REVISTA EXCECIONAL
RELEVÂNCIA JURÍDICA
Sumário


Justifica-se a intervenção do STJ, em termos de revista excepcional, quando se discute, por um lado, se, ainda que se entenda que algum dos factos base da presunção de laboralidade previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho se verifique, tal verificação se revela totalmente irrelevante para a qualificação dos vínculos estabelecidos entre cada um dos Recorridos e o Recorrente, por o exercício da docência como formador em Centro de Formação Profissional poder processar-se ao abrigo de um contrato de trabalho ou de outra forma de contratação que não implique uma vinculação de natureza laboral, sendo que os indícios decorrentes da forma de execução da atividade, invocados pelos Recorrentes, estão presentes nas três formas de vinculação em causa: contratos individuais de trabalho, contratos de trabalho em funções públicas e contratos de prestação de serviços, e, por outro lado, se o PREVPAP contribui para o esclarecimento da questão da qualificação e da natureza das relações jurídicas prévias à celebração dos contratos de trabalho em funções públicas, ocorrida em 1 de Maio de 2020.

Texto Integral



Processo 459/21.2T8VRL.G1.S2


Revista Excepcional


129/23


Acordam na Formação a que se refere o nº 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL intentaram acção declarativa comum emergente de contrato individual de trabalho, contra Instituto de Emprego e Formação Profissional, I.P., peticionando que:


1 – os Autores sejam reconhecidos e declarados como trabalhadores do Réu, durante o período que trabalharam para o mesmo, com todas as consequências legais;


2 – o Réu seja condenado a pagar aos Autores as quantias de férias, subsídio de férias e de Natal, bem como os subsídios de refeição, no montante global de 432.368,50 €, acrescido dos respectivos juros de mora, desde o final de cada ano civil em que os pagamentos deveriam ter sido efectuados e os vincendos após citação e até efectivo pagamento.


O Réu contestou.


Foi proferido despacho saneador1 e realizada a audiência de julgamento.


Em 27.04.2022, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


Nos termos expostos, (1) julga-se a presente acção emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma de processo comum, totalmente procedente, por totalmente provada e, em consequência:

Declaram-se os Autores AA, BB E SILVA, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL trabalhadores do Réu INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, I.P. (IEFP, I.P.), mediante contrato de trabalho, durante os períodos em que trabalharam para o mesmo, nos períodos referidos na petição inicial, condenando-se o Réu a reconhecê-los nessa qualidade.

Condena-se o Réu INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, I.P. (IEFP, I.P.) a pagar aos Autores AA, BB E SILVA, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL as quantias de férias, subsídio de férias e de Natal, bem como os subsídios de refeição, no montante global de 432.368,50 € (quatrocentos e trinta e dois mil, trezentos e sessenta e oito euros e cinquenta cêntimos), na proporção para cada um dos autores, supra elencada, acrescida dos respectivos juros de mora, desde o final de cada ano civil em que os pagamentos deveriam ter sido efectuados e os vincendos após citação e até efectivo e integral pagamento.


*


(2) Julga-se totalmente improcedente o pedido de condenação como litigante de má-fé formulado pelos Autores contra o Réu, do mesmo o absolvendo”.


O Réu interpôs recurso de apelação.


Por acórdão 30.11.2022, os Juízes do Tribunal da Relação acordaram “em não conceder provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida”.


O Réu veio interpor recurso de revista.


Os Autores apresentaram contra-alegações.


Por despacho de 10.02.2023, o Tribunal da Relação admitiu o recurso, com efeito suspensivo.


Os autos foram remetidos ao Supremo Tribunal de Justiça.


Pelo Relator foi proferido despacho liminar a determinar que:


- quanto aos Autores GG, HH e JJ, não estando em causa um recurso nos termos do artigo 629.º, n.º 2 do CPC, não admitir o recurso de revista excepcional, por os autos não terem valor que permita essa admissibilidade.


- se remetessem os autos à Formação para apreciação dos requisitos específicos de admissibilidade do recurso de revista excepcional em relação aos restantes nove (9) Autores.


x


O processo foi distribuído a esta Formação, para se indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excepcional referidos nas alíneas a) e b) do nº 1 do artº 672º do Código de Processo Civil.


