RECURSO
PRAZO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA
Sumário


Não tendo a recorrente suscitado a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto com fundamento em prova gravada, mas unicamente com base no teor de determinados documentos juntos aos autos, e constatando-se de forma inequívoca que as referências feitas ao depoimento prestado por determinada testemunha ouvida em sede de audiência final servem apenas para enquadrar a tese defendida pela apelante em sede de recurso na vertente da subsunção jurídica dos factos ao direito, não existe fundamento para o alongamento do prazo geral de 30 dias previsto na lei, sendo este o prazo aplicável à interposição da presente apelação, nos termos do disposto no artigo 638.º, n.º 1 do CPC.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

EMP01... STC S.A., intentou ação executiva contra EMP02..., Ld.ª, AA, BB, CC, DD, servindo de título executivo três livranças subscritas pela 1ª executada EMP02..., Ld.ª e avalizadas pelos restantes.
A executada EMP02..., Ld.ª, deduziu oposição mediante embargos à referida execução, invocando, em suma, que as livranças dadas à execução têm subjacente contratos; contudo, ao contrário do que resulta do requerimento no que tange ao empréstimo ...91, as obrigações pecuniárias assumidas pela sociedade ora embargante não se encontram apenas garantidas por hipoteca e aval pessoal dos demais embargantes, mas também por garantia autónoma prestada pela EMP03... - Sociedade de Garantia Mútua, SA; todavia, no requerimento executivo nenhuma referência é feita à referida garantia nem ao facto de a mesma ter sido prestada e identidade da entidade que a prestou, assim como não é feita qualquer referência à circunstância de a ora embargada ter já recebido da EMP03..., em data que os Embargados não sabem precisar, parte do valor em dívida pelo que, tendo a embargada recebido da EMP03... pelo menos parte do seu crédito, não pode exigir dos ora embargantes o pagamento dos montantes já recebidos.
Concluiu pela procedência dos presentes embargos e, em consequência, ser a quantia exequenda reduzida ao valor que se mostrar em dívida uma vez deduzidas as quantias entregues pela EMP03... à embargada.
A exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição deduzida. Impugna a versão dos factos invocados na petição de embargos alegando, em síntese, que a exequente, quando preencheu a livrança, e depois quando instaurou a execução, já teve em conta os valores pagos e recebidos pela EMP03..., tendo esta, em dezembro de 2015, pago à exequente o valor de 124.666,66€, montante esse aplicado na operação ...91, contratada inicialmente pelo montante de 400.000€. Mais alega que a livrança que garantia esta operação foi preenchida pelo valor de 146.460,49€, pelo que facilmente se constata que o valor pago pela EMP03... está refletido no valor do preenchimento e executado. Alega, por fim, que todos os valores peticionados no requerimento executivo estão corretos e são-lhe efetivamente devidos, sendo legalmente exigíveis em processo executivo atento o incumprimento e a garantia prestada por parte de executada/embargante, montante este que a executada/embargante deve efetivamente, bem como os respetivos juros vincendos e despesas, carecendo de todo e qualquer fundamento os embargos de executado, visando os embargantes tão só e apenas furtar-se ao cumprimento das suas responsabilidades contratuais.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, de 22-05-2023, que julgou improcedentes os embargos de executado, determinando o prosseguimento da execução.
A sentença final foi notificada às partes por via eletrónica a 22-05-2023 (ref.ªs citius ...71 e ...73).

Inconformada com a sentença, a embargante/executada apresentou-se a recorrer em 03-07-2023 (ref.ª citius ...09), terminando as alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. Por sentença datada de 22 de Maio de 2023 foram julgados improcedentes os embargos deduzidos pela ora Embargante.
2. Atento o teor dos documentos juntos aos presentes autos pelas partes, mister se torna concluir que a Primitiva Embargada ao proceder ao preenchimento das livranças em branco entregues pela Embargante as quantias por si recebidas violou o respectivo pacto de preenchimento, uma vez que, não é possível determinar ante as diferentes contabilizações das quantias mutuadas à embargante qual o valor pela mesma efectivamente devido.
3. O somatório do valor inscrito nos títulos de crédito dados à execução, preenchidos a 14.04.2021, ascende a € 255 915, 99 (vide requerimento executivo).
