EXECUÇÃO
ACÇÕES DE MERA APRECIAÇÃO OU CONSTITUTIVAS
CONDENAÇÃO IMPLÍCITA
PRESTAÇÃO DE FACTO NEGATIVO
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Sumário


I- Nas prestações de facto infungível, positivo ou negativo, não sendo viável a coerção direta ao cumprimento, o legislador optou por um meio de incentivo ao cumprimento voluntário da prestação, ao consagrar, no art. 829-A do Código Civil, preceito introduzido pelo DL n.º 262/83, de 16.06, a figura da sanção pecuniária compulsória.
II- A s.p.c. não extingue a obrigação; cria apenas uma obrigação acessória, subordinada ao não cumprimento da obrigação principal, com a finalidade de exercer pressão sobre a vontade do devedor no sentido de o conduzir ao cumprimento.
III- A s.pc. pode ser requerida e decretada na própria ação executiva quando o devedor (executado) inadimplente esteja obrigado a uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, que tanto pode ser um non facere como um pati, plasmada, ainda que de forma implícita, na sentença que serve de titulo executivo.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA, BB, CC, CC e CC intentaram ação executiva para prestação de facto, nos autos da ação declarativa que sob o n.º 513/19.... correu termos pelo Juízo Local Cível ..., contra DD e EE alegando, em síntese, que: a sentença proferida na identificada ação, transitada em julgado, condenou os Executados a reconhecerem o direito de propriedade da herança aberta por óbito de FF sobre o prédio denominado ..., composto de mato e pinheiros, sito no lugar ..., da freguesia ..., concelho ..., com a área de 998 m2 e que confronta a sul com GG e a nascente com HH; não obstante, os Executados continuam a não reconhecer aquele direito, uma vez que não se abstêm de depositar vário tipo de resíduos, como entulho, batatas e, bem assim, bidões de água no lado Nascente daquele prédio.
Acrescentaram, no requerimento executivo, que “[s]ó com a presente execução lograrão que os Executados cumpram a obrigação de reconhecimento de direito de propriedade em que foram condenados, devendo – o que se requer - ser fixada sanção pecuniária compulsória – artigo 829.º-A, n.º 1 do Código Civil – na quantia de, pelo menos €500,00 por cada violação da obrigação em que foram condenados, mormente sempre que se intitularem donos ou entrarem ou fizerem uso do terreno agora devidamente vedado.”

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2) Por despacho proferido no dia 2 de junho de 2022, foi determinada a citação dos Executados, que, na sequência, apresentaram oposição à execução, a qual veio a ser julgada extinta, por despacho de 7 de dezembro de 2022, na omissão de pagamento da taxa de justiça e da multa processual prevista no n.º 5 do art. 570 do CPC.
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3) No dia 6 de fevereiro de 2023, os Exequentes requererem “que o Tribunal determine aos Executados, e como requerida, uma sanção pecuniária compulsória (artigos 868.º, n.º 1, in fine e 876.º, n.º 1, c) in fine do CPC) por cada violação da obrigação em que foram condenados, ou seja a de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel dos Exequentes identificado nos autos da ação declarativa e sempre que não se abstenham de utilizar o mesmo e ou se arroguem seus donos.”
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4) No dia 22 de novembro de 2023, foi proferido despacho do seguinte teor: “Uma vez que não deduziram tal pedido no respetivo requerimento executivo nem o mesmo resulta do título executivo, indefere-se a fixação da sanção pecuniária compulsória reclamada agora pelos exequentes.”
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5) Inconformados, os Exequentes (Recorrentes) interpuseram o presente recurso, composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“I – A decisão recorrida julga a questão, manifestamente, de forma errada, conquanto os Exequentes requereram em tempo e no seu requerimento executivo a fixação de uma sanção pecuniária compulsória.
II – Se é verdade que a sanção requerida não resulta do título executivo, a sentença, não é menos verdade que não era conditio sine qua non que o fosse atento o pedido em sede de requerimento executivo.
III – O pedido dos Exequentes a este título, aliás, cumpre os pressupostos que o permitem sejam de natureza substantiva, sejam de natureza adjetiva, sendo que os factos que o sustentam não foram impugnados de forma procedente – conjugadamente os arts. 829.º-A, n.º 1, parte final do n.º do art. 868.º e art. 876, n.º 1, alínea c), todos do CPC.”
Pediram que, na procedência do recurso, seja revogado o despacho de 22 de novembro de 2023 e que, simultaneamente, seja fixada a sanção pecuniária compulsória.”
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6) Os executados (Recorridos) não responderam.
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7) O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
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8) Por despacho do Relator, foi alterado modo de subida do recurso (em separado). Foi também determinada a notificação dos Recorrentes para exercerem o contraditório sobre a possibilidade de este Tribunal ad quem decidir o recurso com um enquadramento jurídico diverso daquele que foi considerado no despacho recorrido e nas alegações, mais concretamente na circunstância de a sentença que serve de título executivo não conter qualquer segmento do qual resulta a condenação dos executados no cumprimento de uma prestação de facto infungível, positivo ou negativo, cujo incumprimento possa assim ser cominado com a requerida sanção pecuniária compulsória.
