As exceções previstas no art. 7º da Lei da Amnistia aplicam-se às condutas ainda não julgadas ou transitadas em julgado.(Sumário elaborado pela Relatora)
Promoção que antecede: Tomei conhecimento, nada se ordenando para efeitos de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, pelos fundamentos exarados na douta promoção retro.
***
1- O arguido foi pronunciado pela prática do crime de difamação agravada previsto e punido pelos artigos 180.º/1, art. 184.º ex vi art. 132.º/ 2/l) e art. 188.º/1/a), do Código Penal (CP), punível até 9 meses ou com pena de multa até 360 dias.
2- Foi requerido ao Tribunal a quo, que viesse a ser determinada a extinção do procedimento criminal, face ao disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
3- Estribado na Douta Promoção do Ministério Publico, o Tribunal a quo por despacho de 11.10.2023, nada ordenou quanto à aplicação ao caso sub judice da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
4- A nosso ver, salvo melhor e Douta opinião, esse despacho errou ao não determinar a extinção do procedimento criminal, ao abrigo do disposto no artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto e artigo 127.º/1, do CP.
1. O despacho recorrido vem na sequência de requerimento apresentado pelo arguido em que solicitava a aplicação da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, e o decretamento da amnistia ao procedimento criminal imputado ao arguido.
2 - As razões que constam da promoção exarada e do despacho judicial recorrido que com a mesma concordou mantém plena validade, pelo que, em bom rigor, nada mais há a acrescentar.
Assim, deverá improceder o decretamento da amnistia das infrações imputadas ao arguido, por força do disposto no art. 4º da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, assim como por força do disposto no art. 7°, n.º 2 da citada Lei, uma vez que o arguido se encontra a ser julgado por factos praticados contra membros de forças de segurança (Inspector da PJ) no desempenho das suas funções e por causa delas.
- CONHECIMENTO DO RECURSO
O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).
Assim, a questão a decidir prende-se exclusivamente com a aplicabilidade da Lei da Amnistia aos autos.
(…)
Defende o arguido que o crime de difamação agravada, previsto e punido pelos arts. 180º, n.º 1 e 184º, ex vi art. 132º, n.º 2, al. l), todos do Código Penal, se encontra amnistiado, face ao disposto no art. 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Esta Lei é aplicável “aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º” (cf. art. 2º, n.º 1), declarando o art. 4º: “São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”.
Sucede que a Lei n.º 38-A/2023 enunciou uma série de exceções no seu art. 7º, estipulando o n.º 2 o seguinte: “As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções”. No caso, o crime terá sido cometido contra membro de força de segurança (inspetor da Polícia Judiciária), no desempenho das suas funções e por causa delas, conforme consta da acusação proferida – importando apurar se esta norma exclui, de facto, a aplicação da amnistia prevista no art. 4º ao caso dos autos.
Na motivação recursiva, invoca o recorrente que os crimes excluídos pelo art. 7º pressupõem ter havido já uma condenação, nos termos do art. 128º, n.º 2, do Código Penal, configurando uma aplicação da amnistia em sentido impróprio e não em sentido próprio, como sucede com a aplicação do art. 4º da Lei n.º 38-A/2023.
Estabelece o n.º 2 do art. 128º do Código Penal, sobre os efeitos da amnistia: “A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.”.
Assim, nos termos desta norma a amnistia é própria quando extingue o crime e intervém antes da sentença penal transitada em julgado, operando a extinção do procedimento criminal; e é imprópria se concedida após a condenação definitiva, fazendo cessar a execução da pena – na que se inclui o perdão que é concedido a condenados pela prática de um crime, o ato de graça através do qual o poder político (Assembleia da República) declara extinta a totalidade ou parte da pena aplicada a uma categoria de pessoas ([1]).
No caso inexiste sequer uma condenação do recorrente.
A questão que importa decidir resume-se a apurar se as exceções previstas no art. 7º da Lei n.º 38-A/2023 são aplicáveis exclusivamente aos casos de amnistia imprópria (perdão).
Resulta do art. 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
Conforme afirma Batista Machado ([2]), “O art. 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjetivista e a doutrina objetivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da atividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exatamente que o legislador não se quis comprometer. (...)
Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a atividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.
A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".
Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação corretiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto "falhado" se colha pelo menos indiretamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjetivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador. Não significa isto que se não possa verificar a eventualidade de aparecerem textos de tal modo ambíguos que só o recurso a esses elementos externos nos habilite a retirar deles algum sentido. Mas, em tais hipóteses, este sentido só poderá valer se for ainda assim possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto infeliz que se pretende interpretar.
Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correto das expressões utilizadas. Com efeito, nos termos do art. 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e direto da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.”
É à luz destes princípios que haverá de ser interpretado o art. 7º da Lei n.º 38-A/2023.
Ora, logo no enunciado do n.º 1 do art. 7º a Lei inclui ambos os cados, de amnistia e perdão (Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei…); o n.º 2 refere as “medidas previstas na presente lei”, declarando o n.º 3 a “exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores”.
É certo que o legislador se refere a condenados nas als. a) a i) do n.º 1, bem como no n.º 2. No entanto, poderá interpretar-se a dita alusão como significando a redução da aplicação da norma aos condenados por sentença transitada em julgado?
Salvo o devido respeito, entendemos que não.
Do declarado previamente à enunciação dos crimes efetuada na norma em análise resulta de forma clara que o legislador pretendeu abranger quer a amnistia própria (prevista no art. 4º) quer a amnistia imprópria (art. 3º), ou seja, a amnistia stricto senso e o perdão de penas insertos nas medidas de clemência. Só esta interpretação permite a sua aplicação à amnistia própria que a norma legal pretende afastar, como resulta claramente da preposição e aposta entre os substantivos “perdão” e “amnistia” – e, quanto ao n.º 2 do art. 7º, as “medidas” previstas na lei, que são as mesmas que se encontram referidas no n.º 1.
Nem outro significado poderia ter tal referência a ambas as medidas de clemência, porquanto apenas a amnistia imprópria pode ser aplicada aos condenados por sentença transitada em julgado.
O fundamento das diversas exclusões à amnistia consignadas na lei assenta na gravidade objetiva dos crimes que atingem bens eminentemente pessoais, no elevado alarme social e/ou repulsa comunitária que causam, bem como no elevado perigo para a circulação e a veracidade das relações comerciais. Não se vislumbra como poderia considerar conforme à vontade do legislador que fossem excluídas da amnistia exclusivamente condutas já julgadas e condenadas por sentença transitada em julgado, deixando que as restantes, ainda não sujeitas a julgamento, beneficiassem das medidas de clemência.
Tal interpretação, que poderia ser a mais rigorosa considerando a letra da lei, viola os mais básicos sentimentos de justiça comunitária e a lógica do próprio sistema jurídico-penal, não tendo correspondência no texto da lei, interpretado de forma global, sendo a interpretação mais natural, correta e única consentânea com a vontade do legislador a que defendemos – ou seja, que aquele art. 7º da Lei n.º 38-A/2023 se aplica a todos os casos de amnistia, própria (art. 4º) e imprópria (art. 3º), concedidos em tal lei ([3]).
Entendendo-se que o prescrito no art. 7º, n.º 2, da Lei da Amnistia se aplica às condutas ainda não julgadas ou transitadas em julgado, soçobra totalmente o recurso interposto.
Pelas razões mencionadas, declara-se improcedente o recurso interposto pelo arguido.
Custas a cargo do recorrente, fixando em 4 UC’s a taxa de justiça (arts. 513º, n.º 1, do CPP, e tabela III anexa ao RCP).
Coimbra, 7 de fevereiro de 2024
Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)
Cristina Pêgo Branco (1ª adjunta)
José Eduardo Martins (2º adjunto)
[1] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, 3ª ed., pág. 495; Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, págs- 685-691; e Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 18.5.1994, proc. 04137, em www.dgsi.pt.
[2] Em “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 12.ª reimp., Coimbra, 2000, págs. 175-192
[3] No mesmo sentido, cf. o recente Acórdão proferido a 24.1.2024 por esta mesma secção (rel. Alexandra Guiné), no proc. 477/22.3GAPMS.C1, em vias de publicação em www.dgsi.pt.