4. De acordo com o mapa de responsabilidades da sociedade emitida pelo Banco de Portugal, a Banco 1..., SA reportou àquela instituição que a 31 de maio de 2021 a dívida da Embargante era de € 223 915, 79 e que a mesma entrou em incumprimento das suas obrigações a 26.11.2017, valor esse, que tendo em conta o alegado pela primitiva embargada nos pontos 24º e 25º inclui o valor de juros “juros vencidos (remuneratórios) e outros valores vencidos (isto é juros e valores que já deveriam ter sido pagos mas que ainda não foram)” inclui juros remuneratórios vencidos e que tal valor não inclui os juros de mora vincendos.
5. No depoimento por si prestado a testemunha EE referiu que o valor da divida ad Embargada a 14.04.2021 era de € 254 418, 31.
6. Em suma, ascendendo o montante inscrito das livranças dadas à execução ao montante de € 255 915, 59, valor pelo qual foi instaurada a execução à qual os presentes embargos foram apensos, e tendo a Exequente original comunicado ao Banco de Portugal que a 31 de Maio de 2021 era de € 223 995, 78 e que a mesma havia entrado em incumprimento a 26.11.2017, deve ser aditada à lista de factos assentes o seguinte ponto tendo por referência o mapa de responsabilidade da Embargante junto com o requerimento de embargos:
- A Banco 1..., SA comunicou ao Banco de Portugal que a 31 de Maio de 2021 o valor da dívida da Embargante ascendia a € 223 995, 78 e que a mesma entrou em incumprimento a 26.11.2017.
7. À matéria de facto dada como provada deve ainda ser aditados os valores cobrados pela Primitiva Embargada à Embargante a título de comissão de recuperação de dívida, valores esses que resultam dos extractos bancários juntos pela Embargada aos presentes autos no dia 20.05.2022.
8. Da lista de factos assentes deve pois constar o seguinte ponto:
- A primitiva Embargada cobrou à Embargante nas datas que infra se indicam os valores igualmente infra se relacionam a título de comissão de recuperação de dívida.
Data                               Valor (em euros)
28.03.2014                     117,89
17.07.2014                117, 89
23.09.2014               25,31
25.09.2014                   6, 65
29.09.2014                     26,77
13.10.2014                   56, 16
31.12.2014                  112, 99
02.06.2015                   110, 80
01.03.2016                  109,41
01.03.2016                  107,73
01.03.2016                  105,96
01.03.2016                 43,96
01.01.2016                  43,96
23.06.2016                 109,41
23.06.2016                   107, 73
23.06.2016                  105, 96
23.06.2016                 43,96
23.06.2016                     43,49
9. A cobrança de comissões por recuperação de divida tem os limites previstos no art. 9º do DL 58/2013 de 08.05.
10. Atendendo a que os valores cobrados pela Embargada excederam que os € 12, 00 por cada prestação em falta previstos , limite esse estabelecido nos nº 3 e 4 da norma ínsita no art. 9º do DL 58/2013 de 08.05, deve o respectivo diferencial ser subtraído aos valores que se considerem ser devidos pela Embargante, caso seja possível o seu apuramento.
11. Caso seja entendimento deste Venerando Tribunal que à matéria de facto dada como assente devem ser acrescentados os referidos pontos da matéria de facto, a verdade é que, ainda assim os elementos probatórios carreados para os presentes autos não permitem determinar qual o valor da quantia devida pela Embargante à Embargada.
2. A considerar-se que o valor declarado pela primitiva Embargada ao Banco de Portugal inclui juros remuneratórios e que a mesma estava em incumprimento desde 26.11.2017, como aliás, decorre do próprio requerimento executivo, mister se torna concluir, desde logo, que a ora Embargada não pode exigir do ora Autor qualquer quantia a título de juros remuneratórios, conforme AUJ de 25.03.2009 que fixou jurisprudência nos seguintes moldes “no contrato de mútuo oneroso liquidável em prestações, o vencimento imediato destas ao abrigo de cláusula de redacção conforme ao art.º 781º do Código Civil não implica a obrigação de pagamento dos juros remuneratórios nelas incorporados”.    