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9) Os Recorrentes, ademais de indicarem as peças processuais destinadas à instrução do recurso, pronunciaram-se sobre a questão suscitada pelo Relator dizendo que: a sentença apresentada como título executivo contém a condenação dos Executados a reconhecerem que os Exequentes são os proprietários do identificado prédio; o cumprimento da obrigação de reconhecimento do direito de propriedade compreende todos os comportamentos acessórios necessários à efetiva prossecução daquele, assumindo os Réus uma série de deveres, conexionados com aquele dever de reconhecimento, os quais são implícitos, mas que logicamente estão integrados; de qualquer modo, a fórmula condenatória não precisa, sequer, de ser explícita, bastando “a necessidade de execução resultar do contexto da sentença, dos seus pressupostos, sob pena de incongruência sistémica”; no caso, aquele dever de abstenção dos Réus emerge, inequivocamente, da condenação a que foram sentenciados e que consubstancia uma obrigação de non facere, uma prestação de facto negativo; a ação de reivindicação impõe o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição ainda que do segmento decisório tal não se expresse; os atos alegados no Requerimento Executivo demonstram que há, não só uma não abstenção de violar o direito, como a pretensão de manter a sua violação e não restituição da coisa, o que mais é afirmado na Oposição que os Executados apresentaram à execução, embora sem êxito; seja num plano de prestação de facto negativo, mas podendo entender-se de facto positivo (o de reconhecer) só os Executados estão condenados a fazê-lo; neste caso, os atos invocados e tidos como praticados pelos Executados (e não contestados) demonstram que não reconhecem o direito devendo ser obrigados a fazê-lo; acresce que o Tribunal a quo, em momento algum, rejeitou a execução por ausência ou insuficiência de título.
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10) Elaborado e instruído o traslado relativo ao recurso, os autos da ação executiva foram devolvidos ao Tribunal a quo.
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11) Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Deste modo, a questão que se coloca pode ser sintetizada nos seguintes termos: a decisão constante do despacho recorrido, ao indeferir o pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória formulado pelos Recorrentes com fundamento na sua intempestividade, enferma de um erro na apreciação da situação de facto que afeta o seu sentido, devendo ser substituída por outra que defira aquele pedido?
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III.
1) Os factos a considerar na resposta à questão enunciada são os que foram descritos no relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão, todos eles resultantes do iter processual ali discriminado, e, bem assim, os seguintes:
a) Na ação declarativa em que foi proferida a sentença que serve de título executivo, os ora Exequentes formularam os seguintes pedidos: “condenação dos Réus [ora Recorridos] a reconhecer o direito de propriedade deles, Autores [ora Recorrentes] sobre o prédio identificado nos pontos 4., 5. e 7. da petição inicial”; a “reconhecer que tal prédio tem a área de 1 101,50 m2”; e, “caso se demonstre que os réus possuem terreno a confrontar com este seu prédio, que sejam condenados a contribuir para a demarcação dos dois prédios com a estrema a poente/nascente, e a pagarem custas e demais encargos legais;”
b) Alegaram, para o efeito, ademais da qualidade de herdeiros de FF, que à sua morte era o titular do direito de propriedade sobre o identificado prédio, que “[n]o início do mês de março de 2018, foram alertados de que o réu estaria a cortar pinheiros na “...”, o que, no local, confirmaram, apercebendo-se, nessa altura, do desaparecimento de, pelo menos, dois marcos, na parte Poente do prédio que permitiam delimitá-lo com o terreno confinante que os réus dizem ter comprado. Tal terá sucedido por via de movimentações de terras levadas a cabo pelo réu. E os dois outros marcos, que delimitam a “...” a Norte, Nascente e Sul, mantendo-se no local, também foram mexidos pelo réu, que os elevou”;
c) As afirmações de facto referidas no ponto anterior foram consideradas como não provadas na referida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando os ora Recorridos “a reconhecer o direito de propriedade da herança aberta por óbito de FF sobre o prédio denominado ..., identificado no ponto 2., absolvendo-se do pedido de reconhecimento da área de 1 101,50 m2, por indemonstrada”, tudo conforme certidão judicial apresentada com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
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2).1. Como vimos, os Recorrentes entendem que o despacho recorrido enferma de um erro na apreciação da situação de facto por ter considerado, contra o que é demonstrado pela realidade decorrente dos autos, que o pedido de fixação de sanção pecuniária compulsória não foi formulado no requerimento executivo, como era suposto ter acontecido, mas em requerimento ulterior.
Assiste-lhes inteira razão, como facilmente se conclui através da leitura do Relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão: de facto, o pedido em causa foi formulado logo no requerimento executivo, como impõe o n.º 1 do art. 868 do CPC.
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2).2. Ultrapassada aquela questão formal que levou o Tribunal a quo a indeferir a pretensão dos Recorrentes, ocorre que o conhecimento do mérito desta não está dependente de prova a produzir – ou dito, de outra forma, que todos os factos de que ele depende estão já adquiridos.
Quando assim sucede, uma vez observado o contraditório, como sucedeu no caso, a Relação deve substituir-se à 1.ª instância, nos termos previstos nos números 2 e 3 do art. 665 do CPC. Desta solução legal não resulta qualquer preterição do duplo grau de jurisdição: conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Nulidade da sentença; regra da substituição – Jurisprudência 2019 (83)”, Blog do IPPC [4.11.2023)), “a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo. Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.” Acrescentamos que já no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, se afirmava expressamente a opção do legislador pela supressão de um grau de jurisdição, a qual seria, no seu entendimento, largamente compensada pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem.
