REGISTO CRIMINAL
LEI DESPENALIZADORA
Sumário


I- A inscrição de uma condenação penal no registo criminal constitui um efeito do crime.
II- Em caso de condenação transitada em julgado, a questão da despenalização continua a manter interesse prático enquanto ainda não se tiver extinguido toda a responsabilidade penal – pena principal, penas acessórias e efeitos penais da condenação – decorrente do facto praticado na vigência da lei penal anterior.
III- A lei do registo criminal determina a cessação da vigência no registo criminal de todas “as decisões consideradas sem efeito por disposição legal” (art. 15.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 57/98).
IV-Aqui se deverão incluir as decisões condenatórias relativas a factos que deixaram integralmente de assumir relevância típica penal em virtude da entrada em vigor de uma nova lei penal despenalizadora, em decorrência do disposto no art. 2.º, n.º 2, 1.º parte, do Código Penal.
V- Mesmo que a lei do registo criminal não dispusesse sobre esta situação mediante a previsão de uma cláusula residual, a eliminação das referidas decisões condenatórias sempre decorreria directamente da mera existência da norma constante do art. 2.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Penal.
(sumário do relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes Desembargadores, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisão recorrida
No âmbito do processo n.º 150/01...., que corre os seus termos no Juízo Local Criminal ..., foi proferido despacho, datado de 26.05.2023, que indeferiu o cancelamento definitivo no registo criminal da sentença que ali condenara o arguido AA – melhor identificado nos autos – na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 4,50, pela autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal simples, na forma continuada, p. e p. pelo art. 24.º, n.º 1, do DL 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção introduzida pelo DL 394/93, de 24 de Novembro), bem como pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (na redacção originária), com referência ao art. 30.º, n.º 2, do Código Penal.