13. Os documentos juntos aos presentes autos não nos dão informação sobre o valor do capital em dívida pela embargada a 26.11.2017, data em que a primitiva embargada considerou incumpridos os contratos conforme comunicação feita ao Banco de Portugal e, uma vez que, os documentos juntos ao presente articulado, não obstante terem sido todos eles, com excepção do mapa de responsabilidades, emitidos pela primitiva embargada não serem coincidentes no seu conteúdo, nem sequer os consultados pela testemunha EE em sede de audiência de discussão e julgamento, mister se torna concluir pela impossibilidade de apuramento do capital em dívida pela Embargada e, como tal pela falta de um dos pressupostos da acção executiva: a liquidez e da obrigação exequenda.    
14. Uma vez que o acervo documental carreado para os presentes autos não permite determinar qual o valor do capital em dívida a 26.11.2017, mister se torna concluir que a dívida exequenda é ilíquida e, como tal, devem os presentes embargos proceder por falta de um dos pressupostos da obrigação exequenda inscritos no art. 713º do CC: a liquidação da mesma.
14. Caso este Venerando Tribunal considere que é possível determinar o montante do capital devido a 26.11.2017, o que não se concebe, ainda assim, os juros de mora devem ser calculados à taxa de juro de 4%.
15.Os presentes embargos ser julgados procedentes, por provados, e em consequência, decretar-se a extinção da instância executiva.
A decisão ora em crise violou o art. 607º, nº 4, 713º, do CPC, 781º do CC e 9º do DL 58/2013 de 08.05.
Termos em que
Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser ordenada a extinção da instancia executiva, pois só assim se fará JUSTIÇA!».
A apelada/exequente apresentou contra-alegações, nas quais sustentou, além do mais, a inadmissibilidade do recurso, atenta a sua extemporaneidade, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 641.º do CPC.
O recurso veio a ser admitido pelo Tribunal a quo como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, após o que se determinou conceder prévio contraditório à recorrente, nos termos aplicáveis do disposto no artigo 654.º, n.º 2, aplicável por via do n.º 2 do artigo 655.º do CPC.
Por decisão sumária de 28-11-2023, proferida pelo ora relator, foi rejeitado o recurso apresentado pela apelante, por extemporâneo, não se conhecendo do seu objeto.
Notificada de tal decisão, veio a apelante apresentar reclamação para a conferência, aduzindo para o efeito os seguintes fundamentos/conclusões (que se transcrevem):
«1. Por decisão singular datada de 28.11.2023, foi decidido por este Tribunal rejeitar o recurso interposto pela ora Recorrente por ter sido o mesmo considerado extemporâneo.  
2. Com efeito, foi entendimento do Relator da decisão singular ora em crise que não basta “não basta que a Recorrente impugne a decisão da matéria de facto, sustentando que a matéria de facto selecionada é insuficiente para a decisão da causa, nem mesmo que transcreva na alegação de recurso curtos segmentos do depoimento de uma testemunha, se a análise da alegação não deixar margem para dúvidas de que a apelante baseia ou assenta o pretendido aditamento da matéria de facto em falta, exclusivamente, em meios de prova não gravados, como por exemplo em documentos, caso em que o recorrente não poderá beneficiar daquele acréscimo temporal”.    
3. Ao contrário do que resulta da decisão ora em crise, a Recorrente não se limitou a usar a prova documental para pedir o aditamento à matéria de facto do seguinte ponto: A Banco 1... comunicou ao Banco de Portugal que a 31 de maio de 2021 o valor da dívida da Embargante ascendia a € 223 995, 78 e a mesma entrou em incumprimento a 26.11.2007.   
 4. A Recorrente socorreu-se do articulado oferecido pela Recorrida, do mapa de responsabilidades da Embargante e do depoimento da testemunha EE para requerer o aditamento daquele concreto ponto da matéria de facto à lista de factos assentes, ao qual, aliás, é feita menção não apenas corpo das alegações, mas também no pontos 5 e 13 das conclusões. 