Cumpre, assim, decidir se existe fundamento para a fixação da sanção pecuniária compulsória, conforme é pretensão dos Recorrentes.
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2).2.1.1. O art. 817 do Código Civil diz que, “[n]ão sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo.”
Daqui resulta que, continuando o credor interessado na prestação e não tendo ocorrido uma impossibilidade definitiva de cumprimento, o recurso à tutela jurisdicional (a dita ação de cumprimento, que pode ser de natureza declarativa ou executiva: art. 10.º/3, b), e 5 do CPC) visará, consoante o caso, obrigar o devedor a pagar o que não pagou, entregar o que não entregou ou praticar o facto que não praticou (por exemplo, eliminar os defeitos da obra). Tanto a mora como cumprimento defeituoso e, até certa medida, a recusa categórica de cumprimento são, no geral, compatíveis com esta forma de tutela que, no dizer de Brandão Proença (Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 3.ª ed., Porto: UCE, 2019, p. 205), “procura, pela condenação do faltoso, restaurar o status quo alterado, pondo fim ao ilícito”, recorrendo, quando a decisão judicial condenatória não seja acatada, à tutela executiva. Assim, na ação de cumprimento, o credor pede que o tribunal condene o devedor a cumprir, se a prestação ainda puder ser efetuada. Se o devedor judicialmente condenado não cumprir, ou se o credor dispuser já de um título executivo segue-se a realização coativa da prestação. Neste sentido, João Calvão da Silva (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2002, pp. 140-141) escreve que “[a] partir do momento em que o devedor não cumpriu voluntária e espontaneamente a sua obrigação, o recurso do credor aos tribunais para obter o cumprimento ou o resultado prático do cumprimento é a lógica e natural consequência sancionatória num ordenamento jurídico que proíbe a autotutela sem, todavia, deixar de ter a preocupação de garantir uma adequada e eficaz tutela (jurisdicional) dos direitos dos cidadãos. Ora, nenhuma outra sanção é mais adequada e eficaz do que aquele que obrigue o devedor a prestar exatamente o que prometeu: dare, facere ou non facere.” Assim, prossegue (idem, p. 143), “o melhor remédio contra o incumprimento, retius contra o atraso no exato cumprimento ou contra a não realização exata da prestação, é aquele que conduza ainda ao cumprimento, embora tardio, e evite a sua transformação em incumprimento definitivo.”
A execução de uma prestação pode ser específica ou não específica. É específica quando o seu objetivo consiste na própria realização da prestação incumprida; é não específica, ou execução tout court, quando o respetivo fim corresponde à obtenção de um valor patrimonial ou quantia pecuniária destinada a servir de sucedâneo da prestação não realizada. São passíveis de execução específica as prestações referentes à entrega de coisa determinada (art. 827 do Código Civil), as prestações de facto fungível (art. 828 do Código Civil), as prestações de facto negativo (art. 829 do Código Civil) e o contrato-promessa (art. 830 do Código Civil, cujo regime é extensível a outras situações em que exista a obrigação de contratar.). A propósito, vide Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lisboa: Lex, 1997, pp. 611-612. Na verdade, na prestação para entrega de coisa determinada, o credor tem a faculdade de pedir, em execução, que a entrega lhe seja feita judicialmente. Na prestação de facto fungível, o credor da prestação tem a faculdade de requerer, em execução, que o facto seja prestado por outrem à custa do devedor. Finalmente, se o devedor estiver obrigado a não praticar algum ato e vier a praticá-lo, tem o credor o direito de exigir que a obra, se obra houver, seja demolida à custa do que se obrigou a não fazer.
Acontece que a coerção direta ao cumprimento não é suscetível de atingir todo o espetro obrigacional. De fora ficam, pela sua própria natureza, expressa através do brocardo nemo ad factum praecise cogi potest, as prestações de facto infungível, positivo ou negativo. Nestas, não sendo viável a coerção direta ao cumprimento, o legislador optou por um meio de incentivo ao cumprimento voluntário da prestação, ao consagrar, no art. 829-A do Código Civil, preceito introduzido pelo DL n.º 262/83, de 16.06, a figura da sanção pecuniária compulsória (s.p.c.). Esta apenas se aplica, portanto, às prestações de facto infungível – e não a todas as prestações de facto –, muito embora, de iure condendo, seja defensável o alargamento do seu âmbito, tendo em conta, por um lado, “a necessidade de incentivar o cumprimento voluntário, ainda que seja viável a execução específica da prestação”, e, por outro, “a necessidade de cada um dever respeitar as decisões dos tribunais, prestigiando-se, assim, a justiça” (António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Coimbra: Almedina, 1990, p. 124).
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2).2.1.2. Diz o n.º 1 do referido preceito que “[n]as obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exijam especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento, ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.”
