CONCORRÊNCIA DESLEAL
CORREIO
TERCEIRO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
ADMINISTRAÇÃO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
Sumário


I - Os prestadores de serviços postais têm direito a negociar com o prestador do «serviço postal universal» (CTT – Correios de Portugal S.A) o acesso à rede afeta à prestação desse serviço;
II - Porém, os poderes atribuídos ao regulador para garantir a disponibilidade do serviço postal universal justificam, por si só, a relevância juspublicística do acesso de terceiros à rede postal afeta a esse serviço; e daí que a decisão que estabelece os termos e as condições de acesso à rede afeta ao serviço postal universal tem que ser tomada em primeira instância pela Administração reguladora.
III - Se os prestadores de serviços postais concorrentes não concordarem com os termos e condições oferecidos pelo prestador do serviço universal, devem solicitar à entidade reguladora – ANACOM – que fixe os termos e condições em que a rede afeta ao serviço postal universal pode ser utilizada.
IV - Sem uma pronúncia prévia do regulador, os tribunais não têm o poder de determinar os termos e as condições em que a rede afeta ao serviço postal universal pode ser utilizada, pois o princípio da separação de poderes – em concreto, o princípio do respeito da competência da Administração – seria infringido se o juiz exercitasse primariamente o poder administrativo de determinar aqueles termos e condições, em substituição da Administração.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1 Vasp Premium – Entrega Personalizada De Publicações, Lda. e Iberomail – Comércio Internacional, S.A., ao abrigo do disposto nos artigos 1.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho, e artigo 112.º, n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CTT – Correios de Portugal, S.A – Sociedade Aberta, formulando os seguintes pedidos:

a. Ser declarado que a Ré violou, desde 26 de junho de 2012, e que continua a violar, o artigo 102.º do TFUE e/ou o artigo 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio, ao

i. recusar o acesso grossista às Autoras à sua rede de serviço postal, primeiro absolutamente e depois em termos economicamente viáveis;

ii. impor um pure bundling desnecessário de serviços no acesso grossista à sua rede postal;

iii. praticar preços excessivos para o acesso grossista à sua rede postal;

iv. praticar preços que levam a um esmagamento de margens entre o mercado grossista e os mercados retalhistas de serviços postais tradicionais;

v. praticar condições discriminatórias no acesso à sua rede postal;

vi. praticar condições discriminatórias na oferta retalhista de serviços postais tradicionais; e/ou

vii. oferecer descontos seletivos e/ou condições técnicas preferenciais seletivas nos serviços retalhistas de correio tradicional e/ou em pacotes englobando serviços a montante.

b) Ser a Ré condenada a pôr termo às condutas anti concorrenciais e ilegais referidas, pondo termo às práticas de recusa de acesso, pure bundling, preços excessivos, esmagamento de margens e condições discriminatórias ou seletivas, e nomeadamente:

(i) dando de imediato acesso às Autoras à sua rede de distribuição postal ao nível dos CDP, para todos os tipos de correio, correio esse a ser entregue nos CDP pelas beneficiárias do acesso grossista devidamente separado e sequenciado por giro, com desconto grossista de, pelo menos, 34,11% sobre os preços da CTT para grandes clientes retalhistas; ou, subsidiariamente,

(ii) dando de imediato acesso às Autoras à sua rede de distribuição postal, para todos os tipos de correio, ao nível da rede de distribuição e com as condições que o Tribunal entenda necessárias ao cumprimento das obrigações legais da CTT, viabilizando prática e economicamente a utilização da oferta grossista; e, em qualquer dos casos acima referidos,

(iii) garantindo a efetiva separação funcional e contabilística da atividade postal grossista, sem acesso por outras unidades orgânicas da CTT ou por superiores hierárquicos à informação de beneficiários do acesso grossista fornecida nesse âmbito, e a aplicação das mesmas condições práticas e financeiras de acesso à rede de distribuição postal para a atividade postal retalhista da CTT e dos concorrentes da CTT;

(iv) não impondo condições de acesso grossista pelas Autoras à sua rede que sejam injustificadas ou desproporcionais; e

(v) ficando o respeito por estas condições sujeito a controlo por um mandatário independente (monitoring trustee) a ser designado pelo Tribunal e remunerado, em partes iguais, pela Ré e pelas Autoras, com poderes para ordenar medidas corretivas e atribuir indemnizações.

c) Ser a Ré condenada a indemnizar as Autoras pelos danos decorrentes dos comportamentos anti concorrenciais, culposos, ilícitos e danosos, em causa e concretamente

(i) à 1.ª Autora, danos correspondentes a damnum emergens e a lucrum cessans, desde 26 de junho de 2012 até que seja efetivamente posto termo aos comportamentos em causa, nesta fase ilíquidos, que se estima provisoriamente ascenderem até à presente data (sujeito a confirmação mediante acesso a meios de prova requeridos), a um montante entre EUR 69.583.932,91 e EUR 157.883.932,90;

(ii) à 2.ª Autora, danos correspondentes a damnum emergens e a lucrum cessans, desde 5 de outubro de 2012 até que seja efetivamente posto termo aos comportamentos em causa, nesta fase ilíquidos, que se estima provisoriamente ascenderem, até à presente data (sujeito a confirmação mediante acesso a meios de prova requeridos), a um montante entre EUR 9.483.995,80 e EUR 31.143.995,80. com atualização monetária, no caso do damnum emergens, desde a data em que se verificou o dano e, no caso do lucrum cessans, desde o final de cada mês durante o qual durou a infração até à citação para a presente ação, e acrescidos de juros de mora à taxa legal comercial ou, subsidiariamente, à taxa legal civil, desde a citação até efetivo pagamento, nesta fase ilíquidos.

d) Ser a Ré condenada em sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de restabelecimento da legalidade ordenada pelo tribunal nos termos da alínea (b) do presente pedido, com montante per diem não inferior a metade de 1/365 do volume de negócios da Ré nos mercados retalhistas de serviços postais tradicionais em Portugal no ano anterior ao da sentença, desde o trânsito em julgado da sentença;

e) Ser declarado que a Ré violou e continua a violar as obrigações legais que lhe foram impostas pela Decisão de Compromissos da AdC de 5 de julho de 2018 (PRC/2015/04), ao não prever e implementar uma separação funcional efetiva da atividade grossista e ao estabelecer na Oferta que é livre, a qualquer momento, de deixar de disponibilizar a Oferta de acesso grossista para correio normal, correio azul, correio editorial e/ou correio registado, se deixar de prestar esses serviços aos seus clientes retalhistas».

Na contestação, a Ré, além do mais, deduziu a exceção de incompetência absoluta do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS) no que diz respeito aos pedidos a), b) e d) da Petição Inicial, pugnando pela absolvição da instância, nos termos dos artigos 96.º e 99.º do CPC, aplicável ex vi artigo 23.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018, de 5 de julho, por considerar que o TCRS é absolutamente incompetente para conhecer tais pedidos.

As Autoras, em resposta, defenderam a competência do TCRS para conhecer os referidos pedidos.

Por decisão de 20 de novembro de 2022, o tribunal de primeira instância proferiu despacho saneador no âmbito do qual julgou improcedente a exceção de incompetência material relativamente aos pedidos a), b) e d) da Petição Inicial.

Dessa decisão, a ré CTT interpôs recurso de apelação, tendo o mesmo sido julgado improcedente por acórdão que confirmou a decisão que julgou o tribunal competente.

2 - Inconformada com essa decisão, a apelada interpôs recurso de revista, através de alegações, onde concluiu o seguinte:

A. No Acórdão decidiu-se que os Tribunais Judiciais têm competência, isto é, são a jurisdição competente para conhecer todos os pedidos formulados, independentemente da respetiva procedência, que não coube analisar no Acórdão, por não ser objeto do recurso – cf. parágrafos 38 a 50 do Acórdão.

B. Decidiu-se ainda que causa de pedir da ação é fundamentada exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, pelo que é o TCRS, dentro da jurisdição dos Tribunais Judiciais, o Tribunal competente para julgar a ação – cf. parágrafos 25 a 37 do Acórdão.

C. A recorrente considera, em suma, que sendo os Tribunais Judiciais competentes para parte do pedido, não são competentes para conhecer e julgar os pedidos b) e d) da Petição Inicial e, em qualquer caso, o TCRS não é, dentro da esfera de jurisdição dos Tribunais Judiciais, o Tribunal competente para conhecer e julgar a presente ação.

D. Contrariamente ao propugnado no Acórdão –cf. Parágrafo 40 – o direito de acesso funda-se em interesses de ordem pública que extravasam, na sua análise ou nos seus efeitos, a esfera de uma relação privada e que, consequentemente, cabem ao regulador setorial, não ao Tribunal Judicial, salvaguardar.

