INTERPRETAÇÃO DE DECISÕES JUDICIAIS
INJUNÇÃO
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
JUROS DE MORA
Sumário

I - Em sede de interpretação de declarações enunciativas, como é o caso das decisões judiciais, a ordem jurídica fornece apoio em dois universos potencialmente aproveitáveis: de um lado, regras de interpretação das leis, principalmente contidas no art.º 9.º do Código Civil; de outro, regras de interpretação das declarações negociais, constantes principalmente dos artigos 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do mesmo Código.
II - O suporte escrito das decisões judiciais exige que se não possa considerar um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, ainda que imperfeitamente expresso (artigos 9.º, n.º 2, e 238.º, n.º 1, do Código Civil); no mais, dir-se-á que o sentido da declaração enunciativa será o razoavelmente (o "sensatamente") impressivo, aquele que o destinatário normal possa inferir do texto (artigo 236.º, n.º 1, do mesmo Código); ponderando ainda a presunção de que o juiz, ao exprimir o seu pensamento, terá fixado a decisão mais adequada e mais acertada (artigo 9.º,, n.º 3, do mesmo Código).
III - Atenta a natureza do crédito de juros e a configuração do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, necessário se torna concluir que, quando no âmbito de um procedimento criminal pela prática desse crime e numa injunção imposta para a suspensão provisória do processo, se faz alusão às "quantias em dívida à Segurança Social", sem qualquer referência aos juros de mora, apenas se tem em consideração as quantias cuja omissão de entrega constitui elemento objetivo do ilícito criminal em causa e não também as quantias que, ainda que devidas, são irrelevantes para a comissão do crime, como os juros de mora.

Texto Integral

Processo nº 2077/19.6T9VFR.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO
Nos autos de Instrução que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 1, Comarca de Aveiro, com o nº 2077/19.6T9VFR, no termo do prazo da suspensão provisória do processo, a Srª. Juíza de Instrução concedeu aos arguidos AA e BB o prazo suplementar de 60 dias para procederem ao pagamento à Segurança Social dos juros vencidos sobre as contribuições devidas, tendo estas últimas sido pagas, como injunção fixada para a suspensão provisória do processo.
Inconformados, vieram os arguidos interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O presente recurso assenta no pedido de apreciação dos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação Porto, da bondade do decidido pelo tribunal a quo, no despacho expedido a 8 de março, com a referência "Citius 126358730", ao incluir nas injunções impostas ao Arguidos na decisão instrutória proferida a 11.01.2021, que determinou a suspensão provisória do processo, a obrigatoriedade do pagamento dos juros devidos pela não entrega atempada das cotizações à Segurança Social relativamente aos períodos de Julho a Dezembro de 2015, de Fevereiro a Abril de 2016, de Julho a Dezembro de 2016 e Março de 2017.
2. No âmbito da acusação proferida nos presentes autos, imputou-se aos Recorrentes o cometimento, em coautoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 7º, 107º nº 1, por referência ao artigo 105º, nº 1 e 4 do R.G.I.T., subjacente à não entrega das cotizações mensais devidas à Segurança Social, relativamente aos períodos de Julho a Dezembro de 2015, de Fevereiro a Abril de 2016, de Julho a Dezembro de 2016 e Março de 2017, no montante global total de €127.243,31 (cento e vinte e sete mil duzentos e quarenta e três euros e trinta e um cêntimos).
3. Por decisão instrutória proferida a 11.01.2021, foi determinada a suspensão provisória do processo, condicionado ao cumprimento das seguintes injunções:
- Obrigação dos Arguidos efetuarem o pagamento integral da quantia em dívida ao Instituto da Segurança Social, I.P. durante o período de suspensão provisória do processo e até ao seu termo;
- Obrigação dos arguidos efetuarem o pagamento individual da quantia de €300,00 (trezentos euros), por depósito autónomo às ordem dos presentes autos, devendo proceder a tal durante o período de suspensão, comprovando-o os autos;
-Não praticar qualquer ilícito criminal, nomeadamente da mesma natureza, no período da suspensão.
4. Os arguidos cumpriram com estas obrigações, não tendo cometido qualquer crime durante o período da suspensão, procederam ao pagamento individual de €300,00, bem como pagaram durante aquele período, a quantia total de €127.343,42, liquidando assim o valor integral da quantia em dívida junto do Instituto da Segurança Social, I.P,
5. Liquidaram assim, a quantia que era objeto do procedimento criminal, tal como consta da acusação, clamando pela extinção do presente processo, perante o cumprimento das injunções impostas.
