CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
DECLARAÇÃO DE PERDA DE OBJECTOS UTILIZADOS NA PRÁTICA DO CRIME
Sumário

Do confronto do teor do artº 35º do DL. 15/93 de 22/1 com a redacção introduzida pela lei 45/96, de 3-9, com a norma do artº 109º nº1 do CP, resulta que deixou, de ser requisito do decretamento da perda do objecto, a perigosidade do mesmo para a segurança das pessoas ou a ordem pública ou a possibilidade de oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos, constante da redacção originária.

Texto Integral

1ª secção criminal
Proc. nº 593/23.4JAPRT.P1



Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


I – RELATÓRIO:

No processo comum (tribunal colectivo), do Juízo Central Criminal de Vila do Conde do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, a arguida AA foi submetida a julgamento e a final foi proferido acórdão de cuja parte decisória consta o seguinte:
(…)
Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes que compõem este Tribunal Colectivo acordam em:
a) condenar AA pela prática de um crime de tráfico previsto e punido pelo artigos 21.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão;
b) condenar a arguida no pagamento de 3,5 UC’s de taxa de justiça (que deve ser reduzida em metade, devido à confissão efectuada - cf. artigo 344.º, n.º 2, al. c), do Código do Processo Penal) e das demais custas do processo;
c) declarar perdida a favor do Estado a matéria estupefaciente apreendida, ordenando que, após o trânsito em julgado da presente decisão, a mesma seja destruída em conformidade com o estabelecido no artigo 62.º do DL n.º 15/93 de 22-01;
d) declarar perdidos a favor do Estado o telemóvel, a quantia monetária e o corpete apreendidos, determinando que, após o trânsito em julgado desta decisão, seja dada vista dos autos ao Ministério Público para promover o que tiver por conveniente quanto ao destino de tais objectos;
e) determinar que [caso isso ainda não tenha acontecido anteriormente] se proceda, oportunamente, à recolha de vestígios biológicos da arguida destinados a análise e consequente inserção do respectivo perfil na base dados de perfis de ADN a que alude o artigo 15.°, n.º 1, al. e), da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro.

(…)

*

Inconformado, a arguida AA interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:
(…)
I. O presente recurso tem como objecto o Acórdão proferido pelo douto Tribunal Colectivo em 14SET2023.
II. Cuja decisão, entre outras, foi de «d) declarar perdidos a favor do Estado o telemóvel, a quantia monetária e o corpete apreendidos, determinando que, após o trânsito em julgado desta decisão, seja dada vista dos autos ao Ministério Público para promover o que tiver por conveniente quanto ao destino de tais objectos.»
III. A Arguida não se conforma com tal decisão, porquanto em seu entender a global e ponderada avaliação de todo o circunstancialismo dado como provado impõe a devolução à Arguida do telemóvel, não podendo o mesmo ser declarado perdido a favor do Estado.
IV. A jurisprudência tem evidenciado a necessidade de se verificarem determinados pressupostos para a declaração de perda a favor do Estado, estabelecendo critérios como o da essencialidade da utilização do instrumento/objeto para o cometimento do crime, exigindo ainda que se verifique uma relação de causalidade entre o uso do instrumento/objeto e a prática do crime, sem olvidar a importância do princípio da proporcionalidade na apreciação que se faça.
V. Tem sido entendimento generalizado que a declaração de perda a favor do Estado não pode funcionar de forma automática exigindo-se uma fundamentação concreta e uma adequada ponderação do circunstancialismo em que o crime foi praticado.

VI. O Tribunal a quo não ponderou adequadamente todo o circunstancialismo do caso em apreço, nomeadamente não ponderou que dos factos dados como provados quanto às circunstâncias em que o dito crime foi cometido não resulta que o referido telemóvel fosse essencial e indispensável para o cometimento do crime.
VII .Nem se provou qualquer relação de causalidade entre o uso daquele objeto e a prática do crime.
VIII. Não está justificado o nexo de causalidade e essencialidade daquele objecto na prática do crime em apreço, nos moldes em que foi executado, não sendo por isso adequada nem proporcional à gravidade dos factos a declaração da sua perda a favor do Estado.
IX. Não resultou provado qualquer ligação determinante, necessária e essencial, entre o objecto apreendido e a conduta pela qual foi condenada a Arguida.
X. Ao decidir como decidiu, declarando perdido a favor do Estado o telemóvel dos autos, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 109.º do CP e artigo 36.º do DL 15/93, de 22 de janeiro.
TERMOS EM QUE, DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO E POR VIA DELE SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA NA PARTE EM QUE DECLAROU A PERDA A FAVOR DO ESTADO DO TELEMÓVEL APREENDIDO À ORDEM DOS AUTOS, SUBSTITUINDO-SE POR DECISÃO QUE ORDENE A DEVOLUÇÃO DO MESMO À ARGUIDA.