2.
Recurso
Inconformado com esta decisão, o referido arguido recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
“(…)
1ª Vem o presente recurso interposto do douto despacho de 29/05 e de 3/7 transato que indeferiu a descriminalização da conduta pela qual o recorrente foi condenado nos presentes autos e o cancelamento no registo criminal da condenação.
2ª O recorrente foi condenado em 10 de Maio de 2004 pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada previsto e punido pelo artº 24º nº1 do D.L. 20-A/90 de 15 de Janeiro (RJIFNA) e pelo artº 105º nº1 do RGIT na sua versão originária na pena de 120 dias de multa à razão diária de 4,5 €, perfazendo um total de 540 € por factos que se reportavam à falta de pagamento e retenção de IRS devido pelo trabalho dependente, independente e rendimentos prediais, sendo a prestação tributária mais alta no valor de 449.024$00, ou seja 2.239,72 €. referente ao mês de agosto de 1999 (cfr. o quadro 1 do 3.º parágrafo da factualidade dada como provada e o primeiro parágrafo de fls. 595).
3ª A norma punitiva do artº 24º RJIFNA, tal como quase todo o diploma legal, foram revogados pelo artº 2º al. b) da Lei 15/01 de 5/6 preambular ao novo RGIT, que manteve a incriminação na sua versão originária, no seu artº 105º nº1 sem dependência do valor da quantia apropriada.
4ª Entretanto, o artº 113º da Lei n.º 64-A/2008 de 31 de Dezembro, alterou a redação do artigo 105.º, n.º 1 do RGIT, com efeitos a partir de 1/1/09 (cfr. o artº 174º da Lei 64-A/08 de 31 de Dezembro).
5ª E a partir do dia 1 de janeiro de 2009, o artigo 105º, n.º 1 do RGIT passou a ter a seguinte redacção:
“Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária superior a € 7.500,00, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
6ª Ou seja, a partir da entrada em vigor desta disposição legal a conduta do arguido que se apropria de prestação deduzida nos termos da lei apenas é punido criminalmente se tal prestação for superior a 7.500 €.
7ª Sendo que os valores a ter em conta para efeito da incriminação eram aqueles que devessem constar da declaração – artº 105º nº7 do RGIT (cfr. A jurisprudência supra citada).
8ª No caso concreto, o recorrente foi condenado nos presentes autos pela falta de pagamento e retenção de IRS devido pelo trabalho dependente, independente e rendimentos prediais, tendo sido a prestação tributária mais alta no valor de 2.239,72 €, referente ao mês de Agosto de 1999.
9ª Daí que, no caso dos autos, a quantia retida ou não entregue é inferior a 7.500,00€, pelo que nos termos do disposto no artº 2º nº2 do Código Penal e do artº 29º nº4 da Constituição, a conduta do recorrente foi descriminalizada.
10ª E isto é assim, independentemente do trânsito em julgado da sentença e do cumprimento da pena, como decorre inequivocamente do artº 2º nº2 do Código Penal (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal, 4ª edição actualizada, pág. 89, Miguez Garcia e Castel Rio, in Código Penal – Parte Geral e Especial, pag. 34 e Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, 2ª edição, tomo I, pag. 199).
11ª Com a entrada em vigor do artº 105º nº1 do RGIT, na redacção do artº 113º da Lei 64-A/2008 de 31 de Dezembro, “é inquestionável que deixaram de ser punidas as condutas em que o valor da prestação tributária - o de cada declaração a apresentar à administração tributária, de acordo com o n° 7 do referido art. 105° - não excede € 7.500.”- cfr. Cruz Bucho no estudo “A Lei do OE de 2009 e o crime de abuso de confiança contra a Segurança Social”, publicado in https://www.trg.pt/ficheiros/estudos/cruzbucho_abusoconfiancasegurancasocial. pdf
12ª Pelo exposto, a conduta do recorrente deve ser considerada descriminalizada desde 1/1/09, conforme o requerido.
13ª Sendo descriminalizada a conduta do arguido, devem cessar os seus efeitos penais, designadamente no registo criminal (cfr. o artº 2º nº2 do Código Penal).
14ª Na verdade, o registo criminal serve para registar crimes. Não consubstanciando a conduta praticada crime não pode esta constar do registo criminal do recorrente.
15ª A inscrição de condenações que, como a dos autos, deixaram de ter impacto no cumprimento do desígnio de constituir meio de prova dos antecedentes criminais do arguido e, como tal de contribuir para que o julgador escolha a pena e determine a sua medida, violam o princípio da necessidade do registo criminal apontado por Figueiredo Dias (cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pag. 645/647).
16ª E “(…) se um dos objectivos que preside à aplicação de uma pena é a ressocialização do arguido, a existência de um certificado onde constem desnecessários antecedentes criminais de um arguido, estará em contradição com esta vertente, pois estes fomentam e facilitam não a sua reintegração, mas sua estigmatização e abandono social” – Catarina Veiga, in “Considerações sobre a relevância dos antecedentes criminais do arguido no processo penal”, Almedina, 2000, pag. 95.
17ª Claro está que se a nova redação de uma norma descriminaliza determinada conduta – artº 2º nº2 do Código Penal - e, por força dessa descriminalização devem cessar todos os efeitos penais de tal conduta, a decisão que condenou na conduta anteriormente prevista deverá ser considerada sem efeito, nos termos do disposto no art. 11.º n.º 4 al. d) da Lei 37/15 de 05.05.
18ª Daí que, o registo da condenação destes autos deve ser cancelada.
19ª Os despachos recorridos violaram ou fizeram errada aplicação do disposto nas normas referidas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso e, em consequência, serem revogados os despachos recorridos e substituídos por acórdão que decrete a descriminalização da conduta do recorrente e, consequentemente, o cancelamento definitivo do averbamento no Registo Criminal, da condenação dos presentes autos, por só assim se fazer JUSTIÇA.
(…)”.

3. Resposta ao recurso
Após a admissão liminar do recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu a este recurso nos seguintes termos (transcrição):
“(…)
1.O arguido, AA, foi condenado, por sentença proferida em 10.05.2014 transitada em julgado em 25.05.2004, pela prática, em 11.07.2002, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 24.º n.º 1 do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro e DL 394/93 de 24 de Novembro, na pena de 120 dias de multa à razão diária de €4,5.
2. A pena foi declarada extinta por decisão de 18.11.2004, verificando-se caso julgado.
3. A actual redacção do art.º 105.º n.º 1 do RGIT não cabe na previsão legal da alínea d) do n.º 4 da Lei da identificação criminal.
4.Nenhuma censura merece o despacho recorrido, que não violou nenhum dos preceitos legais invocados, ou quaisquer outros.
5.Não se mostram, pois, violados, por qualquer forma, quaisquer preceitos legais,
(…)”.

4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual emitiu parecer pugnando pela improcedência total do recurso.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e o recorrente reiterou a sua pretensão recursória.