O Réu invocou, com vista a essa admissibilidade o seguinte:

• no corpo das alegações:


No caso vertente, como veremos de seguida, encontra-se preenchido o pressuposto processual contido na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, pois que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.


A questão jurídica suscitada no presente recurso apresenta um carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação aos interesses das partes envolvidas.


Como veremos de imediato, as questões suscitadas da irrelevância dos factos base da laboralidade em situações de exercício de funções de formação profissional financiada, da qualificação dos vínculos preexistentes à regularização através do PREVPAP e da repercussão deste Programa regularizatório na qualificação dos vínculos prévios assumem relevo jurídico indiscutível, não se tratando de um mero interesse subjetivo das partes. Além disso, decisão recorrida não se enquadra numa corrente jurisprudencial consolidada, pois que existe legislação nova – a Lei do PREVPAP -, cuja interpretação suscita sérias divergências, não tendo esse colendo Supremo Tribunal ainda o ensejo de se pronunciar sobre os vínculos prévios à regularização em entidades abrangidas pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas.


Tendo em conta que, “na vigência do Cód. Trab. de 2009 não bastam quaisquer dois dos requisitos referidos no art. 12.º para que se infira que o contrato é de trabalho, não estando o intérprete dispensado de um trabalho interpretativo que , em cada caso, ache , de entre as características legalmente possíveis, as pertinentes à qualificação daquele contrato , como de trabalho” e tendo3 em conta a especificidade do exercício de funções de formação profissional, a derradeira intervenção desse colendo Tribunal justifica-se. Na verdade, saber se, ainda que se entenda que algum dos factos base da presunção de laboralidade previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho se verifique, tal verificação se revela totalmente irrelevante para a qualificação dos vínculos estabelecidos entre cada um dos Recorridos e o Recorrente, pois que, como salienta esse colendo Tribunal, de acordo com a legislação especial reguladora da formação profissional inserida no mercado de emprego e do seu regime de cofinanciamento pelo Fundo Social Europeu, o exercício da docência como formador em Centro de Formação Profissional pode processar-se ao abrigo de um contrato de trabalho ou de outra forma de contratação que não implique uma vinculação de natureza laboral, sendo que os indícios decorrentes da forma de execução da atividade, invocados pelos Recorrentes, estão presentes nas três formas de vinculação em causa: contratos individuais de trabalho, contratos de trabalho em funções públicas e contratos de prestação de serviços.


A relevância ou irrelevância dos factos base da presunção de laboralidade, ínsitos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, no âmbito do exercício funcional da formação profissional financiada, justifica a intervenção desse colendo Supremo Tribunal, atenta a jurisprudência sobre a questão e questões próximas e a doutrina que dela dimana.


Além disso, admitindo que os vínculos em causa, estabelecidos entre o Recorrente e cada um dos Recorridos correspondem a relações laborais, a derradeira intervenção desse colendo Tribunal afigura-se necessária para saber se estamos perante relações de trabalho privadas, reguladas pelo Código do Trabalho ou relações de emprego público, disciplinadas pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. É que esse colendo Tribunal, na senda do Tribunal da Relação de Guimarães salientou que “(...) o tribunal judicial não será colocado na posição de vir de ter de apreciar uma relação jurídica de natureza administrativa, pois se concluir pela errada caracterização da relação jurídica, designadamente por se estar perante uma relação jurídica de emprego público, a acção improcederá e o Réu será absolvido do pedido.”5 Importa, por isso, saber qual a tipologia da relação laboral, a cuja matéria as instâncias, entre as quais o Tribunal A Quo não prestaram qualquer atenção, salvo aquando da apreciação da exceção dilatória suscitada pelo Recorrente da incompetência em razão da matéria. Afigura-se, pois, pertinente que esse colendo Supremo Tribunal clarifique a qualificação e a natureza das relações jurídicas prévias à celebração dos contratos de trabalho em funções públicas.


Saber se o PREVPAP contribui para o esclarecimento do tipo de relação laboral em causa, justifica outrossim, a intervenção desse colendo Supremo Tribunal. As secções Sociais dos doutos Tribunais de Relação, bem como esse colendo Tribunal já se pronunciaram, as mais das vezes na sequência da propositura de ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, relativamente à regularização extraordinária dos vínculos precários e respetivas consequências nas entidades integradas no setor empresarial do Estado, abrangidas pelo Código do Trabalho, previstas na segunda parte do n.º 1 do artigo 2.º e no n.º 1 do artigo 14.º, ambos da Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro.


