ARRENDAMENTO RURAL
DENÚNCIA DO ARRENDAMENTO PELO SENHORIO
RESERVA DE PRÉDIO RÚSTICO
REFORMA AGRÁRIA
Sumário

I – A denúncia do contrato de arrendamento rural efetuada com a antecedência prevista na lei é válida e produz efeitos ainda que só deva operar em data posterior à indicada pelo senhorio.
II – O regime do Decreto-Lei n.º 524/99, de 10/12, não é aplicável aos contratos de arrendamento rural celebrados ao abrigo do disposto no artigo 29.º da Lei n.º 46/90, de 22/8.
(Sumário do relator)

Texto Integral

1511/16.1T8EVR.E2

Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório
1. (…), casado, residente na Av. (…), 105, 7º-G, em Lisboa, instaurou contra Cooperativa (…), CRL, com sede na Av. (…), Montemor-o-Novo, ação declarativa com processo comum.
Alegou, em resumo, ser dono e legítimo proprietário do prédio rústico denominado Herdade da (…), sito na freguesia de (…), concelho de Montemor-o-Novo, o qual lhe adveio por sucessão testamentária de (…), prédio expropriado por despacho da Ministra da Agricultura de 16/11/1994 e sujeito, pelo Estado, para efeitos de atribuição de direitos de reserva, à obrigação da sua proprietária celebrar com a Ré um contrato de arrendamento, pelo prazo de 10 anos, com três renovações obrigatórias de 3 anos, contrato que teve o seu início, com a entrega da reserva, em 7/12/1994 e o seu termo em 7/12/2013 e foi denunciado, pela sua anterior proprietária, em 16/3/2011.
Pediu a condenação da Ré: a) a reconhecer a denúncia e cessação do contrato de arrendamento para 07/12/2013, subsidiariamente, a partir de 7/12/2017; b) a reconhecer o direito de propriedade do Autor sobre o prédio e a restitui-lo livre de pessoas e bens; c) a levantar, retirar e demolir todas as edificações levadas a efeito no prédio ou, em alternativa, a pagar as despesas e custos demolição, remoção e transporte dos respetivos inertes e entulhos para aterros sanitários, a apurar em execução de sentença; d) a pagar ao A. a quantia de € 100.000,00 referente à ocupação do prédio de 08/12/2013 a 8/12/2015 e, a partir dessa data, a quantia diária de € 137,00 a título de indemnização pela ocupação indevida e perda do uso e fruição do prédio, até à data da sua devolução.
A Ré contestou por exceção e por impugnação; excecionou a ilegitimidade do Autor (discutia-se em juízo a validade do testamento por efeito do qual o Autor alega haver adquirido o prédio) e, contraditou os factos alegados por forma a concluir que o termo do contrato de arrendamento, mercê das renovações impostas pela lei, ocorreu em 7 de dezembro de 2021 e que, de qualquer forma, a comunicação de denúncia do contrato não se mostra assinada, sendo juridicamente inexistente e insusceptibilidade de produzir quaisquer efeitos.
Concluiu, na procedência da exceção, pela absolvição da instância e, em qualquer caso, pela improcedência da ação.

2. Saneado o processo, o Autor foi considerado parte legítima para a causa e a instância havida, em tudo o mais, válida e regular, foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
Realizou-se a audiência final e depois foi proferida sentença em cujo dispositivo, designadamente, se consignou:
(…) julga-se a presente ação improcedente, por não provada, e em consequência, absolve-se a ré de todos os pedidos contra si formulados pelo autor”.

