CRIME DE BRANQUEAMENTO
LEI N.º 38/2017 DE 18.08
CRIME DE BURLA INFORMÁTICA
Sumário

(da responsabilidade do relator)
I - Na versão dada ao art.º 368º-A, do Código Penal (crime de branqueamento) pela Lei nº 83/2017, de 18.08, em vigor à data dos factos (abril de 2020), não fazendo parte do catálogo dos crimes precedentes o crime de burla informática, p. e p. pelo art.º 221º, nº 1, do Código Penal, nem sendo tal crime punível com pena de prisão cujo limite mínimo exceda os 6 meses ou cujo limite máximo exceda os 5 anos, não se verificam todos os elementos típicos do crime de branqueamento;
II - Com efeito, o crime de burla informática só passou a fazer parte do catálogo dos crimes precedentes a partir de 01.09.2020, com a entrada em vigor da Lei nº 58/2020, de 31.08, que, além do mais, alterou a redação do art.º 368º-A do Código Penal;
III - Não tendo o arguido cometido um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368º-A do Código Penal, em face da versão em vigor ao tempo dos factos (abril de 2020), todavia, cometeu um crime de recetação, p. e p. pelo art.º 331º, nº 1, do mesmo diploma legal, na medida em que recebeu na sua conta bancária montantes provenientes de ato ilícito típico contra o património perpetrado por terceiro, conforme bem sabia, tendo agido com representação do facto e com a intenção de o realizar e ainda com intenção lucrativa para esse terceiro.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
No âmbito do proc. comum singular nº 183/20.3PCCSC, que corre termos no Juízo Local Criminal de Cascais – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que é arguido AA, com sinais identificadores nos autos, efetuado o julgamento, a 24.10.2023 foi proferida sentença (refª 147047124) com o seguinte dispositivo (transcrição):
«IV – DISPOSITIVO
Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, o Tribunal decide:
A. Absolver o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º - A n.ºs 1, al. b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12 do Código Penal por referência ao artigo 221º, n.º 1 do Código Penal;
B. Absolver o arguido AA, da prática do crime de recetação previsto artigo 231.º, n.º 1 do Código Penal;
C. Consignar que os factos comunicados nos termos do artigo 359.º, n.º 3 ex vi n.º 1 do CPP não são autonomizáveis, pelo que não se procede à comunicação a que alude o artigo 359.º, n.º 2 do CPP.
D. Sem custas crime.
E. Declarar de imediato extinta a medida de coação aplicada ao arguido - artigo 214.º, n.º 1 d) do CPP).»
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Inconformado com tal sentença, o Ministério Público dela interpôs recurso (refª 24522368), apresentando em abono da sua posição as seguintes conclusões da motivação (transcrição):
«II. CONCLUSÕES:
1. O arguido AA foi absolvido da prática de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368º-A, nºs 1, alínea b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12, por referência ao artigo 221º, nº 1, ambos do Código Penal, bem como da prática de um crime de recetação, previsto e punido pelo 231º, nº 1, do Código Penal.
2. À data da prática dos factos pelo arguido, o crime de burla informática e nas comunicações não integrava o catálogo de crimes subjacentes ao crime de branqueamento, o que ocorreu na alteração introduzida pela Lei nº 58/2020, de 31 de agosto.
3. A pena aplicável ao crime de branqueamento, porque limitada à pena máxima abstratamente aplicável ao crime precedente – in casu até 3 (três) anos de prisão –, é mais favorável ao arguido, pelo que o regime que integrou o crime de burla informática e nas comunicações no catálogo dos crimes previstos no nº 1, do artigo 368º-A, do Código Penal deverá aplicar-se ao caso dos presentes autos.
4. A sentença recorrida entendeu não provado: «Que o arguido sabia que as transferências bancárias recebidas na sua conta eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial a que não tinha direito, o que conseguiu.» (ponto iv. da Matéria de Facto Não Provada)
5. Da documentação junta aos autos, resulta que o arguido após receber as quantias provenientes da conta bancária pertencente aos ofendidos, procedeu ao levantamento bancário imediato das mesmas, para o que foi necessário a realização de sete operações bancárias, efetuadas entre os dias 9 e 11 de abril de 2020, permanecendo a conta bancária titulada pelo arguido com o saldo de €0,05 (cinco cêntimos), o que indicia, sem qualquer dúvida, que o mesmo tinha conhecimento de que tais quantias não lhe pertenciam, bem como que o mesmo sabia ou, pelo menos, representou como possível a proveniência ilícita dos montantes transferidos para a sua conta bancária, conformando-se com a mesma.
6. A circunstância de o arguido ter procedido ao levantamento das referidas quantias em ATM, não se deslocando ao balcão de uma agência bancária, inviabilizando o levantamento integral e numa só operação da quantia transferida para a sua conta bancária, afasta a verosimilidade de que o indivíduo não identificado pediu ao arguido que recebesse por ele tal quantia, já que apenas lha pôde entregar paulatinamente e, na íntegra, três dias depois.
7. Deverá, pois, a decisão da Meritíssima Juiz a quo referente ao ponto iv. dos factos não provados ser alterada, passando a dar-se como provado «Que o arguido sabia que as transferências bancarias recebidas na sua conta eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, o que conseguiu.»
8. A sentença recorrida fundamentou a sua decisão no entendimento de que não se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo do crime de branqueamento, em virtude de ter considerado que o arguido desconhecia da proveniência ilícita dos montantes que foram transferidos para a sua conta bancária.
9. O crime de branqueamento é um crime de perigo abstrato, na medida em que as condutas típicas colocam em perigo a realização da justiça quanto às vantagens obtidas pela prática de outros factos ilícitos, sendo autónomo do crime subjacente, pressupondo uma atuação que tem como propósito conferir uma aparência de proveniência lícita às vantagens obtidas com aquele, encobrindo a sua origem.
10. O tipo objetivo consiste na execução dos comportamentos típicos, traduzidos nas modalidades de ação previstas nos nºs 3, 4 e 5, do artigo 368º-A, do Código Penal, não se exigindo que o crime precedente seja contra o património, nem tampouco a intenção do agente na obtenção de vantagem patrimonial.
11. No que concerne ao elemento subjetivo, o crime de branqueamento não exige o conhecimento pelo agente do concreto facto ilícito que esteve na origem da vantagem, nem o local onde foi praticado, nem os seus autores, exigindo que o agente represente como possível a ilicitude da proveniência da vantagem obtida, conformando-se com a mesma.
12. A interpretação acolhida pelo tribunal a quo vai, contudo, mais além, entendendo impor-se a verificação de um dolo específico, de conhecimento efetivo da origem ilícita da vantagem na prática de um dos crimes catálogo e de intenção de dissimular a origem de tais vantagens, e/ou de evitar que o autor do crime precedente seja perseguido criminalmente, o que, entende, não se compadece com a modalidade de dolo eventual.
13. O arguido é o único titular e utilizador autorizado da conta bancária destino das transferências realizadas, através da plataforma MbWay, da conta bancária dos ofendidos, mediante a prática por indivíduos não identificados de um crime de burla informática e nas comunicações.
14. Após a realização de tais transferências bancárias, o arguido procedeu ao levantamento imediato, em ATM, da quantia de €1.000,00 (mil euros), tendo no dia seguinte procedido novamente ao levantamento da quantia de €1.000,00 (mil euros), e no terceiro dia, ao levantamento da quantia de €460,00 (quatrocentos e sessenta euros), montantes esses que sabia não lhe pertencerem e que, indubitavelmente, representou como possível provirem da prática de um crime.
15. Encontram-se, pois, preenchidos todos os elementos do tipo do crime de branqueamento.
16. Nesta conformidade, deverá o tribunal de recurso revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que condene o arguido AA pela prática de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368º-A, nºs 1, alínea b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12, do Código Penal.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente, a decisão recorrida ser revogada, sendo o arguido condenado pela prática de um crime de branqueamento, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA.».
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O recurso interposto pelo Ministério Público foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (cfr. despacho com a refª 147913719).
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O arguido, por sua vez, apresentou contra-alegações (refª 24838133), não apresentando conclusões, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público, porquanto entende que não merece reparo a sentença recorrida quanto à sua fundamentação de facto e de direito (não se provou que o arguido conhecia a proveniência ilícita dos montantes depositados na sua conta bancária e não estão preenchidos todos os elementos típicos respeitantes aos crimes de branqueamento e de recetação).
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Neste Tribunal da Relação de Lisboa, por sua vez, o Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer com a refª Citius 21106447 (transcrição):
«Acompanhamos a motivação de recurso da magistrada do Ministério Público na primeira instância.
Salvo melhor leitura e interpretação da douta decisão da primeira instância, a absolvição do arguido aconteceu porque não se provou o elemento subjetivo.
Na Motivação da Decisão de Facto, lê-se:
“Contudo, já quanto ao elemento subjetivo, e na ausência de qualquer outro meio de prova – in limine, sem que tenha sido possível ouvir a versão do arguido – consideramos já não ser possível dar como provado a factualidade vertida em iv.
Com efeito, não é possível descartar, por exemplo, a hipótese do INI ter justificado ao arguido uma proveniência lícita de tais montantes (a título de exemplo: dizer-lhe que tem montantes a receber de editoras, pela venda de livros), pedindo ao arguido que este que os recebesse por ele e depois os entregasse. Igualmente se desconhece a relação de confiança ou não existente entre o arguido e o referido INI.
Afastado que está o dolo direto, da prova produzida não é igualmente possível concluir que o arguido tenha atuada com dolo necessário.
