para trabalhar alguns fins de semana.
14.A Douta Decisão merece clara censura quando refere que a possibilidade de a admissão do direito da Requerente implicar a atribuição de idêntico direito a outras trabalhadoras, em geral (?) e em particular na instituição da Requerida, sendo evidente que o previsto na lei não pode ser cerceado com base em factos hipotéticos ou situações conjeturais,
15.Sendo consabidamente a lei geral e abstrata, a aplicação do disposto nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho deve ser feita pontualmente e de forma atual quer ao presente quer a qualquer similar e futuro pedido, atendendo às circunstâncias de cada caso e sem preocupações repressivas ou limitadoras do direito e de ideias de “prevenção geral” próprias do Direito Penal,
16.Sendo manifesto que em nada releva na boa decisão desta situação a possibilidade de idênticos e futuros pedidos, dado que a Requerida para alem dos poderes diretivo e regulamentar tem o dever e a obrigação de dar legal e fundamentada resposta a toda e qualquer vicissitude que possa advir, desde faltas a pedidos de horário flexível.
17.O direito da Requerente a um horário flexível não pode ser prejudicado pelas circunstâncias familiares, especialmente porque foram as circunstâncias, necessidades e dinâmicas familiares próprias do agregado que levaram ao pedido formulado junto da Requerida e posteriormente junto do Tribunal,
18.Sendo evidente que — existindo manifestamente o direito previsto nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho — a postura de recusa por parte da Requerida e de manutenção do horário anteriormente praticado (ou mesmo da imposição de um horário mais prejudicial) corresponde a situação de notório prejuízo e lesão grave e de difícil ou impossível reparação, devendo claramente proceder o procedimento cautelar.
!19.Em segundo lugar e de acordo com a correta aplicação do Direito, o pedido de horário flexível formulado pela Requerente — dias úteis, de segunda a sexta-feira das 7 às 16:30 horas — foi na verdade aceite pela Requerida e como tal deve ser fixado.
20.O direito comunitário e internacional, a Constituição da República e a lei consagram o dever de a entidade empregadora proporcionar aos/às trabalhadores/as as condições de trabalho que favoreçam a conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal, nomeadamente na alínea b) do artigo 59.º da Constituição e no n.º 3 do artigo 127.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo 212.º do Código do Trabalho.
21.E o Código do Trabalho no artigo 56.º prevê o direito a “horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares” como “aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de inicio e termo do período normal de trabalho diário” (n.º 2), sendo expressamente referida a possibilidade de “o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos” (n.º 1).
22.E está provado que a Requerente enviou à Requerida comunicação escrita recepcionada em 10 de Julho de 2023, com pedido de horário flexível nos termos previstos nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho, indicando o horário por si escolhido correspondente aos dias úteis, de segunda a sexta-feira das 7 às 16:30 horas, devendo o horário vigorar até aos 12 anos da menor.
23.Resulta igualmente assente dos documentos juntos aos autos e dos factos provados que a Requerida veio alegar “deferir” o pedido de horário flexível mas vem antes fixar balizas para o início e o termo da laboração diária com períodos de permanência e de almoço fixos que corresponde na verdade a uma recusa do pedido de horário flexível.
24.Mencionando a Requerida “deferir” um alegado horário flexível que enuncia em termos “serpenteados”, “ajustáveis” ou “diferenciados” e que está desajustado e mesmo nos antípodas do pretendido e escolhido pela Requerente — e que seria por exemplo adequado a situações de trabalhador estudante ou requerente de trabalho a tempo parcial que pudesse ter aulas ou compromissos em diferente horários em cada dia ou semana.
25.Ou seja: a Requerida, alegando “deferir” o pedido de horário flexível veio — no ponto 8 da comunicação de 14 de Julho de 2023 que constitui o Documento n.º 7 junto com o requerimento inicial e a que se refere o ponto 11. dos factos provados — impôr uma hora de inicio a partir das 10:30 horas e uma hora de término até às 22:30 horas com períodos de permanência fixa e hora de almoço de 2 horas, situação que na realidade resulta ainda mais prejudicial à adequada conciliação da atividade profissional com a vida familiar que o horário em vigor desde o inicio de Julho (entre as 10 e as 19:30 horas) e a este na prática muito semelhante.
26.Uma vez requerido pela trabalhadora o horário flexível e de acordo com o n.º 2 do art.º 57.º do Código do Trabalho, o empregador apenas pode recusar o pedido de forma devida e concretamente fundamentada em exigências imperiosas do funcionamento da instituição ou na impossibilidade de substituir a trabalhadora — o que não sucedeu nos caso em análise.
27.E encontra-se provado que a Requerente comunicou à Requerida que a sua resposta corresponde à recusa do pedido formulado, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 57.º do Código do Trabalho.
28.E em caso de recusa é obrigatório o pedido de parecer prévio à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, nos termos previstos no n.º 5 do art.º 57.º do Código do Trabalho, implicando a sua falta a aceitação do pedido conforme estabelecido no n.º 8 do art.º 57.º do Código do Trabalho.
29.Ou seja: de acordo com o previsto no art.º 57.º do Código do Trabalho a Requerida em face do pedido formulado pela Requerente só tinha que (1) aceitar ou (2) recusar de forma concretamente fundamentada, mas a Requerida respondeu alegando “deferir” o pedido quando em termos práticos impõe condicionalismos tais que faz com que o horário permaneça igual ou pior que aquele que levou a Requerente a formular o pedido de horário flexível, pelo que a resposta da Requerida ao pedido de horário flexível apresentado pela Requerente consubstancia um indeferimento — sendo evidente que na realidade o pedido da atribuição de horário flexível foi recusado pela Requerida.
30.Devendo deixar-se esclarecido que a Requerente não aceitou e só cumpriu as indicações da Requerida sob ameaça de ação disciplinar e — considerando a resposta da Requerida como recusa do pedido de horário flexível conforme solicitado — renovou a fundamentação e solicitou a intervenção da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, que alegou incompetência para emitir parecer a pedido da Requerente.
31.Em face do disposto no n.º 8 do art.º 57.º do Código do Trabalho, resulta evidente que a postura da Requerida consubstancia na realidade uma aceitação nos seus precisos termos do pedido formulado pela Requerente.
32.Pelo que uma correta aplicação do disposto na Constituição e no n.º 3 do artigo 127.º, na alínea b) do n.º 2 do artigo 212.º e especialmente nos artigos 56.º e 57.º do Código do Trabalho, conduz à conclusão que o pedido de horário flexível formulado pela Requerente — dias úteis, de segunda a sexta-feira das 7 às 16:30 horas — foi aceite pela Requerida e como tal deve ser fixado.
33.Por fim cumpre reiterar o pedido de inversão do contencioso formulado no requerimento inicial, uma vez que a Requerida apresentou Oposição, juntou documentos e indicou testemunhas — tendo inclusive prescindido de uma delas — sendo a sua posição devidamente documentada nos autos,
34.Apresentando a Requerida em oposição ao peticionado nos presentes autos somente questões de gestão e de organização interna que por um lado não foram atempadamente alegados e que por outro lado em nada afetam o direito da Requerente no que diz respeito à concessão de um horário flexível nos termos peticionados.
Termos em que deverá o presente recurso ser deferido e revogada a Douta Decisão do Tribunal “a quo” que deverá ser alterada de forma a que seja considerada totalmente procedente a pretensão formulada com o consequente deferimento do pedido de horário flexível, com a inversão do contencioso, assim se fazendo Justiça.

