RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
FAZENDA NACIONAL
SEGURANÇA SOCIAL
Sumário

Por força do disposto no art. 205º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social, os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos de mora, com privilégio imobiliário geral, são graduados antes dos créditos do Estado provenientes de IRS que beneficiam do mesmo privilégio creditório.

Texto Integral

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Processo 3129/22.0T8OAZ-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis – Juiz 2

Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1ª Adjunta: Ana Vieira
2º Adjunto: Ernesto Nascimento
*
Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
I.
Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos de Reclamação de Créditos supra identificados, na parte em que a mesma gradua, para pagamento pelo produto da venda do bem imóvel penhorado, os créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional, provenientes de IRS, com prioridade sobre os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., ora Recorrente.
Pede o recorrente a final seja revogada a decisão recorrida e substituída por outra que, na ordem da graduação dos créditos, dê primazia aos créditos reclamados pelo ora recorrente, em detrimento dos créditos reclamados pela Fazenda Nacional a título de IRS.
São as seguintes as conclusões do Recurso:
1. No âmbito dos presentes autos, foi penhorado o prédio urbano, sito na Estrada ..., n.º ..., Lugar ..., da freguesia ..., concelho de Santa Maria da Feira, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º ..., da referida freguesia, que é da propriedade do executado AA.
2. Subsequentemente, foram os credores citados para, querendo, apresentar reclamação de créditos (cf. artigos 786.º, n.º 2 e 788.º do CPC).
3. Nessa senda, o ora recorrente apresentou reclamação de créditos, através da qual reclamou um crédito no montante global de € 17.771,22 (dezassete mil setecentos e setenta e um euros e vinte e dois cêntimos), que, ao abrigo do preceituado nos artigos 747.º e 748.º do C.C. e artigos 204.º e 205.º do C.R.C., tem natureza privilegiada (privilégio creditório imobiliário geral).
4. Tal montante diz respeito a contribuições devidas, na qualidade de Entidade Empregadora, no período de janeiro/2015 a outubro/2015 (no valor de € 503,55), e na qualidade de Trabalhador Independente, no período de dezembro/2014 a março/2023 (no valor de € 13.510,72), às quais acrescem juros de mora, vencidos até à data da reclamação de créditos (no valor de € 3.404,51), bem assim como juros de mora do pagamento de contribuições fora dos prazos legais (com a importância de € 352,44).
5. Por não terem sido impugnados, a sentença proferida pelo Tribunal a quo, julgou verificados todos os créditos reclamados no âmbito deste apenso, designadamente os que foram reclamados pelo ora recorrente,
6. E, no segmento decisório, determinou que a graduação dos créditos reconhecidos será feita da seguinte forma: “1º O crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional, referente a IMI; 2º O crédito hipotecário de que beneficia o exequente (com registo das suas hipotecas de 2005.06.16 pela Ap. ... de 2005.06.15). 3º O crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional referente ao IRS; 4º O crédito reclamado pelo ISS; 5º O restante crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional.”
7. Acontece que a douta sentença, por ter desconsiderado a preferência de que goza o crédito do ora recorrente decidiu, na ordem de graduação, sobrepor os créditos reclamados pela Fazenda Pública a título de IRS aos reclamados pela Segurança Social.
8. Violando, assim, a norma legal prevista no artigo 748.º, nº 1, do C.C., conjugada com as normas legais previstas no artigo 205.º do C.R.C. e no artigo 111.º do C.I.R.S..
9. De acordo com o artigo 205.º do C.R.C., os créditos da Segurança Social gozam de privilégio imobiliário sobre os bens móveis existentes no património do contribuinte e, por isso, graduam-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do C.C..
10. É no aludido artigo 748.º do C.C. que se encontra prevista a ordem a que os créditos com privilégio imobiliário devem obedecer,
11. Nele se ditando que (apenas) terão prioridade os créditos do Estado – referentes a contribuição predial, a sisa e a imposto sobre as sucessões e doações – e os créditos das autarquias locais – devidos por contribuição predial.
