ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
FALTA DE REAÇÃO DO TRABALHADOR NA VIGÊNCIA DO CONTRATO
Sumário

I - Da formulação do instituto do abuso do direito, nos quadros previstos no artigo 334.º do Código Civil (CC), resulta a consideração de que, para que o exercício do direito seja considerado abusivo, não bastará que o mesmo cause prejuízos a outrem, tornando-se ainda necessário que o titular exceda, de modo visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça.
II - Acolheu o nosso sistema jurídico uma conceção objetiva do abuso de direito, não sendo, pois, necessário que exista consciência, por parte de quem exerce o direito, de que esse exercício é abusivo.
III - De entre os casos subsumíveis ao abuso do direito insere-se o normalmente designado comportamento típico abusivo, que se traduz num venire contra factum proprium, traduzido num comportamento do agente cuja inação deve ser penalizada, visando-se proteger o beneficiário, na sua confiança de que não haverá exercício do direito, sendo que essa confiança, para ser digna de tutela, deve radicar numa conduta de alguém, titular de um direito, que, de facto, possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada conduta futura, de tal modo que a situação de confiança gerada pela anterior conduta do titular do direito conduz, objetivamente, a uma expectativa legítima de que o direito já não será exercido.
IV - A falta de reação do trabalhador não se traduz em abuso de direito pelo facto de o contrato de trabalho se revestir de características especiais, em que a subordinação jurídica e a consequente maior fragilidade daquele face à sua dependência perante o empregador, bem como a necessidade de garantir o emprego, o levam, não raras vezes e contra sua vontade, a tolerar a violação, por parte deste último, dos seus direitos e/ou garantias laborais.

Texto Integral

Apelação / processo n.º 4989/22.0T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia - Juiz 2

Autora: AA
Ré: A..., S.A.

_______
Nélson Fernandes (relator)
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

1. AA intentou ação, com processo comum emergente de contrato individual de trabalho, contra A..., S.A., pedindo que a Ré seja condenada:

- a reconhecer que a baixa de categoria e de remuneração, operada em 1.7.2009, foi inválida e abusiva, e na anulação e na reversão da situação e a repor-lhe a categoria de chefe de secção e a remuneração mensal de base de 1.781€, com efeitos retroativos (mês a mês, verba a verba), com as consequências legais: i- do pagamento das diferenças salariais: (1.781€ - 960€) x 13 anos x 11 m = 117.403,00€; ii- do recálculo e pagamento das diferenças nos valores processados nos recibos a título de: a) 25% de acréscimo por trabalho noturno [diferenças de 270 horas x (10,28€ - 6,92€) x 25% = 226,80€], b) subsídio de domingo [diferenças de 906,5h x (10,28€ - 6,92€) = 3.045,84€], c) horas extra aos domingos [diferenças de 217,5h x (10,28€ - 6,92€) x 200% = 1.461,60€], d) horas extra em feriados [diferenças de 55h x (10,28€ - 6,92€) x 200% = 369,60€], e) horas extra e trabalho em feriados [diferenças de 86hs x (10,28€ - 6,92€) = 288,96€], f) prémios (diferença de 1.924,22€), g) prestação discricionária (diferença de 863,76€), h) retribuições variáveis de 5% do salário bruto anual/bónus anual (diferença de 4.261,41€) e de i) bónus de incentivo excecional de 12/2020 (diferença de 513,13€);

- a atualizar a remuneração da Autora de 2008 (inclusive) em diante (mês a mês, verba a verba): a- com os aumentos salariais dos chefes de secção - ou a média anual dos aumentos desses trabalhadores - de 2008 em diante b- subsidiariamente com os aumentos salariais dos operadores principais – ou a média anual dos aumentos desses trabalhadores - de 2008 em diante c- ou com os aumentos salariais dos trabalhadores em geral - ou a média anual desses aumentos - de 2008 em diante, d- no valor mínimo da taxa de inflação (total acumulado de 15,9%), com as consequências legais do pagamento das diferenças salariais na remuneração de base e nos valores processados nos recibos aos títulos indicados na alínea ii) do artº 38º supra, por esse fator.

- tudo com juros legais a contar da data do vencimento das quantias respetivas.

Para o efeito, muito em síntese, alega que a Ré baixou a sua categoria, com redução da sua retribuição, mantendo as mesmas funções, sem autorização do ACT.

Regularmente citada, apresentou-se a Ré a contestar, começando por excecionar a prescrição dos créditos vencidos há mais de cinco anos, o abuso de direito da Autora e uma declaração desta de 2011 que refere nada mais ter a receber, mais aceitando que a baixa de categoria e da retribuição não foram sujeitas a autorização do ACT, mas já não que a Autora ficou com as mesmas funções.

Depois de fixado o valor da ação em €130.358,32, na fase de saneamento dos autos, fez-se constar o seguinte:

“Não há excepções dilatórias a apreciar, nem se mostra necessário o convite das partes para aperfeiçoamento dos articulados (art. 61º, 1, CPT).

Relega-se para final o conhecimento da excepção peremptória da prescrição invocada pela ré

A causa não tem complexidade que justifique a convocação de audiência prévia (art. 62º, 1, CPT).

Prescinde-se da indicação do objecto do litígio e da selecção dos temas de prova pela sua simplicidade (art. 49º, 3, CPT).”