Estamos, deste modo, perante uma medida coativa, o que a aproxima da cláusula penal compulsória, cuja finalidade típica reside em “compelir/constranger o devedor a cumprir as comuns prestações de facto infungíveis, positivas ou negativas duradouras, dada a ausência de um mecanismo executivo” (Brandão Proença, Lições cit., pp. 208-209). Daí que seja questionada a inserção sistemática da figura. Seria preferível, segundo vários autores (v.g., João Calvão da Silva, Cumprimento cit., pp. 407-408; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 1066, nota 1; António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IX, Direito das Obrigações. Cumprimento e Não Cumprimento. Transmissão, Modificação e Extinção, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 519, nota 1874; Maria Vitória Rocha, “Art. 829.º-A”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, reimpressão, Lisboa: UCE, 2021, p. 1234) a sua inserção na Subsecção da Ação de Cumprimento e Execução, a seguir ao art. 817, uma vez que nada tem que ver com a execução específica. Executar implica prescindir da cooperação do devedor, o que não sucede aqui. A s.p.c. não extingue a obrigação; cria apenas uma obrigação acessória, subordinada ao não cumprimento da obrigação principal, com a finalidade de exercer pressão sobre a vontade do devedor no sentido de o conduzir ao cumprimento, por essa razão, condicional, podendo ela mesma vir a ser objeto de futura execução. Nesta medida, não tem uma função indemnizatória, mas compulsiva, o que é bem evidenciado pelo n.º 2 do art. 829-A, que prevê expressamente a sua cumulação com a indemnização.
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2).2.1.3. Como escrevemos, a s.p.c. só se aplica às obrigações de facto infungível, positivo ou negativo, como tais entendidas, por contraposição às prestações de facto fungível, a que aludem os arts. 767/1 e 828 do Código Civil, aquelas cujo cumprimento apenas pode ser feito pelo próprio devedor. Neste sentido, a infungibilidade do facto pode resultar da sua própria natureza (v.g., a pintura de um quadro por um pintor famoso) ou de estipulação contratual. No primeiro caso, é impossível ao credor renunciar à infungibilidade. No segundo, o credor, pode renunciar à infungibilidade, salvo se esta tiver sido prevista (também) em benefício do devedor, hipótese em que a renúncia daquele será, só por si, ineficaz.
O domínio de aplicação por excelência da s.p.c. é mesmo o das obrigações negativas (non facere, pati) que, pela natureza do seu objeto, tolerância ou abstenção de um determinado comportamento, não podem ser realizadas por terceiro, sendo, por isso, infungíveis (João Calvão da Silva, Cumprimento cit., p. 429). Só pode, porém, ser aplicada a obrigações duradouras. Nas obrigações instantâneas, em que há o dever de não praticar ou de tolerar o ato, uma vez violada a obrigação, ocorre logo incumprimento definitivo, havendo lugar à indemnização. Já se a obrigação for duradoura, a s.p.c. tem grande utilidade como meio de prevenir a continuação ou a renovação do incumprimento (João Calvão da Silva, Cumprimento cit., pp. 459-460).
Encontra assim campo de aplicação privilegiado no domínio dos direitos reais, ideia que, antes mesmo da sua introdução no Código Civil, já se encontrava concretizada no art. 1276 que, em matéria de defesa da posse, estabelece que “[s]e o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar.” De acordo com João Calvão da Silva (Cumprimento cit., p. 470), “[a] partir do momento em que o legislador consagrou a técnica coercitiva com caráter geral, embora com um âmbito restrito de aplicação (…), a multa prevista expressamente no art. 1276 deve integrar-se no regime da s.p.c., sendo mesmo aconselhável a supressão da sua previsão no art. 1276, tanto mais quanto multa em sentido próprio e técnico é uma sanção pecuniária repressiva (de ilícito cometido) e, no caso presente, o seu caráter compulsório e preventivo é manifesto, enquanto mira impedir a consumação da ameaça de perturbação ou de esbulho.”
Por identidade de razões, no direito de propriedade e nos direitos reais limitados, a s.p.c. assume especial utilidade enquanto instrumento da tutela inibitória.
É o que sucede no exemplo dado por João Calvão da Silva (Cumprimento, p. 472) de A ver o seu direito de propriedade posto em causa por B que, por palavras e atos, se arroga em relação ao mesmo prédio a titularidade que não tem. A intentará uma ação negatória para fazer declarar a inexistência do direito afirmado por B e para que cessem no futuro as perturbações e atuações que desrespeitem o seu direito de propriedade, para além do pedido de ressarcimento do dano, se este existir. “Assim, escreve o autor, a injunção proferida pelo juiz para que B se abstenha de continuar ou renovar as atuações que violam o direito do proprietário é a forma de fazer cessar e prevenir o ilícito, ou, sob outro ângulo, a forma de fazer assegurar o cumprimento no futuro do dever de abstenção. Como tal, aquela injunção pode ser seguida de sanção pecuniária compulsória por cada contravenção futura.”
Em complemento, com interesse para a decisão do recurso, acrescente-se que a ação negatória é, a par da ação de reivindicação, uma ação de defesa da propriedade. Na lição de Henrique Mesquita (Direitos Reais, Coimbra, 1967, pp. 178-179), “[s]e o proprietário ficar privado da coisa, por se ter constituído sobre ela uma posse contrária ou uma detenção ilegítima, haverá lugar à ação reivindicatória, que é um corolário da faculdade ou direito de sequela. Quando os atos de terceiro não tenham aquela consequência e apenas perturbem ou limitem o exercício dos poderes do proprietário, o meio adequado de tutela é a chamada ação negatória.” Deste modo, as duas ações têm natureza substancialmente idêntica: ambas visam afirmar o direito de propriedade e pôr fim a situações ou atos que o violem. Têm, assim, como fundamento o direito real do autor e como causa de pedir o facto jurídico de que ele emerge (art. 581/4 do CPC). O primeiro objetivo de ambas é semelhante: a declaração de existência do direito (pronunciatio) e a sua realização (condemnatio). Divergem quanto ao objetivo final:  a condenação do terceiro na restituição da coisa, na ação de reivindicação; a abstenção, por parte do terceiro, de repetir as atuações que perturbaram o proprietário, na ação negatória.