Aliás, nem sequer é possível a propositura de ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, no âmbito das modalidades do trabalho em funções públicas. Se, como sustenta esse colendo Tribunal “o Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública e setor empresarial do Estado (PREVPAP) não cria vínculos laborais, antes regulariza situações (precárias) preexistentes”, as situações (precárias) preexistentes dos Recorridos são regularizadas através de contratos individuais de trabalho ou de contratos de trabalho em funções públicas?


É que, no caso de serem regularizadas mediante contratos individuais de trabalho, como se processa a contagem do tempo de exercício de funções na situação que deu origem à regularização extraordinária, prevista no artigo 13.º da Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro?


Se se entender que os Recorridos eram titulares de um vínculo jus-laboral privado desde a data da celebração e do início da execução do primeiro contrato de aquisição de serviços de formação profissional até ao dia anterior àquele em que celebraram o contrato de trabalho em funções públicas, é irrelevante a contagem do tempo de exercício de funções na situação que deu origem à regularização extraordinária, prevista no artigo 13.º da Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro? Se, como vem entendendo, reiteradamente esse colendo Tribunal “cessado o contrato inicial (de trabalho, nulo), a imediata celebração, validamente outorgada, de um contrato de trabalho em funções públicas constitui – não obstante a similitude das funções materiais contratadas com as antes exercidas – uma realidade jurídica diversa, com regime próprio”7, como se compatibiliza a doutrina que dimana deste segmento decisional com a contagem do tempo de exercício de funções na situação que deu origem à regularização extraordinária?


Ou, ao invés, sendo relevante a contagem do tempo de exercício de funções na situação que deu origem à regularização extraordinária, os Recorridos são, antes da celebração dos contratos de trabalho em funções públicas, simultaneamente, titulares de um vínculo jus-laboral privado, reconhecido e declarado pelas instâncias, e de um vínculo de emprego público na sequência da regularização extraordinária dos respetivos vínculos?


Justifica-se a intervenção desse colendo Supremo Tribunal para saber se, uma vez regularizada a situação dos Recorridos, através do PREVPAP, havia necessidade da intervenção das secções sociais dos tribunais judiciais para declarar e reconhecer contratos individuais de trabalho dos tribunais da jurisdição laboral. Os Recorridos careciam de um duplo reconhecimento dos seus vínculos laborais no lapso temporal compreendido entre a data da celebração e do início da execução do primeiro contrato de aquisição de serviços de formação profissional até ao dia anterior àquele em que celebraram o contrato de trabalho em funções públicas!?...


Em caso afirmativo, os Recorridos são titulares de um vínculo jus-laboral privado para efeitos de perceção dos créditos laborais que peticionam - férias, Subsídio de Férias, Subsídio de Natal e Subsídio de Alimentação – e, simultaneamente, são titulares de um vínculo de emprego público, para efeitos de contagem de tempo de serviço para a reconstituição da carreira e eventual alteração de posicionamento remuneratório?


A interpretação perfilhada pelas instâncias, na douta Sentença e no douto acórdão recorrido, sobre as normas aplicáveis ao reconhecimento da existência de contratos individuais de trabalho e ao PREVPAP afigura-se suscetível de gerar divergências, já que uma outra solução igualmente plausível é a de considerar os vínculos jurídicos dos Recorridos como contratos de trabalho em funções públicas. Esta solução, que nos parece, outrossim, juridicamente plausível coloca o problema de saber se, concluindo pela existência de vínculos de emprego público se os tribunais do trabalho podem determinar as consequências de tal constatação.


Esse colendo Tribunal, pelo menos, tendo em conta a jurisprudência publicada, ainda não teve o ensejo de se pronunciar acerca dos termos e das consequências da regularização extraordinária de vínculos precários quando a entidade em cujo mapa de pessoal os trabalhadores são integrados é abrangida pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, de acordo com a primeira parte do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro.


A questão subjacente da irrelevância da verificação de algum dos factos base da presunção de laboralidade previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho para a qualificação dos vínculos estabelecidos entre cada um dos Recorridos e o Recorrente apresenta, pois, relevo jurídico suficiente para justificar uma derradeira intervenção desse colendo Supremo Tribunal, em conformidade com a alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.