Ainda assim, tratando-se de várias transferências seguidas e de iguais montantes, e tendo-lhe sido pedido que as entregasse, o que o arguido fez, mediante levantamento num período de 3 dias, ditam as mais elementares regras de experiência comum – e pelo critério do homem médio - que o arguido teve necessariamente que suspeitar da possível proveniência ilícita de tais verbas, não tendo efetuado nenhuma diligência para se assegurar da sua legitima proveniência, tando mais que procedeu ao seu levantamento.” (sublinhado e negrito nosso)
Salvo melhor opinião, o Tribunal “a quo” entende estar provado o dolo eventual, pois outro, sentido não podem ter estas palavras ora transcritas. Logo, estão verificados todos os elementos do tipo.
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Aqui chegados, e muito embora o Tribunal entenda ter resultado provado que “o arguido não se coibiu de disponibilizar a sua conta bancária para serem efetuadas transferências bancárias para a mesma, sem previamente se ter assegurado da proveniência de tais montantes, apesar de em razão da ocorrência de várias transferências seguidas, dever suspeitar que as mesmas teriam proveniência ilícita”, não é processualmente admissível o aditamento de tal fatualdiade ao acervo de factos provados, atento o disposto no artigo 359.º, n.º 3 a contrario e 4 ex vi n.º 1 do CPP, conforme consignado em ata.”
Se bem entendemos o vertido na douta sentença – nesta passagem e noutras que se analisarão - caso, tivesse sido aceite a alteração proposta, agora reproduzida, o arguido teria sido condenado.
A alteração proposta é apenas a articulação do dolo específico na forma eventual (porque os factos materiais foram dados como provados).
Mas o Tribunal “a quo” também entende: que o arguido teve necessariamente que suspeitar da possível proveniência ilícita de tais verbas,
Parece-nos haver aqui uma clara contradição.
Na Fundamentação de Direto/A- Enquadramento jurídico lê-se:
“ (…)
“Quanto ao tipo subjetivo, exige o n.º 2 do artigo 368.º-A do Código Penal, a intenção de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal.
Assim, a verificação do crime de branqueamento na previsão deste n.º 2 do artigo 368.º-A do Código Penal não depende apenas do preenchimento do tipo objetivo (v.g. prova de depósitos em conta própria, de vantagens provenientes do crime subjacente, depósitos esses feitos pelo autor desse mesmo crime precedente). Ainda que tal conduta possa ser qualificada de operação de conversão e, como tal, preencher o tipo objetivo do crime de branqueamento, é necessário, também, alegar e provar o tipo subjetivo, a saber, a intenção de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal.
(…)
Com efeito, para se mostrar preenchido o tipo objetivo da modalidade de branqueamento prevista no artigo 368.º-A, n.º 3, do Código Penal, é necessário alegar factos que permitam depois extrair a conclusão de que, por essa forma (depósito em conta própria, de vantagens provenientes do crime em questão) se está a ocultar ou dissimular a sua verdadeira origem.
(…)
Quanto ao tipo subjectivo, a previsão do n.º 3 do mesmo artigo é congruente com o tipo objectivo, contentando-se com o dolo genérico (artigo 14.º do Código Penal). (sublinhado nosso)
(…)
A factualidade considerada provada demostra de forma inequívoca a existência de um crime de burla informática praticado por INI, tendo as vantagens do mesmo sido transferidas para a conta do arguido.
Contudo, resultou por provar que o arguido conhecia a proveniência ilícita de tais montantes, e bem assim que tenha transferido os mesmos bem sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial.”
Em face do exposto, importa concluir que não se encontra preenchido o elemento objetivo do tipo de ilícito, devendo o arguido ser absolvido da acusação que lhe é imputada da prática de um crime de branqueamento.”
Salvo o devido respeito, parece-nos que na douta sentença da primeira instância estão provados todos os factos suscetíveis de preencherem o tipo objetivo do crime de branqueamento - cf. factos provados.
A alteração que a Mª Juíza de julgamento propôs:
“ - O arguido não se coibiu de disponibilizar a sua conta bancária para serem efetuadas transferências bancárias para a mesma, sem previamente se ter assegurado da proveniência de tais montantes, apesar de em razão da ocorrência de várias transferências seguidas, dever suspeitar que as mesmas teriam proveniência ilícita.
- O arguido atuou livre e conscientemente, tendo a capacidade para se assegurar da proveniência de tais montantes, o que não fez, conformando-se com essa possibilidade e com o carácter reprovável da sua conduta.”
é uma forma de articular o dolo específico (e, segundo o texto da decisão, foi devido a esta não alteração que houve lugar à sentença de absolvição).
Conforme se refere na douta sentença, a previsão do número 3 do artigo em causa (368º) contenta-se com o dolo genérico.
Aceitando que assim é – como na primeira instância a julgadora aceitou - não se torna necessária qualquer alteração substancial ou não substancial de factos, pois que o dolo foi articulado.
O Ministério Público na acusação consignou:
“13. O arguido sabia que as quantias monetárias transferidas para a conta de que é titular não lhe pertenciam e que as mesmas eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial a que não tinha direito, o que conseguiu.
14. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.”
A vantagem patrimonial tanto pode ser para o arguido como para os INI.
O Ministério Público acabou também por articular na acusação, para lá o dolo genérico, o dolo específico, embora não com as mesmas palavras propostas pela Mª. Juíza – dolo específico que, todavia, não é necessário articular, uma vez que o tipo contenta-se com o dolo genérico.
Salvo melhor entendimento, a graduação do dolo deverá ser feita na sentença final, lugar onde a Mª Juíza consignaria o que entendesse justo e adequado, nomeadamente para a graduação da pena.
O dolo não é algo que se prove como, materialmente, se pode provar ou não um facto.
Também não é algo em que se possa abrir a cabeça das pessoas e ver em determinado local: o dolo.
O dolo resulta de um conjunto de factos materiais provados, de onde se conclui que na prática dos mesmos, o agente agiu com dolo.
É aqui que reside, no nosso entender, a discórdia com o sentido da douta sentença lavrada na primeira instância.
Os factos tipificados como crime, passam designadamente pela trafulhice (burla) informática - como consta na integração jurídica operada na acusação – art.º 368º-A, nº 1 al. b) – e, face aos factos dados como provados, acredita-se em quê?
Não esqueçamos que na motivação da matéria de facto, a douta sentença deu como provado:
“Ainda assim, tratando-se de várias transferências seguidas e de iguais montantes, e tendo-lhe sido pedido que as entregasse, o que o arguido fez, mediante levantamento num período de 3 dias, ditam as mais elementares regras de experiência comum – e pelo critério do homem médio - que o arguido teve necessariamente que suspeitar da possível proveniência ilícita de tais verbas, (…)”
Há que separar o trigo do joio, optar pelos factos e integrá-los no Direito de acordo com a experiência da vida e o mundo das coisas.
Esta questão não tem a ver com a necessária livre apreciação da prova cominada no artigo 127º do Código Penal.
Não se contestam os factos provados.
Não se concorda, isso sim, com a declaração operada na sentença da ausência de conhecimento e vontade do arguido em praticá-los. Simplesmente, porque não é possível acreditar/aceitar nisso, à luz dos factos provados e da sua própria natureza, quando na própria sentença se afirma: que o arguido teve necessariamente que suspeitar da possível proveniência ilícita de tais verbas,
Isto é, é como se os factos dados como provados fossem traídos porque a dado momento se vem a afirmar que não havia dolo, em oposição às opções da própria sentença. Parece-nos que se verifica uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
Toda a “mise-en-scene” (traduzida em factos) que o tribunal deu como provada, ao dar como assente a factualidade contante da decisão, e o que fez consignar como Motivação da decisão de facto e onde elencou a documentação bancária de onde se vê como o arguido esvaziou rapidamente a conta dos valores depositados, não permitem outra conclusão que não declarar o dolo ou seja, o conhecimento que o arguido tinha da origem ilícita do dinheiro; fosse essa origem ilícita, qual fosse…
Diz o douto acórdão:
“Com efeito, não é possível descartar, por exemplo, a hipótese do INI ter justificado ao arguido uma proveniência lícita de tais montantes (a título de exemplo: dizer-lhe que tem montantes a receber de editoras, pela venda de livros), pedindo ao arguido que este que os recebesse por ele e depois os entregasse. Igualmente se desconhece a relação de confiança ou não existente entre o arguido e o referido INI.”
Salvo o devido respeito, não é possível formular tal tipo de objeções – salvo melhor e mais esclarecida opinião – face a toda a matéria provada e à motivação da matéria de facto, esvaziando de conteúdo a realidade da vida trazida a este processo e dada como provada. A ser assim, em processo nenhum algo se provaria, porque haveria sempre uma distanciação poética da realidade.
Deste modo tentámos demonstrar que o texto da douta sentença, por si só e conjugado com as regras da experiência comum padece de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova que resultam da própria decisão (e não de diferente entendimento por parte de outrem, que nesta sede é irrelevante).
O recurso tem o seu fundamento no disposto no artigo 410º nº 2, al. b) e c) do Código Penal, como procurámos demonstrar.
Ao não condenar o arguido nos termos referidos na acusação, mostram-se violados os artigos art.º 368º - A n.ºs 1, al. b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12 do CP por referência ao art.º 221º, n.º 1 do CP.
Deve assim a douta decisão recorrida ser alterada, passando a ser dados como provados:
I
13. O arguido sabia que as quantias monetárias transferidas para a conta de que é titular não lhe pertenciam e que as mesmas eram resultado de um facto ilícito típico e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial a que não tinham direito, o que conseguiu.
14. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
II
Deve revogar-se a decisão de absolvição do arguido AA pela prática de um crime branqueamento, previsto e punido pelos artigos art.º 368º - A n.ºs 1, al. b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12 do CP por referência ao art.º 221º, n.º 1 do CP
III
Deve a acusação ser julgada procedente, condenando o arguido pela prática de um crime de branqueamento previsto e punido pelos artigos art.º 368º - A n.ºs 1, al. b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12 do CP por referência ao art.º 221º, n.º 1 do CP.