A requerida veio apresentar contra-alegações, requerendo a improcedência do recurso, devendo ser mantida a sentença recorrida.

O tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como de apelação, com subida imediata e efeito suspensivo, e, após a subida dos autos ao Tribunal da Relação, foi dado cumprimento ao preceituado no n.º 3 do art. 87.º do Código de Processo do Trabalho, tendo a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitido parecer, pugnando pelo provimento do recurso, devendo a sentença ser anulada e substituída por outra que proceda à condenação da recorrida.
Não houve resposta a tal parecer.
O recurso foi admitido nos seus precisos termos, e, após a ida dos autos aos vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Objeto do Recurso
Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicáveis por remissão do art. 87.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da Apelante, ressalvada a matéria de conhecimento oficioso (art. 662.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, as questões que importa decidir são:
1) Preenchimento dos requisitos para o decretamento da providência cautelar solicitada; e
2) Inversão do contencioso.

III – Matéria de Facto
O tribunal da 1.ª instância deu como indiciariamente provados os seguintes factos:
1. Em 7 de junho de 2017 Requerente e Requerida outorgaram o contrato de trabalho constante de fls. 6vº a 7 vº que aqui se reproduz, declarando a Requerente que “obriga-se a prestar a sua atividade profissional sob a direção e fiscalização da entidade patronal, com a categoria de ajudante de ação directa 2ª prevista no CCT CNIS e FEPCES (…) o período de trabalho normal (…) será de 37 horas, distribuído por cinco dias por semana, com dois dias de descanso semanal, podendo a primeira outorgante, uma vez que o estabelecimento em que o trabalho é prestado é de laboração continua, organizar a prestação de trabalho da segunda outorgante em turnos rotativos, ao que esta dá desde já o seu assentimento.(…)”
2. BB, nascida em ../../2019, é filha da Requerente e de CC.
3. A Requerente vive em comunhão de mesa e habitação com a filha e com o seu marido, CC, na Rua ..., ....
4. A filha da Requerente tem quatro anos e frequenta o ensino Pré-Escolar na Escola Básica de ....
5. O marido da Requerente e pai da menor tem disponibilidade para levar a filha ao estabelecimento escolar cedo pela manhã de cada dia útil.
6. Em maio de 2023 após regressar ao trabalho após baixa médica e em junho do mesmo ano a Requerente praticou o horário diário das 7h às 16h30m.
7. Em Julho de 2023 a Requerida fixou à Requerente o horário entre as 10 e as 19:30 horas.
8. Por força do mesmo a Requerente deixou de poder ir buscar a filha à escola e de a acompanhar até à hora do jantar.
9. Além do marido, a Requerente não tem familiares com proximidade, disponibilidade e capacidade para ajudar a tratar da menor.
10. Em data não apurada, anterior a 10 de julho de 2023, a Requerente remeteu à requerida o escrito de fls.11vº e 12 que se reproduz solicitando “ com o propósito de poder acompanhar a minha filha, quer nos dias úteis, quer nos fins de semana, feriados e dias festivos, requer-se a Vª Exa, nos termos e para os efeitos do artigo 56º do Código de Trabalho, seja atribuído o seguinte horário de trabalho: dias úteis, de segunda a sexta-feira, das 07:00 horas às 16:30m (…)requer o seu início para o dia 7 de Agosto de 2023 e até aos 12 anos de idade da filha(…) ”.
11. Por comunicação de 14 de Julho de 2023 a Requerida remeteu à Requerente o escrito de fls. 12 vº a 15vº, declarando “ (…) Se fosse aplicado o horário pedido por V. Exa. a que acima se refere, esta instituição estaria a atribuir-lhe um orário fixo e não um horário flexível.(…) A instituição (…) defere o pedido de horário flexível (…)Tendo em consideração as necessidades do serviço imperioso que esta instituição desenvolve junto dos seus utentes e a sua categoria profissional, prestará o seu trabalho na Estrutura Residencial para pessoas idosas com a categoria profissional de ajudante de ação direta e a carga horária correspondente de 37 horas semanais nos seguintes termos : A – O horário normal de trabalho será organizado em períodos de cinco dias semanais, com o período normal de trabalho de sete horas e 24 minutos em cada dia. 8- A hora de inicio do trabalho poderá ocorrer às dez horas e trinta minutos e a hora de termo (…) às vinte e duas horas e trinta minutos.C- Deverá cumprir dois períodos de permanência fixa no local de trabalho. Um período da parte da manhã, entre as treze horas e quarenta e cinco minutos e as catorze horas e quarenta e quatro minutos, e outro período da parte da tarde, entre as dezasseis horas e quarente e cinco minutos e as dezanove horas e trinta minutos (…) não lhe pode pois esta instituição atribuir um horário fixo em que trabalhe apenas em dias úteis (…).”