E. A posição jurídica que as Recorridas alegam, ou seja, os seus direitos, em especial para os pedidos b) e d) da Petição Inicial, emerge da Lei Postal e do concreto regime de acesso à rede que deste ato normativo decorre, ou seja, do seu artigo 38.º.

F. Em termos de fisionomia do concreto direito de acesso à rede que é alegado pelas Recorridas, importa clarificar que, nos termos do artigo 36.º, alínea c), da Lei Postal, tal direito, em termos regulatórios, é o de negociar e aceder às redes postais nos termos previstos neste ato normativo, ou seja, ao abrigo do artigo 38º.

G. E, olhando para esta norma, fica claro que compete ao regulador setorial, a ANACM, intervir na matéria em caso de falta de acordo entre as partes, ao abrigo do artigo 54.º da Lei Postal (n.º 3), ou, proactivamente, quando tal se revele necessário para garantir uma concorrência efetiva ou os interesses dos utilizadores (n.º 5).

H. E a sua esfera de competências e especificamente no que concerne ao acesso à rede postal, a ANACOM “pode determinar os termos e condições do acesso, incluindo os preços, quando tal se revele necessário para garantir uma concorrência efetiva ou os interesses dos utilizadores e estejam preenchidos os seguintes requisitos: a) Quando estejam em causa elementos da rede postal sem o acesso aos quais um prestador de serviços postais encontre dificuldades para aceder ao mercado; b) Quando o acesso não prejudique a segurança, a eficiência e a integridade da mesma nem a prestação do serviço universal” – cf. artigo 38.º, n.º 4, da Lei Postal.

I. As competências da ANACOM configuram poderes discricionários, na medida em que é atribuída a esta entidade jurídica um espaço de conformação dentro da sua competência técnica no sector definir as melhores soluções para a regulação do acesso – cf., a este respeito, além do mais, o artigo 40.º da Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, que aprovou a lei-quadro das entidades reguladoras.

J. A ANACOM tem, por conseguinte, a possibilidade de equacionar várias opções para regular o acesso, cabendo-lhe definir qual delas é mais adequada e proporcional uma vez ponderados os interesses em presença.

K. Por este motivo, no caso de espaços de conformação de um regulador, onde este tem um poder discricionário associado à sua competência técnica, está em causa o exercício da função administrativa, não podendo os tribunais interferir, sob pena de violação do princípio da separação de poderes, consagrado no artigo 111.º da CRP, em particular entre função administrativa e judicial – cf. a este propósito, a jurisprudência mencionada na alegação.

L. À luz do queseestatui no artigo 38.º da Lei Postal, os Tribunais Judiciais – adstritos às partes do processo, ao princípio do dispositivo e ao objeto do processo que da relação material controvertida dimana –, pura e simplesmente, não têm condições para, perante pedidos como o b) e d) da Petição Inicial:

a. Apurar os impactos gerais da procedência de um pedido de conformação dos modos e termos de acesso à rede postal e, designadamente, saber se a procedência de um pedido de acesso à rede tem ou não impactos indesejáveis e desproporcionados em quem a detém, desincentivando decisões de investimento, e discriminatórios ou condicionantes do acesso de outros concorrentes à referida rede;

b. Acautelar o risco de comprometer “a segurança, a eficiência e a integridade” da rede postal e “a prestação do serviço universal”, que, como previsto no artigo 38.º, n.º 4, da Lei Postal, qualquer intervenção no acesso à rede postal deve considerar; e

c. Integrar na sua decisão – que cristalizará, por efeito do caso julgado – uma forma de acesso à rede que, com o decurso do tempo, se mantenha continuamente ajustada às circunstâncias de evolução dos mercados e à promoção da concorrência.

M. Os tribunais não podem substituir a ANACOM no seu juízo técnico em matérias de necessidade e oportunidade de intervenção e de conteúdo da regulação dos serviços postais, em particular na regulação de acesso nos termos da Lei Postal.

N. Os Tribunais Administrativos, nos termos previstos no CPTA, intervêm, obviamente, e, como não podia deixar de ser, no âmbito do controlo jurisdicional da atuação ou omissão da atuação do regulador, é dizer, no controlo da sua legalidade, mas não lhes cabe exercer funções primárias de regulação, que cabem, exclusivamente, no que ao caso sub iudice diz respeito, à ANACOM

O. Cometendo a lei ao regulador a tarefa de definir as regras de acesso à rede postal, sem que o regulador atue – ou sem que se abstenha ilicitamente de atuar, omitindo a atuação devida –, não podem os regulados, sem mais, “saltar etapas” e dirigir-se diretamente ao tribunal – nem sequer os Administrativos, e menos ainda os Judiciais – para pedir uma tutela deque ainda não carecem e que não lhes foi recusada em qualquer momento anterior.

P. Também contrariamente ao sustentado no Acórdão, verifica-se que nos pedidos b) e d) da Petição Inicial estamos perante a “definição de procedimentos e regulamentos a operar de forma estrutural no mercado em causa” – cf. parágrafo 44 do Acórdão.

Q. A (eventual) procedência do pedido de “acesso à rede de distribuição postal [da Recorrente] ao nível dos CDP, para todos os tipos de correio, correio esse a ser entregue nos CDP pelas beneficiárias do acesso grossista devidamente separado e sequenciado por giro, com desconto grossista de, pelo menos, 34,11% sobre os preços dos CTT para grandes clientes retalhistas” tem um inequívoco e substancial impacto estrutural no mercado em causa, uma vez que poderá configurar uma bitola geral de acesso à rede.

R. Nos termos do artigo 38.º, n.º 1, da Lei Postal, o acesso à rede postal deve ser assegurado em condições não discriminatórias, pelo que qualquer decisão que vier a ser adotada pelo Tribunal poderá ter um efeito prático além das partes no processo, sem, porém, ser possível sopesar as consequências resultantes do facto de terceiros afetados pela decisão a proferir não estarem, nem virem a estar, nos autos.

S. Contrariamente ao que o Tribunal da Relação de Lisboa entende, o que está em causa nos pedidos b) e d) da Petição Inicial e o que as Autoras lhe pedem é a pura regulação do mercado (i.e., entre outros, definição de ponto de acesso, condições de entrega de correio e preços grossistas e até monitorização externa de cumprimento), por via da composição de um litígio entre particulares, não apenas a definição de condições a praticar entre a Recorrente e as recorridas.

T. Depois, contrariamente ao sustentado no Acórdão – cf. parágrafo 43 –, é um dado de facto que a ANACOM tem competência não apenas para definir as condições de acesso à rede, mas também para dirimir divergências nas condições de acesso, ou seja, para ajuizar se existe algum vazio a suprir, ou se o mercado está bem, ou melhor, como está.

U. A ANACOM aprovou, em 16.06.2017, um sentido provável de decisão sobre os pontos de acesso à rede postal, definindo os termos em que esse acesso pode ser realizado, tendo as Recorridas e a Recorrente apresentado pronúncias em que detalharam os modos e os termos em que tal acesso deveria ocorrer.

V. Não tendo a ANACOM proferido, até à data, qualquer decisão final no âmbito do procedimento em curso, quanto aos modos e aos termos do acesso à rede postal, é de presumir, nos termos atrás descritos, que o regulador setorial considere, do ponto de vista do interesse público tutelado pelas normas da Lei Postal em questão, que os requisitos de intervenção não estão preenchidos ou que não se verifica necessidade ou oportunidade de intervenção.

W. Perante uma omissão ou atuação por parte da ANACOM, as Recorridas podem sempre reagir junto dos Tribunais Administrativos competentes – cf. artigo 56.º, n.º 2, da Lei Postal –, podendo, nos termos previstos no CPTA, solicitar tutela adequada com o intuito de obter a anulação ou a declaração de nulidade ou inexistência de atos administrativos ou a condenação à prática de atos devidos, nos termos da lei (cf. artigos 2.º, 51.º e seguintes e 66.º e seguintes).

X. Não existe, pois, qualquer vazio que possa reclamar uma intervenção dos Tribunais Judiciais.

Y. Na leitura do Acórdão recorrido, qualquer interessado, na pendência de um procedimento administrativo, e antevendo a futura prolação de uma decisão do regulador que reputa de desfavorável para si, poderia dirigir-se aos Tribunais Judiciais com vista a obter uma sentença que neutralizasse, na génese, a possibilidade de o regulador exercer os seus poderes, o que se afigura inaceitável.

Z. Os artigos 102.º do TFUE e 11.º da LdC não conflituam com a competência da ANACM acima explanada, pois ainda que os Tribunais nacionais, nos termos do artigo6.ºdo Regulamento (CE) n.º 1/2003, tenham competência para aplicar o artigo 102.º do TFUE e, por maioria de razão, as normas da LdC, isso não lhes confere uma competência ilimitada nem isenta de fronteiras inerentes à própria ordem jurisdicional, ou seja, à natureza das respetivas atribuições e competências.