Seguindo os autos os seus termos subsequentes, depois de realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta:

“Decisão

137. Julga-se a acção parcialmente procedente e condena-se a ré A..., S.A a reconhecer que a baixa de categoria e de remuneração da autora AA, operada em 1.7.2009 (um de Julho de dois mil e nove), foi inválida e abusiva, e na anulação e na reversão da situação e a repor à autora a categoria de chefe de secção e a remuneração mensal de base de 1.781€ (mil setecentos e oitenta e um euros), com efeitos retroativos (mês a mês, verba a verba), com as consequências legais:

138. I - no pagamento das diferenças salariais: 117.403,00€ (cento e dezassete mil quatrocentos e três euros);

139. II - no recálculo e pagamento das diferenças nos valores processados nos recibos a título de:

a) acréscimo por trabalho noturno: 226,80€ (duzentos e vinte e seis euros e oitenta cêntimos)

b) subsídio de domingo: 3.045,84€ (três mil e quarenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos);

c) horas extra aos domingos: 1.461,60€ (mil quatrocentos e sessenta e um euros e sessenta cêntimos),

d) horas extra em feriados: 369,60€ (trezentos e sessenta e nove euros e sessenta cêntimos),

e) horas extra e trabalho em feriados: 288,96€ (duzentos e oitenta e oito euros e noventa e seis cêntimos),

f) prestação discricionária: 489,01€ (quatrocentos e oitenta e nove euros e um cêntimo);

g) retribuições variáveis de 5% do salário bruto anual/bónus anual: 2.412,54€ (dois mil quatrocentos e doze euros e cinquenta e quatro cêntimos).

140. tudo com juros legais a contar da data do vencimento das respectivas quantias.

141. Do mais pedido, absolve-se a ré.

142. Custas por ambas as partes na proporção do decaimento.

143. Registe e notifique.”

2. Não se conformando com o assim decidido, apresentou a Ré requerimento de interposição de recurso, finalizando as suas alegações com as conclusões seguintes:

“1. O presente recurso vem interposto da sentença proferida no dia 21 de Julho de 2023, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré (doravante Recorrente) a reconhecer que a baixa de categoria e de remuneração da Autora AA (doravante Recorrida), operada em 1.7.2009 (um de Julho de dois mil e nove), foi inválida e abusiva, e na anulação e na reversão da situação e a repor à Autora a categoria de chefe de secção e a remuneração mensal de base de 1.781€ (mil setecentos e oitenta e um euros), com efeitos retroactivos (mês a mês, verba a verba), com as consequências legais: I – no pagamento das diferenças salariais: 117.403,00€ (cento e dezassete mil quatrocentos e três euros); II – no recálculo e pagamento das diferenças nos valores processados nos recibos a título de: a) acréscimo por trabalho noturno: 226,80€ (duzentos e vinte e seis euros e oitenta cêntimos) b) subsídio de domingo: 3.045,84€ (três mil e quarenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos); c) horas extra aos domingos: 1.461,60€ (mil quatrocentos e sessenta e um euros e sessenta cêntimos), d) horas extra em feriados: 369,60€ (trezentos e sessenta e nove euros e sessenta cêntimos), e) horas extra e trabalhos em feriados: 288,96€ (duzentos e oitenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), f) prestação discricionária: 489,01€ (quatrocentos e oitenta e nove euros e um cêntimo); g) retribuições variáveis de 5% do salário bruto anual/bónus anual: 2.412,54€ (dois mil quatrocentos e doze euros e cinquenta e quatro cêntimos), tudo com juros legais a contar da data do vencimento das respectivas quantias, doravante designada por «decisão recorrida».

2. Nos termos do disposto no artigo 334.º, do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

3. Os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica.

4. Os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu, pelo que, se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, haverá abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.

5. Existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.

6. Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se, entre outras, a figura do «venire contra factum proprium». Na sua estrutura, o «venire» pressupõe duas condutas da mesma pessoa. Ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o «factum proprium») é contraditada pela segunda (o «venire»), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito.

7. A Recorrente, entre Abril e Agosto de 2009, iniciou procedimento de despedimento colectivo por motivos de mercado e estruturais – redução de vendas, de margem, aumento de custos operacionais e resultados líquidos negativos – procedendo, nomeadamente, à extinção e/ou reorganização de várias secções dentro de cada loja, e ao despedimento de trabalhadores entres os quais chefes de secção, tendo sido eliminadas/reestruturadas diversas secções e eliminados vários postos de trabalho, incluindo chefe de secção, na loja de Vila Nova de Gaia – factos provados 46, 47 e 48; em 21 de Abril de 2009, a Recorrida assinou o documento denominado «ACORDO» (doc. n.º 5, junto com a petição inicial), no qual reconheceu expressamente a mudança de categoria profissional e redução da retribuição percebida – facto provado 27, e a Recorrida teria sido abrangida em procedimento de despedimento colectivo (com cessação do contrato de trabalho), caso não tivesse havido acordo – facto provado 49.

8. A Recorrida, que entre 01 de Fevereiro de 1991 e 30 de Julho de 2009, foi classificada pela Recorrente como «chefe de secção», ACEITOU alterar a sua situação contratual, celebrando com a Recorrente, em 21 de Abril de 2009, acordo escrito constante do documento denominado

«ACORDO» (doc. n.º 5, junto com a petição inicial), no qual reconheceu e aceitou expressamente a mudança de categoria profissional e redução da retribuição percebida, passando a ter a categoria profissional de «operadora principal» a partir de 01 de Julho de 2009.

9. A Recorrida nunca reclamou junto da Recorrente a redução da sua categoria profissional, e nunca reclamou junto da Recorrente a redução da sua retribuição – facto provado 54.

10. A Recorrente, neste enquadramento, ficou no aceitável convencimento de que a Recorrida, desde 01 de Julho de 2009, ou seja, há cerca de 13 anos, se encontrava efectivamente adstrita à categoria profissional de «operadora principal» e a perceber correctamente a retribuição respeitante à aludida categoria profissional, e tendo-se mantido esta situação, durante cerca de 13 anos, sem qualquer reparo por parte da Recorrida, uma vez que nunca manifestou junto da Recorrente, vontade de alterar a categoria profissional a que estava adstrita, e nunca manifestou junto da Recorrentes vontade de alterar a retribuição que percebia, sendo certo que a Recorrida ACEITOU alterar a sua situação contratual, celebrando com a Recorrente, em 21 de Abril de 2009, acordo escrito constante do documento denominado «ACORDO» (doc. n.º 5, junto com a petição inicial), no qual reconheceu e aceitou expressamente a mudança de categoria profissional e redução da retribuição percebida, passando a ter a categoria profissional de «operadora principal» a partir de 01 de Julho de 2009, mais se cimentou entre as partes, especialmente na Recorrente, o convencimento de que a Recorrida, desde 01 de Julho de 2009, ou seja, há cerca de 13 anos, se encontrava efectivamente adstrita à categoria profissional de «operadora principal» e a perceber correctamente a retribuição respeitante à aludida categoria profissional.