12. Por carta de 21 de Julho de 2023 a Requerente respondeu à Requerida nos termos que constam de fls. 16 a 17 vº declarando que “ a presente comunicação é feita nos termos do nº4 do art. 57º do Código de Trabalho, por se considerar recusado o pedido de horário flexível anteriormente apresentado, requerendo, novamente a atribuição de horário flexível como anteriormente indicado.”
13.Por carta de 24 de Julho de 2023, constante de fls. 18 a 20 vº a Requerida respondeu à Requerida declarando que “ consideramos definitivamente fixado o horário flexível.”
14. Por carta de 28 de Julho de 2023 constante de fls. 21 a Requerente informou a Requerida que “procedo nesta data à remessa deste assunto para a entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres (…)”.
15. Por carta de 28 de Julho de 2023 a Requerente remeteu o escrito de fs. 21 vº a 22 à Comissão para a Igualdade do Trabalho e no Emprego.
16. Por e-mail de 8 de Agosto de 2023, constante de fls. 22 vº a 23 a Comissão para a Igualdade do Trabalho e no Emprego informou a Requerente que não dispõe de competência para emissão de parecer prévio a pedido do trabalhador.
17. Na instituição Requerida continua a existir o horário entre as 7 e as 16:30 horas.
18. A menor é uma criança saudável, não tendo quaisquer necessidades especiais.
19. O pai da menor é uma pessoa saudável, não tendo quaisquer limitações, nem físicas, nem intelectuais.
20. O pai da menor tem carta de condução automóvel e carro próprio.
21. O pai da menor trabalha na empresa Dirigeste, em ..., onde exerce um cargo de gerente.
22. O horário de funcionamento habitual da referida empresa é das nove às treze horas e das catorze às dezassete e trinta.
23. Na escola que a menor frequenta, durante o ano letivo, ou seja, entre Setembro e Julho, as crianças podem aí permanecer até às dezoito horas e trinta minutos.
24. A escola que a menor frequenta dista cerca de oito quilómetros do local onde o pai da menor trabalha.
25. A distância entre a escola e o local de trabalho do pai, de carro, percorre-se, por regra, em dez minutos.
26. O pai da menor não tem qualquer constrangimento em dar-lhe banho.
27. O pai da menor não trabalha aos feriados e fins de semana.
28. A entidade patronal para quem o pai da menor trabalha nunca lhe fez qualquer oposição a que o mesmo fosse buscar a menor à escola pela tarde.
29. Os gerentes da Dirigeste têm flexibilidade nas horas de entrada e de saída do trabalho na referida empresa.
30. A requerente não tem carta de condução .
31. A requerente não tem transporte público entre a sua casa e a escola.
32. A escola dista cerca de um quilómetro e meio da casa da requerente.
33. Quando praticava o horário com inicio de jornada às 7h era o pai da menor que a despertava, levantava, vestia e dava o pequeno almoço.
34. Pelo facto de ter sido alvo duma intervenção cirúrgica ao braço direito a Requerente não pode fazer esforços com o referido braço que envolvam cargas superiores a cinco quilogramas.
35. Por isso a Requerida teve que alterar o tipo de trabalho a prestar pela requerente, enquanto durar tal limitação, atribuindo-lhe aquando da fixação dos períodos de permanência obrigatória, períodos que coincidam com rotinas em que a dita incapacidade temporária e parcial possa causar menos repercussão no trabalho a efetuar.
36. Desde o inicio da relação laboral a requerente, trabalhou na estrutura residencial para pessoas idosas da requerida, ERPI, prestando seu trabalho em horários de trabalho por turnos, inclusive aos fins de semana, quando o horário por turnos que lhe era destinado.
37. Quando a Requerente trabalhava ao fim de semana era o marido quem cuidava da menor .
38. A Requerida não contrata trabalhadores se não puderem trabalhar aos fins de semana.
39. Além da Requerente a Requerida tem ao seu serviço vinte e três trabalhadores com filhos menores de doze anos.
40. Quando aceitou trabalhar para a Requerida a Requerente tinha plena consciência que trabalharia por turnos, inclusivamente ao fim de semana.
41. Na sequência do solicitado pela Requerida, na semana de catorze a vinte de agosto de 2023, a requerente escolheu fazer o horário das dez horas e trinta minutos às vinte horas.
42. E, semanalmente, a Requerente tem escolhido, dentro dos parâmetros do horário flexível, o tipo de horário que pretende fazer.