III
Ordenar a remessa dos autos à primeira instância, restrita à aplicação da sanção, nos termos dos artigos 340º, 370º e 371º do Código Penal a fim de proceder-se às diligências necessárias à reabertura da audiência e determinação da pena concreta a aplicar ao arguido, e eventualmente declarar o forma do dolo que se entende por verificada, o que tem importância para a medida da pena.
Nestes termos e convocando ainda tudo o que foi dito pela Magistrada do Ministério Público, emitimos parecer no sentido da procedência do recurso interposto
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Notificado nos termos do disposto no nº 2 do art.º 417º do CPP, o arguido apresentou resposta (refª 680309), pugnando pela improcedência das conclusões recursórias e, consequentemente, pela improcedência do recurso, confirmando-se a sentença recorrida, reafirmando para o efeito os fundamentos em que se funda a decisão recorrida.
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Colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso interposto.
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FUNDAMENTAÇÃO
I - Questões a decidir em face do objeto do recurso
Tendo presente que é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, n.º 2, do CPP (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum; a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito legal) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379º, n.º 2, do CPP)), as questões que se colocam são as seguintes:
a. Impugnação da matéria de facto quanto ao elemento subjetivo do crime de branqueamento – ponto iv dos factos dados como não provados (concls 4º a 7ª);
b. Erro notório da apreciação da prova (questão levantada no parecer do Exmº Sr. PGA e, em todo o caso, de conhecimento oficioso);
c. Contradição insanável entre a fundamentação e a decisão (questão levantada no parecer pelo Exmº PGA e, em todo o caso, de conhecimento oficioso);
d. Qualificação jurídica dos factos dados como provados;
e. Consequências jurídicas do crime: escolha e determinação concreta da pena (em caso de condenação).
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II – Apreciação das questões acima enunciadas
a) Com vista à apreciação das questões acima enunciadas:
i) Transcrevemos o teor da acusação deduzida:
«Para julgamento em Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular, o Ministério Público acusa:
AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia de ..., concelho de ..., nascido em ... de ... de 1998, solteiro, residente na ...;
porquanto:
1. Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior aos factos que se descreverão infra, o arguido AA foi abordado por indivíduos cuja identificação não foi possível apurar, no sentido de disponibilizar a sua conta bancária n.º ... da ..., a fim de serem efectuadas transferências bancárias para a mesma, transferências que não tinham sido autorizadas pelo titular da conta bancária de origem.
2. Mais foi combinado que, uma vez recebido o montante na sua conta, o arguido trataria de o levantar e entregar a terceiros, em conformidade com as instruções que lhe fossem enviadas.
3. Em troca, o arguido receberia uma compensação monetária de valor não concretamente apurado.
4. No dia 9 de Abril de 2020, os ofendidos DD e a sua mulher EE colocaram um anúncio no ... para venda de um carrinho de bebé.
5. Nesse mesmo dia, pelas 18:50 horas, o ofendido DD foi contactado telefonicamente por desconhecido que não se logrou identificar, suposto interessado na compra de tal objecto.
6. Para o alegado pagamento do valor do carrinho, o ofendido seguiu as instruções desse desconhecido e dirigiu-se a um terminal de ATM e, utilizando o cartão de débito associado a conta n.º ... do ... de que os denunciantes são titulares, aderiu ao serviço MB Way, em conformidade com as instruções que lhe foram fornecidas.
7. Dessa forma, e sem o saber ou consentir, o ofendido acabou por associar o seu cartão de débito ao número de telemóvel ..., usado pelo referido desconhecido.
8. E, logo de seguida, usando o referido telemóvel ..., o mesmo desconhecido logrou aceder à referida conta do ... titulada pelos ofendidos.
9. Após o que, em cumprimento do plano previamente delineado, procedeu às seguintes transferências para a referida conta n.º ... da ..., titulada pelo arguido e que este previamente havia facultado para tal finalidade:

DataMontante (em €)
09/04/2020750
09/04/2020750
09/04/2020750
09/04/2020200
TOTAL2.450

10. Em consequência, a conta titulada pelos ofendidos foi debitada nos valores referidos e a conta titulada pelo arguido foi creditada no montante global de €2.450 (dois mil, quatrocentos e cinquenta euros).
11. Após a realização das transferências acima identificadas, o arguido, conforme instruções que recebeu de indivíduos cuja identificação se desconhece, procedeu ao levantamento dos montantes creditados.
12. Tendo recebido, por agir do modo descrito, quantia monetária não concretamente apurada.
13. O arguido sabia que as quantias monetárias transferidas para a conta de que é titular não lhe pertenciam e que as mesmas eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial a que não tinha direito, o que conseguiu.
14. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Pelo exposto, incorreu o arguido na prática, em autoria material, nos termos do arts. 26º do CP, de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368º - A n.ºs 1, al. b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12 do CP por referência ao art.º 221º, n.º 1 do CP (em concurso aparente com a prática de um crime de receptação do art.º 231º n.º 1 do Código Penal).»
*
ii) Dos autos resulta o seguinte:
- Na ata de 19.10.2023 (refª Citius 146963441) (estribado no art.º 359º, nºs 3 e 4, ex vi do art.º 1º, ambos do CPP, e AFJ nº 1/2015, publicado do DR, 1ª Série, nº 18, de 27.01.2015), pelo tribunal a quo foi comunicada como alteração substancial dos factos descritos na acusação a seguinte factualidade:
«O arguido não se coibiu de disponibilizar a sua conta bancária referida em 1. para serem efetuadas transferências bancárias para a mesma, sem previamente se ter assegurado da proveniência de tais montantes, apesar de em razão da ocorrência de várias transferências seguidas, dever suspeitar que as mesmas teriam proveniência ilícita»
- O arguido não se opôs à referida alteração factual (cfr. a ata de 10.10.2023), mas a mesma mereceu a oposição do MP, conforme plasmado na ata de 24.10.2023 (refª Citius 147046829).
*
iii) Por sua vez, a motivação da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte (transcrição):
«II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, e com relevância para a mesma, resultaram provados os seguintes factos:
A) Da acusação:
1. Em data não concretamente apurada, mas seguramente anterior aos factos que se descreverão infra, o arguido AA foi abordado por indivíduos cuja identificação não foi possível apurar, no sentido de disponibilizar a sua conta bancária n.º ... da ..., a fim de serem efectuadas transferências bancárias para a mesma.
2. Mais foi combinado que, uma vez recebido o montante na sua conta, o arguido trataria de o levantar e entregar a terceiros, em conformidade com as instruções que lhe fossem enviadas.
3. No dia 9 de Abril de 2020, os ofendidos DD e a sua mulher EE colocaram um anúncio no ... para venda de um carrinho de bebé.
4. Nesse mesmo dia, pelas 18:50 horas, o ofendido DD foi contactado telefonicamente por desconhecido que não se logrou identificar, suposto interessado na compra de tal objeto.
5. Para o alegado pagamento do valor do carrinho, DD seguiu as instruções do INI e dirigiu-se a um terminal de ATM e, utilizando o cartão de débito associado a conta n.º ... do ... de que os denunciantes são titulares, aderiu ao serviço MB Way, em conformidade com as instruções que lhe foram fornecidas.
6. Dessa forma, e sem o saber ou consentir, DD acabou por associar o seu cartão de débito ao número de telemóvel ..., usado pelo referido desconhecido.
7. E, logo de seguida, usando o referido telemóvel ..., o INI logrou aceder à referida conta do ... titulada por DD e sua mulher EE.
8. Após o que, em cumprimento do plano previamente delineado, procedeu às seguintes transferências para a referida conta n.º ... da ..., titulada pelo arguido e que este previamente havia facultado:

DataMontante (em €)
09/04/2020750
09/04/2020750
09/04/2020750
09/04/2020200
TOTAL2.450

9. Em consequência, a conta titulada por DD e sua mulher EE foi debitada nos valores referidos e a conta titulada pelo arguido foi creditada no montante global de €2.450 (dois mil, quatrocentos e cinquenta euros).
10. Após a realização das transferências acima identificadas, o arguido, conforme instruções que recebeu do INI, procedeu ao levantamento dos montantes creditados.
11. O arguido sabia que as quantias monetárias transferidas para a conta de que é titular não lhe pertenciam.
B) Mais se provou:
12. O arguido regista os antecedentes criminais melhor descritos no certificado de registo criminal de 04.10.2023, e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, resultaram não provados os seguintes factos:
A) Da acusação:
i. Que o arguido tivesse sido informado pelos INI que as transferências bancárias referidas em 1. não tinham sido autorizadas pelo titular da conta bancária de origem.
ii. Que em troca do combinado em 1. e 2., o arguido receberia uma compensação monetária de valor não concretamente apurado.
iii. Que o arguido tenha recebido, por agir do modo descrito, quantia monetária não concretamente apurada.
iv. Que o arguido sabia que as transferências bancarias recebidas na sua conta eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial a que não tinha direito, o que conseguiu.
C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A audiência de julgamento decorreu com o registo dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados – no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.
Tal circunstância, permitindo uma ulterior reprodução desses meios de prova e um efetivo controle do modo como o Tribunal formou a sua convicção, deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade e dispensar o relato detalhado dos depoimentos e esclarecimentos prestados.
Posto isto, na formação da sua convicção o Tribunal tomou em consideração os meios de prova disponíveis, atendendo nos dados objetivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos seguintes meios de prova:
- No depoimento das testemunhas DD e EE;
- Nos seguintes documentos com interesse para a causa: auto de denúncia de fls. E a auto de notícia a fls. 3 e 4 do apenso, informação bancária CCA (referente à conta do arguido) de fls. 18 a 82, em especial extrato bancário de fls. 46/47 e informação bancária do ... (referente à conta dos ofendidos) de fls. 82 a 94, CRC de 04.10.2023.
- Nas regras de experiência comum e critérios de normalidade, nos termos infra expostos e que permitem, no demais, inferir a prova do elemento subjetivo.