12. Todavia, tais tributos já se encontram revogados por força do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, que aprovou os novos Códigos do Imposto Municipal sobre Imóveis (C.I.M.I.) e do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (C.I.M.T.).
13. E, por essa razão, deve o artigo 748.º do C.C. ser interpretado com recurso a uma perspetiva atualista.
14. Ou seja, quando a mencionada norma legal faz alusão à contribuição predial, à sisa e ao imposto sobres as sucessões e doações, deve entender-se que o mesmo se refere ao IMI e ao IMT, respetivamente.
15. E, tendo em conta que o legislador foi taxativo no elenco dos impostos que considera ter prioridade na graduação dos privilégios imobiliários,
16. Dúvidas não podem existir de que os impostos sobre o rendimento, designadamente o IRS e o IRC, se encontram excluídos do âmbito de aplicação da referida norma legal.
17. Sobre isso, vejam-se, designadamente, os Acórdãos proferidos pelo colendo Tribunal da Relação de Guimarães em 12/09/2019 e em 05/05/2022, no processo n.º 5170/17.6T8VNF-D e no processo n.º 3863/21.2T8VNF-A.G1, respetivamente (disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).
18. Ora, pese embora não se negue que os créditos objeto da presente demanda (IRS e Segurança Social) gozam do mesmo privilégio creditório imobiliário.
19. Entende o ora recorrente que não é por gozarem do mesmo privilégio creditório que, necessariamente, terão que ter a mesma ordem de graduação.
20. E muito menos aceita que os créditos decorrentes de IRS se possam sobrepor aos créditos da Segurança Social….
21. Já que, na verdade, é o crédito da Segurança Social que beneficia dessa preferência por força do preceituado no artigo 205.º do C.R.C.
22. Em razão disso, a ordem da graduação de créditos da decisão ora em crise devia ser inversa, na medida em que os créditos da Segurança Social sempre teriam que assumir o lugar dos créditos reclamados pela Fazenda Nacional a título de IRS e, inversamente, os créditos relativos ao IRS assumir a posição dos créditos reclamados pela Segurança Social.
23. No caso em apreço, não tendo a sentença proferida pelo Tribunal a quo considerado a preferência dos créditos reclamados pelo aqui Apelante, dúvidas não restam de que terá violado o disposto nas normas legais previstas no artigo 748.º do C.C., conjugado com o artigo 111.º do C.I.R.S. e o artigo 205.º do C.R.C.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar: a da (não) prevalência do crédito referente a contribuições da segurança social sobre o crédito relativo a IRS, na graduação a realizar quanto a bem imóvel penhorado, indiscutível beneficiarem ambos os créditos de privilégio imobiliário geral.
III.
A existência e origem/causa dos créditos reconhecidos e graduados está adquirida, sem discussão nos autos, pelo que, nessa parte, nos remetemos para os termos da decisão recorrida.
Nos termos do disposto no artigo 604.º, n.º 1, do Código Civil (CC), não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos.
Esta norma consagra o princípio da par conditio creditorum, que ANA PRATA (Dicionário Jurídico, Coimbra, Almedina, 2006, 4.ª ed., p. 848) define como o «princípio segundo o qual todos os credores – que não gozem de nenhuma causa de preferência relativamente aos outros credores – se encontram em igualdade de situação, concorrendo paritariamente ao património do devedor para obter a satisfação dos respectivos créditos».
É, no entanto, frequente que um ou mais credores tenham direito a ser pagos, preferencialmente, por alguns ou por todos os bens do executado. Neste âmbito destacam-se as garantias e os privilégios creditórios, que constituem excepções ao referido princípio da igualdade dos credores. Por tal motivo, as normas que os consagram e tutelam devem ser interpretadas de acordo com a regra enunciada no artigo 11.º do CC.
De acordo com o art. 733.º, do CCivil, o privilégio creditório «é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente de registo, de serem pagos com preferência a outros». E o art. 734.º, do CCivil acrescenta que o «privilégio creditório abrange os juros relativos aos dois últimos anos, se forem devidos».