6. A Assistente alegou o incumprimento das injunções impostas, por não se encontrar pago o valor de € 26.055,42, devidos a título de juros pelas cotizações não pagas.
7. Os Recorrentes defenderam que os juros em questão não integravam o libelo acusatório, nem tinham sido os juros, objeto das injunções que lhe foram impostas, persistindo no cumprimento integral das obrigações, peticionando pela extinção do procedimento criminal.
8. Por cautela, requereram ainda a final, subsidiariamente, prazo para pagamento, caso o tribunal a quo decidisse estarem os juros reclamados pela Assistente integrados numa das injunções impostas, que tal não teria sido por estes efetivamente percepcionado da leitura constante da decisão instrutória.
9. Veio o Tribunal o quo, decidir ex novum com base na leitura da decisão que decretou a suspensão, promoção e requerimentos, estarem os juros incluídos nas injunções e conceder um prazo para o seu pagamento.
10. A decisão instrutória proferida nos presentes autos, ao contrário do despacho posto em crise, obrigou os Arguidos a liquidar a quantia em dívida à Segurança Social, não incluindo os juros.
11. As injunções impostas na decisão instrutória, radicaram no facto do crime de abuso de confiança contra a segurança social, ser um crime de omissão pura, que se consumou com a não entrega, no prazo legal e durante os períodos em questão nos autos, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos sociais
12. Tal era o que constava da acusação.
13. O elemento objetivo deste tipo de crime não inclui os juros, mas tão só as quantias não entregues pela entidade empregadora a título de cotizações.
14. Os juros decorrentes das cotizações em falta, por não caberem neste tipo de ilícito criminal, não estavam naquela data a ser objeto de qualquer apreciação.
15. Caso a decisão instrutória pretendesse incluir a obrigação de liquidar tais valores (juros) nas injunções impostas, deveria ter expressamente feito constar tal "acrescento", uma vez sair fora do âmbito penal e por ser anódino ao tipo legal que estriba a tipicidade.
16. Não pode o Tribunal a quo, decorrido o período da suspensão, estender por interpretação do texto o alcance da decisão, alterando o seu teor e incluir os juros de mora, sob pena de se colocar em causa os mais elementares princípios do Estado de Direito, designadamente, o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos e o princípio do caso julgado.
17. Caso a injunção constante da decisão instrutória pretendesse incluir os eventuais juros, deveria, de modo expresso, fazer constar tal obrigação, nomeadamente, mediante a inserção de tal encargo na decisão.
18. Não pode agora o despacho ora impugnado, vir exigir aos Arguidos o pagamento adicional da quantia de € 26.055,42, a título de juros, uma vez não constar da decisão instrutória, expressamente, tal obrigação.
19. A estabilidade das decisões judiciais, uma vez esgotados os meios normais de impugnação, e a consequente segurança na definição da solução definitiva do caso, é um elemento indispensável para o restabelecimento da paz jurídica.
20. O decidido no douto despacho de que se recorre, viola os mais elementares princípios do Estado de Direito, designadamente, o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos e o princípio do caso julgado, consagrados, nomeadamente, no artigo 2º da CRP, e nos artigos 619º, nº 1 e 621º, 1ª parte, do CPC, aplicáveis por força do artigo 4º do CPP.
21. No requerimento de resposta aqueloutro apresentado pela Assistente Segurança Social, I.P., requereram os Arguidos a final, subsidiariamente, por cautela de patrocínio, lhes fosse concedido prazo para pagamento dos juros reclamados no montante de €26.055,42.
22. Com tal posição, os Arguidos, apenas admitiram não terem percepcionado a obrigação de liquidar juros, pois além daquela não resultar do texto, também não era objeto do procedimento criminal.
23. Fizeram-no por cautela jurídica, sem contudo, concordarem com tal extensiva interpretação que levou à inclusão dos juros no despacho ora em crise.
24. É, que, a contrário da leitura do despacho recorrido se impõe aduzir o presente fundamento, o desacerto estribado na decisão a quo parece resumir o requerido pelos arguidos a uma "deficiente percepção" da injunção a título principal e único e não, como se dele resulta expressamente, a título subsidiário e no caso de falência do pedido principal (constante da fundamentação de recurso vertida em a)).
25. Requereram prazo para pagamento, tão só, de modo a exercer todo o seu direito à defesa, lançando mãos do disposto no artigo 554º do C.P.C, ex vi artigo 4º do C.P.P., requerendo ao tribunal a quo, um pedido (concessão de prazo) para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior (que era a extinção procedimento criminal).