É também o que sucede, por exemplo, com a sentença que, tendo reconhecido a existência de uma servidão de passagem, condene o proprietário do prédio serviente a abster-se de plantar árvores e/ou de colocar outro tipo de obstáculos no seio do caminho de servidão (RP 18.01.2000, 9921567), bem como com a sentença que decrete o embargo de obra nova (STJ 20.06.1998, 98A532), condene os réus a deixarem de passar por um determinado caminho (RG de 14.02.2013, 2242/08.1TBFAF-B.G1) ou a não impedirem a realização de um trabalho de reparação (RG de 19.11.2003, proc. 1897/03-1).
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2).2.1.4. Antes do CPC de 2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, atualmente em vigor, discutia-se se a sanção pecuniária compulsória poderia ser requerida e decretada na própria ação executiva ou se teria de haver uma prévia ação declarativa para esse efeito. A questão foi resolvida pelo legislador no primeiro sentido, como se pode constatar da redação dos arts. 868/1, quanto à execução para prestação de facto positivo, e 876/1, c), do CPC, quanto à execução para prestação de facto negativo.
O primeiro pressuposto para que semelhante pedido possa proceder é, pelo exposto, que o devedor (executado) inadimplente esteja obrigado a uma prestação de facto positivo ou negativo – que tanto pode ser um non facere como um pati. Essa obrigação deve estar plasmada no titulo que serve de “abre-te Sésamo” da ação executiva e que lhe determina o fim e os limites (art. 10.º/4 e 5 do CPC).
Com isto entramos na questão fundamental que se coloca no presente recurso: saber se a sentença que constitui o título executivo contém a condenação dos Recorridos no cumprimento de uma obrigação de non facere, mais concretamente, tendo em conta o alegado no requerimento executivo, na obrigação de se absterem de “depositar vário tipo de resíduos, como entulho, batatas e, bem assim, bidões de água no lado nascente” do prédio identificado nos autos.
A resposta, adiantamos já, é claramente negativa, conforme vamos explicar.
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2).2.2.1. As sentenças condenatórias constituem o primeiro dos títulos executivos: art. 703/1, a). São também o título executivo que oferece mais garantias de segurança e de certeza jurídicas quanto à existência da obrigação que se pretende executar, o que resulta de conterem o reconhecimento judicial de um direito obtido no desenvolvimento de um processo em que o réu teve oportunidade de se defender com toda a amplitude permitida pela lei. Por esta razão, para José Alberto dos Reis (Processo de Execução, I, reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 69) constituem o “título executivo por excelência” e para João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 558) o “título executivo paradigmático.”
Estão em causa as sentenças que condenam o réu no cumprimento de uma prestação ou, dito de outra forma, as que contêm um “comando de cumprimento de uma prestação que, quando desobedecido, atribui ao credor um direito de execução (art. 817 do Código Civil)” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, idem). A condenação é a resposta positiva do tribunal ao pedido formulado pelo autor numa ação condenatória (art. 10.º/3, b), do CPC).
Dir-se-á, a contrario, que as sentenças proferidas numa ação de simples apreciação (art. 10.º/1, b), do CPC) não são título executivo. A diferença entre a ação de simples apreciação e a ação condenatória, indiscutível nos parâmetros legais, assenta, precisamente, no comando de cumprimento de uma prestação que se obtém na segunda e que não se pode conter na sentença de mera apreciação. Como decorrência disto, João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (idem) escrevem que “a procedência de uma ação de mera apreciação – quando esta seja admissível – não dispensa uma posterior ação condenatória destinada a obter o comando de cumprimento da obrigação.”,
Dir-se-á, na mesma linha de raciocínio, que também não são título executivo as sentenças proferidas numa ação constitutiva (art. 10.º/3, c)). Estas provocam a constituição, modificação ou extinção de uma situação jurídica, efeito que, em princípio, é produzido de forma automática ou, por outras palavras, “a alteração na ordem jurídica realiza-se ipso iure” (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, idem), pelo que nada há a prestar por um sujeito passivo e, por isso, nada há a executar. Tais sentenças constituem, numa outra formulação, “um instrumento autossuficiente de tutela jurisdicional”, pelo que já realizam, “de forma autónoma e completa, o direito potestativo da parte” (Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 69).
O que antecede não significa que as sentenças proferidas em ações de simples apreciação ou em ações constitutivas não possam conter, à margem do objeto processual, segmentos condenatórios, como tais passíveis de execução. É o que sucede, por exemplo, quando condenam a parte em custas, multas não penais e outras sanções pecuniárias fixadas em processo judicial (art. 35/1 e 2 do RCP), bem como no pagamento de uma indemnização à parte contrária por litigância de má-fé (arts. 542 e 543 do CPC).
Não significa também que tais sentenças não possam conter, de forma implícita, a condenação num dever de cumprimento, o que a sucederá as descaraterizará, fazendo-as ingressar no universo das sentenças condenatórias.
Isto remete-nos para a questão das sentenças de condenação implícita.
Na doutrina, José Alberto dos Reis (Processo de Execução cit., p. 27) considera que na expressão sentenças condenatórias estão compreendidas “todas as sentenças em que o juiz, expressa ou tacitamente, impõe a alguém determinada responsabilidade”, maxime certas sentenças constitutivas.