E deu como indiciariamente não provados os seguintes factos
1. O pai da menor tenha inconveniente profissional em ir buscá-la à tarde e muita dificuldade em acompanhar sozinho a menor nas tarefas como o banho e o jantar da filha.
2. O horário das 10h às 19:30m impeça o normal acompanhamento da menor por parte da Requerente .
3. Por não ter carta de condução a Requerente tenha dificuldades em ir buscar a menor à escola.
4. A Requerente tenha descansado no dia sete de agosto e no dia treze de agosto, dezanove e vinte de agosto.
5. De vinte e um a vinte e sete de agosto, a requerente entrou em gozo de férias.
6. Na semana de vinte e oito de agosto a três de Setembro de 2023, a requerente escolheu praticar o horário das dez e trinta às vinte horas.
7. Os dias de descanso ocorreram no dia vinte e oito de agosto e no dia três de setembro.

IV – Enquadramento jurídico

1 – Preenchimento dos requisitos para o decretamento da providência cautelar solicitada
Considera a Apelante que existe a clara probabilidade da existência do direito que invoca e, dada a recusa da Apelada, existe igualmente o fundado receio de lesão ou prejuízo grave e dificilmente reparável do direito, devendo-se atender à repercussão na esfera jurídica daquela e à dinâmica familiar existente, de forma a lograr evitar a continuação da situação danosa e a garantia do efeito útil da possível ação.
Invocou ainda que não é aceitável que a existência e presença do marido da requerente seja impeditivo da pretensão de esta terminar o trabalho às 16h30, já que o n.º 1 do art. 56.º do Código do Trabalho refere expressamente que o horário flexível pode “ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos”, prevendo a lei a possibilidade de ambos os progenitores possuírem flexibilidade de horário e — consequentemente — de ambos estarem habitualmente presentes no dia a dia da menor de 12 anos, não sendo tal circunstância motivo para a recusa do direito a um horário flexível.
Referiu igualmente que, inexistindo prejuízo para a organização da requerida, que inclusive possui na sua organização o horário pretendido pela requerente, nem tendo recusado o pedido desta com base na existência de exigências imperiosas de funcionamento ou na impossibilidade de substituir a requerente, a postura de recusa da requerida corresponde a uma situação de notório prejuízo e lesão grave e de difícil ou impossível reparação para a requerente, devendo, por isso, proceder o procedimento cautelar.
Concluiu, por fim, que a requerida, apesar de ter afirmado deferir o pedido de horário flexível solicitado pela requerente, na verdade recusou-o, sem que tenha solicitado à CITE o parecer a que faz menção o n.º 5 do art. 57.º do Código do Trabalho, pelo que, nos termos do n.º 8 desse artigo, deve considerar-se que a requerida aceitou o pedido formulado pela requerente.
Vejamos.
Dispõe o art. 32.º do Código de Processo do Trabalho que:
1 - Aos procedimentos cautelares aplica-se o regime estabelecido no Código de Processo Civil para o procedimento cautelar comum, incluindo no que respeita à inversão do contencioso prevista nesse diploma, com as seguintes especialidades:
a) Recebido o requerimento inicial, é designado dia para a audiência final;
b) Sempre que seja admissível oposição do requerido, esta é apresentada até ao início da audiência final;
c) A decisão é sucintamente fundamentada, regendo-se a sua gravação e transcrição para a ata pelo disposto no artigo 155.º do Código de Processo Civil.
2 - Nos casos de admissibilidade de oposição, as partes são advertidas para comparecer pessoalmente ou, em caso de justificada impossibilidade de comparência, fazer-se representar por mandatário com poderes especiais para confessar, desistir ou transigir, na audiência final, na qual se procederá à tentativa de conciliação.
3 - Sempre que as partes se fizerem representar nos termos do número anterior, o mandatário deve informar-se previamente sobre os termos em que o mandante aceita a conciliação.
4 - A falta de comparência de qualquer das partes ou dos seus mandatários não é motivo de adiamento.

De igual modo, consta do art. 362.º do Código de Processo Civil que:
1 - Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
2 - O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
3 - Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte.
4 - Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado.

Por fim, dispõe o art. 368.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que:
1 - A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.