11. A Recorrida, ao propor a presente acção, actuou com abuso do direito na modalidade «venire contra factum proprium», nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, porque sendo embora detentora do direito de propor a presente acção, exercita-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, claramente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente por criar uma desproporção objectiva entre a utilidade que pretende alcançar e as consequências a suportar pela Recorrente contra a qual é invocado.

12. Porém, caso assim não seja entendido, como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se, entre outras, a da «suppressio», que, tal como, aliás, o «venire», tem a sua razão de ser no princípio da confiança enquanto exigência de que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido conduzidas a acreditar na manutenção de determinados comportamentos da comunidade humana, que se encontra organizada na base de relacionamentos estáveis, em que cada um deve ser congruente, não mudando, constante e arbitrariamente, de condutas, mormente que sejam prejudiciais para outrem, funcionando, assim, como modalidade ou sub-modalidade do «venire», na qual o «factum» esteja diluído no tempo.

13. A Recorrida, que entre 01 de Fevereiro de 1991 e 30 de Julho de 2009, foi classificada pela Recorrente como «chefe de secção», ACEITOU alterar a sua situação contratual, celebrando com a Recorrente, em 21 de Abril de 2009, acordo escrito constante do documento denominado «ACORDO» (doc. n.º 5, junto com a petição inicial), no qual reconheceu e aceitou expressamente a mudança de categoria profissional e redução da retribuição percebida, passando a ter a categoria profissional de «operadora principal» a partir de 01 de Julho de 2009.

14. A Recorrida nunca reclamou a redução da sua categoria profissional, nem a redução da sua retribuição, tendo-se mantido esta situação, durante cerca de 13 anos, sem qualquer reparo por parte da Recorrida, uma vez que, até à data da propositura da presente acção [20 de Junho de 2022], nunca manifestou junto da Recorrente, vontade de alterar a categoria profissional a que estava adstrita, e nunca manifestou junto da Recorrentes vontade de alterar a retribuição que percebia.

15. À inação eloquente da Recorrida não terá sido certamente estranho o facto de Recorrente, entre Abril e Agosto de 2009, ter iniciado procedimento de despedimento colectivo por motivos de mercado e estruturais, isto é, para fazer face à redução de vendas, de margem, aumento de custos operacionais e resultados líquidos negativos, bem como não terá sido certamente estranho à inação eloquente da Recorrida o facto de o acordo (constante do documento denominado «ACORDO» [doc. n.º 5, junto com a petição inicial], no qual reconheceu e aceitou expressamente a mudança de categoria profissional e redução da retribuição percebida, passando a ter a categoria profissional de «operadora principal» a partir de 01 de Julho de 2009) e aceitação ter permitido a não inserção da mesma no âmbito do aludido despedimento colectivo, conforme resulta dos factos provados 46 e 49.

16. A Recorrida, ao propor a presente acção, actuou com abuso do direito, nos termos previsto no artigo 334.º, do Código Civil, tomando em consideração que entre 01 de Fevereiro de 1991 e 30 de Julho de 2009, foi classificada pela Recorrente como «chefe de secção», tomando em consideração que ACEITOU alterar a sua situação contratual, celebrando com a Recorrente, em 21 de Abril de 2009, acordo escrito constante do documento denominado «ACORDO» (doc. n.º 5, junto com a petição inicial), no qual reconheceu e aceitou expressamente a mudança de categoria profissional e redução da retribuição percebida, passando a ter a categoria profissional de «operadora principal» a partir de 01 de Julho de 2009, tomando em consideração que a Recorrente, entre Abril e Agosto de 2009, iniciou procedimento de despedimento colectivo por motivos de mercado e estruturais – redução de vendas, de margem, aumento de custos operacionais e resultados líquidos negativos – procedendo, nomeadamente, à extinção e/ou reorganização de várias secções dentro de cada loja, e ao despedimento de trabalhadores entres os quais chefes de secção, tendo sido eliminadas/reestruturadas diversas secções e eliminados vários postos de trabalho, incluindo chefe de secção, na loja de Vila Nova de Gaia – factos provados 46, 47 e 48, e tomando em consideração que, a Recorrida teria sido abrangida em procedimento de despedimento colectivo (com cessação do contrato de trabalho), caso não tivesse havido acordo – facto provado 49.

17. A Recorrida, ao propor a presente acção, actuou com abuso do direito, na modalidade «suppressio», nos termos previsto no artigo 334.º, do Código Civil, porque sendo embora detentora do direito de propor a presente acção, exercita-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, claramente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente por criar uma desproporção objectiva entre a utilidade que pretende alcançar e as consequências a suportar pela Recorrente contra a qual é invocado, pois a inércia e inação da Recorrida durante cerca de 13 anos, acompanhada da aceitação da mesma em alterar a respectiva situação contratual, e considerando o facto de aquele acordo ter permitido a não inserção da Recorrida em procedimento de despedimento colectivo, criou na Recorrente a representação de que o direito que a Recorrida pretende exercer com a presente acção não seria mais exercido, conduzindo o seu exercício tardio a uma desvantagem injustificada para aquela.