Artur Anselmo de Castro (A Ação Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1977, pp. 16-17) entende que a sentença pode constituir título suficiente para iniciar o processo executivo para entrega de coisa certa desde que contenha implícita tal obrigação, nomeadamente nos casos de ação de preferência ou de ações de divisão de coisa comum.
Ary Elias de Almeida Costa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 1974, p. 391) considera exequíveis as sentenças em que o juiz, expressa ou tacitamente, impõe a alguém determinada responsabilidade, o que acontece, nomeadamente, nas sentenças homologatórias de transação ou de confissão.
Eurico Lopes-Cardoso (Manual da Ação Executiva, 3.ª ed., reimpressão, Coimbra: Almedina, 1996, p. 43), diz que basta que na sentença fique declarada ou constituída a obrigação para ser viável a instauração de processo de execução.
João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual cit., p. 559) defendem que as sentenças que contenham, ainda que de forma implícita, a condenação num dever de cumprimento, são exequíveis. A condenação implícita ocorre quando o pedido de condenação no dever de cumprimento, caso tivesse sido cumulado com o pedido de mera apreciação ou constitutivo, não se referiria a uma utilidade económica distinta daquele que corresponde a este último, isto é, “quando a formulação simultânea dos pedidos de mera apreciação, constitutivo e condenatório formaria uma cumulação aparente.”
Lebre de Freitas (A Ação Executiva cit., p. 48), apesar de ter por “duvidosa, perante o princípio do dispositivo, a figura da condenação implícita, entende, porém, que a mesma é “configurável na medida em que se tenha também por deduzido um pedido implícito. Assim, se é certo que “o efeito constitutivo da sentença produz-se automaticamente, nada restando dele para executar”, pode vir a ser objeto de execução “uma decisão condenatória expressa ou implícita, que com ele se pode cumular.” Generalizando, Lebre de Freitas escreve que “a ideia de condenação implícita seria aceitável quando pela sentença haja sido constituída uma obrigação cuja existência não dependa de qualquer outro pressuposto.” Já nas ações de simples apreciação, “vigorando o princípio dispositivo, compreende-se que tal sentença não possa ser objeto de execução.
António Abrantes Geraldes (“Títulos Executivos”, Themis – Revista da FDUNL, ano IV, n.º 7, 2003, pp. 35-66) entende que a fórmula condenatória não precisa de ser explícita, bastando que a existência da obrigação resulte do contexto da sentença.
Rui Pinto (A Ação Executiva, Lisboa: AAFDL, 2020, pp. 159-160) considera que devem ser excluídas da exequibilidade as sentenças das quais não decorre a constituição de obrigações, mas apenas a constituição ou o reconhecimento de (outros) direitos. O autor refere-se às sentenças de ações reais, como sejam as de divisão de coisa comum, homologação de partilha de bens, demarcação e mudança de servidão, salvo quando nelas sejam formulados pedidos cumulados. “Nessas ações, escreve, não há nem pedido implícito de condenação, nem muito menos uma condenação oficiosa implícita.” E prossegue: “O pedido de condenação deve ser expresso, conforme o art. 609/1. Neste sentido, no lugar paralelo da ação de reivindicação, (…) o simples reconhecimento do direito não importa uma condenação implícita na entrega do bem. É que o reconhecimento do direito não implica que o autor esteja a pedir também a entrega da coisa. São duas pretensões diferentes que derivam da mesma causa de pedir (cf. o art. 581/4, 2.ª parte), sendo que a segunda pretensão implica factos adicionais de violação da propriedade; por isso, enquanto a segunda pretensão supõe a primeira, o inverso não sucede. Este raciocínio vale também para as referidas ações reais.” Já quanto às demais sentenças, Rui Pinto considera que “não é correto falar em sentenças de condenação implícita. “O que é rigoroso afirmar é que certas sentenças, constitutivas e de simples apreciação, têm um efeito constitutivo não expresso, derivado da procedência do pedido constitutivo ou de simples apreciação. Portanto, importam a constituição de obrigações que não existiam antes da prolação da sentença.” É o que sucede, por exemplo, com a sentença de execução específica de contrato promessa de compra e venda, que importa, ex lege, a constituição da obrigação do comprador pagar o preço, ou com a sentença de declaração de nulidade do contrato que, importa, também ex lege, a constituição da obrigação dos contraentes devolverem as prestações já efetuadas. Tratam-se sempre de obrigações previstas na lei, tipificadas para aquelas situações jurídicas. Deste modo, as sentenças têm uma eficácia constitutiva implícita, que não pode ser confundida com uma eficácia executiva, que nem sequer foi pedida ao tribunal.