Trata-se de uma garantia que visa assegurar dívidas que, por sua natureza, se encontram especialmente relacionadas com determinados bens do devedor, justificando-se, por isso, que sejam pagas com preferência a quaisquer outras, até ao valor dos mesmos bens. E o art. 735.º, do CC classifica os privilégios creditórios em duas espécies, «mobiliários e imobiliários» (n.º 1), consoante incidam sobre bens móveis ou imóveis; Os privilégios mobiliários podem ser «gerais, se abrangem o valor de todos os bens móveis existentes no património do devedor à data da penhora ou de acto equivalente», ou «especiais, quando compreendem só o valor de determinados bens móveis» (n.º 2); e que os privilégios imobiliários «estabelecidos neste Código são sempre especiais» (n.º 3 ), ao contrário do que possa suceder na consagração, em legislação avulsa, de outros privilégios imobiliários.
O art. 749.º, do CCivil, estipula que o «privilégio geral não vale contra terceiros, titulares de direitos que, recaindo sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, sejam oponíveis ao exequente» (n.º 1), sem prejuízo das «leis de processo» estabelecerem «os limites ao objecto e à oponibilidade do privilégio geral ao exequente e à massa falida, bem como os casos em que ele não é invocável ou se extingue na execução ou perante a declaração da falência» (n.º 2); e, no art. 751º, do CCivil, que os «privilégios imobiliários especiais são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores».
Bem assim adquirido nos autos beneficiarem os créditos em confronto de privilégio imobiliário geral, nos termos das normas convocadas na decisão recorrida.
Ora, a par da consagração legal de privilégios creditórios (mobiliários e imobiliários, gerais e especiais), importa ainda atender à graduação legal a respeitar entre eles, quando concorram simultaneamente sobre um mesmo bem.
Na verdade, a ordem de alinhamento dos créditos munidos de privilégio creditório, e ainda que da mesma natureza, carece de estar prevista na lei, por ser uma estatuição jurídica diferente da que institui o privilégio.
O princípio geral está no art. 745.º, do CC segundo o qual os «créditos privilegiados são pagos pela ordem segundo a qual vão indicados nas disposições seguintes» (n.º 1); e, havendo «créditos igualmente privilegiados, dar-se-á rateio entre eles, na proporção dos respectivos montantes» (n.º 2).
Consequentemente, finda a ordem legalmente imposta pelos artigos 745º a 751º do C.Civil ou noutros preceitos constantes de legislação avulsa, existindo créditos dotados de igual privilégio o legislador fixou o critério obrigatório a seguir pelo intérprete na graduação: serão rateados na proporção dos respectivos montantes.
Ora, actualmente, o art. 205º do do CRCSPSS estatui que «Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no art. 748º do Código Civil. (sublinhado nosso)
A consagração legal de Privilégios Creditórios associados aos créditos da Segurança Social não é alheia ao complexo das relações jurídico-obrigacionais que se estabelecem no âmbito do funcionamento do sistema de segurança social. Neste sentido, o sistema de Segurança Social corresponde à resposta do legislador ordinário aos comandos constitucionais resultantes do artigo 63.º da Lei Fundamental, no qual se estabelece genericamente que “todos têm direito à segurança social” e ainda, que este sistema “protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.” Quanto à organização e direção do sistema de segurança social, o legislador constituinte comanda o Estado nessas mesmas tarefas (n.º2 do artigo 65.º da CRP), todavia não especificando de que forma o sistema deva ser financiado.
Todavia, podemos afirmar que o dever de contribuir para o sistema de segurança social resulta do próprio texto constitucional, como nos explicam os professores GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA[1]: “(…) a segurança social é, em parte, um encargo do Estado, a ser suportado pelo respectivo orçamento; por outro lado, porém, a segurança social não depende apenas do financiamento público directo, mas sim, também (ou sobretudo), das contribuições dos respectivos beneficiários (princípio da contribuitividade), estando aqui implícito um dever de contribuição para a segurança social (…)”.