Ainda que assim se não entenda, o que apenas se equaciona por mera cautela de patrocínio e a benefício de raciocínio, a apreciação da natureza dos vínculos dos Recorridos anteriores à celebração dos respetivos contratos de trabalho em funções públicas, resultantes da regularização extraordinária dos vínculos precários e que implicações apresenta nos planos da contagem do tempo de serviço que deu origem à regularização, justifica, outrossim, uma última intervenção desse colendo Supremo Tribunal, como também se mostra útil para casos similares, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. É que, por um lado, esse colendo supremo Tribunal entende que “o Programa de Regularização Extraordinária de Vínculos Precários na Administração Pública e setor empresarial do Estado (PREVPAP) não cria vínculos laborais, antes regulariza situações (precárias) preexistentes” e, por outro, sustenta que “cessado o contrato inicial (de trabalho, nulo), a imediata celebração, validamente outorgada, de um contrato de trabalho em funções públicas constitui – não obstante a similitude das funções materiais contratadas com as antes exercidas – uma realidade jurídica diversa, com regime próprio”.


É, assim, de admitir a revista excecional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, para ajuizar melhor sobre estas duas questões.


(...)


Conforme refere, reiteradamente esse colendo Supremo Tribunal, assumem relevo social os casos em que estão em causa aspetos fulcrais para a vida em sociedade. Aqui se incluem, salvo melhor opinião, os casos de regularização extraordinária de vínculos precários e as suas implicações na reconstituição da situação atual hipotética dos respetivos titulares.


Afigura-se, por isso, indiscutível a relevância social desta problemática em torno da qualificação dos vínculos jurídicos dos Recorridos anteriores à sua integração no mapa de pessoal deste Instituto, uma vez que não estão apenas em causa os interesses subjetivos dos Recorridos.


Com efeito, independentemente da solução que venha a ser dada no caso concreto por esse colendo Supremo Tribunal poderá exercer uma forte influência em outros casos semelhantes, designadamente no âmbito dos seguintes processos já pendentes:


(...)


A resolução judicial de casos deste jaez tem inegável impacto junto dos muitos formadores espalhados pelo país e junto do IEFP, I. P. e tem influência no orçamento deste Instituto, pelo que, também por esta via, se mostra verificada a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC. Os interesses sobrepõem-se, portanto, ao presente caso concreto.


O reconhecimento e a declaração da existência de contratos individuais de trabalho titulados pelos Recorridos em períodos prévios à celebração dos contratos de trabalho em funções públicas interfere com a tranquilidade e com a paz social, em termos já que desencadeia a propositura de um elevado número de ações, um pouco por todo o país, atento o elevado número de formadores, integrados pelo PREVPAP.


O reconhecimento e a declaração da existência de contratos individuais de trabalho titulados pelos Recorridos em períodos prévios à celebração dos contratos de trabalho em funções públicas descredibiliza a aplicação do direito, designadamente a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e a Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro.


- nas conclusões:


DA RELEVÂNCIA JURÍDICA DAS QUESTÕES EM CAUSA:


3. No caso vertente, como veremos de seguida, encontra-se preenchido o pressuposto processual contido na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, pois que está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;


4. A derradeira intervenção desse colendo Tribunal justifica-se para clarificar se, ainda que se entenda que algum dos factos base da presunção de laboralidade previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho se verifique, tal verificação se revela totalmente irrelevante para a qualificação dos vínculos estabelecidos entre cada um dos Recorridos e o Recorrente, pois que, como salienta esse colendo Tribunal , de acordo com a legislação especial reguladora da formação profissional inserida no mercado de emprego e do seu regime de cofinanciamento pelo Fundo Social Europeu, o exercício da docência como formador em Centro de Formação Profissional pode processar-se ao abrigo de um contrato de trabalho ou de outra forma de contratação que não implique uma vinculação de natureza laboral, sendo que os indícios decorrentes da forma de execução da atividade, invocados pelos Recorrentes, estão presentes nas três formas de vinculação em causa: contratos individuais de trabalho, contratos de trabalho em funções públicas e contratos de prestação de serviços;