Assim, para que possa ser decretada a providência cautelar comum, que se destina a garantir, de forma provisória, a eficácia de uma possível decisão favorável no processo principal, obrigatoriamente mais moroso e exigente, é necessária a existência dos seguintes requisitos:[2]
1) a probabilidade séria da existência do direito invocado;
2) o fundado[3] receio de que lhe seja causada por outrem lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora);
3) a adequação da providência requerida à situação de lesão iminente do seu direito;
4) a inviabilidade de recorrer a providências cautelares especificadas para salvaguardar o seu direito; e
5) o prejuízo provocado pelo decretamento da providência cautelar não ser superior ao dano que se pretende evitar.
Deste modo, por se tratar de uma decisão de carácter provisório, o tribunal bastar-se-á com uma análise sumária da matéria factual para concluir pela existência dos requisitos supra indicados.
Apreciemos o primeiro requisito.
O direito cuja probabilidade séria da existência a requerente pretende que seja reconhecida é o de lhe ser deferido o pedido de horário flexível que formulou junto da sua entidade patronal nos termos do n.º 1 do art. 56.º do Código do Trabalho.
Segundo este artigo, “O trabalhador com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho com deficiência ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, podendo o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos”.
Por sua vez, nos termos do art. 57.º do Código do Trabalho:
1 - O trabalhador que pretenda trabalhar a tempo parcial ou em regime de horário de trabalho flexível deve solicitá-lo ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, com os seguintes elementos:
a) Indicação do prazo previsto, dentro do limite aplicável;
b) Declaração da qual conste:
i) Que o menor vive com ele em comunhão de mesa e habitação;
ii) No regime de trabalho a tempo parcial, que não está esgotado o período máximo de duração;
iii) No regime de trabalho a tempo parcial, que o outro progenitor tem actividade profissional e não se encontra ao mesmo tempo em situação de trabalho a tempo parcial ou que está impedido ou inibido totalmente de exercer o poder paternal;
c) A modalidade pretendida de organização do trabalho a tempo parcial.
2 - O empregador apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.
3 - No prazo de 20 dias contados a partir da recepção do pedido, o empregador comunica ao trabalhador, por escrito, a sua decisão.
4 - No caso de pretender recusar o pedido, na comunicação o empregador indica o fundamento da intenção de recusa, podendo o trabalhador apresentar, por escrito, uma apreciação no prazo de cinco dias a partir da recepção.
5 - Nos cinco dias subsequentes ao fim do prazo para apreciação pelo trabalhador, o empregador envia o processo para apreciação pela entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, com cópia do pedido, do fundamento da intenção de o recusar e da apreciação do trabalhador.
6 - A entidade referida no número anterior, no prazo de 30 dias, notifica o empregador e o trabalhador do seu parecer, o qual se considera favorável à intenção do empregador se não for emitido naquele prazo.
7 - Se o parecer referido no número anterior for desfavorável, o empregador só pode recusar o pedido após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
8 - Considera-se que o empregador aceita o pedido do trabalhador nos seus precisos termos:
a) Se não comunicar a intenção de recusa no prazo de 20 dias após a recepção do pedido;
b) Se, tendo comunicado a intenção de recusar o pedido, não informar o trabalhador da decisão sobre o mesmo nos cinco dias subsequentes à notificação referida no n.º 6 ou, consoante o caso, ao fim do prazo estabelecido nesse número;
c) Se não submeter o processo à apreciação da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres dentro do prazo previsto no n.º 5.
9 - Ao pedido de prorrogação é aplicável o disposto para o pedido inicial.
10 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.os 2, 3, 5 ou 7.