AA. Na perspetiva do direito da concorrência – e em especial do artigo 102.º do TFEU e do artigo 11.º da LdC – os Tribunais Judiciais são também absolutamente incompetentes para conhecer e julgar os pedidos b) e d) da Petição Inicial.

BB. A concretização do modo de pôr termo à infração – em especial nos casos de abuso de posição dominante – poderá excecionalmente ser realizada por uma autoridade de concorrência competente quando conclua que essa é a única forma de alcançar o efeito útil da decisão condenatória. É isso que resulta dos artigos 5.º e 7.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003.

CC. Não compete, porém, aos Tribunais Judiciais fazê-lo no quadro do artigo 6.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003 e no respeito pelos limites inerentes ao efeito direto do artigo 102.º do TFUE.

DD. A Recorrente deveria ter sido absolvida da instância no que diz respeito aos pedidos b) e d) da Petição Inicial, nos termos dos artigos 96.º e 99.º do CPC, aplicáveis à presente ação ex vi artigo 23.º, n.º 1, da LPE.

EE. E, consequentemente, deveria ter sido declarado que os Tribunais Judiciais não são competentes para determinar: (i) o local de acesso à rede de distribuição postal; (ii) as condições em que o correio pode ser entregue; (iii) o preço do acesso à rede, em especial, qualquer fórmula do respetivo cálculo (nomeadamente, a fixação de um desconto grossista sobre o preço praticado aos grandes clientes retalhistas); (iv) medidas de separação funcional e contabilística das atividades grossista e retalhista; e (v) medidas de monitorização das obrigações que fossem definidas.

FF. Ao ter decidido de modo distinto, o Tribunal a quo violou os artigos 96.º e 99.º do CPC, aplicáveis à presente ação ex vi artigo 23.º, n.º 1, da LPE, mas também os artigos 8.º, n.º 1 e 2, da Lei Postal, e 39.º, 40.º e 144.º da LOSJ.

GG. E violou também os limites da aplicação do artigo 102.º do TFUE pelos Tribunais nacionais com fundamento no efeito direto da referida disposição, entendimento que, no caso de se suscitarem dúvidas, deve ser obrigatoriamente objeto de reenvio prejudicial de interpretação para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos Termos do artigo 267.º do TFEU, sobe pena de violação de interpretação para o Tribunal de Justiça da União Europeia, nos nostermosdoartigo267.º do TFUE, sob pena de violação do artigo 8.º da CRP.

HH. Mesmo que se concluísse que os Tribunais Judiciais tinham competência para decidir os pedidos b) e d) da Petição inicial, ainda assim, a competência para decidir todos os pedidos dos presentes autos, dentro da esfera de jurisdição dos Tribunais Judiciais, não caberia ao TCRS.

II. Contrariamente ao defendido no Acórdão – cf. parágrafo 29 do Acórdão –, não é correto sustentar-se que as normas da Lei Postal e do SPU estão “conformadas” pelas normas da concorrência e criadas em respeito por essas normas, numa mera densificação dos princípios que enformam a concorrência, pelo que uma violação de tais normas é, ainda, uma violação exclusiva das normas da concorrência.

JJ. Além de definira prestação de serviços postais em plena concorrência, o legislador estabeleceu ainda como objetivos principais da Lei Postal: (i) assegurar a prestação eficiente e sustentável de um SPU e (ii) estabelecer os direitos e interesses dos utilizadores, em especial dos consumidores (cf. alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei Postal).

KK. As Recorridas alegaram sistematicamente o regime jurídico aplicável aos serviços postais, decorrente Lei Postal, e as obrigações alegadamente decorrentes do SPU, nomeadamente as obrigações que, ao abrigo do artigo 38.º, advêm especificamente para o prestador de serviço universal.

LL. Fizeram-no para deles extraírem direitos e condições de acesso à rede da Recorrente que o direito da concorrência não contempla, pois se o contemplasse, naturalmente, as Recorridas não teriam sentido necessidade de divergir para a Lei Postal e de SPU.

MM. O amparo que as Recorridas procuraram na Lei Postal e de SPU não é isento de consequências, havendo conclusões a ser retiradas de tal circunstância, nomeadamente para efeitos de definição da extensão da causa de pedir e definição do tribunal materialmente competente.

NN. Alegando-se as normas da Lei Postal e de SPU enquanto normas integrantes de um pretenso ilícito de normas concorrenciais, a causa de pedir nunca se assume “exclusivamente” a infrações ao direito da concorrência, uma vez que convoca a destrinça entre diferentes finalidades da Lei Postal e de SPU, que, por definição, não são exclusivamente dirigidas a finalidades de tutela da concorrência.

QQ. O mesmo é dizer que é a própria causa de pedir, conformada pelas Recorridas, que se ampara em fundamentos exógenos à mera finalidade de tutela da concorrência.

PP. E tanto basta para que o TCRS não possa ser competente para a presente ação, uma vez que tem a sua competência limitada às ações cíveis cuja causa de pedir se funde “exclusivamente” em infrações ao direito da concorrência – cf. n.º 3 e 4 do artigo 112.º da LOSJ.

QQ. A Recorrente deveria ter sido absolvida da instância relativamente a todos os pedidos, nos termos dos artigos 96.º e 99.º do CPC, aplicáveis à presente ação ex vi artigo 23.º, n.º 1, da LPE.

RR. Ao ter decidido de modo distinto, o Tribunal a quo violou os referidos artigos 96.º e 99.º do CPC, aplicáveis à presente ação ex vi artigo 23.º, n.º 1, da LPE, mas também os artigos 8.º, n.º 1 e 2, da Lei Postal, e 39.º, 40.º e 112.º, n.º 3 e n.º 4, da LOSJ.

3. – As recorridas contra-alegaram, onde formularam as seguintes conclusões:

A. Vem o recurso de Revista interposto pela Ré – aqui recorrente – do acórdão proferido pelo Tribunal a quo que confirmou a decisão do Tribunal da Concorrência que tinha julgado improcedente a exceção de incompetência material

B. Não obstante a manifesta legalidade das sucessivas decisões, o esforço demonstrado pela Recorrente para obter a qualquer custo a sua absolvição da instância está votado ao insucesso.

C. É da conjugação da causa de pedir e dos pedidos formulados no caso sub judice que os tribunais têm – como fizeram – de aferir a sua competência, nomeadamente, da sua competência material, sendo irrelevantes para esta apreciação os factos, interpretações e construções jurídicas feitas pelo réu na sua contestação.

D. Como decorre da petição inicial, e como foi compreendido pela Ré, pelo Tribunal da Concorrência e pelo Tribunal a quo, as Autoras alegaram factos subsumíveis exclusivamente na violação do artigo 102.º do TFUE e do artigo 11.º da LdC, e pediram na alínea a), única e exclusivamente, que declare a infração das normas do direito da concorrência.

E. Os demais pedidos que foram formulados nas alíneas b) a d) pelas Autoras são dependentes ou consequentes da infração pela Recorrente das normas do direito da concorrência, não tendo, assim, uma verdadeira autonomia em termos de competência.

F. Sem prejuízo do exposto quanto à forma como deve ser aferida a competência material, o segmento do recurso interposto do acórdão recorrido relativamente à alínea a) do pedido está em contradição com o teor das alegações apresentadas pela própria Recorrente, nomeadamente, com o seu ponto 106.

G. Isto porque, neste ponto concreto das alegações, a Recorrente reconhece a competência do Tribunal da Concorrência para conhecer e julgar o pedido formulado pelas Autoras na alínea a).

H. Com efeito, as Autoras invocaram, expressa e exclusivamente, uma violação do artigo 102.º do TFUE e do artigo 11.º da LdC, e pediram ao Tribunal da Concorrência, única e exclusivamente, que declare a infração das normas do direito da concorrência e, consequentemente, condene a Ré.

I. As Autoras não pretendem que o Tribunal da Concorrência interprete e aplique o regime da Lei Postal, nem, como se demonstrou, a causa de pedir é a violação de normas setoriais. Se vingasse o raciocínio da Recorrente de que o Tribunal da Concorrência só seria competente em ações de private enforcement quando a infração do direito da concorrência nunca pudesse, potencialmente, ser uma infração de qualquer outra natureza, então, o artigo 112.º(3) e (4) da LOSJ ficaria privado de todo o seu efeito útil.

K. Na visão da Recorrente, por muito que um lesado invocasse exclusivamente uma violação do direito da concorrência, o réu poderia sempre suscitar a potencial violação de normas de direito civil, regulatório, práticas comerciais desleais, etc., e assim excluir a competência do Tribunal da Concorrência.