5. Com reprodução do excerto da prova testemunhal prestada pela testemunha EE pretende a Recorrente que este Venerando Tribunal proceda a análise quer do articulado oferecido pela Recorrida quer dos meios de prova carreados para os presentes autos, mais concretamente a prova testemunhal e a prova documental, junta aos presentes autos que permitem o aditamento do referido ponto da matéria de facto.   
6. A prova testemunhal prestada pela testemunha EE é, igualmente , fulcral, no que ao referido excerto diz respeito para evidenciar as contradições existentes entre os valores inscritos nos títulos de credito dados à execução e que foram preenchidos a 14.04.2021 - num total de € 234 803, 09 - os valores comunicados pela Banco 1..., SA ao Banco de Portugal a 31.05.2021 - € 223 995, 78 - e os valores mencionados pela referida testemunha como sendo devidos a 14.04.2021 - € 254 418, 31.
7. Tem sido entendimento da Jurisprudência maioritária do STJ que tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação da prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640.º, n.º 1, do NCPC.   
8. A interpretação normativa segundo a qual os recursos para reapreciação da prova gravada deixam de beneficiar do prazo alargado de interposição de 40 dias quando os mesmos são rejeitados relativamente à matéria de facto viola o princípio da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do principio de Estado de Direito Democrático (art. 2º, da CRP) e o direito a um processo justo e equitativo (art. 20º da CRP e 6º da CEDH). 
 9. A finalidade que justifica a fixação de um prazo mais longo de interposição de recurso não reside - nem podia residir - na própria aferição da procedência ou admissibilidade do recurso, mas antes na atenuação das dificuldades de elaboração do recurso que tenha por base a impugnação de prova produzida e gravada em suporte magnético ou digital.   
10. O prazo de interposição de recurso é fixado, pela lei, em função do modo como o recorrente concebe o respetivo objeto - ou seja, optando por recorrer apenas quanto a matéria de facto, quanto a matéria de Direito ou quanto a ambas -, aplicando-se o prazo mais longo, quando haja cumulação de impugnação de facto e de Direito.
11. A decisão sobre o prazo de interposição de recurso de decisão não pode ficar dependente de uma ulterior ponderação acerca da procedência substancial do recurso, sob pena de o recorrente não dispor de meios para determinar, com um grau elevado de certeza, qual o prazo processual a que está sujeito, sob pena de os recorrentes começarem , “ad cautelam” a interpor recursos sobre matéria de facto que envolvesse uma apreciação de prova gravada no prazo geral, mais curto, de 30 dias, com receio enfrentarem, a final, uma decisão de extemporaneidade.  
12. Face ao supra exposto, torna-se forçoso concluir que este Tribunal deverá conhecer do recurso interposto pela ora Recorrente sob pena de, a manter-se a referida decisão, este Venerando Tribunal violar os princípios e direitos constitucionais acima mencionados.

TERMOS EM QUE
Deve a presente reclamação ser julgada procedente, por provada, e em consequência, conhecer este Venerando Tribunal o recurso interposto pela ora Recorrente, pois só assim se fará JUSTIÇA!».
Corridos os vistos, cumpre decidir.

II. Delimitação do objeto da reclamação
Nos termos previstos no artigo 652.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC), quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, devendo o relator submeter o caso à conferência, o que se faz relativamente à decisão do ora relator (de 28-11-2023), na qual se decidiu rejeitar o recurso apresentado pela apelante, por extemporâneo.

III. Fundamentação
1. Os factos
1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão da presente reclamação para a conferência são os que já constam do relatório enunciado em I supra, que aqui se consideram reproduzidos e para onde se remete por razões de economia processual.

2. Apreciação sobre o objeto da presente reclamação para a conferência
A apelante veio requerer que recaia acórdão sobre a matéria objeto da decisão sumária de 28-11-2023, com submissão do caso à conferência, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 652.º, n.º 3 do CPC.
Constatando-se que os fundamentos agora invocados pela recorrente traduzem a sua discordância quanto ao mérito da decisão singular proferida, importa desde já consignar que na apreciação das questões suscitadas na reclamação seguiremos integralmente a fundamentação expressa na aludida decisão (singular) do relator, por este coletivo se rever integralmente na solução jurídica assim como nos fundamentos aí explicitados, sem prejuízo de eventuais considerações adicionais que venham a revelar-se necessárias.