Efectuado exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

*
II – FUNDAMENTAÇÃO

A) Objecto do recurso
Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do Código do Processo Penal (CPP) e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo,  importa apreciar as seguintes questões:
· Alteração do tipo legal e despenalização de determinadas condutas;
· Imposição da retroactividade da lei penal mais favorável ao caso concreto;
· Cessação dos efeitos penais da condenação.

B) Apreciação do recurso

1. Decisão recorrida
A decisão recorrida apresenta, na parte que interessa, o seguinte teor no plano da fundamentação de facto (transcrição):
“(…)
--- Req. de 03.04.2023: O arguido AA veio requerer que se declarasse descriminalizada a conduta do arguido desde 1/1/09 e que se ordenasse o cancelamento da condenação nos presentes autos no registo criminal. ---
--- Alega, para tanto e em síntese, que o arguido por sentença proferida no âmbito dos presentes autos em 10 de Maio de 2004 foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada previsto e punido pelo artº 24º nº1 do D.L. 20-A/90 de 15 de Janeiro na pena de 120 dias de multa à razão diária de 4,5 €, perfazendo um total de 540 € por factos que se reportavam à falta de pagamento e retenção de IRS devido pelo trabalho dependente, independente e rendimentos prediais, sendo a prestação tributária mais alta no valor de 449.024$00, ou seja 2.239,72 € referente ao mês de Agosto de 1999 (cfr. o quadro 1 do 3º parágrafo da factualidade dada como provada); que a actual versão do artigo 105.º, n.º 1 do RGIT descriminaliza a conduta do arguido que tenha retido e não tenha entregue prestação tributária inferior a € 7.500,00; a condenação em causa ainda se encontra inscrita no registo criminal do arguido, o que já não deveria acontecer porque com a descriminalização cessam os efeitos penais da condenação e, por consequência, deve ser ordenado o cancelamento definitivo da condenação no registo criminal, nos termos do disposto no art.º 11º nº 4 al. d) da Lei 37/15 de 5/5. ---
--- O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento por falta de
cabimento legal. ---
--- Cumpre apreciar e decidir. ---
--- Resulta do CRC do arguido e dos autos, que o arguido foi condenado, por sentença proferida em 10.05.2014 transitada em julgado em 25.05.2004, pela prática, em 11.07.2002,de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo art.º 24.º n.º 1 do DL 20-A/90 de 15 de Janeiro e DL 394/93 de 24 de Novembro, na pena de 120 dias de multa à razão diária de €4,5. ---
--- Tal pena foi declarada extinta por decisão de 18.11.2004. ---
--- Também é certo referir que a disposição legal citada sofreu alterações legislativas, prevendo o actual art.º 105.º n.º 1 do RGIT que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”. ---
--- Não obstante, cremos que o requerido pelo arguido não tem fundamento legal. -
--- Veja-se que a sentença condenatória transitou em julgado e a pena aplicada foi cumprida e foi proferida decisão a declará-la extinta. Nesta medida, por via da mesma impera o caso julgado. ---
--- O caso julgado material produz os seus efeitos por duas vias: pode impor-se, na sua vertente negativa, por via da excepção de caso julgado no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada e pode impor-se, na sua vertente positiva, por via da autoridade do caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas. ---
--- Acresce ainda que dispõe o art.º 11.º n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio
(Lei da identificação criminal):
“As decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal nos seguintes
prazos:
a) Decisões que tenham aplicado pena de prisão ou medida de segurança, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos ou superior a 8 anos, respetivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
b) Decisões que tenham aplicado pena de multa principal a pessoa singular, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
c) Decisões que tenham aplicado pena de multa a pessoa coletiva ou entidade equiparada, com ressalva dos prazos de cancelamento previstos na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena, consoante a multa tenha sido fixada em menos de 600 dias, entre 600 e 900 dias ou em mais de 900 dias, respetivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
d) Decisões que tenham aplicado pena de dissolução a pessoa coletiva ou entidade equiparada, decorridos 10 anos sobre o trânsito em julgado;
e) Decisões que tenham aplicado pena substitutiva da pena principal, com ressalva daquelas que respeitem aos crimes previstos no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, decorridos 5 anos sobre a extinção da pena e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza;
f) Decisões de dispensa de pena ou que apliquem pena de admoestação, decorridos 5 anos sobre o trânsito em julgado ou sobre a execução, respetivamente;
g) Decisões que tenham aplicado pena acessória, após o decurso do prazo para esta fixado na respetiva sentença condenatória ou, tratando-se de pena acessória sem prazo, após a decisão de reabilitação.”. ---
--- E o seu n.º 4 que:
“Cessam também a sua vigência no registo criminal:
a) As decisões que sejam consequência, complemento ou execução de decisões cuja vigência haja cessado nos termos do n.º 1;
b) As decisões respeitantes a pessoa singular, após o seu falecimento;
c) As decisões respeitantes a pessoa coletiva ou entidade equiparada, após a sua extinção, exceto quando esta tenha resultado de fusão ou cisão, caso em que as decisões passam a integrar o registo criminal das pessoas coletivas ou equiparadas que tiverem resultado da cisão ou em que a fusão se tiver efetivado;
d) As decisões consideradas sem efeito por disposição legal.”. ---
--- Ora, a actual redacção do art.º 105.º n.º 1 do RGIT não cabe na previsão legal da alínea d) do n.º 4 da Lei da identificação criminal. Assim como o actual regime geral das infracções tributárias não prevê, em qualquer disposição legal, que determinadas decisões sem consideradas sem efeito. ---
--- Pelo exposto, por falta de fundamento legal, indefere-se o requerido. ---
(…)”.