L. Quanto ao pedido identificado na alínea b) - que a Ré seja condenada a pôr termo às condutas anti concorrenciais e ilegais referidas, pondo termo às práticas de recusa de acesso, pure bundling, preços excessivos, esmagamento de margens e condições discriminatórias ou seletivas - a Recorrente não coloca em causa a competência do Tribunal da Concorrência para conhecê-lo e julgá-lo.

M. A Recorrente aceita que o Tribunal da Concorrência, caso identifique um comportamento ilícito, tem competência para ordenar que a Recorrente ponha termo a essa conduta ilícita.

N. Relativamente à restante parte do pedido formulado na alínea b) que é posta em crise pela Recorrente, esta começa por pretender omitir que a causa de pedir se funda numa norma europeia, mas também numa norma nacional de direito da concorrência.

O. Por outro lado, a Recorrente faz uma interpretação restritiva e não conforme sobre a competência dos tribunais judiciais para aplicação do artigo 102.º do TFUE.

P. É absolutamente falso que só a Comissão ou as autoridades nacionais de concorrência possam ordenar soluções comportamentais ou estruturais impostas pelo direito da concorrência, isto porque os tribunais nacionais também podem ser chamados a fazer tais determinações em litígios concretos entre privados nos termos do artigo 6.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003.

Q. A competência atribuída pelo artigo 6.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003 aos tribunais nacionais para ordenar a adoção de comportamentos impostos pelo direito da concorrência ao lesante não configura “um instrumento alternativo de regulação setorial”.

R. Como é evidente, nem o direito regulatório derroga o direito da concorrência, nem esta discussão tem qualquer impacto sobre a aferição da competência do Tribunal da Concorrência.

S. No caso concreto, o Tribunal da Concorrência não controlará, de modo algum, a atuação ou a legalidade de qualquer ato da ANACOM.

T. A interpretação que a Recorrente faz do artigo 6.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003 conduz a uma violação do direito fundamental de acesso à justiça consagrado no artigo 20.º (1) e (5) da CRP, pois uma parte lesada por um comportamento ilícito não seria capaz de obter em tribunal uma condenação do lesante à adoção do comportamento lícito, apenas uma condenação genérica ao respeito pela legalidade, que, deixando ao lesante margem para interpretações que privassem essa condenação do seu efeito útil, não seria um remédio adequado à proteção dos legítimos interesses da parte lesada, não seria uma “tutela efetiva”.

U. O que a Recorrente defende é que as empresas dos setores da economia subordinados a um regulador setorial ganhem uma “imunidade judicial” relativamente ao private enforcement da concorrência. E, já agora, também ao public enforcement da concorrência.

V. Tal tese é inaceitável num Estado de Direito.

W. Quanto ao argumento da Recorrente de que, se o Tribunal concluísse que o direito da concorrência obrigaria a Recorrente a dar acesso à sua rede nos termos requeridos pelas Autoras, isso comprometeria a segurança, eficiência e integridade do serviço postal universal, isto é uma discussão relativa ao mérito da ação, não à competência do tribunal, e, em todo o caso, o próprio direito da concorrência (e o direito constitucional) oferece uma solução: o interesse menos importante deve ceder, na medida da proporcionalidade.

X. Sobre a invocação de uma possível violação da proibição de desaforamento, este argumento é a assunção pela Recorrente de que os tribunais judiciais são os tribunais competentes para conhecer e julgar a presente ação.

Y. Quanto ao segmento do recurso interposto pela Recorrente que defende a incompetência material do Tribunal da Concorrência para conhecer e julgar o pedido formulado na alínea c), o mesmo está em contradição como o alegado na contestação, nomeadamente, no seu artigo 79.º. Em momento algum do seu articulado de defesa a Recorrente coloca em causa a competência do Tribunal da Concorrência para conhecer do pedido indemnizatório, antes assume e reconhece a sua competência.

AA. Sendo que o pedido formulado na alínea c) é uma decorrência das infrações das normas do direito da concorrência.

BB. Sobre a incompetência material do Tribunal da Concorrência para conhecer o pedido formulado na alínea d), a Recorrente não alega qualquer fundamento para a alteração da decisão.

CC. Tendo o Tribunal da Concorrência competência para conhecer a presente ação, tem também competência para a condenação acessória da Recorrente no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória conforme peticionado na alínea d).

DD. Face ao exposto, não merece qualquer censura a decisão proferida pelo Tribunal a quo que confirmou a decisão proferida pelo Tribunal da Concorrência que tinha indeferido a exceção de incompetência material invocada pela Recorrente.

II – Fundamentação

4 - O objeto mediato do recurso de revista, tal como vem delimitado nas conclusões das alegações, é a decisão judicial que confirmou o juízo de improcedência da exceção de incompetência do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS) suscitada pela recorrente na contestação.

O TCRS, no despacho saneador, considerou o tribunal competente com a seguinte fundamentação: «como as Autoras sumariaram na Petição Inicial, nos pontos 1. a 6., a presente ação é configurada como uma ação de private enforcement do direito da concorrência, baseada exclusivamente em infrações ao direito da concorrência previstas nos artigos 102.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio (abuso de posição dominante). Trata-se de uma ação maioritariamente stand-alone, e parcialmente follow-on quanto à infração subjacente à Decisão de Compromissos da Autoridade da Concorrência (AdC) de 5 de julho de 2018 proferida no processo de contraordenação n.º PRC/2015/04. E visa a condenação da Ré a pôr termo às práticas anticoncorrenciais ainda em curso, melhor elencadas no ponto 4. do referido sumário, e no pagamento de uma indemnização às Autoras pelos danos causados por essas práticas anticoncorrenciais, para o que ainda é pedido o acesso a meios de prova. Pelo que, atendendo à causa de pedir articulada pelas Autoras e aos pedidos formulados daí decorrentes, e ao disposto no artigo 112.º, n.ºs 3 e 4 da LOSJ, na redação conferida pela Lei n.º 23/2018, de 05 de junho, sem prejuízo da bondade dos pedidos formulados pelas Autoras, designadamente daqueles elencados nas alíneas a), b) e d), a ajuizar apenas a final, o TCRS é materialmente competente para conhecer a presente causa».

Por sua vez, a Relação manteve esta decisão, considerando que (i) os comportamentos que as apeladas imputam à apelante, ainda que convoquem o regime da Lei Postal, são passíveis de integrar “abuso de uma posição dominante no mercado interno”, uma típica e exclusiva violação das regras da concorrência, que cai no âmbito das normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 112.º da Lei de Orgânica do Sistema de Judiciário (LOSJ); (ii) os fundamentos da ação estão na esfera das “relações de direito privado” e não no âmbito da regulação do mercado, pertencendo o seu conhecimento ao «mérito da ação» e não ao das «condições necessárias» para o seu prosseguimento.

A recorrente tem opinião divergente sobre a questão da competência do tribunal, impugnando o juízo do tribunal recorrido com os seguintes argumentos: (i) o direito de acesso à rede postal funda-se em interesses de ordem pública que só o regulador sectorial pode salvaguardar; (ii) a procedência do pedido de acesso à rede tem impacto estrutural no mercado, afetando terceiros que não estão nos autos e «esvazia», limita ou impede o exercício ulterior das competências do regulador; (iii) A ANACOM, a pedido da recorrida Iberomail, iniciou um procedimento de resolução administrativa de litígios, no âmbito do qual se definirá os modos e termos de acesso à rede postal e por isso, embora não tenha havido ainda qualquer decisão, a tutela jurisdicional efetiva está garantida através do recurso aos tribunais administrativos; (iv) os tribunais nacionais quando aplicam o direito da concorrência da União Europeia – artigos 101.º e 102.º do TFUE – estão condicionados pelos princípios do efeito direto e aplicação uniforme, o qual não abrange o espaço de concretização de politica de concorrência, como é o caso da definição das condições e acesso à rede postal; (v) a jurisprudência dos Tribunais da União considera que, nos quadro de aplicação dos artigos 101.º e 102.º do TFUE, quando haja mais do que uma forma possível de fazer cessar a infração, não deve ser determinada à empresa uma forma concreta de satisfazer esse objetivo; (vi) o TCRS não é competente porque a causa de pedir não se resume «exclusivamente» em infrações ao direito da concorrência.

Não obstante a observância da regra da «dupla conforme», a revista é admissível porque sustentada na violação das regras de competência em razão da matéria (n.º 2 do artigo 671.º e alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC).

A recorrente coloca o problema da competência, enquanto pressuposto processual de que depende o dever de proferir decisão de mérito sobre a causa, num duplo plano: no das relações entre a jurisdição e a administração e no da relação entre as diferentes categorias de tribunais. Naquele, trata-se de saber se, no âmbito das relações internas entre os vários poderes do Estado, o conhecimento de dois dos pedidos da ação infringe o princípio da separação de poderes; neste, pressupondo que existe jurisdição, determinar qual o tribunal competente em razão da matéria da causa.