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Apesar de devidamente notificado, o assistente Instituto da Segurança Social, IP. não respondeu ao recurso.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo que:
1. Tal como aceitaram os arguidos nos autos, a expressão “pagamento integral da quantia em dívida ao Instituto de Segurança Social” abarca na sua letra, em caso de injunção pecuniária determinada no âmbito de suspensão provisória do processo, o pagamento dos juros devidos.
2. Em todo o caso, é de mero expediente, e irrecorrível (art. 440.º, n.º 1, al. a) do Código de Proc. Penal), o despacho judicial que concede aos arguidos um prazo de 60 dias, na sequência de requerimento seu nesse sentido, para que demonstrem o cumprimento integral de injunção pecuniária no âmbito de uma suspensão provisória do processo.
3. Ainda que assim se não entenda, não têm interesse em agir (art. 401.º, n.º 2 do Código de Proc. Penal), por adoptarem no recurso posição manifestamente contraditória com a processada nos autos, os Recorrentes que obtêm decisão favorável a uma sua pretensão ainda que essa decisão tenha privilegiado um pedido subsidiário por si apresentado nos autos, rejeitando-se em qualquer caso o recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer concordante com a resposta do Mº Pº na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Para melhor apreciação do recurso, importa ter presente as seguintes ocorrências processuais:
O Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos imputando-lhes a prática, em coautoria material, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos artºs. 107º nº 1 e 105º nºs 1 e 4 do RGIT.
Os arguidos requereram a abertura de instrução, pretendendo, no essencial, a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo nos termos do artº 281º do C.P.Penal.
Por decisão proferida em 11.01.2021, a Srª. Juíza de Instrução pronunciou os arguidos pelo crime de que tinham sido acusados e, obtida a concordância do Mº Pº, do Assistente e dos Arguidos, determinou a suspensão provisória do processo pelo período de 12 meses, impondo-lhes as seguintes injunções:
«-Obrigação dos Arguidos efetuarem o pagamento integral da quantia em dívida ao Instituto da Segurança Social, I.P. durante o período de suspensão provisória do processo e até ao seu termo;
- Obrigação dos arguidos efetuarem o pagamento individual da quantia de €300,00 (trezentos euros), por depósito autónomo às ordem dos presentes autos, devendo proceder a tal durante o período de suspensão, comprovando-o os autos;
-Não praticar qualquer ilícito criminal, nomeadamente da mesma natureza, no período da suspensão.»
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- Decorrido o período da suspensão (entretanto alargado devido à suspensão dos prazo processuais por efeitos da Pandemia), vieram os arguidos em 09.01.2023 informar nos autos já terem cumprido integralmente as injunções pecuniárias fixadas na decisão instrutória, requerendo a extinção do procedimento criminal.
- Notificado o Instituto da Segurança Social, IP., veio o mesmo opor-se ao arquivamento do processo, alegando que ainda se mostra em dívida a quantia de € 26.955,42 relativa a juros de mora.
- Na sequência de tal requerimento, vieram os arguidos alegar terem procedido ao pagamento da quantia global de € 127.343,42 "liquidando assim o valor integral da quantia em dívida junto do Instituto da Segurança Social, IP., objeto do presente procedimento criminal" e que o valor reclamado pelo Assistente relativo a juros não integra o libelo acusatório, nem foi objeto da respetiva injunção imposta. Não obstante, para o caso de se entender que os juros estão integrados na injunção (o que não foi por eles percepcionado), requereram a concessão de prazo para o seu pagamento.

Na sequência desse requerimento, a Srª. Juíza de Instrução proferiu, em 07.03.2023, o despacho sob recurso, com o seguinte teor:
«Vi os elementos que antecedem.
Tendo por base os mesmos, bem como o requerimento e a douta promoção que antecedem, não tendo a signatária prolatado a decisão em causa, mas com base na leitura da mesma e do mais requerido e subscrevendo, in totum, o vertido na douta promoção que antecede, uma vez que os arguidos ali não discutem o cálculo dos juros e admitem um possível erro de percepção como estando na base do não pagamento do valor total correspondente, e requerem por fim lhes seja concedido prazo para observar o pagamento, considerando ainda o seu comportamento exemplar no cumprimento das injunções determinadas, concedo o prazo de 60 dias para tal efeito.
D.N.»
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III - O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que o respetivo objeto cinge-se à interpretação a dar à primeira injunção imposta na fase de instrução dos presentes autos, quanto à inclusão ou não dos juros moratórios devidos ao Instituto da Segurança Social pelo pagamento tardio das contribuições devidas.