A apelada/exequente, nas respetivas contra-alegações, defendeu a inadmissibilidade do recurso apresentado pela executada/embargante, por ser extemporâneo, na medida em que esta aproveitou o prazo de 10 dias concedido pelo artigo 638.º, n.º 7 do CPC para os casos em que o recurso tem por objeto a reapreciação da prova gravada, mas os aditamentos que pretende introduzir em sede de impugnação da matéria de facto não assentam na reapreciação da prova gravada, ou seja, no recurso apresentado a recorrente não indica qualquer facto dado como provado que, em face de tal prova, não pudesse sê-lo, nem requerendo a final, que o Tribunal dê como provado qualquer facto concreto que não tenha sido dado como provado, fundado na referida prova, pelo que o prazo de recurso a apresentar pela apelante não estava acrescido de 10 dias.
Cumprido o legal contraditório, a recorrente veio sustentar a tempestividade da apelação interposta, sustentando, no essencial, que o termo do prazo para apresentação das suas alegações de recurso findou a 04-07-2023, tendo, no entanto, apresentado as suas alegações antes do termo do referido prazo, ou seja, a 03-07-2023.
Cumpre apreciar da tempestividade do recurso interposto.
Nos termos previstos no artigo 652.º, n.º 1, al. b), do CPC incumbe ao relator a quem foi distribuído o processo, entre outras funções estatuídas no referido preceito, verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso, posto que o despacho que admitiu o recurso em 1.ª instância não vincula o Tribunal ad quem.
A decisão objeto de recurso foi proferida no âmbito de um processado que corre por apenso à ação executiva, importando por isso considerar, em primeiro lugar, o artigo 852.º do CPC o qual dispõe que, aos recursos de apelação e de revista de decisões proferidas no processo executivo são aplicáveis as disposições reguladoras do processo de declaração e o disposto nos artigos seguintes.
Independentemente da norma remissiva antes enunciada, o artigo 853.º, n.º 1 do CPC, com a epígrafe Apelação, prevê expressamente que é aplicável o regime estabelecido para os recursos no processo de declaração aos recursos de apelação interpostos de decisões proferidas em procedimentos ou incidentes de natureza declaratória, inseridos na tramitação da ação executiva.
No caso em análise, a decisão de que se pretende recorrer configura uma sentença final proferida na oposição, mediante embargos, à execução em referência.
Ora, configurando-se a oposição à execução como procedimento ou incidente de natureza declaratória, inserido na tramitação da ação executiva[1], julgamos que a situação em apreciação deve subsumir-se diretamente no âmbito da al. a) do n.º 1 do citado artigo 644.º do CPC, por se tratar de decisão, proferida em 1.ª instância, que põe termo à causa ou incidente processado autonomamente.
Nos termos do disposto no artigo 638.º, n.º 1 do CPC, o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão, reduzindo-se para 15 dias nos processos urgentes e nos casos previstos no n.º 2 do artigo 644.º e no artigo 677.º.
Contudo, nos termos previstos no n.º 7 do citado artigo 638.º do CPC, se o recurso tiver por objeto a reapreciação da prova gravada, ao prazo de interposição e de resposta acrescem 10 dias.
Deste modo, saber se o prazo suplementar de 10 dias conferido pelo artigo 638.º, n.º 7, do CPC é suscetível de se aplicar, apenas depende do objeto da apelação, delimitado pelas respetivas conclusões e, em concreto, se ele versa sobre a reapreciação da prova gravada, ainda que tal determinação do objeto possa não ser modelarmente recortada[2].
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa[3], em anotação ao preceito em referência, «[n]a apelação, pretendendo impugnar a decisão da matéria de facto a partir da reapreciação de meios de prova gravados (e apenas neste caso), o recorrente beneficia de um acréscimo de 10 dias. Para o efeito, é necessário que a alegação apresentada pelo recorrente contenha alguma impugnação da decisão proferida acerca da matéria de facto a partir da reponderação de meios de prova que, tendo sido prestados oralmente, tenham ficado registados, independentemente do juízo que ulteriormente seja feito acerca do cumprimento do ónus de indicação das passagens da gravação ou de qualquer outro requisito previsto no art. 640º».