Como se sabe, a delimitação externa da atividade própria do conjunto dos tribunais, em confronto com a dos outros órgãos do Estado, principalmente os da Administração, e a delimitação interna da atividade dos diversos tribunais quando confrontados entre si, tem que ser aferida de acordo com a pretensão de interesses atuada no processo.

5 As autoras, ora recorridas, formularam pretensões que, embora fundadas no mesmo facto jurídico – abuso de posição dominante – são distintas e autónomas entre si: (i) pedido de indemnização por danos decorrentes do incumprimento das regras da concorrência; (ii) pedido de acesso à rede de serviço postal explorada pela recorrente. Embora conciliáveis, porque assentam no mesmo facto concreto, os pedidos são teleológica e funcionalmente distintos: o objetivo do direito à indemnização e do correspondente dever de indemnizar é a reparação dos prejuízos causados com a violação das regras da concorrência; o objetivo do direito (num sentido amplo, que engloba os interesses legalmente protegidos) ao acesso à rede de serviço postal é garantir uma concorrência efetiva entre prestadores de serviços postais, assegurando igualdade de acesso ao mercado.

Se bem que a recusa em negociar o acesso à rede de serviços postais também constitua contraordenação passível de coima alínea s) do n.º 1 do artigo 49.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril (Lei Postal) –, os conflitos de interesses e litígios subjacentes aos dois pedidos são diversos: o pedido de indemnização pelos danos sofridos pelo abuso de posição dominante tem por base uma relação jurídica puramente privada entre recorrente e recorridas; já o pedido de acesso à rede postal da recorrente, na medida em que incide sobre a rede afeta ao «serviço postal universal» (SPU), está diretamente relacionado com o interesse público no funcionamento deste serviço. De modo que o conflito de interesses («controvérsia económica») e os litígios que dele resultem («controvérsia jurídica») não podem ser dirimidos com os mesmos fundamentos legais: o direito à indemnização por infração ao direito da concorrência é regulado pelo artigo 483.º do Código Civil e pela Lei n.º 23/2018, de 5 de junho (Direito à indemnização por infração ao direito da concorrência); já o direito de acesso à rede postal está previsto no artigo 38.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril (Regime jurídico aplicável à prestação de serviço postal – LP).

Portanto, a normatividade jurídica exigida para cada um dos pedidos, embora fazendo parte da disciplina jurídica do mercado e da economia, apresenta relevantes diferenças: um integra-se no direito da concorrência, direito que incide sobre toda a economia (regulação transversal); o outro insere-se no direito da regulação, direito que incide sobre um sector económico ou social determinado (regulação sectorial). Não obstante ambos os direitos, no seu sentido objetivo que não se confunde com qualquer situação jurídica, incorporarem o conjunto de normas que forma o direito administrativo da regulação, as características e particularidades de cada uma das realidades – concorrência e regulação – implicam diferentes formas e instrumentos de intervenção do Estado nas atividades privadas desenvolvidas em contexto concorrencial, com consequências significativas nos diversos problemas que aí se colocam.

A recorrente não discute o poder jurisdicional e a competência do TCRS para apreciar e decidir o pedido de indemnização por infração ao direito da concorrência, mais especificamente, por violação do artigo 102.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) e/ou o artigo 11.º da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio. De facto, do que se trata aí é de uma ação indemnizatória por incumprimento de disposições de proteção de interesses privados. Se dúvidas houvesse quanto à invocação das normas concorrenciais como «disposições legais de proteção de interesses alheios» – segunda modalidade de ilicitude extracontratual, prevista no artigo 483.º do Código Civil – , a Lei n.º 23/2018, de 5 de junho, além de introduzir regras especiais no domínio da responsabilidade civil por violação das normas da concorrência, no artigo 3.º, n.º 1, remete para aquela disposição do Código Civil a obrigação de indemnização dos lesados por danos decorrentes de infrações ao direito da concorrência.

Esta Lei transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Diretiva n.º 2014/104/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de novembro de 2014, relativa a certas regras que regem as ações de indemnização no âmbito direito nacional por infração às disposições do direito da concorrência dos Estados-Membros e da União Europeia. Na sequência de várias decisões do TJUE v.g. acórdãos de 20/9/2001 (proc. C - 453/99, Courage & Crehan), 13/7/2006 (proc. C- 295/04, Manfredi), e 5/6/2014 (proc. C -557/12, Kone) –, a Diretiva e o Decreto-Lei que a transpôs introduziram um regime de private enforcement do direito da concorrência, possibilitando que o direito antitrust da União Europeia, que consiste na proibição dos carteis e do abuso da posição dominante (artigos 101.º e 102.º d0 TFUE), tivesse aplicação privada, através de pretensões indemnizatórias dos danos causados. Desta forma, sem substituir ou prejudicar a ação dos poderes públicos (public enforcement), criou-se um sistema de private enforcement baseado em ações indemnizatórios, um meio de garantir não só a compensação dos lesados, como também a eficácia das normas comunitárias do direito da concorrência.

Esta espécie de ações de indemnização são da competência do TCRS: o artigo 22.º da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho, alterou o artigo 112.º da LOSJ, passando o seu n.º 3 a dispor que «compete ao tribunal julgar as ações de indemnização cuja causa de pedir se fundamente exclusivamente em infrações ao direito da concorrência, ações destinadas ao exercício do direito de regresso entre coinfratores, bem como pedidos de acesso a meios de prova relativos a tais ações, nos termos previstos na Lei n.º 23/2018, de 5 de junho». Ações civis que nem sequer dependem da prévia declaração pelas autoridades da concorrência ou pelos tribunais da existência de infração ao direito da concorrência – ou seja, há lugar às chamadas stand-alone actions.

6 - O problema de direito que se suscita é pois o da competência do tribunal para decidir o pedido de acesso à rede postal da recorrente, quer porque os n.ºs 3 e 4 do artigo 112.º da LOSJ usam o termo «exclusivamente» na definição da espécie de ações indemnizatórias incluídas na competência concreta do TCRS, quer porque tal pretensão enquadra-se no âmbito do direito da regulação sectorial relativo a um específico sector económico ou social – o Sector postal. Como o direito administrativo da regulação não se traduz apenas na tutela ou composição de interesses privados, visa sobretudo servir a prossecução de interesses públicos diretamente tutelados pela Lei Fundamental (alínea d) do artigo 9.º e alínea f) do artigo 81.º), impõe-se determinar em que medida o direito de acesso de terceiros às redes postais pode pôr em causa a realização de um específico interesse público administrativo.

Com efeito, se o litígio entre particulares se cruza com interesses públicos cuja satisfação é imputada à Administração, não se pode pura e simplesmente ignorar a autonomia das decisões jurídico-públicas e as limitações próprias de uma atuação judicial de controlo de competências alheias. Se a situação litigiosa entre particulares, ainda que movidos pelo interesse privado em reagir contra práticas concertadas que impeçam, falseiem ou restringem a concorrência, conflituar com interesses públicos que só a Administração reguladora pode satisfazer, então há que averiguar se a função de decidir, a autoria e a responsabilidade pela decisão cabem em primeira linha à Administração, reservando-se ao tribunal o controlo da decisão encontrada.

7 - O serviço postal era um serviço que se encontrava sob reserva pública: a alínea b) do n.º 1 da Lei n.º 88-A/97 de 25 de julho, dispunha que era vedado a empresas privadas e outras entidades da mesma natureza, salvo quando concessionadas, o acesso a «comunicações por via postal que constituam o serviço público de correios», definido mediante decreto-lei. Porém, tal como ocorreu em variados sectores de intervenção pública económica, especialmente nas indústrias de rede (v.g. energia, telecomunicações), por influência do direito da União Europeia, os serviços postais sofreram um processo de liberalização e de privatização, traduzido na abertura à livre concorrência.

Conforme delineado pela Diretiva n.º 97/67/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de dezembro de 1997 (Diretiva Postal), a liberalização do mercado postal teve início em 1999 através da Lei n.º 102/99, de 26 de julho, que determinou a criação progressiva de um mercado único e aberto dos serviços postais de correio, com vista à despublicização gradual e controlada do mesmo, e do Decreto-Lei n.º 448/99, de 4 de novembro, que aprovou as bases da concessão do serviço postal universal entre o Estado e a CTT – Correios de Portugal, S.A.