Alega o Mº Pº que o despacho impugnado é de mero expediente, sendo por isso irrecorrível, e que os recorrentes não têm interesse em agir por adoptarem no recurso posição manifestamente contraditória com a pretensão formulada nos autos ainda que a título subsidiário.

De harmonia com o estatuído nas alíneas a) e b) do nº 1 do art. 400º do mesmo Código, não é admissível recurso dos despachos de mero expediente, nem de decisões que ordenam atos dependentes da livre resolução do tribunal.
A doutrina, de um modo geral, define como de mero expediente os despachos que apenas têm por finalidade regular ou disciplinar o andamento ou a tramitação processual e que não importem decisão, julgamento, denegação, reconhecimento ou aceitação de qualquer direito, referindo-se a eles o Código de Processo Civil, no nº 4 do art. 152º, como aqueles que se destinam «a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes».
Os atos dependentes da livre resolução do tribunal são tais como a convocação de peritos para esclarecimentos, a requisição de documentos ou a realização oficiosa de diligências probatórias (vide Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 15ª edição, págs. 791-792), ou seja atos que não concedem nem retiram direitos aos intervenientes processuais, maxime aos arguidos, apenas se justificando perante o desígnio maior da procura da verdade, do julgamento leal e equitativo e da decisão ponderada e justa.
No caso em apreço, apreciando um requerimento formulado pelos arguidos, a Srª. Juíza não se pronuncia expressamente sobre o pedido principal por aqueles formulado, deferindo o pedido subsidiário sem ter tomado posição (pelo menos expressa) sobre o sentido da injunção imposta aos arguidos.
Ou seja, a Srª. Juíza acaba por indeferir (tacitamente) a primeira pretensão formulada nesse requerimento, o que, manifestamente retira a tal decisão a característica de despacho de mero expediente, na medida em que interfere diretamente sobre os interesses em conflito, não reconhecendo aos requerentes fundamento na pretensão deduzida.
Trata-se, por isso, de decisão impugnável por meio de recurso, de acordo com a regra geral contida no artº 399º do C.P.P.

Quanto à invocada falta de interesse em agir dos recorrentes, diremos apenas que o interesse em agir consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que precisa de tutela e só por essa via se logra obtê-la. Assim, o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo. Trata-se, portanto, de uma posição objetiva perante o processo, que é ajuizada a posteriori (contrariamente ao pressuposto processual da legitimidade, que deve ser avaliada a priori).
Assim, só não tem interesse em agir o arguido que não alcançará com o recurso qualquer efeito útil. No caso em apreço, não tendo a decisão recorrida tomado posição quanto à questão principal de saber se os juros de mora estão incluídos na injunção imposta aos arguidos, é óbvio que o recurso por eles interposto terá efeito útil, pois na eventualidade de este Tribunal vir a dar-lhes razão, tal decisão determinará o arquivamento do procedimento criminal, o que corresponde ao pedido deduzido por aqueles no seu requerimento, ainda que tenham também deduzido um pedido subsidiário (que acabou por obter provimento).
Improcedem, assim, as questões suscitadas pelo Mº Público.
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Do mérito do recurso:
Na injunção em causa foi imposta aos arguidos a obrigação de efetuarem o pagamento integral da quantia em dívida ao Instituto da Segurança Social, IP.
A questão recursiva consiste em saber se nesse pagamento estão incluídos os juro de mora pelo pagamento tardio das contribuições devidas.
Da mera leitura do texto da decisão que aplicou as injunções não é possível retirar qualquer conclusão. Porém, em sede de interpretação de declarações enunciativas, como é o caso das decisões judiciais, a ordem jurídica fornece apoio em dois universos potencialmente aproveitáveis. De um lado, regras de interpretação das leis, principalmente contidas no art.º 9º do Cód. Civil; de outro, regras de interpretação das declarações negociais, obteníveis principalmente dos art.ºs 236º n.º 1, e 238º n.º 1 do mesmo código.
O suporte escrito das decisões judiciais exige que se não possa considerar um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto, ainda que imperfeitamente expresso (art.ºs 9º n.º 2 e 238º n.º 1 do CC). No mais, dir-se-á que o sentido da declaração enunciativa será o razoavelmente (o "sensatamente") impressivo, aquele que o destinatário normal possa inferir do texto (art.º 236º n.º 1 do CC). Ponderando ainda a presunção de que o juiz, ao exprimir o seu pensamento, terá fixado a decisão mais adequada e mais acertada (art.º 9º, n.º 3 do CC).