Sempre se diga que a relação jurídica tributária inerente ao sistema de Segurança Social assume especificidades face à “típica” relação jurídica tributária, já que a relação jurídica inerente ao sistema de segurança social compreende em si mesma dois tipos de vinculação jurídica. Por um lado, os artigos 6.º e 7.º do Código Contributivo[2] abordam a “relação jurídica vinculativa”, consubstanciando-se esta como a relação jurídica que estabelece a ligação entre as pessoas singulares e coletivas e o sistema de segurança social e cujo objeto se traduz na “determinação dos titulares do direito à proteção social do sistema previdencial da segurança social, bem como dos sujeitos das obrigações.”.
Por outro lado e com maior relevância para a questão que nos ocupa, nos artigos 10.º a 15.º do Código Contributivo, o legislador aborda o vínculo contributivo inerente a esta mesma relação jurídica, definindo-o como um vínculo com uma verdadeira natureza obrigacional que liga ao sistema previdencial os trabalhadores e as respetivas entidades empregadoras, os trabalhadores independentes e quando aplicável as pessoas coletivas e as pessoas singulares com atividade empresarial que com eles contratam e ainda os beneficiários do regime de seguro social voluntário.[3]
Neste sentido, o objeto da obrigação contributiva é o pagamento regular de contribuições e de quotizações por parte das pessoas singulares e coletivas que se relacionam com o sistema previdencial de segurança social, consubstanciando tais quantias a mais importante fonte de financiamento de todo o sistema de segurança social[4].
A associação da figura do privilégio creditório ao crédito contributivo não é propriamente uma novidade no nosso ordenamento jurídico, muito pelo contrário. A consagração do privilégio imobiliário geral em favor dos créditos da Segurança Social foi introduzida no ordenamento jurídico português pela primeira vez através do artigo 3.º do D.L. n.º 512/76, de 3.07, diploma que viria a ser tacitamente revogado pelo D.L. n.º 103/80, de 9.05. Todavia, o privilégio imobiliário geral começou a suscitar dúvidas na doutrina e na jurisprudência praticamente desde da sua criação, especialmente no que à sua eficácia face aos direitos de terceiros diz respeito, atenta a inexistência da figura dos privilégios imobiliários gerais[5].
Sendo os bens penhorados imóveis, o que nos interessa aqui é o privilégio imobiliário de que beneficiam, quer o crédito da Fazenda Nacional, quer o crédito da Segurança Social.
Sempre não prevista em legislação especial, designadamente o CIRS, que estabelece o privilégio imobiliário geral em causa, ordem de preferência no pagamento deste crédito distinta da prevista no CC.
E, de acordo com o artigo 748.º do CC, que estabelece a ordem pela qual devem ser graduados os créditos com privilégio imobiliário, tais créditos devem ser graduados pela seguinte ordem: a) Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações, b) Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial.
Nos termos dos arts 28º e 31º do D.L. 287/2003 de 12.11, a referência à contribuição predial deve entender-se feita ao imposto municipal sobre imóveis (IMI), a referência à sisa deve reportar-se ao imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e a referência ao imposto sobre as sucessões e doações ao imposto de selo.
Sempre nos créditos do Estado aqui referidos não se incluem ou constam os créditos provenientes de IRS.
Pelo que, tal como a jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo vem repetidamente afirmando, cfr. a citada nas alegações de recurso, consequentemente, tem o questionado crédito de IRS de ser graduado depois dos créditos da Segurança Social tal como propugna a recorrente. Ou, dito de outro modo, o crédito do Estado relativo a IRS, enquanto "crédito do Estado” não se encontra abrangido pela referida alínea a) do citado artigo do Código Civil. E, como tal, não poderá ser-lhe atribuída preferência na ordem de graduação relativamente ao crédito da Segurança Social.
Sendo o crédito reclamado pela Fazenda Nacional proveniente de IRS está excluído da previsão da alínea a) deste preceito legal e, consequentemente, não há fundamento legal para a sua prevalência face ao crédito relativo às contribuições da Segurança Social que beneficia de privilégio idêntico.
De resto, não se encontrando jurisprudência publicada no sentido da decisão recorrida, a par da propugnada graduação dos créditos relativos às contribuições da segurança social em primeiro lugar, considerando o último segmento do art. 205.º do CRCSPSS que, como vimos, diz que tais créditos se graduam logo após os créditos referidos no art. 748º do Código Civil, existe jurisprudência no sentido da graduação a par e em rateio, por força do referido nº2 do art 745º do C.Civil.