Finalmente, para Marco Carvalho Gonçalves (Lições cit., pp. 69-70), “a sentença constitutiva pode, de forma secundária ou acessória, encerrar uma componente condenatória, situação em que esse concreto segmento da sentença será passível de execução. É o que ocorre, por exemplo, com a obrigação de entrega de uma coisa, por força da anulação ou resolução de um contrato, com a obrigação de entrega de um bem imóvel, em virtude da procedência de uma ação de execução específica ou de uma ação de preferência, com a obrigação de praticar um determinado ato no âmbito de uma ação de demarcação ou com a obrigação de pagamento de uma indemnização por danos morais, resultante de uma sentença que, a título principal, tenha decretado o divórcio. Nestes casos em que a sentença proferida em ação constitutiva contém uma pronúncia condenatória, a execução diz-se imprópria.” Já as sentenças proferidas nas ações de simples apreciação, as quais visam apenas a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, pondo cobro a uma situação de incerteza que revista relevância jurídica, “não são suscetíveis de constituir título executivo, na medida em que não encerram, de forma expressa, qualquer componente condenatória. Isto porque, nestas ações, o efeito jurídico pretendido pelo autor esgota-se com a declaração vertida na sentença. É o que sucede, por exemplo, com a ação de declaração de nulidade de um contrato, de reconhecimento do direito de propriedade sobre uma determinada coisa, de reconhecimento da aquisição, por usucapião, do direito de servidão de passagem, de declaração da existência de uma servidão de vistas sobre um prédio, de impugnação de uma justificação notarial, de declaração do valor de uma participação social ou de reconhecimento da titularidade de um direito de retenção.”
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2).2.2.2. A nosso ver, tudo está na interpretação da sentença, a realizar de acordo com os cânones estabelecidos nos arts. 236 e 238 do Código Civil.
Quando, em resultado dessa tarefa, se conclua que a sentença, apesar de, na sua aparência, ser meramente declarativa ou constitutiva, impôs ao réu uma obrigação de conteúdo determinado, então ela constituirá, nesse segmento em particular, título executivo. Decisivo para esse efeito é a existência de correspondência entre o segmento em causa e aquilo que foi pedido pelo autor. Certo como é que não pode haver sentenças sobre pedidos não formulados, sob pena de nulidade (art. 615/1, e), do CPC), não pode admitir-se uma condenação implícita que não tenha correspondência com um pedido formulado, ainda que também ele de forma implícita, pois tal equivaleria, no fundo, “a afirmar uma condenação que é em si mesma nula”, conforme escreve Rui Pinto (A Ação Executiva cit., p. 162).
Na verdade, a sentença constitui um verdadeiro ato jurídico ao qual são aplicáveis (art. 295 do Código Civil) as regras reguladoras dos negócios jurídicos, nomeadamente, as normas que regulam a interpretação da declaração negocial. Como se escreve em STJ 1.07.2021 (726/15.4T8PTM.E1.S1), relatado pela Juíza Conselheira Rosa Tching, a sentença “tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, não podendo valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.” No aresto invoca-se o ensinamento de Castro Mendes e Remédio Marques, para salientar a sua convergência doutrinal na afirmação de que, em caso de dúvida, um dos elementos que mais relevam para a identificação do juízo objetivado na decisão judicial, é o “determinado pelo princípio do pedido (espécie do princípio do dispositivo), no sentido em que deve existir uma necessária correspondência entre o pedido do autor (ou do réu reconvinte) e a pronúncia ínsita na decisão judicial. O tribunal não pode decidir sobre objeto diferente do pedido ou omitir a resolução de questões que lhe foram pedidas pelo autor.
No mesmo sentido, acrescenta-se em STJ 27.09.2022 (11/21.2T8SRE-A.S1), relatado pelo Juiz Conselheiro Manuel Aguiar Pereira, que “[a] correta interpretação do sentido da parte decisória da sentença, quando suscetível de mais do que uma interpretação, pressupõe, por isso, a análise dos seus antecedentes lógicos, ou seja, do percurso argumentativo nela expresso, a partir da explanação dos factos integrantes da causa de pedir que (…)  tenham sido considerados provados e do pedido formulado.” E conclui-se que “a interpretação do dispositivo da sentença que serve de título executivo não pode, em qualquer caso, prescindir da análise da petição inicial, em especial da causa de pedir e do pedido.”
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2).2.2.3. Assentes as premissas, vejamos então a situação dos autos, começando por lembrar que a sentença que serve de título executivo, julgando a ação parcialmente procedente, condenou os ora Recorridos “a reconhecer o direito de propriedade da herança aberta por óbito de FF sobre o prédio denominado ..., identificado, absolvendo-os do pedido de reconhecimento da área de 1 101,50 m2.”
Logo por aqui se constata que a decisão plasmada na sentença não comporta, na sua literalidade, qualquer segmento de que resulte a condenação dos Recorridos na obrigação de non facere cujo cumprimento os Recorrentes pretendem assegurar no futuro através da fixação da s.pc. – a saber, a de se absterem de “depositar vário tipo de resíduos, como entulho, batatas e, bem assim, bidões de água no lado nascente daquele prédio.”
Em bom rigor, aquela decisão é meramente declarativa, apesar do uso, feito de forma imprópria, do verbo “condenar”. É que este não está referido a uma qualquer prestação, mas a uma atitude interna dos condenados – a de reconhecerem um direito – que, como tal, não é suscetível de execução coerciva. Isto para já não falarmos do seu conteúdo totalmente indeterminado: de que forma se expressa o reconhecimento de um direito de outrem? Basta uma atitude externa que expresse esse reconhecimento, através de atos ou omissões? Nesse caso, que atos e omissões são adequados para esse efeito? É necessária uma atitude interna do obrigado, de tal modo que uma simples palavra que corporize uma lucubração de sentido contrário, importará uma violação da obrigação?
Tendo isto em conta, afigura-se que com o uso daquela expressão verbal o julgador quis apenas respeitar os exatos termos em que se mostrava formulado o pedido a que deu resposta e que dela não resulta mais do que o acentuar, ainda que de forma redundante, que a declaração do direito foi feita no confronto entre as partes na ação, vinculando a parte passiva.