Resulta, assim, dos artigos referidos que tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível o trabalhador com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho com deficiência ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação. Por sua vez, a lei consagra expressamente que o direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível pode ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos. Porém, para que este direito possa ser validamente exercido, é necessário que o trabalhador solicite ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, que pretende trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, fazendo constar em tal requerimento a indicação do prazo previsto, dentro do limite aplicável, e declaração de que o menor vive com ele em comunhão de mesa e habitação. Atente-se que para que um trabalhador tenha direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível não se exige que o outro progenitor tenha atividade profissional e que essa atividade seja incompatível com a satisfação das necessidades de acompanhamento do filho menor. A própria exigência prevista no ponto iii), al. b), do n.º 1 do art. 57.º do Código do Trabalho, que se aplica apenas ao trabalho a tempo parcial, apenas impõe que o outro progenitor tenha atividade profissional e não se encontre ao mesmo tempo em situação de trabalho a tempo parcial; já não que a sua atividade seja incompatível com a satisfação das necessidades de acompanhamento do filho menor.
Esta posição legislativa decorre dos princípios constitucionais de conciliação da atividade profissional dos trabalhadores com a sua vida familiar, da proteção da família e da proteção da parentalidade, tendo em vista incentivos à natalidade (arts. 59.º, n.º 1, al. b), 67.º, n.ºs 1 e 2, al. h) e 68.º, nºs. 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa[4]), em sintonia, aliás, com o que prescreve o art. 33.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ao consagrar que é “assegurada a proteção da família nos planos jurídico, económico e social”. Decorre, aliás, expressamente do n.º 1 do art. 68.º que “Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país”.
Essa é a razão pela qual o direito do trabalhador, com filho menor de 12 anos, a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível se mostra tão abrangente, admitindo apenas a sua recusa pela entidade patronal com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável (n.º 2 do art. 57.º do Código do Trabalho), e apenas por esses motivos.
No caso em apreço, a requerente solicitou à entidade patronal, por escrito, que, com o propósito de acompanhar a filha, quer nos dias úteis, quer nos fins de semana, feriados e dias festivos, que lhe fosse atribuído o seguinte horário de trabalho: nos dias úteis, de segunda a sexta-feira, das 07h00 horas às 16h30m, a partir de 07-08-2023 e até aos 12 anos de idade da filha (facto indiciariamente provado 10).
Apurou-se igualmente que a filha da requerente nasceu em ../../2019 (facto indiciariamente provado 2), pelo que é menor de doze anos, e que a requerente vive em comunhão de mesa e habitação com a filha e com o marido (facto indiciariamente provado 3).
Tais factos determinam, assim, de imediato, que se considere a probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente.
A sentença recorrida, apesar de concluir igualmente que existe uma probabilidade séria da existência do direito invocado pela requerente, considera que o horário por esta requerido, apesar de se enquadrar dentro dos normativos legais de horário flexível, não constituindo, assim, e contrariando a versão da entidade empregadora, um horário fixo,[5] não lhe pode ser atribuído, uma vez que “não trabalhar para além das 16h30m, tendo em vista acompanhar um descendente, menor, em atividades até à hora do jantar, ainda que constitua um sonho legitimo e salutar de muitos pais, não constitui por si só um direito que justifique a limitação do poder de gestão da entidade patronal de fixar o horário do trabalhador e de o fixar nos termos que a sua organização o exige”. Considerou ainda que “O acabado de referir não significa, no entanto, que, por via de concretas responsabilidades familiares, eventualmente não conciliáveis com o trabalho, aquele poder não possa ser limitado”. Posteriormente, analisando as circunstâncias do caso concreto, teceu as seguintes considerações:
[…] resultou indiciado que a Requerente sempre trabalhou por turnos, inclusive ao fim de semana quando escalada, com isso concordou quando outorgou o contrato, sempre trabalhou na ERPI da Requerida que, face à sua natureza, está aberta todos os dias do ano, 24h por dia, pelo que a organização dos horários impõe a organização dos horários daquela forma.
Mais se indiciou que Requerente vive com o marido que é gerente de uma empresa cujo horário de funcionamento se situa entre 9h e as 13h e as 14h e as 17h30m, os gerentes de tal instituição têm flexibilidade nas horas de entrada e de saída do trabalho, a menor é uma criança saudável, não tendo quaisquer necessidades especiais, o pai da menor é uma pessoa saudável, não tendo quaisquer limitações, nem físicas, nem intelectuais, tem carta de condução automóvel e carro próprio, a escola da menor dista do local de trabalho do pai cerca de 8km percorridos, de carro, em 10 minutos, a menor, entre setembro e julho, pode permanecer na escola que frequenta até às 18h30m, o pai da menor não tem qualquer constrangimento em dar-lhe banho, não trabalha aos feriados e fins de semana e quando a Requerente executava o horário em que iniciava a jornada às 7h era o pai da menor que a despertava, levantava, vestia e dava o pequeno almoço pelo que, também, é de concluir que inexistem quaisquer obstáculos a que seja o pai a dar o jantar à menor se tiver que o fazer.
Em face do exposto, atendendo a que o pai da menor tem disponibilidade para a ir buscar à escola, tem uma relação salutar com a menor – não tendo quaisquer dificuldades em dar-lhe banho, em vesti-la e em alimentá-la - não vemos em que medida a vida familiar da Requerente justifica uma limitação, diária, do horário de termo da jornada fixando-o às 16h30m.

Acontece, porém, que, independentemente daquilo que o aplicador da lei possa entender como adequado, é-lhe exigível ater-se ao que a lei dispõe, a menos que a declare inconstitucional. E, a ser assim, não tendo a 1.ª instância declarado inconstitucional o que dispõem os arts. 56.º, n.º 1 e 57.º, n.º 1, als. a) e b), ponto i), do Código do Trabalho, deveria tê-los aplicado. Deste modo, e como já se mencionou supra, não se exigindo na lei que o direito do trabalhador a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, quando tenha filho menor de 12 anos que consigo coabite, esteja dependente da impossibilidade ou dificuldade de o outro progenitor poder cuidar desse filho, não é possível negar tal direito, mesmo que o outro progenitor não exerça qualquer atividade profissional. Atente-se que o direito do trabalhador a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível pode ser concedido a ambos os progenitores em simultâneo. Na realidade, este direito procura dar conteúdo ao princípio constitucional de que “Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país”.[6]
Acresce que a rejeição do horário solicitado pelo progenitor apenas pode ter como fundamento as exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou a impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.
Analisando a carta em que o horário solicitado pela requerente foi recusado (facto indiciariamente provado 11), verifica-se que o único fundamento consistiu no entendimento de que tal horário não era flexível, mas fixo, não tendo, por isso, sido alegados quaisquer factos atinentes às exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou à impossibilidade de substituir o trabalhador por este ser indispensável. É importante frisar que o horário pretendido pela requerente das 07h00 às 16h30 existe na instituição da requerida (facto indiciariamente provado 17).
Ora, para além de a própria sentença ter considerado estarmos perante um horário flexível, posição, aliás, com a qual concordamos, essa questão não se mostra sequer colocado no âmbito do presente recurso.
Chegados aqui, importa referir que, tendo a entidade empregadora recusado o horário pretendido pela requerente, fixando-lhe um outro, em alternativa, que era exatamente o oposto do pretendido pela requerente (a requerente pretendia entrar mais cedo, para sair mais cedo e o horário fixado colocava-a a entrar a partir das 10h30 para poder sair até às 22h30), impunha-se-lhe, nos termos do n.º 5 do art. 57.º do Código do Trabalho, ter solicitado parecer à CITE, sob pena de se considerar que aceitou o pedido do trabalhador nos seus precisos termos (n.º 8, al. c) do mesmo artigo).
Conforme bem se refere no acórdão proferido nesta Relação em 14-03-2019:[7]
O art. 57.º n.º 8 do Código do Trabalho, aplicando-se a situações patológicas de incumprimento pelo empregador dos deveres associados à fixação do horário flexível, deve ser interpretado como estabelecendo uma sanção civil de aceitação tácita da proposta de horário que o trabalhador eventualmente tenha apresentado no seu requerimento.