5. Admitindo que os vínculos em causa, estabelecidos entre o Recorrente e cada um dos Recorridos correspondem a relações laborais, a derradeira intervenção desse colendo Tribunal afigura-se necessária para saber se estamos perante relações de trabalho privadas, reguladas pelo Código do Trabalho ou relações de emprego público, disciplinadas pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;


6. É que esse colendo Tribunal, na senda do Tribunal da Relação de Guimarães salientou que “(...) o tribunal judicial não será colocado na posição de vir de ter de apreciar uma relação jurídica de natureza administrativa, pois se concluir pela errada caracterização da relação jurídica, designadamente por se estar perante uma relação jurídica de emprego público, a ação improcederá e o Réu será absolvido do pedido”;


7. Importa, por isso, saber qual a tipologia da relação laboral, a cuja matéria as instâncias, entre as quais o Tribunal A Quo não prestaram qualquer atenção, salvo aquando da apreciação da exceção dilatória suscitada pelo Recorrente da incompetência em razão da matéria;


8. Afigura-se, pois, pertinente que esse colendo Supremo Tribunal clarifique a qualificação e a natureza das relações jurídicas prévias à celebração dos contratos de trabalho em funções públicas, ocorrida em 1 de maio de 2020;


9. Saber se o PREVPAP contribui para o esclarecimento do tipo de relação laboral em causa, justifica outrossim, a intervenção desse colendo Supremo Tribunal;


10. Justifica-se a intervenção desse colendo Supremo Tribunal para saber se, uma vez regularizada a situação dos Recorridos, através do PREVPAP, havia necessidade da intervenção das secções sociais dos tribunais judiciais para declarar e reconhecer contratos individuais de trabalho dos tribunais da jurisdição laboral;


11. Justifica-se a intervenção desse colendo Supremo Tribunal para clarificar se os Recorridos careciam de um duplo reconhecimento dos seus vínculos laborais no lapso temporal compreendido entre a data da celebração e do início da execução do primeiro contrato de aquisição de serviços de formação profissional até ao dia anterior àquele em que celebraram o contrato de trabalho em funções públicas;


12. A interpretação perfilhada pelas instâncias, na douta Sentença e no douto acórdão recorrido, sobre as normas aplicáveis ao reconhecimento da existência de contratos individuais de trabalho e ao PREVPAP afigura-se suscetível de gerar divergências, já que uma outra solução igualmente plausível é a de considerar os vínculos jurídicos dos Recorridos como contratos de trabalho em funções públicas;


13. Esta solução, que nos parece, outrossim, juridicamente plausível coloca o problema de saber se, concluindo pela existência de vínculos de emprego público se os tribunais do trabalho podem determinar as consequências de tal constatação;


14. Esse colendo Tribunal, pelo menos, tendo em conta a jurisprudência publicada, ainda não teve o ensejo de se pronunciar acerca dos termos e das consequências da regularização extraordinária de vínculos precários quando a entidade em cujo mapa de pessoal os trabalhadores são integrados é abrangida pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, de acordo com a primeira parte do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 112/2017, de 29 de dezembro;


15. É, assim, de admitir a revista excecional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, para ajuizar melhor sobre estas questões;


Da existência de interesses de particular relevância social:


16. Assumem relevo social os casos de regularização extraordinária de vínculos precários e as suas implicações na reconstituição da situação atual hipotética dos respetivos titulares, já que estão em causa aspetos fulcrais para a vida em sociedade, com múltiplos destinatários e influxo em muitas famílias;


17. Independentemente da solução que venha a ser dada no caso concreto por esse colendo Supremo Tribunal poderá exercer uma forte influência em outros casos semelhantes, designadamente no âmbito de outros processos que correm termos em tribunais judiciais;


18. Trata-se de questões que extravasam o presente caso concreto;


19. Não se circunscrevem, pois, à esfera dos interesses das partes.


x


Cumpre apreciar e decidir:


A revista excepcional é um verdadeiro recurso de revista concebido para as situações em que ocorra uma situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.


A admissão do recurso de revista, pela via da revista excepcional, não tem por fim a resolução do litígio entre as partes, visando antes salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito.


De outra banda, a revista excepcional, como o seu próprio nome indica, deve ser isso mesmo- excepcional .


O Recorrente invoca como fundamento da admissão do recurso o disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil, que referem o seguinte:


“1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:


a) Esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;


b) Estejam em causa interesses de particular relevância social”.