Neste domínio, refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-04-2016[4]:
«(…)
Resulta claro do preceito que a aplicabilidade da extensão temporal não se basta com o facto de terem sido produzidos oralmente meios de prova na audiência de julgamento, sendo imprescindível que a impugnação da decisão da matéria de facto (relativamente a todos ou alguns dos pontos impugnados) implique, de algum modo, a valoração desses meios de prova. Aliás, não é suficiente que os depoimentos gravados tenham interferido potencialmente na formação da convicção, sendo necessário que o recorrente efectivamente se sirva do teor de depoimentos ou declarações prestadas e gravados para sustentar, perante a Relação, a modificação da decisão da matéria de facto.
(…) “o recorrente apenas poderá beneficiar deste prazo alargado se integrar no recurso conclusões que envolvam efectivamente a impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados”. E que “caso contrário, terá de se sujeitar ao prazo geral do art. 638º, nº 1. Se, apesar de existir prova gravada, o recurso for apresentado além do prazo normal sem ser inserida no seu objecto a impugnação da decisão da matéria de facto com base na reapreciação daquela prova verificar-se-á uma situação de extemporaneidade determinante da sua rejeição”».
Densificando os pressupostos do alargamento do prazo para apresentação das alegações de recurso, previsto no n.º 7 do citado artigo 638.º do CPC, referem Lebre de Freitas - Armando Ribeiro Mendes - Isabel Alexandre[5]: «O recorrente não tem direito ao acréscimo de 10 dias quando, embora anunciando que recorre da decisão de facto, não faz na alegação ou nas conclusões qualquer referência aos meios probatórios, objeto de gravação, que imporiam, segundo ele, resposta diferente do tribunal recorrido (…)», assim concluindo que «[e]ste acréscimo não é, pois, reconhecido se o recorrente apenas impugnar matéria de direito ou suscitar questões exclusivamente relacionadas com prova documental (…)».
Feito este enquadramento, e ponderadas as razões enunciadas no despacho que admitiu o recurso em 1.ª instância, resulta manifesto que na avaliação da tempestividade da apelação, tendo sido feito uso do alargamento do prazo previsto no artigo 638.º, n.º 7, do CPC, não basta que a recorrente impugne a decisão da matéria de facto, sustentando que a matéria de facto selecionada é insuficiente para a decisão da causa, nem mesmo que transcreva na alegação de recurso curtos segmentos do depoimento de uma testemunha, se a análise da alegação não deixar margem para dúvidas de que a apelante baseia ou assenta o pretendido aditamento da matéria de facto em falta, exclusivamente, em meios de prova não gravados, como por exemplo em documentos, caso em que o recorrente não poderá beneficiar daquele acréscimo temporal, sob pena de aproveitamento infundado do alargamento do prazo de interposição de recurso, que tem unicamente como justificação as dificuldades inerentes ao cumprimento do ónus de apresentação de alegações quando a impugnação da matéria de facto implique a reapreciação de meios de prova oralmente produzidos e que tenham sido gravados.
Tal como resulta do disposto nos artigos 639.º e 640.º do CPC, os recursos para a Relação tanto podem envolver matéria de direito como de facto, sendo este último o meio adequado e específico legalmente imposto ao recorrente que pretenda manifestar divergências quanto a concretas questões de facto decididas em sede de sentença final pelo tribunal de 1.ª instância que realizou o julgamento, o que implica o ónus de suscitar a revisão da correspondente decisão.
Contudo, a impugnação da decisão de facto feita perante a Relação não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação[6].
A recorrente, na respetiva alegação, manifesta o propósito de recorrer da matéria de facto.
Contudo, lidas as alegações de recurso, verifica-se que, no âmbito do recurso sobre a matéria de facto, a recorrente se limita a propor o aditamento a matéria de facto provada de determinadas circunstâncias fácticas que entende resultarem do teor de determinados documentos juntos aos autos.