18. Nestes termos, a decisão recorrida, ao não ter considerado que a Recorrida, ao propor a presente acção, actuou com abuso do direito na modalidade, que é uma excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, nos termos previstos no artigo 579.º, do Código de Processo Civil, e ao condenar a Recorrente em reconhecer que a baixa de categoria e remuneração, operada em 01.07.2009, foi inválida e abusiva, bem como ao condenar a Recorrente a pagar as diferenças salariais no pagamento das diferenças salariais no valor de € 117.403,00 (cento e dezassete mil quatrocentos e três euros); e no pagamento das diferenças nos valores processados nos recibos a título de: a) acréscimo por trabalho noturno: € 226,80 (duzentos e vinte e seis euros e oitenta cêntimos) b) subsídio de domingo: € 3.045,84 (três mil e quarenta e cinco euros e oitenta e quatro cêntimos); c) horas extra aos domingos: €1.461,60 (mil quatrocentos e sessenta e um euros e sessenta cêntimos), d) horas extra em feriados: € 369,60 (trezentos e sessenta e nove euros e sessenta cêntimos), e) horas extra e trabalhos em feriados: € 288,96 (duzentos e oitenta e oito euros e noventa e seis cêntimos), f) prestação discricionária: € 489,01 (quatrocentos e oitenta e nove euros e um cêntimo); g) retribuições variáveis de 5% do salário bruto anual/bónus anual: € 2.412,54 (dois mil quatrocentos e doze euros e cinquenta e quatro cêntimos), tudo com juros legais a contar da data do vencimento das respectivas quantias, violou o disposto no artigo 334.º, do Código Civil.”

Conclui que deve ser concedido integral provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida.

2.1. Notificada das alegações de recurso, apresentou a Autora requerimento em que renuncia “à contra-alegação”, requerendo que os autos subam à Relação.

2.2. O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e, após prestação de caução, efeito suspensivo.

3. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.

3.1. Em resposta ao parecer, veio a Recorrente manifestar a sua discordância, reafirmando as razões que já invocara em sede do recurso que apresentou.


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Corridos os vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir:

II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso – artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável “ex vi” do artigo 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, a única questão a decidir prende-se com saber se a decisão recorrida aplicou adequadamente o direito ao ter considerado, com as consequências que afirmou, não ocorrer abuso de direito por parte da Autora.


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III – Fundamentação

A) Fundamentação de facto

O tribunal recorrido considerou como factos provados o seguinte (transcrição):

“12. A Ré tem por objecto social a importação e o comércio por grosso ou a retalho de bens alimentares, bens de consumo e bens para utilização profissional, a transformação de alimentos, nomeadamente carne, peixe, legumes, frutas e verduras, tabaco, bem como a exploração e gestão de restaurantes e outros serviços de alimentação e restauração.

13. A A. foi admitida pela R. em 9.7.1990, para lhe prestar serviço na loja de Matosinhos, como operadora de informática, sob as suas ordens e direção, mediante contrato de trabalho a termo certo escrito com a remuneração mensal ilíquida de 65.000$00.

14. Por acordo com a R., em 1.11.1990 a A. iniciou um estágio para a função de chefe de operadores de informática da loja de Vila Nova de Gaia da R., para onde foi transferida, a título definitivo, com a duração de três meses, passando a auferir um complemento mensal fixo de 35.000$00, sendo que no final, mediante avaliação positiva, ascendia à categoria de chefe de operadores de informática e o complemento passava a integrar a remuneração de base.

15. Em 11.2.1991 a A. foi confirmada como chefe do setor de informática (da loja de Vila Nova de Gaia).

16. Em 8.1.1992 a R. comunicou à A. que o seu o contrato de trabalho foi convolado para contrato sem termo, com efeitos retroativos à data de admissão.

17. Desde 1.2.1991 a 30.6.2009 a R. classificou a A. como chefe de secção, nomeadamente apondo nos recibos mensais, todos os meses, a sua categoria de chefe de secção.

18. A A. foi chefe do sector de informática de fevereiro de 1991 a 1992.

19. Depois e até 1995 a A. foi chefe de secção da receção de mercadorias (RM).

20. No RM a A. organizava, dirigia e coordenava a respetiva área administrativa, nomeadamente o carregamento no sistema de faturas, guias remessa, listagens, chefiando uma equipa de cinco operadores, por que era responsável.

21. De 1996 a 30.6.2009 passou para a loja, tendo como funções:

a- o estudo, a análise, a organização e a gestão de stocks (stocks negativos, stocks obsoletos, artigos não vendáveis, devoluções, lançamentos de correções de stocks)

b- a responsabilidade pelos inventários parciais e gerais e respetiva coordenação

c- a análise de problemas de stocks suscitados na loja, coordenando a sua resolução

d- a organização de mapas informáticos, com valores de vendas e de quebras, controlo de falhas de stocks e reposições

e- alterações de preços no sistema (caso necessário)

f- assegurar o cumprimento das normas e procedimentos aplicáveis à sua função, coordenando o pessoal da loja, no sentido de cumprirem e de atualizarem os processos sob sua responsabilidade

g- prestava serviço de permanência à direção de loja por escala (envolvendo a responsabilidade pelo funcionamento da loja)

h- elaborava orçamentos/objetivos de venda e de quebra para o pessoal da loja

i- fazia o reporte e a ligação ao departamento central de informática, da R., em Lisboa, gerindo e tratando todo o tipo de avarias e acessos, balanças e consumíveis de informática, para o normal funcionamento da loja.

22. Em 1.7.2009 a R. baixou a categoria da A. de chefe de secção para operadora principal, e a respetiva remuneração, que era de 1.781,00€, para 960,00€, acrescida de 240,00€ por isenção de horário de trabalho (IHT), regime em que passou a trabalhar, «não lhe sendo devido qualquer pagamento a título de trabalho suplementar em dia normal de trabalho».

23. A R. invocou junto da A. que ou aceitava esta situação ou era despedida por reestruturação e extinção do posto de trabalho, por motivo de redução acentuada do volume de vendas, no âmbito do despedimento coletivo que tinha em curso.

24. A A. nasceu no dia ../../1957.

25. A A. não tinha, nem tem, habilitações académicas de nível superior.

26. O marido da A. estava então desempregado e não tinha rendimentos.

27. Receando o futuro e o desemprego, a A. aceitou a baixa de categoria e a redução da retribuição.

28. A partir do dia 1.7.2009 a A. passou a ser classificada pela R. com a categoria profissional de operadora principal e a auferir a remuneração mensal de base de 960,00€, acrescida de 240,00€ de remuneração especial por IHT, quando antes era chefe de secção e auferia a remuneração mensal de base de 1.781,00€.