Encontra-se verificado o fundamento da revista excepcional contemplado na alínea a) do n.º 1 do mesmo art. 672.º


Nas palavras do acórdão de 27/909/2023, proc. 3604/22.7T8VNF.G1.S2 reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:


- “Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).


– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).


– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).


“Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).


– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).


“Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02.02.2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).


No caso em apreço, o acórdão recorrido entendeu que, improcedendo a matéria de facto essencial suporte da impugnação da matéria de direito, consequentemente esta também improcede, confirmando a sentença recorrida.


Nesta escreveu-se nomeadamente o seguinte:


Em suma os vínculos contratuais estabelecidos entre Autora e Réu mantidos sob a designação de "aquisição de serviços de formação" que constituíram sucessivas renovações até 2016, assumem natureza jus laboral, não obstante estarem feridos de nulidade por violação de normas procedimentais imperativas que disciplinam e condicionam a vinculação a entidades da Administração Pública.


Se por um lado à relação jurídica estabelecida entre Autora e Ré deveria ter sido regulada pela inicialmente pelas RCTFP e pela LVCR e por fim pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP), já que estamos perante uma relação jurídica de trabalho estabelecida com uma entidade pública o IEFP, LP. Por outro lado, constatamos que a vinculação estabelecida entre Autora e Réu não enquadra em qualquer uma das modalidades previstas para a contratação em funções públicas, tal como o Recorrente o reconhece, não sendo, nem lhe podendo ser por esse motivo aplicável tal regime ao caso em apreço.


Na verdade, seja qual for a concreta modalidade de constituição da relação jurídica de emprego público, a mesma está sujeita à observância das normas expressamente estabelecidas relativas à prévia planificação da actividade e das necessidades correspondentes à identificação dos postos de trabalho necessários e integrados nas respectivas carreiras da Entidade Pública; o trabalhador tem de se sujeitar à selecção mediante procedimento concursal próprio, à fixação do regime remuneratório correspondente e às formas de cessação próprias.


Resulta, para nós claro que as relações jurídicas de trabalho constituídas com a Administração Pública, no âmbito do RCTFP, da LVCR ou do LTFP, ficam sujeitas ao regime próprio estabelecido nos mesmos, bem como aos seus princípios e pressupostos bem distintos dos estabelecidos para o contrato de trabalho, sendo certo que os contratos de trabalho em funções públicas, ao contrário dos restantes contratos de trabalho, assumem natureza pública e encontram-se submetidos à jurisdição Administrativa.


Com efeito, dos factos provados não resulta que o vínculo constituído tenha revestido qualquer uma das modalidades de constituição de relação jurídica de emprego público, ou tenha sido constituído em observância às normas imperativas existentes para o efeito. Ao invés, os factos provados apenas nos permitem concluir que o vínculo constituído assume a natureza laboral, tal como resulta do previsto nos artigos 11.º e 12.º do CT.


O facto de às entidades públicas estar vedada a possibilidade de celebrarem contratos individuais de trabalho não significa que não o façam, na maioria dos casos de forma encapotada e nessas situações, mais não resta do que se sujeitarem às consequências da sua conduta ilícita, não se nos afigurando de legítimo defenderem-se alegando a inaplicabilidade do regime do contrato de trabalho individual.


No caso em apreço e tal como resulta do acima exposto não estamos perante um qualquer contrato de prestações de serviços nulo, não sendo por isso aplicável o previsto no disposto nos artigos 10.º e 32.º da LTFP, sendo ainda certo que tal inaplicabilidade em nada contende com o facto de já se mostrar fixada a competência em razão da matéria para julgar a presente lide, simplesmente aqui se entendeu que o vínculo existente tem natureza de contrato de trabalho.


(…)


Em resumo, temos por certo que os contratos outorgados entre Autora e Réu são nulos, porque foram celebrados sem que fosse dado cumprimento ao legalmente previsto para a contratação de pessoal pela Administração Pública, no entanto é de admitir a protecção da "relação contratual de facto", já que os contratos vigoraram como contratos de trabalho que não deixando de ser nulos, perduraram até que a Autora 18 o denunciou em Junho de 2016.