O ónus das prova da solicitação do referido parecer compete à entidade empregadora.[8] Porém, nada consta da prova indiciariamente realizada que esse parecer tenha sido solicitado, constando, aliás, do facto indiciariamente provado 16, que tal parecer não foi solicitado.
E, a ser assim, para além de ser evidente a probabilidade séria da existência do direito da requerente ao regime de horário flexível, em termos de apreciação de mérito, sempre tal direito também lhe deveria ser atribuído em face da cominação prevista na al. c) do n.º 8 do art. 57.º do Código do Trabalho.
Vejamos agora o segundo requisito – periculum in mora.
Importa, então, analisar se existe fundado receio de que a violação do direito da requerente ao regime de horário flexível lhe cause lesão grave e dificilmente reparável.
Afigura-se-nos que sim.
Ao pedido de regime de horário flexível formulado pela requerente com o propósito de poder acompanhar a filha, nos dias úteis a partir das 16h30 e aos fins de semana, a entidade empregadora fixou-lhe um horário de trabalho em períodos de cinco dias semanais, com o período normal de trabalho de 07h24 em cada dia, sendo a hora de início a partir das 10h30 e a hora de termo até às 22h30, devendo cumprir dois períodos de permanência fixa no local de trabalho, sendo o período da parte da manhã, entre as 13h45 e as 14h44, e outro período da parte da tarde, entre as 16h45 e as 19h30, não lhe concedendo dispensa do trabalho aos fins-de-semana.
Na realidade, para além de ter rejeitado sem fundamento legal a aplicação do horário solicitado pela requerente, a requerida teve particular intenção de obrigar a requerente a permanecer no local de trabalho no período em que a mesma pretendia ir buscar a sua filha, ou seja, a partir das 16h30. Atente-se que o segundo período fixo é de quase três horas, enquanto que o primeiro período fixo é apenas de uma hora, sendo que o segundo período fixo inicia-se após as 16h30, mais concretamente às 16h45, e mantém-se até às 19h30. A manutenção deste horário impedirá a requerente de poder participar na ação educativa diária, ao fim da tarde, da sua filha, ou seja, impedi-la-á na sua insubstituível tarefa de educar e participar no desenvolvimento da filha menor, o que consubstancia uma lesão grave e de difícil reparação ao seu direito constitucional de proteção da maternidade.
Na realidade, nada impede que a providência cautelar possa ser requerida para “obviar à repetição de lesões ou danos idênticos a danos anteriormente sofridos ou ao seu agravamento, podendo mesmo as lesões ou danos anteriormente verificados ser tidas como prenúncio ou comprovação do dano ou lesão futura que se pretende obstar”[9].
De igual modo, se mostra verificado o requisito de adequação desta providência à lesão futura e iminente do direito da requerente, inexistindo providências cautelares especificadas para salvaguardar o seu direito.
Por fim, também não resulta da matéria dada como indiciariamente provada que o prejuízo provocado pelo decretamento da providência cautelar é superior ao dano que se pretende evitar.
Na realidade, não só a requerida não invocou qualquer dano aquando da rejeição do horário solicitado pela requerente, como consta especificamente na matéria dada como indiciariamente provada que a requerida possui na sua organização o horário pretendido pela requerente, ou seja, o horário entre as 07h00 e as 16h30 (facto indiciariamente provado 17).
Nesta conformidade, apenas nos resta concluir pela procedência, nesta parte, do recurso interposto pela recorrente, devendo, em consequência, ser revogada a sentença proferida e concedido à apelante o horário flexível por si proposto, isto é, o horário de segunda a sexta-feira, entre as 07h00 e as 16h30, a aplicar até aos 12 anos de idade da filha da requerente.

2 – Inversão do contencioso
Entende a apelante que deve ser deferido o seu pedido de inversão do contencioso, uma vez que a requerida apresentou oposição, juntou documentos e indicou testemunhas, tendo inclusive prescindido de uma delas.
Mais referiu que as questões em litígio são apenas de direito.
Nos termos do art. 32.º do Código de Processo do Trabalho, o regime de inversão do contencioso previsto no Código de Processo Civil é aplicável ao procedimento cautelar comum laboral.
Estatui o art. 369.º do Código de Processo Civil que:
1 - Mediante requerimento, o juiz, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
2 - A dispensa prevista no número anterior pode ser requerida até ao encerramento da audiência final; tratando-se de procedimento sem contraditório prévio, pode o requerido opor-se à inversão do contencioso conjuntamente com a impugnação da providência decretada.
3 - Se o direito acautelado estiver sujeito a caducidade, esta interrompe-se com o pedido de inversão do contencioso, reiniciando-se a contagem do prazo a partir do trânsito em julgado da decisão que negue o pedido.