*
Especificamente, o Tribunal formou a sua convicção com base no depoimento da testemunha inquirida e supra identificada, conjugadas com os documentos juntos aos autos.
De facto, as duas testemunhas inquiridas confirmaram – em uníssono - toda a factualidade vertida nos pontos 3. a 9. dos factos provados, de forma credível, isenta e espontânea, sem que os seus depoimentos levantassem nenhuma reserva ao Tribunal.
Tais depoimentos, foram ainda corroborados pelos seguintes meios de prova: informação bancária dos ofendidos quanto aos factos 6. a 8.; e informação bancária da conta do arguido, em especial extrato bancário de fls. 46/47 quanto aos factos 8. a 10., uma vez que resulta claro que o arguido era o único titular daquela conta e o único com autorização para a movimentar, sendo certo que resulta do extrato bancário da mesma que, no mesmo dia e nos dois dias seguintes (de 9.4.2020 a 11.4.2020) a ter recebido as transferências proveniente da conta dos ofendidos (com quem o arguido não tinha qualquer relação – de acordo com as testemunhas inquiridas) o arguido retirou todo esse dinheiro da sua conta, mediante levantamentos.
Maior acuidade merece a fundamentação de facto no que respeita aos factos referentes ao acordo (factos provados 1. a 2. e não provados i.) e aos factos que traduzem o elemento subjetivo (factos provados 11. e não provado iv.),
Com efeito, quanto a tal factualidade alicerçou o Tribunal a sua convicção com recurso às regras de experiência comum e critérios de normalidade.
Com efeito, atenta a transferência de quantias da conta dos ofendidos para a conta do arguido (sem que existisse qualquer tipo de relação entre ambos que justificasse) e o subsequente levantamento das mesmas, dúvidas não podem haver de que o arguido facultou os dados da sua conta nos termos do acordo descrito em 1. e 2. dos factos provados, a um INI.
Contudo, já quanto ao elemento subjetivo, e na ausência de qualquer outro meio de prova – in limine, sem que tenha sido possível ouvir a versão do arguido – consideramos já não ser possível dar como provado a factualidade vertida em iv.
Com efeito, não é possível descartar, por exemplo, a hipótese do INI ter justificado ao arguido uma proveniência lícita de tais montantes (a título de exemplo: dizer-lhe que tem montantes a receber de editoras, pela venda de livros), pedindo ao arguido que este que os recebesse por ele e depois os entregasse. Igualmente se desconhece a relação de confiança ou não existente entre o arguido e o referido INI.
Afastado que está o dolo direto, da prova produzida não é igualmente possível concluir que o arguido tenha atuada com dolo necessário.
Ainda assim, tratando-se de várias transferências seguidas e de iguais montantes, e tendo-lhe sido pedido que as entregasse, o que o arguido fez, mediante levantamento num período de 3 dias, ditam as mais elementares regras de experiência comum – e pelo critério do homem médio - que o arguido teve necessariamente que suspeitar da possível proveniência ilícita de tais verbas, não tendo efetuado nenhuma diligência para se assegurar da sua legitima proveniência, tando mais que procedeu ao seu levantamento.
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Aqui chegados, e muito embora o Tribunal entenda ter resultado provado que “o arguido não se coibiu de disponibilizar a sua conta bancária para serem efetuadas transferências bancárias para a mesma, sem previamente se ter assegurado da proveniência de tais montantes, apesar de em razão da ocorrência de várias transferências seguidas, dever suspeitar que as mesmas teriam proveniência ilícita”, não é processualmente admissível o aditamento de tal fatualdiade ao acervo de factos provados, atento o disposto no artigo 359.º, n.º 3 a contrario e 4 ex vi n.º 1 do CPP, conforme consignado em ata.
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Os factos relativos aos antecedentes criminais (facto 12.), provaram-se com recurso ao CRC junto aos autos.
No que concerne aos demais factos não provados, o Tribunal baseou a sua convicção na ausência de qualquer prova, na ausência de prova suficiente e bastante, na prova dos factos contrários e nas regras da experiência comum, nomeadamente não resultou cabalmente provado que o arguido tenha recebido uma compensação monetária.»
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b) Da impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada quanto ao elemento subjetivo do crime de branqueamento:
Pugna o MP pela prova do facto vertido no ponto iv dos factos dados como não provados na sentença recorrida, com exceção do segmento «tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial a que não tinha direito».
O recorrente não pôs em causa qualquer outro facto que tenha sido dado como provado ou não provado, inclusivamente os pontos ii e iii dos factos dados como não provados (respeitante ao alegado recebimento de compensação monetária pela colaboração do arguido com o indivíduo não identificado).
AA, por seu turno, pugna pela manutenção do decidido na sentença recorrida.
Quid iuris?
Dispõe o art.º 412º, na parte que para aqui releva, o seguinte:
«(…)
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
(…)
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.»
O Exmº Sr. PGA invoca ainda os vícios da contradição entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova (als. b) e c) do nº 2 do art.º 410º do CPP), cujos poderes de cognição deste tribunal se inserem já no domínio da revista alargada.
Todavia, convém abordar em primeiro lugar a impugnação ampla da matéria de facto por razões de metodologia, visto que, caso o recurso venha a ter provimento por essa via, desnecessário se torna apreciar a impugnação de mais limitado espectro a que se reportam os vícios consignados nas diversas alíneas do nº 2 do art.º 410º do CPP (neste sentido, pode ver-se o ac. do STJ de 05.07.2007, proc. nº 07P2279, in www.dgsi.pt).
Concatenando então o disposto nos artgs 410º e 412º do CPP, verifica-se que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
- Através do âmbito mais restrito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal; ou
- Mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer meios de prova existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, tratando-se assim de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
No segundo caso estamos perante um erro do julgamento (na apreciação da prova) cuja verificação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.
No domínio da impugnação ampla da matéria de facto visa-se, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida (neste sentido, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
Sem olvidar que com a reforma do sistema de recursos operada pela Lei nº 59/98, de 25.08, o legislador pretendeu garantir um recurso efetivo em matéria de facto, densificando assim a garantia constitucional consagrada no art.º 32º, nº 1, da CRP («O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso»), assegurando pelo menos um efetivo grau de recurso quanto à impugnação da matéria de facto, esta, contudo, tendencialmente não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo, por via de regra, um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como o tribunal a quo apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, o que significa que por regra não lhe basta expressar discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer um segundo julgamento, com base na gravação da prova (se for caso disso).
Na esteira deste entendimento, segundo o Professor Germano Marques da Silva (in Forum Iustitiae, Ano I, maio de 1999) «o poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância».
Também o Professor José Manuel Damião Cunha segue a mesma linha de pensamento (in O CASO JULGADO PARCIAL, QUESTÃO DA CULPABILIDADE E QUESTÃO DA SANÇÃO NUM PROCESSO DE ESTRUTURA ACUSATÓRIA, pág. 37, Universidade Católica Portuguesa, Porto 2002), bem como, entre muitos outros, os Acs do STJ de 15.12.2005 e 09.03.2006, procs nºs 05P2951 e 06P461, respetivamente, os quais podem ser consultados em www.dgsi.pt.
É justamente por isso que o recorrente tem o ónus de expressamente indicar, de acordo com o disposto no art.º 412º, nº 3, do CPP:
i) Os factos individualizados que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados;
ii) O conteúdo específico do meio de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida; e
iii) Se for caso disso, os meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, no âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. o art.º 430º, nº 1, do CPP).
No que tange às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente o ónus de, havendo gravação das provas, as mesmas deverem ser efetuadas com referência ao consignado na ata (caso funde as razões da sua discordância em prova gravada), com a concreta indicação das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas concretas passagens que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes, nos termos dos nºs 4 e 6 do art.º 412º, do CPP.
Em sede de sindicância da matéria de facto, por via da sua impugnação ampla, o tribunal ad quem, para além de estar limitado ao objeto recursório e segundo as especificações ali efetuadas, tem a limitação que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o seu contacto com estas ao que consta das gravações e à demais prova existente no processo, como prova documental e pericial, sendo tal limitação particularmente relevante se assumir especial relevo a prova por declarações (do arguido, do assistente e do demandante) e a prova testemunhal.
Trata-se assim, tendencialmente, de uma intervenção cirúrgica, no sentido de que está restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso, sendo certo que só é possível alterar o decidido pelo tribunal a quo se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida, conforme decorre da al. b), do nº 3, do citado artigo 412.º do CPP, decisão essa que muitas vezes imporá a audição ou visualização de outras passagens não indicadas pelo recorrente (se a impugnação se fundar em prova gravada), quando se afigurem relevantes para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa (nº 6 do art.º 412º do CPP), já que o tribunal ad quem não está adstrito – nem poderia estar - à visão parcelar do recorrente acerca da prova produzida, antes devendo concatenar o conteúdo global da prova indicada com outra que eventualmente tenha sido produzida e que seja relevante para apreciar o objeto do recurso tal como definido nas conclusões recursórias.
Já vimos que a intervenção deste tribunal, no que à sindicância da matéria de facto impugnada concerne, constitui apenas um remédio jurídico que só atuará quando se imponha decisão diversa da adotada, sendo certo que «(…) erro de julgamento da matéria de facto, tal como resulta do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, a situações como as seguintes:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas» (citação do ac. TRL de 04.02.2016, desta secção, proc. nº 23/14.2PCOER.L1, o qual pode ser consultado em www.dgsi.pt).
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Explicados nos seus traços gerais o regime da impugnação ampla da matéria de facto e os poderes de cognição deste tribunal a esse respeito, com as limitações assinaladas, vejamos agora o caso sub judice.
Antes de mais, cabe salientar que o recorrente não se socorreu da prova gravada para impugnar a matéria de facto dada como não provada no ponto iv da sentença recorrida.