Aplicando estes critérios à situação em apreço, que decisão se infere ("por ser a mais expectável") à impressão de um destinatário normal? A resposta não é intuitiva. Cremos, porém, aceder-lhe desta maneira: a conduta objetiva do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social p. e p. nos artºs. 107º e 105º do RGIT consiste na omissão de entrega, total ou parcial, das contribuições devidas à segurança social pelos trabalhadores e membros dos órgãos sociais e que lhes tenham sido deduzidas pelas entidades empregadoras. Os valores em causa para a consumação do crime são apenas os correspondentes às contribuições, nela não se mostrando englobados os juros de mora.
O legislador apenas fez referência aos juros (ou outros encargos, como as coimas) em circunstâncias excepcionais, como quando criou a favor do agente do crime uma condição objetiva de punibilidade na al. b) do nº 4 do artº 105º do RGIT, em que estabelece que, tendo a prestação sido comunicada à administração tributária através da correspondente declaração, os factos só são puníveis se a prestação não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
O que se compreende. Com efeito, os juros são os frutos civis constituídos por coisas fungíveis, que o credor aufere como rendimento de uma obrigação de capital e variam em proporção do valor deste capital, do tempo durante o qual se mantém a privação deste e da taxa de remuneração[3].
No estrito âmbito dos juros compensatórios fiscais, Jorge Lopes de Sousa advoga que “os juros compensatórios têm a natureza de um agravamento da dívida de imposto, uma sobretaxa, visando indemnizar o Estado pela perda da disponibilidade da quantia que não foi liquidada no momento em que o deveria ser ou foi indevidamente reembolsada ao contribuinte”, constituindo, “assim, uma espécie de reparação cível e não de uma sanção”.[4]
Atenta a natureza do crédito de juros e a configuração do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, como acima delineámos, necessário se torna concluir que, quando no âmbito de um procedimento criminal pela prática desse crime se faz alusão às "quantias em dívida à Segurança Social", sem qualquer referência aos juros de mora, apenas se tenha em consideração as quantias cuja omissão de entrega constitui elemento objetivo do ilícito criminal em causa e não também as quantias que, ainda que devidas, são irrelevantes para a comissão do crime, como os juros de mora.
Estando em causa uma injunção imposta para a suspensão provisória de um processo crime em que foi deduzida acusação pelo Ministério Público e na qual apenas se consideraram contribuições em dívida no valor global de € 127.243,31[5], tendo os arguidos sido pronunciados precisamente pelos factos constantes da acusação (cfr. decisão instrutória de fls. a 633), para a qual remete, temos necessariamente de concluir que na injunção em causa a Srª. Juíza apenas alude "às quantias em dívida" referidas na acusação e não a quaisquer juros vencidos ou vincendos sobre essas quantias.
Note-se que, no debate instrutório em que foi reproduzida a referida decisão instrutória, se encontravam presentes o Magistrado do Mº Público, os arguidos acompanhados do seu ilustre mandatário, bem como o ilustre mandatário do Assistente que, nesse ato tomaram conhecimento das injunções impostas. Caso entendesse que a quantia devida a título de juros deveria ter sido incluída nas injunções, impunha-se que o Assistente tivesse reclamado, nesse ato, pela inclusão dos juros.
Conclui-se, assim, que o único sentido que tem correspondência no texto da decisão em apreço é o de que a injunção apenas se refere às contribuições em dívida à Segurança Social, sem inclusão dos respetivos juros de mora.
Qualquer outra interpretação violaria a estabilização da decisão proferida, bem como a segurança jurídica dos arguidos. Tendo estes cumprido as injunções impostas, tal como um destinatário normal as interpretaria e como as interpretou este Tribunal, impõe-se a extinção do procedimento criminal.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interpostos pelos arguidos AA e BB, revogando-se a decisão recorrida que deve ser substituída por outra que, se nada mais obstar, declare extinto o procedimento criminal.
Sem custas - artº 513º nº 1 in fine do C.P.Penal.
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Porto, 22 de novembro de 2023
(Elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)
Eduarda Lobo
Raúl Esteves
José Quaresma
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr., neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 395, nota ao artº 559º.
[4] In “Juros nas Relações Tributárias”, in Problemas Fundamentais do Direito Tributário, Vislis Editores, 1999”, pág. 145-146.
[5] Como, aliás, o próprio Mº Público reconhece na douta promoção de fls. 888 (cfr. refª 125624690).