Assim, tanto nas conclusões como no corpo das alegações, a apelante defende que à lista dos factos assentes devem ser aditados os seguintes pontos:
a) A Banco 1..., SA comunicou ao Banco de Portugal que a 31 de Maio de 2021 o valor da dívida da Embargante ascendia a € 223 995, 78 e que a mesma entrou em incumprimento a 26.11.2017;
b) A primitiva Embargada cobrou à Embargante nas datas que infra se indicam os valores igualmente infra se relacionam a título de comissão de recuperação de dívida:
28.03.2014                 117,89
17.07.2014                  117, 89
23.09.2014                  25,31
25.09.2014                   6, 65
29.09.2014                 26,77
13.10.2014                 56, 16
31.12.2014              112, 99
02.06.2015              110, 80
01.03.2016               109,41
01.03.2016               107,73
01.03.2016               105,96
01.03.2016               43,96
01.01.2016               43,96
23.06.2016                109,41
23.06.2016                 107, 73
23.06.2016               105, 96
23.06.2016             43,96
23.06.2016                 43,49
Ora, atendendo ao modo como está configurado o recurso apresentado, dúvidas não subsistem que do recurso sobre a matéria de facto não faz parte a reapreciação da prova gravada, ou seja, as respetivas alegações/conclusões não envolvem efetivamente a impugnação da decisão da matéria de facto tendo por base depoimentos gravados, posto que delas decorre de forma expressa e clara que os únicos aditamentos propostos pela recorrente à matéria de facto provada assentam em exclusivo no mapa de responsabilidade da Embargante junto com o requerimento de embargos (aditamento antes enunciado em a) e nos extratos bancários juntos pela Embargada aos presentes autos no dia 20-05-2022 (aditamento antes enunciado em b).
É certo que, no corpo da alegação, a recorrente também procede à transcrição de quatro pequenos excertos do depoimento prestado pela testemunha EE, ouvida em sede de audiência final, sem que faça depender, no todo ou em parte, de tal meio de prova gravado, os pretendidos aditamentos à matéria de facto provada, como resulta de forma inequívoca da análise do conjunto das alegações de recurso, antes se verificando que as referenciadas transcrições servem para enquadrar, em sede de recurso na vertente da subsunção jurídica dos factos ao direito, a tese defendida pela apelante, conforme decorre de forma clara da correspondentes conclusões 13.ª e 14.ª da alegação de recurso, com o seguinte teor:
«13. Os documentos juntos aos presentes autos não nos dão informação sobre o valor do capital em dívida pela embargada a 26.11.2017, data em que a primitiva embargada considerou incumpridos os contratos conforme comunicação feita ao Banco de Portugal e, uma vez que, os documentos juntos ao presente articulado, não obstante terem sido todos eles, com excepção do mapa de responsabilidades, emitidos pela primitiva embargada não serem coincidentes no seu conteúdo, nem sequer os consultados pela testemunha EE em sede de audiência de discussão e julgamento, mister se torna concluir pela impossibilidade de apuramento do capital em dívida pela Embargada e, como tal pela falta de um dos pressupostos da acção executiva: a liquidez e da obrigação exequenda.
14. Uma vez que o acervo documental carreado para os presentes autos não permite determinar qual o valor do capital em dívida a 26.11.2017, mister se torna concluir que a dívida exequenda é ilíquida e, como tal, devem os presentes embargos proceder por falta de um dos pressupostos da obrigação exequenda inscritos no art. 713º do CC: a liquidação da mesma».
Daí que, não tendo a recorrente suscitado a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto com fundamento em prova gravada, mas unicamente com base no teor de determinados documentos juntos aos autos, não existe fundamento para o alongamento do prazo geral de 30 dias previsto na lei, sendo este o prazo aplicável à interposição da presente apelação, nos termos do disposto no artigo 638.º, n.º 1 do CPC.
No caso, a sentença recorrida foi notificada às partes por via eletrónica a 22-05-2023 (ref.ªs citius ...71 e ...73), considerando-se as partes dela notificada a 25-05-2023, nos termos do disposto no artigo 248.º, n.º 1 do CPC.
Sendo o prazo contínuo, com início a 26-05-2023, terminaria a 24-06-2023. Porém, considerando que o 30.º dia do prazo corresponde a um sábado, transfere-se para o 1.º dia útil seguinte, nos termos do disposto no artigo 138.º, n.º 2 do CPC, ou seja, terminaria em 26-06-2023.