29. A R. não submeteu a baixa de categoria e de remuneração a autorização da ACT,

30. A A. manteve as mesmas funções que tinha anteriormente a essa data (21º supra), no mesmo espaço/sala (posto de trabalho), incluindo até Julho de 2016, o serviço de permanência à direção de loja por escala.

31. Em 2.11.2009, em acréscimo às funções que a A. tinha, a R. atribuiu-lhe ainda a total responsabilidade pela secção de Receção de Mercadorias (RM), composta pela área administrativa e pela área operacional, com responsabilidade por cinco elementos [BB, CC e DD, EE e FF, estes dois últimos que a R. também classificava como operadores principais.

32. A responsabilidade total pelo RM envolvia organizar, dirigir, coordenar e controlar o trabalho da secção, de modo a assegurar o correto funcionamento das atividades, de acordo com os procedimentos e objectivos fixados pelo diretor da loja, a quem a A. informava e reportava.

33. A função de chefia do RM implicava também:

b- a avaliação dos seus subordinados

c- a classificação das suas ausências para processamento

d- a autorização das respetivas férias e alterações

f- levantar e relatar as necessidades de formação desses elementos

g- e a participação em reunião de chefias e em formações próprias das chefias.

34. A Autora exerceu essas funções e a responsabilidade pelo RM até 2020.

35. A R. mantém a A. na categoria de operadora principal.

36. Para além da retribuição base e retribuição pela isenção de horário de trabalho, à autora foram pagas, nomeadamente, as seguintes quantias: a) 25% de acréscimo por trabalho noturno, total de horas 270h, correspondentes a : (16h = 27,68€, 10/09) + (10h = 17,30€, 11/09) + (5h = 8,65€, 12/09) + (4h = 6,92€, 1/10) + (3h = 5,19€, 3/10) + (11h = 19,03€, 4/10) + (4h = 6,92€, 5/10) + (4h = 6,92€, 7/10) + (4h = 6,92€, 8/10) + (2h30 = 4,33€, 9/10) + (7h = 12,11€, 10/10) + (2h = 3,46€, 11/10) + (3h = 5,19€, 12/10) + (3h30 = 6,06€, 1/11) + (6h30 = 11,25€, 2/11) + (8h30 = 14,71€, 3/11) + (3h = 5,19€, 4/11) + (9h30 = 16,44€, 5/11) + (6h30 = 11,25€, 6/11) + (8h = 13,84€, 7/11) + (5h30 = 9,52€, 8/11) + (3h = 5,19€, 9/11) + (8h = 13,84€, 10/11) + (6h = 10,38€, 11/11) + (4h30 = 7,79€, 12/11) + (3h = 5,19€, 1/12) + (5h = 8,65€, 2/12) + (3h = 5,19€, 3/12) + (3h30 = 6,06€, 4/12) + (3h = 5,19€, 5/12) + (6h30 = 11,25€, 6/12) + (4h = 6,92€, 7/12) + (3h30 = 6,06€, 8/12) + (6h = 10,38€, 9/12) + (3h = 5,19€, 10/12) + (5h30 = 9,52€, 11/12) + (5h = 8,65€, 12/12) + (6h = 10,38€, 1/13) + (1h = 1,73€, 2/13) + (1h = 1,73€, 3/13) + (1h = 1,73€, 4/13) + (4h = 6,92€, 5/13) + (4h30 = 7,79€, 6/13) + (3h = 5,19€, 7/13) + (4h = 6,92€, 8/13) + (3h30 = 6,06€, 9/13) + (2h = 3,46€, 10/13) + (2h = 3,46€, 11/13) + (1h30 = 2,60€, 12/13) + (2h30 = 4,33€, 1/14) + (1h = 1,73€, 4/14) + (2h30 = 4,33€, 5/14) + (3h = 5,19€, 6/14) + (2h = 3,46€, 7/14) + (30m = 0,87€, 8/14) + (1h = 1,73€, 9/14) + (4h = 6,92€, 10/14) + (1h30 = 2,60€, 11/14) + (1h30 = 2,60€, 1/15) + (2h = 3,46€, 10/15) + (2h = 3,46€, 11/15) + (1h = 1,73€, 1/16) + (1h30 = 2,60€, 2/16) + (1h = 1,73€, 3/16) + (1h30 = 2,60€, 4/16) + (1h30 = 2,60€, 10/16) + (7h30 = 12,98€, 1/17);

37. b) subsídio de domingo, total de horas 906h30, correspondentes a : (7h = 48,44€, 9/09) + (7h30 = 51,90€, 10/09) + (14h = 96,88€, 1/10) + (8h30 = 58,82€, 2/10) + (5h30 = 38,06€, 3/10) + (6h30 = 44,98€, 4/10) + (6h30 = 44,98€, 7/10) + (9h = 62,28€, 11/10) + (6h30 = 44,98€, 12/10) + (7h = 48,44€, 1/11) + (10h = 69,20€, 7/11) + (20h = 138,40€, 8/11) + (9h = 62,28€, 9/11) + (4h = 27,68€, 11/11) + (17h = 117,64€, 12/11) + (8h = 55,36€, 1/12) + (9h = 62,28€, 2/12) + (18h = 124,56€, 3/12) + (18h = 124,56€, 4/12) + (9h = 62,28€, 5/12) + (18h = 124,56€, 6/12) + (9h = 62,28€, 5/12) + (18h = 124,56€, 6/12) + (9h = 62,28€, 7/12) + (18h = 124,56€, 8/12) + (18h = 124,56€, 9/12) + (26h = 179,92€, 10/12) + (13h = 89,96€, 11/12) + (8h = 55,36€, 12/12) + (16h = 110,72€, 1/13) + (18h = 124,56€, 2/13) + (18h = 124,56€, 3/13) + (18h = 124,56€, 4/13) + (9h = 62,28€, 5/13) + (18h = 124,56€, 6/13) + (18h = 124,56€, 7/13) + (9h = 62,28€, 8/13) + (18h = 124,56€, 9/13) + (9h = 62,28€, 10/13) + (18h = 124,56€, 11/13) + (8h = 55,36€, 12/13) + (16h = 110,72€, 1/14) + (9h = 62,28€, 2/14) + (18h = 124,56€, 3/14) + (18h = 124,56€, 4/14) + (18h = 124,56€, 5/14) + (9h = 62,28€, 6/14) + (18h = 124,56€, 7/14) + (15h = 103,80€, 9/14) + (18h = 124,56€, 10/14) + (18h = 124,56€, 11/14) + (18h = 124,56€, 12/14) + (16h = 110,72€, 1/15) + (18h = 124,56€, 2/15) + (18h = 124,56€, 4/15) + (18h = 124,56€, 5/15) + (18h = 124,56€, 6/15) + (18h = 124,56€, 7/15) + (18h = 124,56€, 9/15) + (9h = 62,28€, 10/15) + (5h30 = 38,06€, 11/15) + (6h = 41,52€, 12/15) + (16h = 110,72€, 1/16) + (11h30 = 79,58€, 2/16) + (6h = 41,52€, 3/16) + (5h30 = 38,06€, 5/16) + (6h = 41,52€, 8/16) + (6h = 41,52€, 5/17) + (2h30 = 17,30€, 10/17) + (7h = 48,44€, 1/18) + (6h = 41,52€, 4/19) + (6h30 = 44,98€, 7/19);