3. Recurso
O Autor recorre da sentença e conclui:
“1ª - O regime do Dec.-Lei 524/99, que alterou o Dec.-Lei 385/88 só é aplicável aos contratos de arrendamento rural celebrados no âmbito da liberdade contratual das partes, e não aos contratos impostos pelo Estado ao abrigo das cláusulas especiais do artigo 29.º da Lei 46/90, por razões de política agrária.
2ª - O contrato de arrendamento foi imposto pelo Ministério da Agricultura, como condição da aquisição do direito real de propriedade atribuído por direito de reserva e ficou sujeito às cláusulas especiais previstas no artigo 29.º, n.º 3, a), b), c) e d), nomeadamente pelo prazo inicial de 10 anos com 3 renovações obrigatórias de 3 anos cada, a que o senhorio não se podia opor, garantido ao arrendatário uma vigência contratual de 19 anos.
3ª - A aplicação das renovações do Dec.-Lei n.º 624/99 ao contrato de arrendamento, iria injustificadamente cumular o benefício das 3 renovações obrigatórias adquiridas ao abrigo do artigo 29.º, com as 3 renovações de 5 anos, o que implicava que o prazo do arrendamento de 19 anos, que já ultrapassava em 9 anos o prazo geral do arrendamento, passasse para os 25 anos, o que para além de colocar em crise a estabilidade jurídica, seria atentatório aos mais elementares princípios de justiça.
4ª - O Dec.-Lei 249/99 não é aplicável ao contrato de arrendamento dos autos e a sua aplicação, conforme refere o ponto II do sumário do Acórdão do STJ de 13/04/2010 citado “sempre implicaria uma aplicação retroativa de duvidosa constitucionalidade por ofensa do princípio geral da segurança jurídica”.
5ª - O contrato de arrendamento foi celebrado ao abrigo de lei especial, que prevalece sobre a lei geral do arrendamento rural, não lhe sendo aplicável o regime do Dec.-Lei n.º 524/99.
6ª - A sentença ao aplicar ao contrato de arrendamento regime das renovações de cinco anos do Dec.-Lei n.º 524/99, por erro de interpretação e aplicação da lei, violou o disposto no artigo 29.º, n.º 3, alíneas a), b), c) e d) e o artigo 5.º, n.º 3, do Dec.-Lei n.º 524/99, o princípio da segurança jurídica e o artigo 12.º do Código Civil.
7ª - Os referidos normativos violados, deveriam ser aplicados pela decisão recorrida, no sentido de afastar a aplicação do regime do Dec.-Lei n.º 524/99 ao contrato de arrendamento.
8ª - No pedido formulado na ação pediu-se subsidiariamente o reconhecimento da denúncia como válida e eficaz, para produzir os seus efeitos a partir de 07/12/2017.
9ª - A denúncia do contrato de arrendamento para 07/12/2013 e a partir de 07/12/2017 é válida e eficaz, mesmo que não venha a operar nessas datas indicadas pelo recorrente, mas também para momento posterior.
10ª - O recorrente denunciou o contrato de arrendamento com a antecedência mínima legal paca 07/12/2013 e subsidiariamente, a partir de 07/12/2017.
11ª- O tribunal a quo, mesmo que entendesse que o termo da última renovação do contrato ocorreu em 07/12/2019, deveria reconhecer e considerar como tempestiva, válida e eficaz a denúncia para 07/12/2019, data que já tinha ocorrido muito antes da prolação da decisão.
12ª - A indicação da data da denúncia constitui apenas um efeito necessário dessa denúncia, nada tem a ver com a essência do pedido, como é entendido uniformemente pela jurisprudência.
13ª - A sentença recorrida deveria corrigir as datas da denúncia indicadas pelo recorrente para 07/12/2019, poe se tratar de uma questão de direito.
14ª – A decisão recorrida ao não considerar tempestiva, válida e eficaz a denúncia para 07/12/2019, violou o disposto no artigo 18.º, n.º 1, b), do Dec.-Lei n.º 385/88, que deveria ser aplicado no sentido de considerar válida e eficaz a denúncia para 07/12/2019.
15ª - A recorrida não paga as rendas desde 07/12/2016 a 07/12/2021, competindo-lhe o ónus da prova de ter efetuado o pagamento ou o depósito à ordem do recorrente.
16ª - A sentença recorrida não podia ignorar que o arrendamento, por falta do pagamento de rendas, já não se encontrava válido e a produzir os seus efeitos entre as partes.
17ª - A sentença recorrida deveria ter declarado a cessação do contrato de arrendamento e devolver ao recorrente o prédio arrendado, por se tratar de uma questão de direito.
18ª - A sentença recorrida violou o disposto no artigo 1045.º do Código Civil, que deveria ser aplicado no sentido de considerar extinto o contrato, por falta de pagamento das rendas.
19ª - A conduta de má-fé da recorrida na ação, não deveria ter sido ignorada pela sentença recorrida.
20ª - A sentença recorrida violou o disposto no artigo 542.º, n.º 2, d), do CPC, que deveria ser aplicado no sentido de condenar a recorrida como litigante de má fé.
Termos em que deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra, que declarando a denúncia do arrendamento como tempestiva, válida e eficaz para 07/12/2013, 07/12/2017 ou mesmo 07/12/2019, julgue procedente a presente ação, condenando a recorrida no pedido, devolvendo-se o prédio ao recorrente.”
Respondeu a Ré, por forma a defender a improcedência do recurso.
Admitido o recurso e observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando as conclusões da motivação do recurso e sendo estas que delimitam o seu objeto, importa decidir i) se a denúncia é suscetível de produzir efeitos em data posterior à indicada pelo senhorio, ii) se o regime do Dec.-Lei n.º 524/99 não é aplicável aos contratos de arrendamento rural celebrados ao abrigo do disposto no artigo 29.º da Lei n.º 46/90.
O recurso coloca ainda a questão da extinção do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas [cclªs 15ª a 18ª].
A extinção do contrato de arrendamento por falta de pagamento das rendas não foi suscitada na 1ª instância, nem foi objeto de pronuncia na decisão recorrida, é colocada ex novo no recurso.
Os recursos ordinários, como é o presente recurso de apelação, destinam-se à reponderação da decisão recorrida, o que significa que, em regra, “o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que nela não foram formulados”[1], e isto porque os recursos visam modificar ou anular as decisões recorridas[2] e “não criar decisões sobre matéria nova não sendo lícito invocar e conhecer nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido”[3].
Assim, não tendo a decisão sob recurso resolvido qualquer questão relacionada com a extinção do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, por não lhe haver sido colocada, não pode o recurso, neste particular, apreciar seja o que for, por se tratar de uma questão que nem o Autor suscitou perante o tribunal recorrido, nem este resolveu.
Por esta razão não se conhece das conclusões 15ª a 18ª.