E compreende-se que assim seja na medida em que, não tendo impugnado o acervo factual dado como provado atinente aos elementos objetivos do tipo de crime em causa nos autos, socorre-se deles, da prova documental (de natureza bancária) e das regras da experiência comum para entender que se mostra demonstrado a quase totalidade do facto vertido no ponto iv dos factos dados como não provados na sentença recorrida.
Vale isto por dizer que, neste caso, não há que recorrer ao disposto no art.º 412º, nºs 4 e 6, do CPP, o que significa que o recorrente cumpriu com os ónus de alegação que lhe competiam quanto ao objeto recursório em análise, conforme dimana do disposto nas als. a) e b) do nº 1 do preceito referido.
Vejamos então se tem razão.
O ponto iv dos factos dados como não provados na sentença sob recurso, recordemos, é o seguinte:
«Que o arguido sabia que as transferências bancarias recebidas na sua conta eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial a que não tinha direito, o que conseguiu.»
O Ministério Público, por seu turno, pugna para que seja dado como provado, a esse respeito, o seguinte facto:
«Que o arguido sabia que as transferências bancarias recebidas na sua conta eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, o que conseguiu.»
Trata-se de um minus em relação ao teor da acusação, sendo certo que o recorrente não pôs em causa a convicção expressa pelo tribunal a quo quanto ao recebimento/não recebimento pelo arguido de compensação monetária pela disponibilização da sua conta bancária e levantamento dos montantes para ela transferidos da conta dos ofendidos, com a sua posterior entrega a indivíduo não identificado.
Os argumentos aduzidos pelo recorrente são, em síntese, os seguintes:
- Da documentação junta aos autos, resulta que o arguido após receber as quantias provenientes da conta bancária pertencente aos ofendidos, procedeu ao levantamento bancário imediato das mesmas, para o que foi necessário a realização de sete operações bancárias, efetuadas entre os dias 9 e 11 de abril de 2020, permanecendo a conta bancária titulada pelo arguido com o saldo de €0,05 (cinco cêntimos), o que indicia, sem qualquer dúvida, que o mesmo tinha conhecimento de que tais quantias não lhe pertenciam, bem como que o mesmo sabia ou, pelo menos, representou como possível a proveniência ilícita dos montantes transferidos para a sua conta bancária, conformando-se com a mesma; e
- A circunstância de o arguido ter procedido ao levantamento das referidas quantias em ATM, não se deslocando ao balcão de uma agência bancária, inviabilizando o levantamento integral e numa só operação da quantia transferida para a sua conta bancária, afasta a verosimilidade de que o indivíduo não identificado pediu ao arguido que recebesse por ele tal quantia, já que apenas lha pôde entregar paulatinamente e, na íntegra, três dias depois.
Todavia, na sentença recorrida, fundamentou-se a indemonstração do aludido facto da seguinte forma (transcrição):
«Contudo, já quanto ao elemento subjetivo, e na ausência de qualquer outro meio de prova – in limine, sem que tenha sido possível ouvir a versão do arguido – consideramos já não ser possível dar como provado a factualidade vertida em iv.
Com efeito, não é possível descartar, por exemplo, a hipótese do INI ter justificado ao arguido uma proveniência lícita de tais montantes (a título de exemplo: dizer-lhe que tem montantes a receber de editoras, pela venda de livros), pedindo ao arguido que este que os recebesse por ele e depois os entregasse. Igualmente se desconhece a relação de confiança ou não existente entre o arguido e o referido INI.
Afastado que está o dolo direto, da prova produzida não é igualmente possível concluir que o arguido tenha atuada com dolo necessário.
Ainda assim, tratando-se de várias transferências seguidas e de iguais montantes, e tendo-lhe sido pedido que as entregasse, o que o arguido fez, mediante levantamento num período de 3 dias, ditam as mais elementares regras de experiência comum – e pelo critério do homem médio - que o arguido teve necessariamente que suspeitar da possível proveniência ilícita de tais verbas, não tendo efetuado nenhuma diligência para se assegurar da sua legitima proveniência, tando mais que procedeu ao seu levantamento.»
Não podemos concordar com o assim decidido, pelas razões que a seguir aduziremos.
É certo que o tribunal deve decidir segundo a sua livre convicção, nos termos do art.º 127º do CPP, segundo o qual, «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
De facto, como é consabido, o princípio da livre convicção do julgador, em matéria de valoração da prova, para além de limitado pelo princípio da legalidade da prova, nos termos do qual «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (cfr. artgs. 125.º e 126.º, ambos do CPP), traduz naturalmente uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e do conhecimento científico, da qual resulta a objetivação da apreciação dos factos submetidos a julgamento.
Assim, para que um facto se dê como provado, com o benefício da oralidade e imediação, necessário é que o julgador se convença da sua veracidade para além de toda a dúvida razoável (cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, polic., págs. 135 a 143).
Por outro lado, há que ter em consideração que «A livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Há que traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão» (citação do ac. do TC nº 464/97).
Tal princípio tem assim limites endógenos (por condicionarem o próprio processo de formação da convicção, atinentes ao grau de convicção requerido para a decisão, à proibição de meios de prova e à observância da presunção de inocência do arguido (art.º 32º, nº 2, da CRP e art.º 6, § 2º, da CEDH)) e exógenos (por condicionar o resultado da apreciação da prova, com referência à observância do princípio in dubio pro reo – finda a valoração da prova, a dúvida insanável deve favorecer a posição do arguido -, princípio que decorre do princípio da culpa e do Estado de Direito Democrático (consagrado logo no art.º 2º da CRP), complementando o princípio da presunção de inocência do arguido).
Sucede que, salvo o devido respeito pelo posicionamento expresso na sentença recorrida, parece-nos que a razão para a indemonstração do facto vertido no ponto iv dos factos dados como não provados – no segmento impugnado - não é razoável e desafiam as regras da lógica e do normal acontecer.
O arguido foi julgado na sua ausência, nos termos do art.º 334º, nº 4, do CPP, pelo que não foi possível colher a sua versão dos factos. Todavia, mesmo que tivesse estado presente na audiência de julgamento, poder-se-ia ter remetido ao silêncio, conforme direito que lhe assiste nos termos do art.º 61º, nº 1, al. d), do CPP, como decorrência do princípio da não autoincriminação, princípio este perspetivado como expressão do direito a que todas as garantias de defesa sejam asseguradas no processo criminal, tal como constitucionalmente consagrado no art.º 32º, nº 1, da CRP (cfr. ainda o art.º art.º 6º, § 1º, da CEDH).
Tenha-se ainda presente que o arguido que exerce o seu direito ao silêncio (como salientou o Professor Costa Andrade, citando Kühl, in Sobre as proibições de prova em processo penal, pág. 129) – ou que neste caso optou por não estar presente na audiência de julgamento -, «renuncia (faculdade que lhe é reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a matéria em discussão, nessa medida vinculando o Tribunal à valoração exclusiva dos demais meios de prova disponíveis no processo», desde que tenham sido validamente obtidos. Pelo que (ob. cit., pp. 128 e 129) «o silêncio deve, por isso, ser tomado como a ausência pura e simples de resposta, não podendo, enquanto tal, ser levado à livre apreciação de prova. E isto (…) quer se trate de silêncio total quer, na parte pertinente, de silêncio meramente parcial», o que não impede o tribunal de avaliar toda a prova produzida em julgamento e de, naturalmente, decidir de acordo com ela na sua livre convicção.
Em suma, ante a constatação da falta de posicionamento do arguido perante os factos (neste caso por ter sido julgado na ausência a seu pedido, no que foi deferido), tal circunstância é neutra do ponto de vista da livre apreciação da prova.
No caso dos autos não se colheu prova no sentido de se saber ao certo o que foi transmitido ao arguido a ponto de ele ter agido do modo dado como provado.
Com efeito, nenhuma testemunha depôs quanto a essa matéria.
De todo o modo, «Embora seja admissível a existência de apenas um indício, desde que veemente e categórico, na ausência de “prova direta” a prova sobre factos deverá, por regra, alcançar-se através da ponderação conjunta de elementos probatórios que permitam excluir qualquer outra explicação lógica e plausível. Os factos indiciadores devem ser plurais, independentes, contemporâneos do facto a provar, concordantes, conjugando-se entre si e conduzindo a inferências convergentes», sendo certo que na «análise crítica global devem ser tidos em conta quer os indícios da inocência, quer os que enfraquecem a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo» (citação parcial do sumário do acórdão do TRG, com texto integral em www.dgsi,pt, processo nº 443/12.7JABRG.G1).
Ademais, conforme foi expresso no ac. do STJ de 26.09.2012, processo nº 101/11.0PAVNO.S1, com texto integral em www.dgsi.pt, «A presunção é , assim , uma conclusão de um raciocínio, que induz o facto desconhecido a partir de um facto conhecido, o indício , suposta uma adequada relação de causalidade, surtindo o facto indiciado como resultante de uma comparação entre o facto indiciário e uma lei ou regra da experiência comum, ou seja de acordo com o que é usual acontecer, “ id quod plerumque accidit “ .
Temos, então, que a prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença estiverem completamente demonstrados, por prova directa (requisito de ordem material), os indícios, que devem ser de natureza inequívocamente acusatória, plurais , contemporâneos do facto a provar, e sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência, que deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado e respeitar a lógica da vida e da experiência. Neste sentido, cfr. Ac. deste STJ, de 11.7.2007, P. º n.º 1416/07 -3.ª Sec. e os Acs. do Tribunal Supremo de Espanha (onde se faz largo uso da prova indiciária, sobretudo no âmbito do tráfico de estupefacientes e branqueamento de capitais, como no direito romano) n.ºs 557/2006 , de 22/5/2006 e 392 /2006 , de 6.4.2006 ; cfr. , ainda , Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, estudo da autoria do EXm.º Cons.º Santos Cabral , apresentado em intervenção no Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Macau , em 30 de Novembro de 2011, acessível inwww.stj.pt
Ora, quem age do modo dado como provado, disponibilizando a sua conta bancária por forma a nela receber várias quantias provenientes de uma mesma conta, a pedido de terceira pessoa cuja identidade se desconhece (o dito “INI”), quantias que depois vai levantando em sete operações bancárias (em caixa ATM), entre os dias 9 e 11, cujos montantes foi entregando ao mesmo indivíduo desconhecido num período de 3 dias, não se tendo notícia de que o arguido não seja pessoa de normal senso, cremos que se mostra suficientemente demonstrado – para além de qualquer dúvida razoável – o facto constante do ponto iv dos factos dados como não provados, com a nuance assinalada na motivação recursória decorrente da falta de prova do recebimento de compensação monetária pelo arguido por banda do “INI”.