Por outro lado, é indiscutível que a decisão respeitou os pedidos formulados na petição inicial da ação: a “condenação” dos Réus [ora Recorridos] a “reconhecer” o direito de propriedade dos Autores [ora Recorrentes] sobre o prédio identificado e, bem assim, a “reconhecer que tal prédio tem a área de 1 101,50 m2.” Também nestes não se consegue encaixar a obrigação cujo cumprimento, in futurum, os Recorrentes pretendem assegurar através da coerção sobre a vontade dos Recorridos. E para que assim se conclua, basta que se pense na resposta às seguintes questões: o que teria sucedido se, perante este pedido, a sentença tivesse condenado os ora Recorridos a “absterem de “depositar vário tipo de resíduos, como entulho, batatas e, bem assim, bidões de água no lado nascente daquele prédio”? E qual teria sido a resposta do tribunal se os ora Recorrentes tivessem vindo arguir a nulidade da sentença, ut art. 615/1, d), 1.ª parte, do CPC, por esta não ter condenado (expressamente) os Recorridos no cumprimento dessa obrigação?
Estas questões chamam a atenção para um outro aspeto: os factos alegados, na petição inicial, que corporizavam a violação do direito de propriedade cujo reconhecimento foi pedido e que, nessa medida, seriam necessários para suportar a condenação numa concreta obrigação de non facere por parte dos Réus, resultaram como não provados, o que faz cair completamente por terra qualquer leitura da sentença que pretenda ver nela uma condenação implícita, designadamente com os contornos indicados no requerimento executivo.
É certo que da condenação dos Recorridos a reconhecerem que o direito de propriedade integra uma herança a que concorrem os Recorrentes implica para aqueles a sujeição à denominada obrigação passiva universal que é contraponto dos direitos absolutos. Sucede que, como bem salienta Luís Manuel de Menezes Leitão (Direito das Obrigações, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 15), esta fórmula mais não exprime que um dever jurídico genérico. Relativamente a direitos de personalidade, como a vida, ou a direitos reais, como a propriedade, todos os outros sujeitos estão obrigados a um dever geral de respeito, cuja infração pode acarretar responsabilidade civil com o correspondente dever de indemnizar os danos sofridos pelo titular (art. 483). Este dever geral de respeito não se confunde, porém, com a obrigação em sentido próprio, referida no art. 397. Efetivamente, esta pressupõe um vínculo específico, que se traduz numa relação jurídica entre credor e devedor. Pelo contrário, os direitos absolutos são direitos sem relação, pelo que o dever geral de respeito não passa de uma simples expressão do princípio do neminem laedere, não se podendo considerar como um vínculo específico que autorize uma pessoa a exigir de outrem uma prestação. No mesmo sentido, pode ver-se Filipa Morais Antunes, “Art. 397.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações Das obrigações em Geral, Lisboa: UCE, 2021, p. 23. Aliás, acrescentamos, o conteúdo do preceito de agir corretamente seria demasiado indeterminado e variável para poder ser objeto de uma obrigação.
Assim, não comportando o título executivo a condenação dos Recorridos no cumprimento de uma obrigação de prestação de facto negativo, a conclusão é, inelutavelmente, no sentido de que a s.p.c. que os Recorrentes pretendem que seja fixada carece de objeto.
Resta dizer que o facto de o Tribunal a quo, quando confrontado com o requerimento inicial, ter proferido despacho de citação em nada releva: por um lado, não estamos aqui a apreciar a questão de saber se existia qualquer fundamento para o indeferimento liminar do requerimento executivo; por outro, aquele despacho, até pela sua natureza tabular, não é suscetível de produzir efeitos de caso julgado formal quanto à não verificação dos motivos que poderiam ter conduzido ao indeferimento liminar (a propósito, STJ 10.07.2008, 08B794). Trata-se, de resto, de solução que corresponde à consagrada para a generalidade das decisões de admissão liminar de autos, de que é exemplo paradigmático a oposição à execução mediante embargos de executado (art. 732 do CPC), em que, na ausência de prévia sindicância da parte contrária ao requerimento inicial respetivo, o tribunal profere um juízo meramente perfunctório dos requisitos processuais exigidos para o efeito. A propósito, vide os Acórdãos desta Secção de 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1) e de 16.10.2023 (1259/19.5T8VNF.G1), com o mesmo Relator.
Também não releva o facto de a instância da oposição à execução através de embargos de executado estar extinta. Essa extinção ocorreu em resultado do desentranhamento do requerimento de embargos, com fundamento na omissão do pagamento da taxa de justiça, e não do julgamento de mérito sobre a questão a que demos resposta, pelo que seria sempre despropositado invocar-se aqui um efeito positivo do caso julgado.
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3) Em resultado do exposto, a pretensão dos Recorrentes é manifestamente improcedente, ainda que com fundamento diverso do indicado no despacho recorrido. A consequência é a improcedência do recurso.
Vencidos, os Recorrentes devem suportar as custas do recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso de apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida, ainda que com fundamento diverso do nela consignado.
Custas pelos Recorrentes.
Notifique.
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Guimarães, 14 de março de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade (1.ª Adjunta)
Alexandra Maria Viana Parente Lopes (2.ª Adjunta)