Conforme bem refere Elizabeth Fernandez em Um novo Código de Processo Civil? Em busca das diferenças:[10]
[o] requerente de uma providência cautelar que se traduza, quando decretada, numa medida concreta suscetível de promover, só por si, a resolução do litígio, tem a faculdade de requerer ao juiz da causa cautelar que, para além de decretar aquela mesma providência, o dispense a ele, requerente, de propor a ação principal de que depende, á partida, a tutela cautelar requerida e decretada, O decretamento dessa dispensa importa que o ónus da propositura daquela ação seja transferido para a outra parte da relação processual e daí ser designada por inversão do contencioso.

São assim requisitos da inversão do contencioso:
a) ter sido apresentado requerimento pelo requerente da providência cautelar a solicitar a inversão do contencioso;
b) esse requerimento seja apresentado tempestivamente;
c) ser garantido o exercício do contraditório;
d) ser procedente a providência cautelar interposta;
e) a matéria factual apurada permitir formar a convicção segura acerca da existência do direito acautelado; e
f) a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.
Atentemos ao caso concreto.
No requerimento inicial a requerente solicitou a declaração de inversão do contencioso, pelo que tal pedido se mostra praticado por quem o podia formular e é tempestivo. A requerida exerceu o contraditório, apresentando oposição ao presente procedimento e produzindo as provas que entendeu.
Em sede de acórdão da relação julgou-se procedente a providência cautelar pelas razões supramencionadas.
Relativamente à questão de a matéria factual apurada permitir formar a convicção segura acerca da existência do direito acautelado, importa referir que, quanto aos factos apurados, inexistem divergências, tanto assim é que a requerente, apesar de ter sido julgado improcedente o procedimento cautelar interposto, não veio impugnar a matéria factual dada como indiciariamente provada. Acresce que, conforme já se referiu, é evidente e notório, perante os factos adquiridos no procedimento, a existência do direito que a requerente visa acautelar com a presente providência.
Por fim, só é possível declarar a inversão do contencioso se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio, ou seja, “se a tutela cautelar puder substituir a definitiva e apenas se a providência cautelar requerida (nominada ou inominada) não tiver um sentido manifestamente conservatório”[11].
No caso dos autos, estamos perante uma providência cautelar comum, a qual tem natureza antecipatória, visto que pretende a antecipação da realização do direito que previsivelmente virá a ser reconhecido na ação principal a título definitivo. Dito de outro modo, aquilo que veio a ser decretado em sede de providência cautelar corresponde exatamente aquilo que a requerente viria a pedir na ação principal, caso não tivesse pedido a inversão do contencioso ou em caso de improcedência da providência, pelo que a tutela cautelar substitui efetivamente a tutela definitiva.[12]
Mostrando-se preenchidos os requisitos necessários à declaração de inversão do contencioso, apenas nos resta, também nesta parte, julgar procedente o recurso e declarar a inversão do contencioso.

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso totalmente procedente e, em consequência, decide-se:
a) determinar a revogação da sentença recorrida;
b) fixar à requerente AA o horário flexível por si proposto, ou seja, o horário de segunda a sexta-feira, entre as 07h00 e as 16h30, a aplicar até aos 12 anos de idade da sua filha; e
c) decretar a inversão do contencioso, dispensando, nessa medida, a requerente do ónus de propositura da ação principal.
Custas pela requerida (art. 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Notifique.

Évora, 8 de fevereiro de 2024
Emília Ramos Costa (relatora)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço

[1] Relatora: Emília Ramos Costa; 1.º Adjunto: Mário Branco Coelho; 2.ª Adjunta: Paula do Paço.
[2] Veja-se o acórdão do TRL, proferido em 29-09-2021, no âmbito do processo n.º 2935/21.8T8LRS.L1-4, consultável em www.dgsi.pt.
[3] Apreciado em termos objetivos.
[4] Doravante CRP.
[5] No mesmo sentido de que não se trata de um horário fixo, designadamente os acórdãos do STJ proferido em 12-10-2022 no âmbito do processo n.º 423/20.9T8BRR.L1.S1; do STJ proferido em 22-06-2022 no âmbito do processo n.º 3425/19.4T8VLG.P1.S2; do STJ proferido em 28-10-2020 no âmbito do processo n.º 3582/19.0T8LSB.L1.S1; do TRP proferido em 02-03-2017 no âmbito do processo n.º 2608/16.3T8MTS.P1; e do TRP proferido em 03-10-2022 no âmbito do processo n.º 8273/22.1T8PRT.P1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[6] Art. 68.º, n.º 1, da CRP.
[7] No âmbito do processo n.º 1267/18.3T8PTM.E1, não publicado.
[8] Vide acórdãos do TRP proferidos em 23-01-2023 no âmbito do processo n.º 2649/22.1T8MAI-A.P1; em 02-03-2017 no âmbito do processo n.º 2608/16.3T8MTS.P1; e em 03-10-2022 no âmbito do processo n.º 8273/22.1T8PRT.P1; todos consultáveis em www.dgsi.pt.
[9] Cfr. acórdão do TRP proferido em 23-03-2020 no âmbito do processo n.º 2568/19.9STS.P1.A, consultável em www.dgsi.pt.
[10] Edição Vida Económica, p. 130.
[11] Acórdão do TRC proferido em 12-09-2017 no âmbito do processo n.º 157/16.9T8LSA.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[12] Acórdão deste tribunal proferido em 12-01-2023 no âmbito do processo n.º 2298/22.4T8PTM.E1, consultável em www.dgsi.pt.