Considerando que a recorrente poderia ainda apresentar o recurso nos 3 dias úteis seguintes ao termo do prazo, mediante o pagamento da correspondente multa nos termos do disposto no artigo 139.º, n.º 5 do CPC, o prazo para interposição de recurso terminou no dia 29-06-2023.
Sucede que o recurso apresentado pela executada/embargante, ora recorrente, deu entrada nos autos apenas a 03-07-2023 (ref.ª citius ...09), como tal após o decurso do prazo perentório fixado para a sua prática.
Por conseguinte, o recurso mostra-se extemporâneo, tal como sustenta a recorrida/apelada.
Ainda que não o tenha feito no âmbito do contraditório prévio previsto no artigo 654.º, n.º 2, aplicável por via do n.º 2 do artigo 655.º do CPC, mas apenas no requerimento em que pede a submissão do caso à conferência, sustenta agora a apelante que a interpretação normativa segundo a qual os recursos para reapreciação da prova gravada deixam de beneficiar do prazo alargado de interposição de 40 dias quando os mesmos são rejeitados relativamente à matéria de facto viola o princípio da segurança e da confiança jurídicas decorrentes do principio de Estado de Direito Democrático (art. 2º, da CRP) e o direito a um processo justo e equitativo (art. 20º da CRP e 6º da CEDH).
Neste domínio, e tal como salienta o acórdão deste Tribunal da Relação de 11-03-2021[7], mesmo entendendo que um dos traços definidores do nosso sistema de controlo da constitucionalidade é o respetivo caráter normativo, «é indispensável que, na decisão recorrida, a norma tida por inconstitucional pelo recorrente, na concreta interpretação correspondente à dimensão normativa delimitada no recurso, tenha sido ratio decidendi».
Contudo, julgamos que o entendimento expresso na decisão sumária de 28-11-2023, agora reiterado em sede de conferência e devidamente sustentado nas concretas ocorrências e elementos processuais enunciadas na presente decisão, não corresponde ao que agora vem invocado pela apelante, pois, conforme antes se concluiu, a recorrente não suscitou na apelação a reapreciação da decisão sobre a matéria de facto com fundamento em prova gravada, mas unicamente com base no teor de determinados documentos juntos aos autos, constatando-se de forma inequívoca que as referências feitas ao depoimento prestado pela testemunha EE, ouvida em sede de audiência final servem apenas para enquadrar a tese defendida pela apelante em sede de recurso na vertente da subsunção jurídica dos factos ao direito.
Por todo o exposto, resta-nos renovar a decisão sumária anteriormente proferida e que decidiu rejeitar o recurso apresentado pela apelante, por extemporâneo, ao abrigo do disposto nos artigos 638.º, n.º 1, e 652.º, n.º 1, als. b) e h), do CPC, sendo que a mesma em nada colide com os preceitos constitucionais e convencionais agora concretamente invocados pela reclamante.

IV. Decisão

Pelo exposto, reiterando o juízo decisório formulado na decisão (singular) do relator, de 28-11-2023, acordam, em conferência, os Juízes deste Tribunal da Relação, em rejeitar o recurso apresentado pela apelante, por extemporâneo.
Custas pela recorrente/reclamante.

Guimarães, 25 de janeiro de 2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Raquel Baptista Tavares (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Afonso Cabral de Andrade (Juiz Desembargador - 2.º adjunto)



[1] Cf., por todos, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª edição, p. 514.
[2] Cf. Ac. do STJ de 24-10-2019 (relator: Paulo Ferreira da Cunha), p. 3150/13.0TBPTM.E1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cf. Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 766.
[4] Relator Abrantes Geraldes, p. 1006/12.2TBPRD.P1. S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cf. José Lebre de Freitas/Armando Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, pgs. 85-86.
[6] Cf. o Ac. do STJ de 19-05-2015 (relatora: Maria dos Prazeres Beleza), revista n.º 405/09.1TMCBR.C1. S1 - 7.ª Secção - disponível em www.dgsi.pt.
[7] Ac. TRG de 11-03-2021 (relator: Joaquim Boavida), p. 175/12.6TBVRM.G1, disponível em www.dgsi.pt.