2. Alteração do tipo legal e despenalização de determinadas condutas
A magna questão deste recurso consiste no cancelamento definitivo no registo criminal da condenação sofrida pelo arguido nestes autos.

Para tanto, o recorrente começa por alegar que a conduta punida nestes autos a título de crime fiscal foi despenalizada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de 2009).  

O arguido fora condenado nestes autos pela autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal simples, na forma continuada, p. e p. pelo art. 24.º, n.º 1, do DL 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção introduzida pelo DL 394/93, de 24 de Novembro), bem como pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (na redacção originária), com referência ao art. 30.º, n.º 2, do Código Penal.

O art. 113.º da referida lei orçamental introduziu uma relevante alteração  na redacção do tipo de crime de abuso de confiança fiscal simples previsto no art. pelo art. 105.º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (na redacção originária).

Na sua redacção originária, o artigo 105.º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho tinha a seguinte redacção:

Artigo 105.º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 1000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

Com a entrada em vigor da referida lei orçamental, o artigo 105.º do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho passou a ter seguinte redacção (negrito e sublinhado nossos):

Artigo 105.º
Abuso de confiança
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.

De acordo com a redacção da lei penal nova, a acção típica de falta de entrega da prestação tributária devida à administração tributária só assume relevância criminal se a prestação em apreço for de valor superior a € 7 500,00.

Acresce que se tem de atender aos valores que devam constar  individualmente de cada declaração e não ao montante global das prestações, conforme impõe o n.º 7 do  artigo 105.º do RGIT, o que terá pertinência em matéria de crime continuado.

Se a prestação em falta for de valor igual ou inferior a € 7500,00, o facto tem apenas relevância contra-ordenacional (art. 114.º do RGIT, na redacção da Lei n.º 64-A/2008).      

A lei penal nova veio adicionar um novo elemento à factualidade típica da lei penal antiga, com isso restringindo a punibilidade e abrindo caminho à despenalização de factos praticados na vigência da lei penal antiga (Vide TAIPA DE CARVALHO, “Sucessão de Leis Penais”, Coimbra, 1997, pp. 178-185).

Efectivamente, a respeito desta matéria de aplicação da lei penal no tempo, dispõe expressamente o art. 2.º, n.º 2, do Código Penal que “o facto punível segundo a lei vigente no momento da prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções (…)”.

Assim sendo, com relevância para o caso dos autos, haverá lugar à extinção da responsabilidade penal se o facto praticado à luz da lei penal antiga respeitar a falta de entrega de prestações tributárias de valor individual igual ou inferior a € 7 500,00.

Tal solução não é afastada se a lei penal antiga vigente à data da prática dos factos for a norma constante do art. 24.º, n.º 1, do DL 20-A/90 em virtude da continuidade normativo-típica existente entre esta norma e a constante do art. 105.º, n.º 1, do RGIT, conforme, aliás, oportunamente reconhecido na sentença condenatória proferida nestes autos.

Vejamos o que nos revela o caso concreto.

3. Imposição da retroactividade da lei penal mais favorável
No caso dos autos, o arguido foi condenado pela autoria material de um crime de abuso de confiança fiscal simples, na forma continuada, p. e p. pelo art. 24.º, n.º 1, do DL 20-A/90, de 15 de Janeiro (na redacção introduzida pelo DL 394/93, de 24 de Novembro), bem como pelo art. 105.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho (na redacção originária), com referência ao art. 30.º, n.º 2, do Código Penal.