(…)

O Magistrado do Ministério Público respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta acompanhando a resposta do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº2 do CPP não foi apresentada resposta.
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Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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O acórdão recorrido deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respectiva motivação:
(…)
A) MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Discutida a causa, julgam-se provados os seguintes factos:
1) No dia 29 de Janeiro de 2023, pelas 13h00m, a arguida AA desembarcou no Aeroporto ..., sito em Pedras ..., nesta cidade da Maia, procedente do voo ...80, vindo de São Paulo - Brasil, com destino ao Porto.
2) A arguida encontrava-se em trânsito, uma vez que às 18h15m desse mesmo dia ia embarcar no voo T...8 com destino final a Paris.
3) A arguida transportava por debaixo da camisola que trazia vestida um corpete com o forro cosido, onde se encontravam 5 placas, que continham um pó branco, embrulhado em plástico, que, submetido ao teste rápido Scott, acusou a presença de cocaína, com o peso bruto de 2.276,4 gramas.
4) Laboratorialmente examinado foi tal produto identificado como cocaína com o peso líquido de pelo menos 2.233,5044 gramas (2.022,774 gr. + 210,733 gr.) e com o grau de pureza de 87,3%, o que, de acordo com os cálculos da Portaria nº94/96, de 26 de Março, tem correspondência a 9.749 doses médias individuais diárias
5) Além do produto estupefaciente, foi ainda apreendido à arguida:
- a quantia de €500,00 (quinhentos euros) em notas do Banco Central Europeu, que lhe havia sido entregue para custear as despesas do transporte de cocaína que estava a efectuar;
- um telemóvel de marca e modelo Iphone 11, com o n.º de série ...6Y3, IMEI´s ...77 e ...45 e com o código de desbloqueio ...79, onde funcionava o contacto telefónico +...87, que a mesma, entre o mais, havia utilizado para estabelecer contactos relacionados com o transporte de produto estupefaciente que efectuava.
6) A arguida bem sabia quais as características e natureza do produto estupefaciente que detinha e que transportava, via aérea, dissimulado na roupa que vestia, sabendo ainda que a sua detenção e transporte não lhe era permitido, querendo atuar desta forma.
7) A arguida procedeu de forma livre, voluntária e consciente, sabedora que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8) A Arguida adquiriu o telemóvel referido em 5) para uso pessoal, pagando o preço com o seu dinheiro .
9) À data dos factos constantes do presente processo, AA, vivia na cidade de São Paulo, Brasil.
10) A arguida tem um filho a residir em ... com a avó materna.
11) Após ter deixado o filho com a avó com o objetivo de obter ocupação laboral e melhores condições de vida em São Paulo, a arguida passou a trabalhar de noite numa “boite”.
12) A arguida efectuava consumos de cannabis.
13) A arguida deixou de estudar aos 17 anos de idade, após o que teve algumas experiências de trabalho, maioritariamente de curta duração.
14) AA encontra-se presa no Estabelecimento Prisional ... desde 30-01-2023 à ordem do presente processo.
15) A família tem conhecimento da sua situação jurídica, manifesta-lhe apoio ainda que censurem o seu comportamento.
16) No estabelecimento prisional, a arguida tem revelado capacidade de adaptação ao normativo vigente, obteve ocupação de cariz laboral no setor dos sapatos, frequenta o desporto e o culto.
17) A família – que continua a cuidar e a suportar todos os gastos com o seu filho – estabelece com ela contactos telefónicos regulares e presta-lhe apoio económico, traduzidos nos carregamentos que efectua no seu cartão de reclusa.
18) A arguida projeta para o futuro voltar para ... para cuidar do filho, verbalizando a intenção de abrir uma loja online de produtos de beleza e miudezas.
19) A arguida não possui antecedentes criminais.

B) MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir.

C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do tribunal para fixar os factos provados e não provados baseou-se desde logo na confissão que a arguida efectuou, sem quaisquer reservas, quanto à totalidade das circunstâncias de tempo, lugar e modo em que lhe foram apreendidos todos os produtos e objectos referenciados nos autos de revista e apreensão de fls. 10, 15 e 16 dos autos, entre os quais a substância estupefaciente cuja natureza, quantidade e grau de pureza se encontram determinados no relatório do exame de perícia toxicológica de fls. 66 dos autos.
Em relação à vertente subjectiva da conduta da arguida, atendeu-se igualmente à confissão que a mesma produziu quanto ao facto de estar a efectuar, a troco de contrapartida monetária, um transporte de cocaína desde o Brasil, agindo segundo instruções que recebeu das pessoas que a contrataram para tal efeito. Valorou-se também aquilo que foi dito pela arguida quanto ao facto de a quantia monetária (500,00 €uros) que lhe foi apreendida ter-lhe sido entregue para custear as despesas da viagem que efectuava com o único propósito de transportar cocaína para a Europa, bem como quanto ao facto de, apesar de o I-phone que lhe foi apreendido ter sido por si adquirido para uso pessoal, ter feito uso do mesmo para estabelecer contactos, através das redes sociais, com quem a contratou para transportar cocaína para a Europa.
Finalmente, refira-se que se considerou o teor do relatório social com a ref.ª 36393610, de 7-08-2023, para, em conjugação com os dados decorrentes do certificado do registo criminal com a ref.ª 449494925, de 15-06-2023, e com alguns esclarecimentos prestados pela própria, se caracterizar a evolução do percurso de vida da arguida e respectivos antecedentes criminais (in casu inexistentes).