Numa primeira fase, uma parte dos serviços postais – entendidos como atividade que integra as operações de aceitação, tratamento, transporte e distribuição de envios postais – ainda ficou na esfera pública estadual, pois a referida Lei n.º 102/99 atribuiu ao Estado o encargo de assegurar a existência e disponibilidade de um «serviço postal universal», integrado por serviços postais de carácter essencial prestados em todo o território nacional, de forma permanente, em condições de qualidade, e a preços acessíveis para todos os utilizadores. A prestação deste serviço, que compreendia envio de correspondência, livros, catálogos, jornais e outras publicações periódicas até 2 kg de peso e de encomendas postais até 20kg, bem como serviços de envios registados e de valor declarado, podia ser efetuada pelo Estado, por pessoa coletiva de direito público ou pessoa coletiva de direito privado, neste caso, mediante contrato de «concessão de serviço público»; a concessão envolvia a estabelecimento, gestão e exploração de uma «rede pública postal» e a prestação de determinados «serviços reservados», explorados em regime de exclusivo, enquanto não fosse liberalizada pelo concedente a atividade ou parte de atividade objeto da concessão; os serviços não reservados eram atribuídos em regime de concorrência, tendo o concessionário, a obrigação de disponibilizar, nos termos da lei, às entidades habilitadas ao exercício da atividade postal o acesso, em condições de igualdade e de não discriminação, à rede postal pública (artigo 5.º, 7.º e 11.º da Lei n.º 102/99, de 26 de julho). Não obstante a possibilidade de concorrência, ainda se podia qualificar este serviço universal como serviço público (prestação pública), gerido e executado pelo Estado através de pessoa coletiva de direito público.

O regime de acesso e exercício da atividade de prestador de serviços postais explorados em regime de concorrência foi estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 150/2001, de 7 de maio: a prestação de serviços postais não reservados abrangidos no âmbito do serviço universal ficou sujeita a licença individual; e a prestação de serviços postais não reservados não abrangidos no âmbito do serviço universal, ficou dependente de autorização geral. No quadro da progressiva liberalização do sector postal, o âmbito dos serviços reservados ao prestador do serviço universal – a empresa pública CTT – foi diminuído através do Decreto-Lei n.º 116/2002, de 12 de junho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2002/39/CE do Parlamento Europeu e do Concelho, que alterou a Diretiva n.º 97/67/CE, no que respeita à prossecução da abertura à concorrência dos serviços postais.

A fase final do processo de liberalização do mercado postal foi alcançada com a Lei n.º 17/2012, de 26 de abril, que transpôs a Diretiva n.º 2008/6/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de fevereiro de 2008, que altera a já referida Diretiva Postal - Diretiva n.º 97/67/CE -, e estabeleceu o regime jurídico aplicável à prestação de serviços postais no território nacional, e com o Decreto-Lei n.º 129/2013, de 6 de setembro, que, em cumprimento do Programa de Assistência Económica e Financeira acordado com a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu, aprovou o processo de privatização da CTT – Correios de Portugal S.A.

Sem prejuízo de um regime específico de prestação de serviço universal e de atividades e serviços que, por razões de ordem e segurança pública, podem ficar reservados a determinados prestadores de serviços, é garantida a liberdade de prestação de serviços postais, que abrange o direito a desenvolver a atividade de prestação de serviços postais, o direito de estabelecer, gerir e explorar redes postais e o direito de aceder às redes, elementos das infraestruturas postais e serviços prestados por outros prestadores (artigos 3.º, 36.º, 38.º e 39.º da Lei n.º 17/2012).

Assim, qualquer empresa privada, desde que licenciada ou autorizada, é agora livre de participar no mercado postal, oferecendo serviços e redes postais acessíveis ao público, de modo a se poder atingir uma concorrência efetiva na rede e entre redes.

A instituição deste modelo concorrencial e a privatização da concessionária da prestação do serviço universal reconfigurou a posição do Estado e dos particulares na prestação de serviços postais. Por um lado, o Estado deixou de ser fornecedor primário e direto do serviço público postal, limitando-se a garantir o correto funcionamento do sector e a existência e disponibilidade de um serviço postal de interesse geral; por outro, as entidades particulares prestadoras de serviços postais são chamadas a assumir a prossecução de interesses públicos específicos, quando têm a obrigação de prestar serviços incluídos no serviço postal universal. Ora, a conversão do serviço público em serviço de interesse económico geral e a substituição do Estado pelos particulares na responsabilidade pela prestação de serviços essenciais, em consequência da privatização, teve repercussões significativas nas competências atribuídas ao Estado e Administração Pública e no controlo jurisdicional dos litígios emergentes da execução da atividade postal.

O facto de o Estado privatizar o sector postal, entregando aos atores privados o estabelecimento, gestão e execução das redes e serviços postais, não o desonerou do dever de assegurar e garantir o fornecimento dos serviços essenciais de comunicação entre as pessoas. Com efeito, a sua intervenção, na qualidade de fornecedor do serviço público postal, foi substituída por uma atuação enquanto regulador desse serviço, pois a participação do sector privado no cumprimento de atividades que são consideradas de interesse público reclama uma intervenção estadual que assegure e garanta que os privados alcancem a satisfação desse interesse. Para além do dever de fomentar a concorrência e velar pelo adequado funcionamento do mercado, incumbe ao Estado, relativamente aos serviços essenciais, preservar o interesse de todos os cidadãos no acesso em condições de igualdade, garantindo a prestação universal, com qualidade, regularidade e continuidade (alínea d) do artigo 9.º e alíneas a), d) e f) do artigo 81.º da CRP). A consecução destes objetivos exige uma intervenção reguladora, mediante a qual o Estado assume amplos poderes de supervisão e regulação dos operadores privados, que são exercidos através de uma autoridade administrativa independente – a ANACOM.

A atual regulação da prestação de serviços postais, além de visar a promoção da concorrência, está marcada por objetivos de defesa dos direitos e interesses dos cidadãos: «assegurar a prestação eficiente e sustentável de um serviço postal universal» (alínea b) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril); o SPU é um conjunto mínimo de serviços «com qualidade especificada, disponível de forma permanente em todo o território nacional, a preços acessíveis a todos os utilizadores, visando as necessidades de comunicação da população e das atividades económicas e sociais» (n.º 1 do artigo 10.º); e a prestação do SPU, com o âmbito definido no artigo 12.º, pode ser assegurada através do funcionamento do mercado, sob o regime de licença individual, ou através da designação de um ou mais prestadores de serviços postais para a prestação de diferentes elementos do serviço universal ou para a cobertura de diferentes partes do território nacional, devendo essa designação revestir a forma de contrato de concessão, o qual deve ser celebrado ao abrigo e nos termos dos procedimentos previstos no Código dos Contratos Públicos.

Esta última, foi a opção que o Estado tomou com a Resolução do Conselho de Ministros n.º 144/2021, de 3 de novembro, que designou a CTT – Correios de Portugal, S.A, como único prestador do serviço universal em todo o território nacional, através de contrato de concessão com vigência de sete anos, por ter concluído que «não existem outras entidades com capacidade técnica e estrutura organizacional para assegurar o SPU em território nacional após 1 de janeiro de 2022».

No entanto, a entrega do serviço postal universal a um operador privado e os poderes de regulação da entidade reguladora (normativos, executivos, fiscalizadores e parajudiciais) suscitam questões delicadas na perspetiva do Estado de direito e dos princípios densificadores, especialmente o da separação de poderes. De facto, trata-se de um sector de atividade que interessa à coletividade, em que se articulam ações do Estado e ações de particulares, reguladas por um misto de normas de direito público e normas de direito privado, cuja subordinação à lei e ao controlo dos tribunais pode tronar-se tarefa complexa. Os conflitos que emergem no âmbito do exercício de uma atividade privada publicamente regulada tanto podem ser disciplinados por normas dirigidas a particulares (normas de direito privado) como por normas dirigidas à Administração (normas de direito público). Em regra, são de direito privado, os litígios entre regulados e utentes e entre regulados; e são de direito público, os litígios entre regulador e regulados e regulador e utentes.

É em conformidade com a natureza do litígio jurídico justiciável – aquele cuja solução tem que proceder de um órgão jurisdicional –, que se deve determinar a jurisdição competente para o resolver. Normalmente, segundo o princípio constitucional consagrado no n.º 3 do artigo 212. º da CRP, os litígios disciplinados pelo direito administrativo, são da competência dos tribunais administrativos e os litígios disciplinados pelo direito privado da competência dos tribunais comuns. Isso não obsta a que o legislador, em certos casos, transfira para os tribunais comuns matéria que pertenceria por natureza aos tribunais administrativos, por se tratar de litígios jurídico-administrativos (Acórdão do TC n.º 211/2007).