38. c) horas extra aos domingos, total de horas 217h40, correspondentes a : (15h = 207,60€, 12/09) + (26h30 = 336,76€, 2/10) + (3h30 = 48,44€, 3/10) + (10h30 = 145,32€, 11/10) + (14h = 193,76€, 11/11) + (16h30 = 171,27€, 10/13) + (14h = 193,76€, 10/15) + (4h = 55,36€, 3/17) + (6h = 83,04€, 6/17) + (10h40 = 146,98€, 10/17) + (6h45 = 92,31€, 2/18) + (8h = 104,91€, 6/18) + (13h = 181,30€, 11/18) + (6h45 = 92,04€, 3/19) + (5h45 = 78,61€, 6/19) + (16h30 = 228,36€, 10/19) + (4h15 = 57,71€, 11/19) + (7h = 96,88€, 2/20) + (7h = 96,88€, 2/21) + (15h30 = 214,52€, 8/21) + (6h30 = 89,96€, 3/22);

39. d) horas extra em feriados, total de horas 55h, correspondentes a : (7h = 96,88€, 9/09) + (7h30 = 103,80€, 9/10) + (8h = 110,72€, 1/11) + (8h = 110,72€, 4/11) + (1h30 = 17,99€, 7/11) + (8h = 110,72€, 1/12) + (8h = 110,72€, 5/12) + (1h = 13,84€, 6/12) + (6h = 83,04€, 7/12);

40. e) horas extra e trabalho em feriados, total de horas 86h, correspondentes a : (6h30h = 44,98€, 11/12) + (12h = 83,04€, 12/12) + (8h = 55,36€, 1/16) + (6h = 41,52€, 3/16) + (16h = 110,72€, 1/17) + (6h = 41,52€, 3/17) + (8h = 55,36€, 9/17) + (7h30 = 51,90€, 6/18) + (8h = 55,36€, 12/18) + (8h = 55,36€, 1/19);

41. f) prémios: 450€ (9/09) + 1.200€ (5/10) + 600€ (4/11) = 2.250€;

42. g) prestação discricionária: 1.010€ (1/11);

43. h) retribuições variáveis de 5% do salário bruto anual (bónus anual) : 600€ (6/17) + 1.108,80€ (2/18) + 600€ (7/18) + 1.078,09€ (2/19) + 1.150,80€ (2/20) + 67,20€ (2/21) + 378€ (1/22) = 4.982,89€;

44. bónus de incentivo excecional de 12/2020 – 600€.

45. A R. nunca mais atualizou a remuneração mensal da A.”

“46. Entre abril e agosto de 2009 a Ré levou a cabo um procedimento de despedimento coletivo, por motivos de mercado e estruturais – redução de vendas, de margem, aumento de custos operacionais e resultados líquidos negativos da Ré.

47. No âmbito desse procedimento, a Ré procedeu, nomeadamente, à extinção e/ou reorganização de várias seções dentro de cada loja, e ao despedimento de trabalhadores entre os quais chefes de secção.

48. No caso da loja de V.N. Gaia, como em outras lojas, foram eliminadas/ reestruturadas diversas secções, e eliminados vários postos de trabalho, incluindo de Chefe de Secção em número não apurado.

49. Se não fosse o acordo de redução da categoria profissional e de redução da remuneração base mensal, a Autoria teria sido abrangida pelo despedimento coletivo e o seu contrato cessado.

50. A cláusula 5 do acordo refere que “as alterações decorrem da extinção do posto de trabalho habitual de GG, resultante de reestruturação provocada por motivos de natureza económica e tecnológica, mormente uma acentuada redução do volume de vendas”.

51. Em 2010/2011 a Autora reclamou da falta de pagamento de trabalho suplementar e descanso compensatório, motivo pelo qual em Janeiro de 2011 a Ré propôs à Autora o pagamento de €1.010,00.

52. E a Autora aceitou essa proposta, como emitiu uma declaração referindo que “(…) com a receção do valor referido nada mais tenho a reclamar, relativamente a créditos vencidos até à presente data”.

53. Em janeiro de 2011 a Autora recebeu a quantia ilíquida de €1.010,00.

54. A Autora nunca reclamou junta da Ré a redução da sua categoria, nem da redução da sua retribuição.”


***

B) Discussão

Não resultando das conclusões do recurso que neste se impugne também a matéria de facto, nem se justificando a intervenção oficiosa deste Tribunal de recurso, o quadro factual a atender é aquele que foi firmado na sentença e que antes transcrevemos.

O objeto do presente recurso, em face das conclusões apresentadas e que citámos antes no relatório, centra-se em saber se, tal como a Recorrente defende, a sentença recorrida errou na aplicação da lei e do direito ao não ter considerado existir abuso de direito por parte da Autora / recorrida.