Os factos provados com relevância típica reportam-se ao período fiscal declarativo compreendido entre 20 de Setembro de1999 e 20 de Fevereiro de 2001.

Está em causa a falta de entrega à administração tributária de prestações tributárias deduzidas dos valores das remunerações dos trabalhadores da sociedade e dos rendimentos prediais desta a título de IRS.

As prestações tributárias em apreço apresentam individualmente os seguintes valores:
· Agosto/1999: € 2 239, 72;
· Setembro/1999: € 796,37;
· Outubro/1999: € 779, 37;
· Novembro/1999: € 787, 92;
· Dezembro/1999: € 1 513, 13;
· Janeiro/2000: € 1 536,11;
· Fevereiro/2000: € 1 507, 62;
· Março/2000: € 1 189, 17;
· Abril/2000: € 789, 71;
· Maio/2000: € 974, 25;
· Junho/2000: € 712,39;
· Julho/2000: € 946, 20;
· Agosto/2000: € 828, 51;
· Setembro/2000: € 482,48;
· Outubro/2000: € 857, 56;
· Novembro/2000: € 1 386, 43;
· Dezembro/2000: € 1 385, 43;
· Janeiro/2001: € 105, 63.

Como é fácil de alcançar, nenhuma destas prestações tributárias em falta apresenta um valor igual ou inferior a € 7 500,00.

Assim sendo, dir-se-á que tais factos puníveis segundo a lei vigente no momento da respectiva prática deixaram de o ser à luz da lei nova acima referida (art. art. 2.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Penal).

A circunstância de o valor global das prestações ascender ao montante de € 18.117,09 num contexto de punição a título de crime continuado não invalida esta conclusão, pois há que atender aos valores das prestações tributárias deduzidas que devam constar  individualmente de cada declaração e não ao montante global das prestações, conforme impõe o n.º 7 do  artigo 105.º do RGIT (Vide Ac. TRE 04.02.2009, p. 11036/2008; Ac. TRP 25.02.2009, p. 0816634; Ac. TRL 20.07.2009, p. 7867/2008; todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Consequentemente, haverá lugar ao reconhecimento da extinção total da responsabilidade penal do agente neste caso – sem necessidade de reabertura da audiência nos termos do art. 371.º-A do CPP, como sucederia no caso de uma sucessão de leis penais stricto sensu – com todas as consequência legais.
 
Importa agora saber se esta despenalização ainda assume algum interesse prático no caso concreto.

4.  Cessação dos efeitos penais da condenação
4.1. As consequências da lei penal despenalizadora encontram-se expressamente previstas no art. 2.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Penal.

Neste caso, dispõe a referida norma, “(…) se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais”.

Por conseguinte, mesmo em caso de condenação transitada em julgado, a questão da despenalização continua a manter interesse prático enquanto ainda não se tiver extinguido toda a responsabilidade penal – pena principal, penas acessórias e efeitos penais da condenação – decorrente do facto praticado na vigência da lei penal anterior.

Vejamos se o recorrente ainda mantém algum interesse digno de tutela nesta matéria.

4.2. O arguido viu ser-lhe aplicada uma pena de multa por decisão transitada em julgado em 25 de Maio de 2004 e tal pena veio a ser julgada extinta, pelo cumprimento voluntário, em 19 de Novembro de 2004.  

Assim sendo, uma vez que a pena foi julgada extinta muito antes da entrada em vigor da aludida lei despenalizadora, não há que acautelar qualquer cessação da execução no plano estrito da pena principal aplicada.

Contudo, tal condenação ainda se mostra inscrita no registo criminal do arguido.

É precisamente esta inscrição subsistente no registo criminal que o recorrente pretende ver definitivamente cancelada em virtude da referida despenalização.

4.3. É inquestionável que a inscrição de uma qualquer condenação penal no registo criminal constitui um efeito do crime  (Vide FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal Português – Parte Geral II – As consequências jurídicas do crime”, 2.ª Reimpressão, 2009, p. 640).

Este registo criminal assume uma relevância nada despicienda em vários planos da vida futura do condenados.

Na verdade, desde logo, o tema das condenações anteriores do agente constitui uma circunstância atinente à vida anterior do agente que assume eventual e indiscutível relevância na economia da determinação da medida concreta de penas a aplicar no futuro  (art. 71.º, n.º e), do Código Penal).