Louva-se esta última no entendimento segundo o qual o citado art. 205º não estabelece uma verdadeira graduação, limitando-se a apontar a graduação legal resultante das disposições legais conjugadas dos arts 745º, nº1, 746º e 748º do C.Civil, caindo assim na regra do nº 2 do art. 745º.
No acórdão da Relação de Guimarães de 12-09-2019, proferido no proc. 5170/17.6T8VNF-D.G1, de que foi relator António Sobrinho, disponível in www.dgsi.pt, seguiu-se a primeira das referidas interpretações, que já se adiantou acompanharmos, com a seguinte argumentação: “De facto, o citado artº 205º, sob a epígrafe que privilégio imobiliário, estatui que «Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil».
Ora, em sede de interpretação legal, preceitua o artº 9º, nº 2, do CC, que não deve ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Por seu turno, o seu nº 3, estabelece que o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, na fixação do sentido e alcance da lei.
Assim, ao prescrever-se no supracitado preceito do artº 205º da Lei 110/2009 que os créditos da segurança social se graduam logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil, o legislador quis realçar esse imediatismo na graduação desse crédito, fazendo-o prevalecer sobre os demais, maxime, privilégios imobiliários gerais, e não equiparando-os, em termos de eficácia gradativa, à luz do apontado artº 745º, nº 2, do CC.
Nesta alegada perspectiva, nem sequer necessitava então o legislador de ter acrescentado que tais créditos da segurança social se graduam logo após os créditos referidos no artº 748º, do CC. Ao invés, não só o fez, como não se limitou a estabelecer que esses créditos se graduavam após os créditos do artº 748º. Antes, deu ênfase, com a expressão ‘logo’, que era sua intenção escalonar esse privilégio imobiliário geral em relação aos demais créditos privilegiados, afastando-o, portanto da igualdade prevista no assinalado artº 745, nº 2, do CC.
De frisar que o redito artº 745º, nº 2, do CC, ao mandar dar rateio no pagamento, pressupõe que haja créditos privilegiados por igual.
Mas o que aqui ocorre, como acima se tem aduzido, é que a ordem de pagamento é distinta, por força do consignado na parte final do aludido artº 205º, da Lei 110/2009.
Acresce que o mencionado normativo - o do artº 205º, da Lei nº 110/2209 - reproduz, aliás, idêntico normativo já contido no artº 11º, do Dec.Lei nº 103/80, de 09.05 (por sua vez, este havia já transposto o que dispunha o artº 2º, do Dec.Lei nº 512/76, de 03.07, onde se estabelecia que "os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário, sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo graduando-se logo após os créditos referidos no art. 748º do Código Civil", o que denota a persistência do legislador em manter a letra da lei ínsita a tal previsão normativa, com o alcance e sentido acima expostos[6].
De sublinhar ainda que o Tribunal Constitucional também já decidiu que os privilégios creditórios conferidos à Segurança Social têm fundamento constitucional, “existindo um motivo ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63° da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento.” (Acórdão n.º 688/98, Proc.º nº 779/97, 2ª Secção. Relator Cons. Bravo Serra, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41°, vol., pág. 567)”.
E também a Relação do Porto no acórdão de 05.05.2011, proferido no processo nº 5158/07.5.TBVL-G-BP1, relatado por Maria Amália Santos, igualmente disponível in www.dgsi.pt decidiu pela prevalência dos créditos da Segurança Social, nos seguintes termos: «Na interpretação deste preceito legal (art. 748º do CC) importa considerar, desde logo, o elemento gramatical. Assim, nas citadas alíneas, a presença da contracção “pela”, tem o significado de “com origem em” ou “provenientes de”. Ou seja, os créditos do Estado, lato sensu, e das autarquias locais, previstos na ordenação que o preceito em análise estabelece, são, pois, numa interpretação actualista, os provenientes de IMI, IMT e imposto de selo. E apenas esses, pois aí não se incluem ou constam créditos provenientes de IRS e/ou de IRC; Ou seja, todos os outros créditos do Estado são excluídos, designadamente o I.R.S., imposto que, embora criado posteriormente, com o D.L. n° 442-A/88, de 30 de Novembro, veio substituir, no fundo, anteriores impostos que incidiam sobre o rendimento das pessoas singulares, tais como o imposto profissional, o imposto complementar e a contribuição industrial (grupo C), que o citado art.° 748° do C. Civil não abrange.