Não tendo sido apresentadas contra-alegações e pronunciando-se o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, pela improcedência do recurso, cumprindo-nos apreciar, constata-se que o Tribunal recorrido fez constar da decisão recorrida nomeadamente o seguinte (transcrição):

“(…) 3ª questão - se existe abuso de direito

110. A ré defende que existe abuso de direito da autora ao invocar a nulidade do acordo por falta de autorização do ACT porque: “(i) em relação ao acordo apenas estaria em falta a autorização da ACT; (ii) a celebração desse acordo evitou o despedimento da Autora, por motivos objetivos; (iii) em cerca de 13 anos, a Autora nunca reclamou desse acordo, ou da falta de autorização da ACT; (iv) nesse período apenas reclamou da falta de pagamento de trabalho suplementar, tendo feito acordo com a Ré; (v) a Autora deixou de desempenhar o cargo de Chefe de Secção.”

111. O abuso de direito é um instituto previsto no art. 334º do Código Civil:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

112. Primeiro, há que dizer que não foi a autora que deu causa à falta de autorização do ACT. Aliás, a ré apenas alegou, mas não provou, que essa falta era do conhecimento da Autora e que ela anuiu com esse procedimento.

113. Por outro lado, não se vê qual a relevância para o abuso de direito do acordo ter evitado o despedimento da autora. O ACT não teria autorizado? Desconhece-se.

114. A falta de reclamação da autora durante treze anos é inócua.

115. Finalmente, os factos provados contradizem a alegação da ré de que a autora deixou de desempenhar o cargo de chefe de secção. Na verdade, ela continuou a desempenhar essas funções. O que afasta qualquer abuso de direito da autora.

116. Improcede, assim, também esta excepção peremptória (…)”

Cumprindo-nos apreciar, em termos de enquadramento sobre a questão que nos é colocada, diremos então o seguinte:

Pressupondo o abuso de direito a existência do direito mas em que o seu exercício, porque excedendo os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, é considerado ilegítimo[1], no que ao caso importa, a argumentação da Recorrente, com o objetivo de demonstrar o erro de julgamento na decisão recorrida, assenta em particular na invocação do designado venire contra factum proprium, que fundamenta na circunstância, diz, de, tendo iniciado em 2009 um procedimento de despedimento coletivo por motivos de mercado e estruturais, procedendo, nomeadamente, à extinção e/ou reorganização de várias secções dentro de cada loja, e ao despedimento de trabalhadores entres os quais chefes de secção, tendo sido eliminadas/reestruturadas diversas secções e eliminados vários postos de trabalho, incluindo chefe de secção, na loja de Vila Nova de Gaia – factos provados 46, 47 e 48; em 21 de Abril de 2009, a Autora / recorrida ter assinado um “documento denominado «ACORDO» (doc. n.º 5, junto com a petição inicial), no qual reconheceu expressamente a mudança de categoria profissional e redução da retribuição percebida – facto provado 27, e a Recorrida teria sido abrangida em procedimento de despedimento colectivo (com cessação do contrato de trabalho), caso não tivesse havido acordo – facto provado 49”, sendo que, acrescenta, a mesma Autora nunca reclamou perante si a redução da sua categoria profissional e a redução da sua retribuição – facto provado 54, razão pela qual, refere por fim, ficando ainda no convencimento, criando essa confiança, de que aquela aceitara alterar a sua situação contratual, ao propor a presente ação está a atuar com abuso do direito.

Não lhe assiste, porém, razão, como veremos de seguida.

É que, no contexto fáctico com que nos deparamos, em face do que se provou no caso, não se pode concluir que a pretensão da Autora, formulada na ação, se traduza, como o defende a Recorrente, em exercício abusivo do direito, nos quadros previstos no artigo 334.º do Código Civil (CC), que prevê as situações em que, como já o referimos, o exercício de um determinado direito, pelo seu titular, na sua atuação, exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito.

Como é reconhecido, da formulação desse instituto resulta a consideração de que, para que o exercício do direito seja considerado abusivo, não bastará que o mesmo cause prejuízos a outrem, tornando-se ainda necessário que o titular exceda, de modo visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça[2].

Acolheu o nosso sistema jurídico, como tem sido afirmado, uma conceção objetiva do abuso de direito, não sendo, pois, necessário que exista consciência, por parte de quem exerce o direito, de que esse exercício é abusivo.

De entre os casos subsumíveis ao abuso do direito insere-se o normalmente designado comportamento típico abusivo, que se traduz num venire contra factum proprium, sendo que, como refere Menezes Cordeiro[3], a supressio “visa o comportamento do agente, cuja inacção deveria ser penalizada; ela visa proteger o beneficiário, na sua confiança de que não haverá exercício”. De acordo com João Baptista Machado[4], a confiança digna de tutela deve radicar numa conduta de alguém, titular de um direito, que, de facto, possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada conduta futura, de tal modo que a situação de confiança gerada pela anterior conduta do titular do direito conduz, objectivamente, a uma expectativa legítima de que o direito já não será exercido, expectativa que determina aquele contra quem o direito vem a ser invocado a agir, exclusivamente com base na situação de confiança, contra o interesse do titular do direito.

A propósito do analisado venire contra factum proprium, que se caracteriza pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente, escreve-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2016[5], citando por sua vez o Acórdão do mesmo Tribunal de 16/11/2011, que “(...) na sua estrutura, o “venire” pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito.” Nestas situações, a paralisação do direito é justificada pela tutela da confiança, resultante da anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira, no dizer de Baptista Machado, acima citado.”