O tribunal a quo estribou-se no facto de não ter sido possível apurar o que foi transmitido ao arguido pelo dito “INI”, nem qual a relação de confiança existente entre ambos, pelo que, em tese, tal indivíduo poderia ter sido suficientemente convincente para enganar o arguido com uma qualquer “estória”.
Todavia, até para o próprio tribunal a quo essa “estória” – seja ela qual for, o campo das possibilidades é vasto - não seria assim tão credível, pois, «tratando-se de várias transferências seguidas e de iguais montantes, e tendo-lhe sido pedido que as entregasse, o que o arguido fez, mediante levantamento num período de 3 dias, ditam as mais elementares regras de experiência comum – e pelo critério do homem médio - que o arguido teve necessariamente que suspeitar da possível proveniência ilícita de tais verbas, não tendo efetuado nenhuma diligência para se assegurar da sua legitima proveniência, tando mais que procedeu ao seu levantamento».
O tribunal a quo, sempre ressalvando o devido respeito por diversa opinião, poderia e deveria ter ido mais longe.
A intenção que preside a uma determinada conduta deduz-se sempre do comportamento objetivamente observado, analisado à luz das regras da experiência comum.
Estas, na lição do Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, Verbo, 2011, Vol. II, pág.188.), «são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.».
Não é crível que o arguido desconhecesse a proveniência ilícita dos fundos transferidos para a sua conta bancária, considerando que, muito solicito, a tenha disponibilizado para nela receber três transferências de €750 e uma quarta de €200, todas de 09.04.2020, provenientes da conta titulada pelos ofendidos e que, ao invés de levantar o montante global assim transferido (€2.450,00) de uma só vez no balcão da agência bancária (com o risco de ser filmada a sua face e de ser reconhecido pelo funcionário bancário), tenha procedido ao levantamento de tais quantias em sete operações bancárias (em ATM), efetuadas entre os dias 9 e 11 de abril de 2020, permanecendo a conta bancária titulada por AA com o saldo de €0,05 (cinco cêntimos).
Não tendo a investigação apurado que o arguido era afinal o “INI” ou que já estava mancomunado com ele quanto ao crime de burla informática – daí o teor da acusação -, sem necessidade de fazer apelo ao teor do que lhe possa ter sido transmitido, no mínimo, impunha-se a conclusão que o arguido sabia que as transferências bancarias recebidas na sua conta eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e que, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, o que conseguiu.
Procede assim o recurso quanto à impugnação ampla da matéria de facto, pelo que, consequentemente:
- Elimina-se o ponto iv dos factos não provados; e
- Adita-se aos factos provados o ponto 12º, com o seguinte teor:
«O arguido sabia que as transferências bancarias recebidas na sua conta eram resultado de um facto ilícito típico contra o património e, não obstante, agiu da forma descrita, sabendo que ajudaria a ocultar a verdadeira origem dos montantes em causa, tendo em vista a obtenção de vantagem patrimonial pelo indivíduo não identificado e a que ele não tinha direito, o que conseguiu, tendo agido de modo livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal».
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Em face da procedência da impugnação ampla da matéria de facto, deixou de ser necessário abordar os vícios a que se reportam as als. b) e c) do nº 2 do art.º 410º do CPP, tal como referenciados no parecer do Exmº Sr. PGA (questões enunciadas em I-b) e c) supra) e cujo conhecimento ficou assim prejudicado.
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c) Da qualificação jurídica dos factos dados como provados:
O arguido AA foi acusado da prática, em autoria material, nos termos do art.º 26º do Código Penal, de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368º - A, nºs 1, al. b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12 do Código Penal, por referência ao art.º 221º, nº 1, do mesmo diploma legal (em concurso aparente com a prática de um crime de recetação do art.º 231º nº 1 do Código Penal).
Os factos ocorreram em abril de 2020, pelo que à data estava em vigor a versão do preceito que lhe foi dada pela Lei nº 83/2017, de 18.08.
Assim, dispunha o art.º 368º-A, do Código Penal, na versão em vigor à data da prática dos factos, o seguinte:
«1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, dos factos ilícitos típicos de lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, fraude fiscal, tráfico de influência, corrupção e demais infrações referidas no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro, e no artigo 324.º do Código da Propriedade Industrial, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham.
2 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal, é punido com pena de prisão de dois a doze anos.
3 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
4 - A punição pelos crimes previstos nos nºs 2 e 3 tem lugar ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores, ou ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º
5 - O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada.
6 - A pena prevista nos nºs 2 e 3 é agravada de um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual.
7 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
8 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.
9 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
10 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.»
Tal preceito viria a ser alterado pelo art.º 12º da Lei nº 58/2020, de 31.08, em vigor desde 01.09.2020 (cfr. o art.º 25º da dita lei), passando a ter a seguinte redação:
«1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, independentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de:
a) Lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, ou pornografia de menores;
b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de crédito, contrafação de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados;
c) Falsidade informática, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido;
d) Associação criminosa;
e) Terrorismo;
f) Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
g) Tráfico de armas;
h) Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos;
i) Danos contra a natureza, poluição, atividades perigosas para o ambiente, ou perigo relativo a animais ou vegetais;
j) Fraude fiscal ou fraude contra a segurança social;
k) Tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do setor público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, ou corrupção com prejuízo do comércio internacional ou no setor privado;
l) Abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado;
m) Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores, violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos, contrafação, imitação e uso ilegal de marca, venda ou ocultação de produtos ou fraude sobre mercadorias.
2 - Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior.
3 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos.
4 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
5 - Incorre ainda na mesma pena quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade.
6 - A punição pelos crimes previstos nos nºs 3 a 5 tem lugar ainda que se ignore o local da prática dos factos ilícitos típicos de onde provenham as vantagens ou a identidade dos seus autores, ou ainda que tais factos tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º
7 - O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada.
8 - A pena prevista nos nºs 3 a 5 é agravada em um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual ou se for uma das entidades referidas no artigo 3.º ou no artigo 4.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e a infração tiver sido cometida no exercício das suas atividades profissionais.
9 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
10 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.
11 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
12 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.»
A mesma norma foi também alterada pela Lei nº 79/2021, de 24.11., passando a ter a seguinte redação:
«1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, independentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de:
a) Lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, ou pornografia de menores;
b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, contrafação de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados;
c) Falsidade informática, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido;
d) Associação criminosa;
e) Terrorismo;
f) Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
g) Tráfico de armas;
h) Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos;
i) Danos contra a natureza, poluição, atividades perigosas para o ambiente, ou perigo relativo a animais ou vegetais;
j) Fraude fiscal ou fraude contra a segurança social;
k) Tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do setor público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, ou corrupção com prejuízo do comércio internacional ou no setor privado;
l) Abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado;
m) Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores, violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos, contrafação, imitação e uso ilegal de marca, venda ou ocultação de produtos ou fraude sobre mercadorias.
2 - Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior.
3 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos.
4 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
5 - Incorre ainda na mesma pena quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade.
6 - A punição pelos crimes previstos nos nºs 3 a 5 tem lugar ainda que se ignore o local da prática dos factos ilícitos típicos de onde provenham as vantagens ou a identidade dos seus autores, ou ainda que tais factos tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º
7 - O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada.
8 - A pena prevista nos nºs 3 a 5 é agravada em um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual ou se for uma das entidades referidas no artigo 3.º ou no artigo 4.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e a infração tiver sido cometida no exercício das suas atividades profissionais.
9 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
10 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.
11 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
12 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.»
Por fim, a Lei nº 2/2023, de 16.01., alterou o dito preceito, o qual passou a apresentar a seguinte redação:
«1 - Para efeitos do disposto nos números seguintes, consideram-se vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação, de factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos ou, independentemente das penas aplicáveis, de factos ilícitos típicos de:
a) Lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, ou pornografia de menores;
b) Burla informática e nas comunicações, extorsão, abuso de cartão de garantia ou de cartão, dispositivo ou dados de pagamento, contrafação de moeda ou de títulos equiparados, depreciação do valor de moeda metálica ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador ou de títulos equiparados, passagem de moeda falsa ou de títulos equiparados, ou aquisição de moeda falsa para ser posta em circulação ou de títulos equiparados;
c) Falsidade informática, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático, dano relativo a programas ou outros dados informáticos, sabotagem informática, acesso ilegítimo, interceção ilegítima ou reprodução ilegítima de programa protegido;
d) Associação criminosa;
e) Infrações terroristas, infrações relacionadas com um grupo terrorista, infrações relacionadas com atividades terroristas e financiamento do terrorismo;
f) Tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;
g) Tráfico de armas;
h) Tráfico de pessoas, auxílio à imigração ilegal ou tráfico de órgãos ou tecidos humanos;
i) Danos contra a natureza, poluição, atividades perigosas para o ambiente, ou perigo relativo a animais ou vegetais;
j) Contrabando, contrabando de circulação, contrabando de mercadorias de circulação condicionada em embarcações, fraude fiscal ou fraude contra a segurança social;
k) Tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do setor público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, ou corrupção com prejuízo do comércio internacional ou no setor privado;
l) Abuso de informação privilegiada ou manipulação de mercado;
m) Violação do exclusivo da patente, do modelo de utilidade ou da topografia de produtos semicondutores, violação dos direitos exclusivos relativos a desenhos ou modelos, contrafação, imitação e uso ilegal de marca, venda ou ocultação de produtos ou fraude sobre mercadorias.