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.
No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão a decidir é a de saber se no caso concreto estão verificados os pressupostos da declaração da perda a favor do Estado do telemóvel apreendido;
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II - FUNDAMENTAÇÃO:
A questão recorrida é a verificação, ou não, no caso concreto dos pressupostos da declaração a favor do Estado do telemóvel apreendido.
O acórdão declarou perdido a favor do Estado o telemóvel apreendido à Arguida com a seguinte fundamentação:
Objectos apreendidos
Cumpre ainda dar destino aos bens que se encontram apreendidos à ordem dos autos.
O artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, estabelece que “…. são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos” e que “plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV são sempre declaradas perdidas a favor do Estado”.
Assim, deve haver lugar à perda a favor do Estado de todos os bens ou objectos apreendidos.
Nos termos do disposto no artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, o produto estupefaciente deve ser destruído.….”
A arguida alega, e em síntese, que não se verifica “a essencialidade da utilização essencialidade da utilização do instrumento/objeto para o cometimento do crime”, nem “uma relação de causalidade entre o uso do instrumento/objeto e a prática do crime,” e que não foi respeitado o princípio da proporcionalidade. Alega ainda que a decisão recorrida violou o disposto nos artsº 109º nº1 do CP e artº 36º do DL 15/93 de 22/1.
Desde já se adianta improceder a alegação da recorrente.
Como bem assinala o MP em ambas as instâncias, a recorrente parece ter esquecido que sob o ponto 5, foi dado como provado que o telemóvel apreendido havia sido utilizado “para estabelecer os contactos relacionados com o transporte de produto estupefaciente que efectuava”.
Por outro lado e como realça a Srº Procuradora Geral Adjunta nesta Relação, o decretamento da perda não foi efectuado nos termos do regime geral previsto no artº 109º do n1 do CP, mas antes ao abrigo do disposto no artº 35ºnº1 do DL 15/93 de 22/1.
Do confronto do teor do artº 35º do DL. 15/93 de 22/1 com a redacção introduzida pela lei 45/96, de 3-9, com a norma do artº 109º nº1 do CP, constata-se que ao aí se dispor que dispõe que «são declarados perdidos a favor do estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma (...)» deixou, assim, de ser requisito da decretação da perda do objecto a perigosidade do mesmo para a segurança das pessoas ou a ordem pública, ou a possibilidade de oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos, constante da redacção originária.
Basta que o objecto tenha servido ou estivesse destinado a servir para a prática da infracção, exigindo, todavia, a jurisprudência mais restritiva do STJ, que entre o objecto e a prática da infracção interceda uma relação de funcionalidade ou de instrumentalidade, em termos de causalidade adequada, pois, de outro modo, sendo o objecto indiferente para a realização do facto, não se pode determinar a sua perda, apesar da sua utilização.
Ora no caso dos autos, face à matéria provada, afigura-se que o concreto telemóvel apreendido foi não só instrumental, como essencial à prática do crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual a arguida foi condenada, integrado pelo transporte de cocaína com o peso líquido de 2,233,5044 gramas, - Brasil- Portugal -pelo que a perda do telemóvel, que foi instrumental e essêncial à prática do crime, não se mostra desproporcionada nem violadora do artº 18º nº2 da CRP.
Como refere o MP na resposta, “.a recorrente utilizou o telemóvel apreendido para estabelecer contactos relacionados com o produto estupefaciente que lhe foi apreendido.
Por esse facto e perante o modo de execução da conduta delituosa que consistiu na detenção e transporte trans-continental de produto estupefaciente constata-se que aquele aparelho telefónico foi necessário e essencial na prossecução da conduta criminosa.
A essencialidade do objecto em causa traduz-se na circunstância de ter sido necessário ao desenvolvimento do ilícito criminal em causa.
Ademais, a sua declaração de perda, dada a sua natureza e o perante o ilícito típico praticado, não se apresenta desproporcional, sendo ainda certo que não é necessário que os objectos que sirvam para a prática do crime tenham essa aplicação exclusiva para serem declarados perdidos..”
Improcede pois o recurso
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III – DISPOSITIVO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pela arguida, AA, e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente fixando a taxa de justiça em 3 UCs


Elaborado e revisto pela relatora



Porto, 24/1/2024
Lígia Figueiredo
Pedro Afonso Lucas
Paulo Costa