8 – Para se pôr termo às alegadas condutas anti concorrenciais, as autoras, ora recorridas, pretendem que o tribunal condene a ré, ora recorrente, a dar acesso à sua rede de distribuição postal, para todo o tipo de correio, nos seguintes termos: (i) «com as condições que o Tribunal entenda necessárias ao cumprimento das obrigações legais da CTT»; (ii) «com desconto grossista de, pelo menos, 34,11% sobre os preços da CTT para grandes clientes retalhistas»; (iii) sem imposição de condições de acesso grossista «que sejam injustificadas ou desproporcionais» (iv) «garantindo a efetiva separação funcional e contabilística da atividade postal grossista»; (v) que o respeito por estas condições fique sujeito a controlo por um «mandatário independente» a ser designado pelo Tribunal e remunerado, em partes iguais, pela Ré e pelas Autoras, com poderes para ordenar medidas corretivas e atribuir indemnizações.

O acesso às redes postais está previsto no artigo 38.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril, cujo n.º 1 estabelece o seguinte: «Os prestadores de serviço universal devem assegurar o acesso às suas redes em condições transparentes e não discriminatórias, mediante acordos a estabelecer com os prestadores de serviços postais que o solicitem, considerando-se rede de serviço universal a rede afeta à prestação do serviço universal».

A norma deste artigo confere aos prestadores de serviços postais o direito de negociar com a CTT – o único prestador de serviço universal – a utilização da rede postal afeta ao SPU, em condições transparentes e não discriminatórias. O modo de assegurar a igualdade de acesso a todos os prestadores de serviço postal passa por uma “oferta de acesso” com fixação das condições e termos em que a rede pode ser utilizada. E este foi o método seguido pela CTT, quando em 15 de fevereiro de 2016 disponibilizou uma Oferta de Acesso à sua rede postal, porém, em condições que não foram ao encontro do solicitado pelos operadores concorrentes (decisão de arquivamento do processo de contraordenação n.º 2015/4, da Autoridade da Concorrência).

Por estar em causa o uso da rede afeta ao serviço postal universal, um serviço marcado por objetivos sociais, a lei atribui ao regulador – a ANACOM – a responsabilidade por garantir que o acesso de terceiros a essa rede se faça em condições de igualdade, concorrência efetiva e sem prejudicar o encargo do serviço universal. Desde logo, no âmbito dos poderes definidos na Lei-Quadro das Entidades Reguladoras (Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto), compete-lhe (i) assegurar, nas atividades baseadas em rede, o acesso equitativo e não discriminatório às mesmas por parte dos vários operadores, (ii) e garantir, nas atividades que prestam «serviços de interesse geral», as competentes «obrigações de serviço público» ou «obrigações de serviço universal» (alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 40.º); depois, porque é própria Lei n.º 17/2012 a impor-lhe (i) a obrigação («deve») de definir os termos e condições de acesso às redes do serviço universal, quanto tal se revele necessário para garantir uma concorrência efetiva ou os interesses dos utilizadores, e a (ii) permitir-lhe definir, determinar a alteração e estabelecer a publicitação dos termos e condições de acesso a determinados elementos das redes postais dos prestadores dos serviços postais, quando considere necessário para assegurar a prestação do serviço universal objeto do contrato de concessão, após análise destinada a avaliar a sua necessidade, proporcionalidade e impacto no mercado (alínea b) do n.º 6, alíneas a), b) e c) do n.º 8.º e n.º 9, do artigo 38.º); por fim, compete-lhe determinar os termos e condições do acesso, incluindo preços, quando os prestadores não cheguem a acordo quanto às condições oferecidas pelo prestador do serviço universal, se revele necessário para garantir uma concorrência efetiva ou os interesses dos utilizadores e estejam preenchidos os seguintes requisitos: (i) estejam em causa elementos da rede postal sem o acesso aos quais um prestador de serviços postais encontre dificuldades para aceder ao mercado, (ii) o acesso não prejudique a segurança, a eficiência e a integridade da mesma, nem a prestação do serviço universal, (iii) assegure o respeito pelo princípio da transparência e não descriminação a que estão obrigados os prestadores de serviço universal, (iv) numa decisão devidamente fundamentada (n.º 3, 4, e 5 do artigo 38.º).

Como se vê, os poderes atribuídos ao regulador para garantir a disponibilidade do serviço postal universal justificam, por si só, a relevância juspublicística do acesso de terceiros à rede postal afeta a esse serviço. Com efeito, para além de assegurar uma equilibrada concorrência entre empresas, o acesso à rede utilizada para prestação dos serviços abrangidos pelo SPU tem relação direta e imediata com o interesse público no seu correto funcionamento – dois interesses públicos constitucionalmente protegidos. Por isso, a proteção dos cidadãos pela via da garantia do acesso universal a um serviço de interesse geral exige uma atuação positiva da Administração no sentido de garantir que o uso da rede por vários prestadores de serviço postal não afete ou prejudique a sua eficiência e sustentabilidade.

Portanto, a Lei Postal atribui à ANACOM a concreta incumbência de velar, no plano do direito administrativo da regulação, pela plena realização e efetivação do acesso universal a certos serviços postais. De modo que a controvérsia que surja no âmbito das relações jurídicas entre os prestadores de serviço postal, como é o caso da recusa de acesso à rede do SPU, justifica e impõe uma intervenção administrativa que assegure e garante os interesses públicos nela envolvidos e a ordem pública do sistema regulado.

9 – A resolução de um conflito entre privados com esta característica – acesso a uma rede postal de interesse público –, que envolve uma entidade administrativa no exercício da atividade regulatória, não pode deixar de atender à delimitação material e funcional do poder jurisdicional (Jurisdição) face ao poder administrativo (Administração). Com efeito, a controvérsia emergente dessa relação triangular só é passível de uma solução jurídico-normativa procedente de um órgão jurisdicional se a relação de direito administrativo ou direito privado se mantiver dentro da fronteira da jurisdição.

Do princípio constitucional da separação de poderes, na dimensão que separa o poder judicial de outros poderes públicos (artigo 111.º da CRP), resulta que os Tribunais têm de respeitar a competência e autoridade própria das decisões jurídico-públicas da Administração, não podendo ignorar o espaço de autoria e responsabilidade exclusiva que a lei deixa à Administração.

Não obstante inexistir no texto constitucional uma estrita correspondência entre sepa­ração de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles, reconhece-se a existência de domí­nios claramente identificados e delimitados de competência exclusiva da Adminis­tração, assim como a reserva de um núcleo essencial de atuação de cada um dos poderes do Estado, apurado a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou à natureza da competência em causa, enquanto justificação da sua previsão e expressão da sua igual legitimidade político-constitucional (Acórdão do TC n.º 395/2012). Note-se, contudo, que os diferentes órgãos podem desempenhar competências e funções que não se reconduzem àquelas que, de forma principal, a Constituição lhes reserva, e por isso, são descortináveis, no direito positivo, algumas interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas.

Ora, o n.º 1 do artigo 202.º da CRP consagra uma reserva de jurisdição no âmbito das relações internas entre os vários poderes do Estado: o desempenho da função jurisdicional, enquanto função do Estado, encontra-se reservado a órgãos públicos que preencham os requisitos todos como necessários para poderem ser qualificadas como tribunais. O núcleo essencial da função jurisdicional traduz-se numa atividade de resolução de litígios, de acordo com o direito vigente, tendo em vista especificamente a consecução da paz jurídica, ou seja, com o único ou específico objetivo de realização do interesse público da composição de conflitos. Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há, no entanto, decisões e atos que só este último pode praticar e nisto se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição).

Assim, por determinação constitucional, nem todo e qualquer tipo de litígio emergente de relações jurídicas pode ser resolvido pelo juiz, mas apenas aqueles que, visando exclusivamente a solução de uma “questão de direito”, implicam o exercício da função jurisdicional, isto é, os litígios que se apresentam como questões jurídicas a solucionar, através de um processo jurisdicional, por um tribunal.

A diferenciação material entre jurisdição e administração é um problema complexo, até porque o artigo 202.º da CRP deixa um vastíssimo espaço na tarefa de determinação do sentido material da função jurisdicional. Nesta matéria, a posição doutrinal mais frequente, adotada pela jurisprudência sem reservas, é a de Afonso Rodrigues Queiró: «o quid specificum do ato jurisdicional reside em que ele não apenas pressupõe, mas é necessariamente praticado para resolver uma “questão de direito”. Se, ao tomar-se uma decisão, a partir de uma situação de facto traduzida numa “questão de direito” (na violação do direito objetivo ou na ofensa de um direito subjetivo), se atua, por força da lei, para se conseguir a produção de um resultado prático diferente da paz jurídica decorrente da resolução dessa “questão de direito”, então não estaremos perante um ato jurisdicional; estaremos, sim, perante um ato administrativo» (Lições de Direito Administrativo, vol. I, 1976, pp. 43, 44 e 51).