2 - Consideram-se igualmente vantagens os bens obtidos através dos bens referidos no número anterior.
3 - Quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infrações seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reação criminal, é punido com pena de prisão até 12 anos.
4 - Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
5 - Incorre ainda na mesma pena quem, não sendo autor do facto ilícito típico de onde provêm as vantagens, as adquirir, detiver ou utilizar, com conhecimento, no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização, dessa qualidade.
6 - A punição pelos crimes previstos nos nºs 3 a 5 tem lugar ainda que se ignore o local da prática dos factos ilícitos típicos de onde provenham as vantagens ou a identidade dos seus autores, ou ainda que tais factos tenham sido praticados fora do território nacional, salvo se se tratar de factos lícitos perante a lei do local onde foram praticados e aos quais não seja aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 5.º
7 - O facto é punível ainda que o procedimento criminal relativo aos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens depender de queixa e esta não tiver sido apresentada.
8 - A pena prevista nos nºs 3 a 5 é agravada em um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual ou se for uma das entidades referidas no artigo 3.º ou no artigo 4.º da Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto, e a infração tiver sido cometida no exercício das suas atividades profissionais.
9 - Quando tiver lugar a reparação integral do dano causado ao ofendido pelo facto ilícito típico de cuja prática provêm as vantagens, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
10 - Verificados os requisitos previstos no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada se a reparação for parcial.
11 - A pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisivas para a identificação ou a captura dos responsáveis pela prática dos factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.
12 - A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.»
O bem jurídico protegido com a incriminação das condutas típicas é o da administração da justiça, na sua particular vertente de perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da atividade criminosa (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª ed. Atualizada, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 1226), razão pela qual o respetivo tipo legal se insere no Livro II – Título V (dos crimes contra o Estado), Capítulo III (dos crimes contra a realização da justiça).
Na verdade, as ações descritas no tipo legal incriminador têm de comum o encobrimento ou a dissimulação da origem ilícita do capital, dificultando a ação da justiça no combate a certas formas de criminalidade organizada ou de criminalidade económica mais grave e no confisco dos proventos dessas atividades ilícitas, por forma a neutralizar a vantagem económica/patrimonial, direta ou indiretamente emergente dos crimes subjacentes, cujo catálogo, com a evolução legislativa, se tem vindo a alargar.
Trata-se de um crime de perigo abstrato quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido (pois as ações típicas colocam em perigo a realização da justiça na vertente assinalada, não lesando de forma definitiva o bem jurídico protegido), podendo ser um crime de resultado (operações de conversão, transferência, ocultação e dissimulação) ou de mera atividade (operações de auxílio e facilitação) quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação.
O tipo objetivo consiste em converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si (se o autor for o mesmo há concurso efetivo entre o crime de branqueamento e o crime subjacente)1 ou por terceiro, direta ou indiretamente; ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens ou direitos a ele relativos; e adquirir, deter ou utilizar vantagens provenientes de facto ilícito típico cometido por outrem.
A Lei nº 58/2020, de 31.08, reintroduziu no nº 5 a incriminação das condutas de aquisição, detenção e utilização das vantagens, com o conhecimento no momento da aquisição ou no momento inicial da detenção ou utilização dessa qualidade, suprimindo desse modo a lacuna punitiva em face das obrigações vinculativas do Estado Português decorrentes do art.º 3º, nº 1, al. c) (i), da Convenção de Viena, do art.º 6º, nº 1, al. d), da Convenção de Estrasburgo, do art.º 9º, nº 1, al. c), da Convenção de Varsóvia, e do art.º 3º, nº 1, al. c), da Diretiva (UE) 2018/1673.
O tipo de ilícito em causa é um crime de perigo comum na medida em que pode ser cometido por qualquer pessoa.
Já o facto ilícito típico de que decorre a vantagem é definido de acordo com um critério misto, que conjuga uma cláusula geral (com referência à moldura penal abstrata do crime precedente, cujo limite mínimo abstrato da pena de prisão tem de ser superior a 6 meses ou tem de ter um limite máximo abstrato superior a 5 anos) e um catálogo de crimes, independentemente das respetivas molduras penais abstratas, cujo âmbito se tem vindo a alagar com as sucessivas alterações legislativas introduzidas ao preceito vindo de referir.
Com referência ao caso dos autos está em causa uma conduta que se subsume à previsão do tipo legal em causa por uma operação de “transferência”, pois as quantias subtraídas aos ofendidos foram transferidas pelo “INI” da conta daqueles para a conta disponibilizada pelo arguido e de que é titular, ocorrendo subsequentemente sete levantamentos parcelares de tais verbas em caixa ATM e a correspondente entrega ao dito “INI” num lapso temporal de três dias.
Quanto ao elemento subjetivo do tipo, há desde logo que que referir que não é elemento típico a intenção de obtenção de vantagem patrimonial para si ou para outrem (ao contrário do que sucede no crime de recetação).
Para além disso, o agente não tem de conhecer o concreto facto típico ilícito que esteve na origem da vantagem nem o local onde foi praticado, nem mesmo os seus autores. Basta que o agente saiba que as vantagens sejam provenientes de algum dos crimes referenciados no nº 1 do preceito em causa e que tal conhecimento seja contemporâneo à operação de branqueamento (elemento intelectual do dolo).
De todo o modo, para que a conduta seja suscetível de punição, o agente tem de agir, pelo menos, com dolo direito ou dolo necessário.
Argumentando que quem quer esconder a proveniência ilícita tem de agir com dolo direto ou dolo necessário, não bastando que ele configure a possibilidade da proveniência ilícita da vantagem, Paulo Pinto de Albuquerque rejeita a possibilidade do dolo eventual (in ob cit., págs. 1236 e 1237, onde é referida doutrina de sentido convergente e divergente, bem como o ac. do TRG de 28.09.2020, onde se admite a possibilidade de punição com base no mero dolo eventual).
No caso dos autos a questão não se coloca na medida em que, em face da procedência da impugnação da matéria de facto, concluímos que o arguido agiu com dolo direto, isto é, com a consciência do facto e com a intenção de o realizar (cfr. o art.º 14º, nº 1, do Código Penal).
O crime precedente, em face dos factos dados como provados, reporta-se ao crime de burla informática, p. e p. pelo art.º 221º, nº 1, do Código Penal, nos termos do qual «Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, mediante interferência no resultado de tratamento de dados, estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
A incriminação deste tipo de condutas, resultante de um fenómeno ainda relativamente recente de neocriminalização, é um tipo contra o património (cfr. a respetiva inserção sistemática no Código Penal), só se visando de forma secundária proteger o correto funcionamento e a inviolabilidade dos sistemas informáticos com aptidão para o desempenho das funções em vista da satisfação do utente (cfr., neste sentido, ac. do STJ de 20.11.2008, in www.dgsi.pt, processo nº 08P0581).
Distingue-se do crime de burla em geral porque, sendo ambos de resultado, exigindo-se o prejuízo, trata-se de um crime de execução vinculada patrimonial, já que enquanto aquele crime pode ser praticado por qualquer meio de erro ou engano sobre os factos que o agente astuciosamente provocou, o crime de crime de burla informática tem de ser cometido por qualquer um dos meios indicados no preceito em questão, a saber: interferência no resultado de tratamento de dados de programa informático; estruturação incorreta do programa informático; utilização incorreta ou incompleta de dados informáticos; utilização de dados informáticos sem a autorização de quem de direito ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento de dados informáticos (cfr., neste sentido, entre muitos outros, o ac. do STJ de 05.12.2007, in www.dgsi.pt, processo nº 07P3864).
O crime não deixa de ser de burla, pois não prescinde de um expediente enganoso tendente a viciar a vontade de alguém em vista da produção de um prejuízo pela forma descrita no respetivo tipo-legal.
Na verdade, as condutas típicas referenciadas constituem, na apreensão intrínseca e na projeção externa, modos de descrição de modelos formatados de prevenção da integridade dos sistemas contra interferências, erros determinados ou abusos de utilização que se aproximem da fraude ou engano, contrários ao sentimento de segurança e fiabilidade dos sistemas.
No caso dos autos, não há dúvida que pelo “INI” foi perpetrado um crime de burla informática, p. e p. pelo art.º 221º, nº 1, do Código Penal.
Todavia, sucede que, em face da lei em vigor à data da prática dos factos (na redação dada pelo preceito legal vindo de referir pela Lei nº 83/2017, de 18.08), o arguido não pode ser punido pela prática do crime de branqueamento.
Na verdade, conforme aliás se assinala na motivação recursória, o crime de burla informática só passou a fazer parte dos crimes precedentes que integram o catálogo a partir de 01.09.2020, com a entrada em vigor das alterações introduzidas ao art.º 368º-A do Código Penal pelo art.º 12º da Lei nº 58/2020, de 31.08, sendo certo que o crime de burla informática não é punível com pena de prisão cujo limite mínimo seja superior a 6 meses ou cujo limite máximo seja superior a 5 anos de prisão.
Isto é, o crime de burla informática, ao tempo dos factos, não integrava o catálogo dos crimes precedentes nem era crime punível (como hoje não é) «com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos».
A referência na acusação à al. b) do nº 1 do art.º 386º-A, do Código Penal, denuncia claramente que o MP, na qualificação jurídica, erradamente, socorreu-se de versão do preceito que não estava ainda em vigor à data da prática dos factos, sendo certo que, no que se refere à aplicação da lei no tempo, desde logo, nos termos do art.º 2º, nº 1, do Código Penal, «As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem», dando assim guarida à garantia constitucional contida no nº 1 do art.º 29º da CRP («Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior»).