Ora, na aplicação ao caso do regime anteriormente referido, consideramos que, face à factualidade provada, o comportamento da Autora, nas circunstâncias do caso, tal como afirmado na sentença recorrida não se integra no exercício abusivo do direito – de modo é certo sintético, assim dizendo-se: em primeiro lugar, “que não foi a autora que deu causa à falta de autorização do ACT” (“aliás, a ré apenas alegou, mas não provou, que essa falta era do conhecimento da Autora e que ela anuiu com esse procedimento”), por outro lado, que não tem “relevância para o abuso de direito do acordo ter evitado o despedimento da autora” (perguntando-se se “o ACT não teria autorizado”), como ainda que “a falta de reclamação da autora durante treze anos é inócua” e, finalmente, que “os factos provados contradizem a alegação da ré de que a autora deixou de desempenhar o cargo de chefe de secção” (“na verdade, ela continuou a desempenhar essas funções”.

Efetivamente, a respeito do provado abaixamento da categoria da Autora em 1 de julho de 2009, de chefe de secção para operadora principal, bem como da respetiva remuneração, importa que tenhamos presente, afastando afinal desde logo que a mesma se encontrasse num estado de plena liberdade na atuação que veio a assumir, que se deparava com uma ameaça, permita-se-nos a  expressão, por parte da Ré / aqui recorrente, assim de “que ou aceitava esta situação ou era despedida por reestruturação e extinção do posto de trabalho, por motivo de redução acentuada do volume de vendas, no âmbito do despedimento coletivo que tinha em curso”, sendo que, como também se provou, foi nessas circunstâncias,  a que acrescem ainda outras, designadamente o facto de o seu marido estar então desempregado e sem rendimentos, que, “receando o futuro e o desemprego”, a tal proposta anuiu /aceitou. Por outro lado, o que releva também para o caso, sequer se pode dizer que a sua decisão tivesse sido devidamente esclarecida, ou seja, que conhecesse os seus direitos e em particular a respeito de ser ou não legítima / fundada (quer na lei, quer designadamente em face do que resultava da CCT aplicável a esse respeito) a atuação da Ré / agora recorrente, em termos de se poder dizer, ainda que porventura (o que não é o caso, desde logo porque “a Ré não submeteu a baixa de categoria e de remuneração a autorização da ACT”) se pudesse ter tal atuação como legal, que tinha perfeita consciência dessas circunstâncias.

Por outro lado, ainda, importa ter presente, a respeito do que se encontra provado nos pontos 46.º a 49.º da factualidade provada (assim: “46. Entre abril e agosto de 2009 a Ré levou a cabo um procedimento de despedimento coletivo, por motivos de mercado e estruturais – redução de vendas, de margem, aumento de custos operacionais e resultados líquidos negativos da Ré. 47. No âmbito desse procedimento, a Ré procedeu, nomeadamente, à extinção e/ou reorganização de várias seções dentro de cada loja, e ao despedimento de trabalhadores entre os quais chefes de secção. 48. No caso da loja de V.N. Gaia, como em outras lojas, foram eliminadas/ reestruturadas diversas secções, e eliminados vários postos de trabalho, incluindo de Chefe de Secção em número não apurado. 49. Se não fosse o acordo de redução da categoria profissional e de redução da remuneração base mensal, a Autora teria sido abrangida pelo despedimento coletivo e o seu contrato cessado”), mesmo que não sejam colocadas reservas a respeito nomeadamente do último – assim o dizemos por essas se nos apresentarem como fundadas, ao afirmar-se que o contrato da Autora teria efetivamente cessado no âmbito do despedimento coletivo, por depender esta conclusão da verificação, no procedimento e mesmo ação própria, dos legais pressupostos –, a verdade é que, podendo de algum modo colocar em causa tal conclusão, não obstante o que resulta do ponto 48.º, ou seja que mesmo na loja de V.N. Gaia foram eliminadas / reestruturadas diversas secções, e eliminados vários postos de trabalho, incluindo de Chefe de Secção em número não apurado, provou-se, afinal, nos pontos 30.º a 33.º, que a Autora manteve as mesmas funções que tinha anteriormente, no mesmo espaço/sala (posto de trabalho), incluindo até Julho de 2016, o serviço de permanência à direção de loja por escala, a que acresceram mesmo outras, pois que, em 2.11.2009, em acréscimo às funções que tinha, a Ré lhe atribuiu ainda outras – assim a total responsabilidade pela secção de Receção de Mercadorias (RM), composta pela área administrativa e pela área operacional, com responsabilidade por cinco elementos [BB, CC e DD, EE e FF, estes dois últimos que a R. também classificava como operadores principais –, de resto de responsabilidade evidente – pontos 32.º e 33.º da factualidade provada.

Por último, sobre o que resulta dos pontos 51.º a 54.º, tal materialidade não assume relevância decisiva no sentido de evidenciar uma situação de exercício abusivo do direito, pois que, no âmbito de todo o circunstancialismo provado, a situação que se aprecia enquadra-se dentro do âmbito daqueles casos em que a jurisprudência – em que nos incluímos – tem entendido que a falta de reação do trabalhador não se traduz em abuso de direito pelo facto de o contrato de trabalho se revestir de características especiais, em que a subordinação jurídica e a consequente maior fragilidade do trabalhador face à sua dependência perante o empregador, bem como a necessidade de garantir o emprego, o levam, não raras vezes e contra sua vontade, a tolerar a violação, por parte do empregador, dos seus direitos e/ou garantias laborais.

Concluindo, claudicando os argumentos invocados pela Recorrente no presente recurso, este terá necessariamente de improceder.

As custas do recurso são da responsabilidade da Recorrente (artigo 527.º do CPC)


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Sumário – artigo 663.º, n.º 7, do CPC –, da responsabilidade exclusiva do relator:

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IV - DECISÃO

Acordam os juízes que integram a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em declarar totalmente improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.


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Porto, 19 de fevereiro de 2024
(assinado digitalmente)
Nélson Fernandes
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão

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[1] cfr. art. 334º do Cód. Civil
[2] Antunes Varela, das Obrigações em geral, 10.ª edição, pág. 544 e segts.
[3] Do Abuso do Direito: Estado das Questões e Perspectivas – Revista da Ordem dos Advogados, ano 2005, II, Setembro de 2005
[4] obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, p. 416 e segs.
[5] www.dgsi.pt