Segundo este critério teleológico, estar-se-á perante exercício da função jurisdicional quando a prática do ato visa, a título exclusivo ou principal, a “realização do interesse público da composição de conflitos”, a “realização do direito e da justiça” ou a “resolução de uma questão de direito”; por seu turno, relevará do exercício da função administrativa, o ato que, embora também realize uma composição de interesses, tenha por finalidade exclusiva ou principal a satisfação de necessidades públicas que, distinta da de “dizer o direito” no caso concreto, encontram nesse ato um meio para a respetiva prossecução.

Noutras formulações colhidas da jurisprudência constitucional pode dizer-se que a função jurisdicional consubstancia-se numa composição de conflitos de interesses levada a cabo por um órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do direito e da justiça, dizendo respeito a matérias em relação às quais os tribunais têm de ter não apenas a última palavra, mas logo a primeira palavra; ao invés, função administrativa é uma atividade que, partindo de uma situação de facto traduzida numa “questão de direito”, visa a prossecução do interesse público que a lei põe a cargo da administração e não a paz jurídica que decorre da resolução dessa questão e daí que a primeira palavra deva caber à administração, cabendo aos tribunais a última e definitiva palavra, de acordo com a garantia constitucional do recurso contencioso, condensada no art.º 268.º, n.º 4, da Lei Fundamental.

De modo que a separação real entre a função jurisdicional e a função administrativa passa pelo campo dos interesses em jogo: enquanto a jurisdição resolve litígios em que os interesses em confronto são apenas os das partes, situando-se a decisão num plano estrita e exclusivamente jurídico, distinto do dos interesses em conflito, a administração, embora na presença de interesses alheios, realiza o interesse público, verificando-se uma osmose entre o caso resolvido e o interesse público (Acórdãos n.ºs 104/85, 98/88, 182/90, 211/90, 452/95, 760/95, 80/2003 e 510/16).

10 – Partindo desta distinção, não há dúvida que para julgar as pretensões formuladas nas alíneas b) e d) da petição inicial o juiz tem que avaliar, ponderar e prognosticar os efeitos que a sentença terá sobre a prestação do serviço postal universal. O que se pede é que o tribunal fixe, de forma justificada e proporcional, as condições de acesso à rede afeta ao serviço postal universal, especificando aquelas que entenda necessárias ao cumprimento das obrigações legais da CTT, que determine um desconto grossita sobre os preços da CTT, e que nomeia um mandatário com poderes sancionatórios. Só que o juiz não pode decidir sobre os termos e condições de acesso à rede postal universal sem cotejar os potenciais efeitos, no domínio da regulação do sector, com o desenvolvimento futuro da prestação do serviço universal. É que a utilização por terceiros concorrentes dos meios humanos e materiais afetos ao serviço postal universal pode eventualmente perturbar ou prejudicar as prestações abrangidas pelo SPU, efeito proibido pelas normas que deve aplicar ao fixar aqueles termos e condições.

Quer dizer: o interesse público de manter disponível a todos um serviço postal universal eficiente e sustentável é prosseguido mediante uma decisão do juiz que edita os termos e condições destinadas a assegurar que a exploração, em ambiente liberalizado, do serviço postal ocorra no estrito respeito de objetivos públicos. Para além dos interesses comerciais dos operadores concorrentes, as necessidades de salvaguardar o SPU, implica que na fixação das condições de acesso à rede afeta a esse serviço estará necessariamente envolvida a realização de um interesse público específico.

Uma pronúncia judicial sobre tal pretensão, baseada em considerações técnicas, comerciais e financeiras, consubstancia uma atividade administrativa de regulação, que é da responsabilidade exclusiva da autoridade reguladora nacional (artigo 38.º da LP). De facto, a resolução do conflito de interesses (da «questão de direito») é aqui orientada por uma perspetiva de interesse público - justamente, do interesse público específico que as normas expressas do artigo 38.º da LP pretendem ver prosseguido com a fixação das condições e termos de acesso à rede postal do serviço universal.

E assim sendo, basta relembrar o que escreve Batista Machado: «A pronúncia que se baseie em qualquer outro ponto de vista, que tenha por objetivo a realização ou modelação ativa, transformadora, de qualquer ordem social e económica, que tenha de inspirar-se em cálculos, previsões, ou presunções sobre qual será o efeito da decisão a tomar sobre uma determinada conjuntura esperada ou sobre uma eventual evolução das circunstâncias, em vez de se preocupar exclusivamente com o que é o direito do caso concreto no preciso momento em que julga, já não seria uma decisão jurisdicional em sentido material mas uma decisão administrativa ou, pelo menos contaminada por elementos de carácter administrativo» (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1985, p. 146).

Daí que, com certa lógica, se considere que a decisão que estabelece os termos e as condições de acesso à rede afeta ao serviço postal universal tem que ser tomada em primeira instância pela Administração reguladora. As normas extraídas do artigo 38.º da LP são inequívocas no sentido de que é a entidade reguladora quem deve definir e supervisionar se a concorrência de terceiros na rede do serviço postal universal põe em causa a prestação do serviço postal universal. Só ela tem o conhecimento completo do sistema postal, das circunstâncias de facto e de direito mais relevantes, que alternativas devem ser ponderadas e qual a solução que melhor realiza o interesse público em manter um serviço postal acessível a todos, com padrões de qualidade, nomeadamente no que se refere a prazo de entrega, densidade de pontos de acesso, regularidade, continuidade e fiabilidade do serviço, em condições de igualdade e não discriminação, que atenda à evolução na prestação do serviço em função do ambiente técnico, económico e social e das necessidades dos utilizadores e às obrigações que resultem de vinculação internacional do Estado Português.

Quer isto dizer que, para decidir dos termos e das condições do acesso à rede afeta ao serviço postal universal, o juiz teria que avaliar as características da rede postal universal, fazer ponderações, prognoses e escolhas orientadas por um interesse público específico, produzindo uma sentença substitutiva de um contrato de utilização da rede postal supervisionado pela entidade reguladora e com influência constitutiva na ordem pública do sistema postal. Deste modo, estaria a prosseguir um interesse público que, por concessão expressa da lei, cabe em exclusivo à Administração. Conquanto esteja presente um específico interesse público de natureza administrativa que justifique a intervenção da Administração, a atividade desenvolvida para o prosseguir deverá ser qualificada como administrativa, com todas as consequências, designadamente quanto à jurisdição competente, bem como quanto aos meios processuais de reação.

O princípio da divisão de poderes exprime-se aqui através de uma atuação judicial concebida como de fiscalização de uma competência administrativa de decisão. Ao poder judicial cabe comparar a decisão com os factos e pressupostos previstas na lei e, atuando nos estritos limites consentidos pelo controlo do poder discricionário, detetar o eventual não cumprimento dos princípios que regulam a atividade decisória (artigo 266.º, n.º 2, da CRP).

A reserva jurisdicional com este alcance não afeta a garantia de justiça, igual, efetiva e assegurada através de processo justo de defesa de posições jurídicas-subjetivas, porque a “última palavra” pertencerá sempre aos tribunais (artigo 268.º, n.ºs 4 e 5 da CRP). De facto, fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá não apenas em matéria penal mas sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, deve admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o composição de interesses possa ser resolvida por intervenção de outros poderes, caso em que se poderá falar numa reserva relativa de jurisdição (Acórdão n.º 230/2013).

Na justiça administrativa não faltam meios de tutela da posição jurídica substantiva arvorada pelas autoras recorridas. Se não concordam com os termos e condições da “oferta de acesso” estipuladas pela recorrente, porque não garantem uma concorrência efetiva na rede, devem primeiramente solicitar à entidade reguladora – ANACOM – que, nos termos do n.º 6 do artigo 38.º da LP, fixe tais condições. Em caso de silêncio administrativo ou de discordância com os termos estabelecidos podem acionar a justiça administrativa pedindo a prática do ato devido ou impugnando o ato ou regulamento que fixou os termos e condições em que a rede do serviço postal universal pode ser utilizada, inclusive através de um processo administrativo entre particulares, no caso da prestadora do serviço postal universal violar vinculações jurídico-administrativas decorrentes da concessão desse serviço ou de compromissos anteriormente assumidos com a Administração (n.º 3 do artigo 37.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

Concluiu-se, assim, que é atribuição indeclinável e exclusiva da entidade reguladora garantir que a prestação do serviço postal universal seja executada em certos termos e condições; e que o princípio da separação de poderes – em concreto, o princípio do respeito da competência da Administração – é infringido se o juiz exercitasse primariamente o poder administrativo de determinar os termos e condições de acesso à rede postal afeta aquele serviço, em substituição da Administração.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso de revista, e em consequência, absolver a recorrente da instância quanto aos pedidos formulados nas alíneas b) e d) da petição inicial, por falta de jurisdição.

Custas pelas recorridas.

Lisboa, 11 de janeiro de 2024

Lino Rodrigues Ribeiro (relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Ferreira Lopes