Nesta conformidade, tendo em conta o princípio da tipicidade e não constituindo o comportamento do arguido, em abril de 2020, um crime de branqueamento, AA deve ser absolvido da acusação na parte em que lhe é imputada a prática desse crime.
Não obstante, na imputação efetuada na acusação alude-se ao concurso aparente com o crime de recetação, p. e p. pelo art.º 231º, nº 1, do Código Penal.
De facto, a conduta do arguido, integra-se na previsão legal do art.º 231º, nº 1, do Código Penal (crime de recetação), nos termos do qual «Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.»
O conteúdo do ilícito reside assim na perpetuação de uma situação patrimonial antijurídica, aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação dela com a coisa (cfr. Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo II, Coimbra Editora, 1999, págs. 475 e 476).
Nessa medida, o bem jurídico protegido é o património de outra pessoa.
Quanto ao grau de lesão do bem jurídico é um crime de dano, sendo de resultado quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação.
O tipo objetivo consiste na dissimulação de coisa (ou animal) – coisa que pode ser móvel ou imóvel segundo a maior parte da doutrina - que foi obtida por outrem mediante facto ilícito típico contra o património (como por exemplo através da prática de um crime de burla informática), no recebimento dessa coisa em penhor, na sua aquisição por qualquer título, na sua detenção, conservação, transmissão ou na contribuição para a sua transmissão, ou na segurança, para si ou para terceiro, da sua posse.
Pressupõe uma conduta dolosa (dolo direto), exigindo-se o dolo específico relativamente à proveniência da coisa, isto é, é necessário que o agente saiba que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património e que tenha agido com intenção lucrativa (para si ou para terceiro).
No caso dos autos, fazendo apelo aos factos provados, estão presentes todos os elementos típicos, pelo que o arguido deverá ser condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de recetação, p. e p. pelo art.º 231º, nº 1, do Código Penal.
Acresce que, neste caso, não há que observar o regime previsto no art.º 358º, nºs 1 e 3, do CPP, porquanto na acusação já se imputava a prática deste crime ao arguido, pese embora em concurso aparente com o crime de branqueamento.
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d) Das consequências jurídicas do crime:
Tendo presente a jurisprudência uniformizada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2016 (publicado no DR, Série I-A, nº 36, de 22.02.2016), no sentido de que «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, alínea b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal», efetuado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido nos moldes em que acima vimos, caberá agora, neste acórdão, escolher e determinar a medida concreta da pena a aplicar, de acordo com o disposto nos artigos 70º e 71º do Código Penal, tendo presente que «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz na tutela das expectactivas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada» (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 227) – cfr. ainda o disposto no art.º 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Por conseguinte, não caberá mandar baixar os autos para que na 1ª instância se determine a sanção a impor, conforme pugnado no parecer do Exmº Sr. PGA.
Essa tarefa cabe a este tribunal.
Dispõe então o art.º 71º, do Código Penal, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena» o seguinte:
«1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»
Toda a pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como, desde logo, se depreende do art.º 13º Código Penal ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
A culpa não constitui, assim, apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se no seu limite máximo, o que significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo.
De facto, aqui ao referirmo-nos a culpa fazemo-lo atendendo à personalidade do agente revelada no facto (neste sentido vide Figueiredo Dias, ob cit., pág. 219). É, pois, correto afirmar que a culpa em sede de determinação da medida da pena se traduz numa atitude interna sempre atualizada no facto.
De acordo com a teoria da margem de liberdade, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, devendo intervir os outros fins das penas, atualmente referidos de forma expressa no art.º 40º Código Penal (cfr. Claus Roxin Culpabilidade y Prevencion en Derecho Penal, tradução F. Munõz Conde, Bosch, 1981, pág. 94).
Por seu turno, a escolha do tipo de pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, nada tendo a ver com a determinação da sua medida, a qual depende fundamentalmente da culpa do agente.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve evitar a quebra da inserção social do agente e servir para a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de proteção dos bens jurídicos.
O ilícito deve ser assim valorado em função da gravidade do ataque ao objeto em particular, nomeadamente os danos ocasionados, a extensão e gravidade dos efeitos produzidos - o efeito externo -, sem esquecer o próprio desvalor do comportamento delituoso.
Em síntese, para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática do crime em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhes subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes.
Nessa conformidade, nos termos do nº 2, do art.º 71º, do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal.
No caso dos autos, tendo em conta que o arguido agido com dolo direto (cfr. art.º 14º, nº 1, do Código Penal), o modus operandi e o valor global da quantia monetária recetada (no valor de €2.450,00), sem esquecer que essa quantia não foi recuperada, entendemos que o grau de censurabilidade da sua conduta é relevante.
Ademais, considerando que este tipo de ilícito é frequente e que potencia a prática de outros crimes geradores de sentimentos de insegurança na comunidade, a necessidade de repor a confiança dos cidadãos na norma violada e nos valores que lhe subjazem impõe que se considerem bem relevantes as necessidades de prevenção geral, positiva e negativa.
Quanto às necessidades de prevenção especial, não tendo sido possível apurar o que quer que seja ao nível do percurso de vida do arguido e suas condições de vida, todavia, podemos concluir que é de modesta condição socioeconómica tendo em conta as razões pelas quais o julgamento ocorreu na sua ausência (o arguido alegou que é de etnia cigana e que tinha dificuldades em deslocar-se a fim de estar presente na audiência de julgamento, quer por razões financeiras quer por razões de penosidade na deslocação atenta a distância, que implicava que tivesse de se deslocar com a sua família mais próxima – mulher e duas crianças de tenra idade -, razões essas que o tribunal a quo entendeu serem válidas em ordem a deferir o requerimento de julgamento na ausência - cfr. refªs 22865449 e 143097882).
Para além disso, tem o seguinte antecedente criminal:
- No âmbito do PCS nº 461/15.3GAFAF, do JL Criminal de Fafe, do T.J. da Comarca de Braga, por sentença datada de 15.01.2018, transitada em julgado a 14.02.2018, pela prática a 08.06.2015 de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1, do Código Penal, e de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181º, nº 1, do mesmo diploma legal, foi condenado na pena única de 280 dias de multa, à taxa diária de €5, o que perfaz um total de €1.400,00, pena essa entretanto declarada extinta pelo seu pagamento.
Por consequência, entendemos que as necessidades de prevenção especial de reintegração não se fazem sentir com acuidade.
Ademais, dispõe o art.º 70º, do Código Penal, que «se ao crime foram aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», as quais estão enunciadas no art.º 40º, nº 1, do mesmo código.
Tendo presente sobretudo o que já se referiu a propósito das necessidades de prevenção especial (não obstante as relevantes necessidades de prevenção geral), parece-nos que a opção pela pena de multa ainda se mostra suficiente e adequada em ordem a salvaguardar as finalidades da punição tal como enunciadas no art.º 40º, nº 1, do Código Penal, isto é, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Opta-se assim pela imposição da pena de multa.
Nessa conformidade, variando a moldura penal abstrata entre 10 e 600 dias, entendemos que é adequada a condenação do arguido na pena de 300 (trezentos) dias de multa (as necessidades de defesa do ordenamento jurídico reclamam que a pena concreta se situe, pelo menos, no patamar médio da dosimetria penal abstrata).
Por seu turno, dispõe o art.º 47º, nº 2, do Código Penal, que «Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 5 e (euro) 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.»
Nessa conformidade, tendo em conta que é parca a factualidade atinente à condição económica do arguido, mas que podemos concluir que é de modesta condição socioeconómica, adotando um critério prudente, parece-nos adequada a imposição de uma taxa diária de €8 (oito euros), a qual se situa assim muitíssimo perto do limite mínimo abstrato.
Consequentemente, deverá AA ser condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de recetação, p. e p. pelo art.º 231º, nº 1, do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz um total de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).
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III – Das custas
Dispõe o art.º 513º do CPP o seguinte:
«1. Só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1ª instância e decaimento total em qualquer recurso.
2. O arguido é condenado em uma só taxa de justiça, ainda que responda por vários crimes, desde que sejam julgados em um só processo.
3. A condenação em taxa de justiça é sempre individual e o respetivo quantitativo é fixado pelo juiz, a final, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais.
4. (…)».
Assim, dado que o recurso não foi julgado totalmente procedente, concluímos que o arguido AA não decaiu totalmente no presente recurso (apesar de, em sede de resposta, ter pugnado pela manutenção da sentença recorrida), razão pela qual não deverá ser condenado no pagamento de taxa de justiça nos termos do art.º 8º, nº 9, do RCP e Tabela III a ele anexa (art.º 513º, nº 1, a contrario, do CPP).
Por sua vez, o recorrente está isento do pagamento de custas, nos termos do art.º 522º, nº 1, do CPP, e do art.º 4º, nº 1, al. a), do RCP.
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DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes desembargadores desta 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que, consequentemente:
- Revogam a sentença recorrida;
- Alteram a matéria de facto provada e não provada nos moldes plasmados em II-b) supra;
- Absolvem o arguido AA da acusação na parte em que lhe é imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de branqueamento, p. e p. pelo art.º 368.º - A, nºs 1, al. b), 2, 3, 4, 5, 6 e 12 do Código Penal, por referência ao artigo 221º, nº 1, do mesmo diploma legal;
- Condenam o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de recetação, p. e p. pelo art.º 231º, nº 1, do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €8 (oito euros), o que perfaz um total de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros).
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Sem tributação, por não ser devida (cfr. ponto III supra).
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Registe e notifique (art.º 425º, nºs 3 e 6, do CPP).
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Lisboa, 21 de março de 2024.
(Texto processado por computador, composto e revisto pelo 1º signatário)
Os Juízes Desembargadores,
José Castro
Maria Ângela Rodrigues da Luz
Micaela Pires Rodrigues
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1. As alterações introduzidas pela Lei nº 11/2004 pôs fim à querela doutrinária no sentido de saber se o concurso era efetivo ou meramente aparente.