A Autora logrou assim demonstrar e provar que os contratos de "aquisição de serviços de formação " por si celebrados com o IEFP, LP. Se traduzem numa relação jurídica laboral de direito privado, consubstanciando-se num contrato individual de trabalho.


(…)


Analisados os indícios e aferidos através de uma análise global e não individual , fazendo funcionar a presunção de laboralidade constante do art.º 12.º do Código do Trabalho, consideramos, assim, que estamos em presença de contratos individuais de trabalho, no sentido de uma relação juridicamente subordinada, sendo que a nulidade dos mesmos por não ter sido observado o regime procedimental de recrutamento tido por imprescindível, não ilaqueará a produção os seus efeitos como se o contrato fosse válido durante o tempo em que esteve a ser executado, nos termos do art.º 122.º do Código do Trabalho, quanto aos créditos emergentes destes mesmos contratos, nos termos que infra melhor evidenciaremos.


É certo que a questão da qualificação do contrato de trabalho tem sido objecto de enorme tratamento na doutrina e jurisprudência, na esmagadora maioria das vezes por contraposição ao contrato de prestação de serviço.


O mesmo abundante tratamento doutrinal e jurisprudencial tem ocorrido a propósito da presunção de laboralidade estabelecida no artº 12º do CT.


Por outro lado, este STJ tem decidido que o PREVPAP, previsto na Lei nº 112/2017, de 29 de Dezembro, não cria novos vínculos laborais, antes regulariza situações (precárias) preexistentes, consistindo o dito programa, como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei 91/XIII, no reenquadramento contratual das situações laborais irregulares de modo a que as mesmas passem a basear-se em vínculos contratuais adequados- cfr. acórdãos de 22/06/2022, proc. 987/19.0T8BRR.L2.S1, e de 8/3/2023, proc. 20152/21.5T8LSB.L1.S1


Todavia, pelo menos as questões, levantadas pelo Recorrente, de, por um lado, se, ainda que se entenda que algum dos factos base da presunção de laboralidade previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho se verifique, tal verificação se revela totalmente irrelevante para a qualificação dos vínculos estabelecidos entre cada um dos Recorridos e o Recorrente, por o exercício da docência como formador em Centro de Formação Profissional poder processar-se ao abrigo de um contrato de trabalho ou de outra forma de contratação que não implique uma vinculação de natureza laboral, sendo que os indícios decorrentes da forma de execução da atividade, invocados pelos Recorrentes, estão presentes nas três formas de vinculação em causa: contratos individuais de trabalho, contratos de trabalho em funções públicas e contratos de prestação de serviços, e de, por outro lado, saber se o PREVPAP contribui (embora não criando, de per si, novos vínculos laborais) para o esclarecimento da questão da qualificação e da natureza das relações jurídicas prévias à celebração dos contratos de trabalho em funções públicas, ocorrida em 1 de Maio de 2020, implicam a clarificação e densificação dos seus requisitos, revelando-se, efectivamente, da maior acuidade, sendo certo que nos encontramos perante uma situação com indiscutível dimensão paradigmática.


Vale por reafirmar que in casu a intervenção do STJ é susceptível de se traduzir numa melhor aplicação do direito, reforçando a segurança, certeza e previsibilidade na sua interpretação e aplicação e dessa forma contribuindo para minimizar – numa matéria da maior relevância prática e jurídica – indesejáveis contradições entre decisões judiciais- cfr. citado acórdão de 27/09/2023.


Justifica-se, assim, a admissão da revista excepcional, ficando assim prejudicada a abordagem da apreciação do fundamento previsto no artº 672º, nº 1, al. b), do CPC.


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Decisão:


Pelo exposto, acorda-se em admitir a revista excepcional, interposta pelo Réu / recorrente, do acórdão do Tribunal da Relação.


Custas a definir a final.


Lisboa, 06/12/2023


Ramalho Pinto (Relator)


Júlio Gomes


Mário Belo Morgado





Sumário (da responsabilidade do Relator).


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1. No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção dilatória de incompetência material do Juízo do Trabalho. O Réu interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação. O Réu interpôs recurso de revista quanto à questão da competência material do Juízo do Trabalho. Por acórdão de 6.07.2022, proferido no processo n.º 459/21.2T8VRL-A.G1.S1, o Supremo Tribunal de Justiça, negou a revista e confirmou o acórdão recorrido.↩︎