Além do argumento literal, (…), acrescem ainda os elementos histórico e teleológico, pois o legislador, ao instituir um “Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência”, não olvidou que “O pagamento pontual das contribuições devidas às instituições de previdência é absolutamente indispensável como fonte básica de financiamento das prestações da segurança social”, reconhecendo que “aquela pontualidade não tem sido, infelizmente, respeitada.” (cfr. Preâmbulo do D.L. nº 103/80). A filosofia que está subjacente à instituição dos privilégios a favor dos créditos da Segurança Social reside na elevação do direito à segurança social em direito constitucionalmente consagrado (art.º 63º, nº 1 da CRP) impondo ao Estado a tarefa de organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado.
Conclui-se do que fica exposto que à luz dos art.ºs 11º do D.L. nº 103/80, de 09/05, os créditos da segurança social, que gozam de privilégio imobiliário geral, devem ser graduados logo após os referidos no art.º 748º, e, antes dos créditos de IRS.”
No mesmo sentido, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo em acórdãos de 10 de Novembro de 2010, relatado por Jorge Lino, de 28/03/2007, Processo nº 0132/07, de 13/02/2008, Processo nº 01068/07, e 07/10/2009, Proc. nº 572/09, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jsta., e 18.1.2012, publicado no Diário da República, apêndice do dia 18 de abril de 2013, de resto citados nas alegações de recurso.
Na doutrina, MIGUEL PESTANA DE VASCONCELOS, “As garantias dos créditos fiscais. Regime e proposta de reforma”, in Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal”, Ano V, n.º3 – Outono, Lisboa, 2013, págs. 203 e ss., p. 209 e LOPES NETO, Privilégios creditórios fiscais, Fiscalidade, 2005, pp. 73, ss p. 99.
Reconhecendo a validade da argumentação citada, data venia, sustentamos a prevalência no conflito decidendo das contribuições da segurança social, pois, entendemos que é a que resulta da concatenação dos vários normativos aplicáveis. Outra solução retiraria qualquer sentido útil ao último segmento do citado art. 205º do RCCSS, que manda graduar as contribuições da segurança social, logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil, não se compaginando com o nº 3 do art. 9º do C.Civil, a consideração de tal normativo como inócuo.
Em conclusão, impõe-se a procedência do recurso e, consequentemente, a alteração da sentença, graduando-se o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, IP antes do crédito de IRS reclamado.
IV.
Pelo exposto, os Juízes deste Tribunal da Relação acordam em conceder provimento ao recurso de apelação interposto pelo Instituto da Segurança Social, IP/Centro Distrital ... e, alterando a sentença recorrida, graduam-se os créditos em concurso da seguinte forma:
1º O crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional, referente a IMI;
2º O crédito hipotecário de que beneficia o exequente (com registo das suas hipotecas de 2005.06.16 pela Ap. ... de 2005.06.15).
3º O crédito reclamado pelo ISS.
4º Os créditos reclamados pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional referente ao IRS.
5º O restante crédito reclamado pelo Ministério Público em representação da Fazenda Nacional.
Custas pela recorrente, segundo o critério supletivo do proveito (art. 527.º, n.º 1, segunda parte, do CPC), sendo certo que não tendo a parte contrária motivado a decisão ou respondido ao recurso, as custas cingem-se à taxa de justiça já paga.
Notifique.

Porto, 11 de Janeiro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Ana Vieira
Ernesto Nascimento [Voto de vencido.
Não condenaria a recorrente nas custas do processo.
Ainda que o recorrido não tenha contra-alegado, desde que o provimento do recurso lhe seja potencialmente desfavorável, deve ser responsabilizado pelo pagamento das custas do recurso – em sentido estrito, abrangendo apenas eventuais encargos e as custas de parte a liquidar, uma vez que a taxa de justiça devida pela interposição o recurso se encontra necessariamente já paga.