O conhecimento destas condenações é assegurado pelo registo criminal, pois todas as sentenças condenatórias devem ser remetidas para efeito de inscrição no registo criminal (art. 374.º, n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal).
 
Por outro lado, no plano da ressocialização, a lei de registo criminal actualmente vigente atribui relevância ao decurso de um longo espaço de tempo em liberdade sem a prática de novos crimes pelo agente ao ponto de determinar a respectiva reabilitação mediante o cancelamento definitivo das decisões inscritas no registo criminal (art. 11.º, n.º 1, da Lei n.º 37/2015).

Mas não é só o decurso do tempo que determina este cancelamento definitivo.

Desde logo, por motivos óbvios, a referida lei faz cessar a vigência no registo criminal das decisões condenatórias respeitantes a pessoa singular ou colectiva, respectivamente, após o seu falecimento ou a sua extinção (art. 11.º, n.º 4, alíneas b) e c)).

E, residualmente, a mesma lei faz cessar a vigência no registo criminal de todas “as decisões consideradas sem efeito por disposição legal” (art. 11.º, n.º 4, al. d).

Aqui se deverão incluir as decisões condenatórias relativas a factos que deixaram integralmente de assumir relevância típica penal em virtude da entrada em vigor de uma nova lei penal despenalizadora, em decorrência do disposto no art. 2.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Penal (Vide FIGUEIREDO DIAS, Ob. Cit., pp. 652-653).     
  
4.4. No caso dos autos, sobreveio uma lei penal cuja aplicação se saldou em concreto pela extinção total da responsabilidade criminal do condenado.

Tal lei penal nova entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2009, ou seja, a discriminização dos factos em apreço teve lugar antes da entrada em vigor da referida Lei n.º 37/2015, verificada em 10 de Maio de 2015.

As anteriores leis de registo criminal também regulavam expressamente o cancelamento definitivo das decisões no registo criminal e acautelavam as situações de extinção de responsabilidade criminal fundadas em leis descriminalizadoras.

Em particular, com relevância para o caso concreto, entre 1 de Janeiro de 1999 e 22 de Dezembro de 2009, vigorou a Lei n.º 57/98, segundo a qual (negrito e sublinhado nossos): 
“(…)
Artigo 15.º
Cancelamento definitivo
1 - São canceladas automaticamente, e de forma irrevogável, no registo criminal:
a) As decisões que tenham aplicado pena principal ou medida de segurança, decorridos 5, 7 ou 10 anos sobre a extinção da pena ou medida de segurança, se a sua duração tiver sido inferior a 5 anos, entre 5 e 8 anos, ou superior a 8 anos, respectivamente, e desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime;
b) As decisões de dispensa de pena e que apliquem pena de admoestação, decorridos 5 anos sobre o trânsito em julgado ou sobre a execução, respectivamente;
c) As decisões que tenham aplicado pena acessória, após o decurso do prazo para esta fixado na respectiva sentença condenatória;
d) As decisões consideradas sem efeito por disposição legal.
(…)”.

Aqui chegados, importa reconhecer que assiste razão ao recorrente e que o tribunal a quo errou na aplicação do direito ao erigir o caso julgado material e a extinção da pena como obstáculos à aplicação retroactiva da lei penal descriminalizadora para efeito de extinção de toda a responsabilidade criminal do condenado, incluindo o cancelamento da condenação que ainda subsistia inscrita no registo criminal para além da oportuna extinção da pena.

Aliás, mesmo que a lei do registo criminal não dispusesse sobre esta situação mediante a previsão de uma cláusula residual, dir-se-á que a eliminação da sentença dos autos do registo criminal sempre decorreria directamente da mera existência da norma constante do art. 2.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Penal.

5. Porquanto, o presente recurso deve proceder totalmente.

III – DECISÃO

Em função do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta Relação em julgar totalmente procedente o recurso e, em consequência:
a) Revogam a decisão recorrida; e
b) Determinam o cancelamento definitivo e irrevogável do registo criminal da decisão condenatória proferida nestes autos, a efectivar por comunicação dirigida pela 1.ª instância aos serviços de identificação criminal.

Sem custas.
*
Guimarães, 23 de Janeiro de 2024
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos signatários)

(Paulo Almeida Cunha - Relator)
(Pedro Cunha Lopes)
(Armando da Rocha Azevedo)