Por força do estatuído nos artigos 527.º/1 CPCivil e 4.º/1 do RCP, não tributaria a apelação, dada a isenção do MP, recorrido, vencido, como de resto, se decidiu nos acórdãos invocados deste Tribunal de 5.5.2011 e da RG de 5.5. 2022.
Fundamentação.
Dispõe o artigo 527.º/1 CPC, que a “decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
E, o n.º 2 que, “entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”.
Isto é, a responsabilidade pelas custas assenta, a título principal, noprincípio da causalidade (indiciado pelo princípio da sucumbência), isto é, as custas serão suportadas pela parte que a elas houver dado causa, entendendo-se como tal a parte vencida, na proporção em que o for.
Só subsidiariamente a responsabilidade pelas custas apelará ao princípio da vantagem ou do proveito resultante do processo, isto é, só quando, pela natureza da acção, não haja lugar a vencimento por qualquer das partes, as custas serão suportadas por quem do processo tirou proveito.
Aqui se consagra o princípio da justiça tendencialmente gratuita para quem obtém ganho de causa. Ou de que o processo – ou recurso - não cause prejuízo a quem obtém ganho de causa.
E uma realidade é a acção e outra é o recurso.
Ali, o réu perde quando é condenado no pedido e o autor perde quando o réu é absolvido do pedido ou da instância.
Aqui, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento.
Sendo certo que aqui se pode introduzir a nuance de o recorrido não contra-alegar e o recurso merecer provimento, mas a situação não se refletir negativamente na esfera jurídica do recorrido.
Situação que ao caso não vem.
Caso em que se pode defender ser responsável pelas custas do recurso quem for condenado, a final, nas custas da ação.
Este princípio é aplicável em todas as espécies de processos e ainda que a parte vencida não tenha deduzido oposição, incluindo as contra-alegações em sede de recurso, cfr. Salvador da Costa, As Custas Processuais - Análise e Comentário, 8.ª edição, Almedina.
Assim, a parte vencedora da acção, ou do recurso, não pode em caso algum ser condenada no pagamento das respectivas custas, salvo nos casos previstos no artigo 535.º CPCivil, que dispõe que, quando “o réu não tenha dado causa à acção e a não conteste, são as custas pagas pelo autor”.
Só esta norma, que não tem aplicação ao caso, faz cessar a aplicação do critério do vencimento previsto no aludido artigo 527.º.]
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[1] Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I (Artigos 1.º a 107.º), 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, págs. 819 e 820
[2] O Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (abreviadamente, Código Contributivo) foi aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16.09, que expressamente revogou os vários diplomas avulsos referentes à disciplina jurídica da relação contributiva.
[3] Cfr. arts. 10.º e 11.º do Código Contributivo.
[4] O próprio legislador especifica no n.º 3 do artigo 11.º do Código Contributivo que “As contribuições e quotizações destinam-se ao financiamento do sistema previdencial que tem por base uma relação sinalagmática direta entre a obrigação legal de contribuir e o direito às prestações.”
[5] De notar que o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se em diversas ocasiões sobre a própria constitucionalidade do privilégio imobiliário geral atribuído aos créditos da Segurança Social. Neste sentido veja-se o Ac. do TC n.º 688/98, (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19980688.html, o Ac. n.º 193/02, (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020193.html) e ainda, sobre o problema da eficácia do privilégio imobiliário geral face a direitos de terceiro, o Ac. do TC n.º 363/02, do qual resultou o seguinte sentido da decisão: “(…) Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República, das normas constantes do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil.(…) ”.
[6] É, de resto, a conjugação do argumento literal e bem assim do elemento histórico da interpretação que infirma a conclusão, sem mais, na sentença recorrida de que: “Contudo resulta do espírito dos privilégios creditórios que o legislador pretendeu dar prevalência de pagamento aos créditos do Estado provenientes de impostos”. Desde logo, se assim fosse, mal se compreenderia o elenco ou definição do tipo de impostos beneficiário da precedência…