III. Fundamentação
1. Factos
A decisão recorrida julgou assim os factos:
Provado:
1º O prédio rústico denominado Herdade da (…), sito na freguesia de (…), concelho de Montemor-o-Novo, com a área de 498,85 ha, encontra-se inscrito na matriz sob o artigo (…), secção (…), e descrito na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo sob o n.º … (facto provado por documento junto aos autos e não impugnado – certidão predial junta a fls. 27/28).
2º Pela Ap. (…) de 2015/08/28, mostra-se inscrita a propriedade do prédio suprarreferido a favor de … (facto provado por documento junto aos autos e não impugnado – certidão predial junta a fls. 27/28).
3º O referido prédio foi expropriado pela Portaria n.º 579/75, de 24 de setembro, a (…), falecido no estado de casado com … (facto não impugnado).
4º O Estado celebrou com a ré um contrato de arrendamento com início em 27 de dezembro de 1984, pelo período de 6 anos, renovável por 3 (facto não impugnado).
5º Por despacho do Ministro da Agricultura, o prédio foi atribuído a (…), por direito de reserva (facto provado por documento junto aos autos a fls. 29/30 e não impugnado).
6º Através da Ap. (…), de 1995/08/17, mostra-se inscrita a aquisição do prédio, por atribuição do direito de reserva, a favor de … (facto provado por documento junto aos autos e não impugnado – certidão predial junta a fls. 27/28).
7º Como condição da entrega do prédio a (…), foi estabelecido que esta teria que celebrar com a ré um contrato de arrendamento ao abrigo do artigo 29.º, 3, da Lei n.º 46/90, de 22 de agosto (facto não impugnado).
8º Por documento escrito datado de 25 de outubro de 1994, e assinado, foi declarado:
Contrato de arrendamento rural
Primeira outorgante: (…), residente em Av. (…), n.º 7, 4.º, 1100 Lisboa, na qualidade de proprietário e senhorio.
Segundo outorgante: Cooperativa (…), C.R.L., residente em (…), 7050 Montemor-o-Novo, na qualidade de arrendatário.
1ª O objeto do contrato é uma parcela de terra com a área de 498,8500ha, que faz parte do prédio rústico denominado (…), inscrito sob o artigo (…), secção (…) da matriz cadastral da freguesia de (…), concelho de Montemor-o-Novo, melhor identificado na planta anexa cujo original fica arquivado na Direcção Regional de Agricultura do Alentejo.
2ª O prazo inicial deste contrato é de 10 anos, com três renovações obrigatórias de três anos cada, renovando-se sucessiva e automaticamente por iguais períodos, enquanto não for denunciado por qualquer das partes com a antecedência mínima de dezoito meses relativamente ao termo da renovação, mediante comunicação escrita com a antecedência mínima de 18 meses (…)
Évora, 25 de Outubro de 1994 (facto provado por documento junto aos autos e não impugnado – contrato de arrendamento rural junto a fls. 31/32).
9º Com data de 16 de março de 2011, foi remetida à ré por (…), uma carta registada e com aviso de receção, não assinada, e recebida pela ré em 21 de março de 2011, com o seguinte teor: Assunto: Denúncia do contrato de arrendamento da área de 498,8500 ha do prédio (…). Ex.mos Senhores, Nos termos do disposto nos artigos 18.º e 20.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 385/88, de 25 de outubro, venho denunciar para exploração direta o contrato de arrendamento sobre o prédio em referência para o seu termo em 07/12/2013. Nesta data deverão entregar o prédio arrendado completamente livre e desembaraçado (…) (facto provado por documentos juntos aos autos a fls. 36 e 37 e não impugnados).
10º (…) remeteu à ré uma carta assinada e datada de 2 de maio de 2011, que a ré recebeu, com o seguinte teor: “Assunto: Denúncia do contrato de arrendamento da área de 498,8500 ha do prédio (…). Ex.mos Senhores, Nos termos do disposto nos artigos 18.º e 20.º, n.º 1, do Dec.-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, venho denunciar para exploração direta o contrato de arrendamento sobre o prédio em referência para o seu termo em 07/12/2013. Nesta data deverão entregar o prédio arrendado completamente livre e desembaraçado (…)” (facto provado por documentos juntos aos autos com o requerimento junto sob a ref. 3127341).
11º A ré efetuou várias construções rurais no prédio descrito em 1º (facto provado por acordo).
Não provado:
1º O lucro líquido anual da exploração agrícola do prédio descrito em 1º dos factos provados ascenda atualmente a um valor nunca inferior a € 50.000,00.
2º A ré efetuou as construções rurais no prédio descrito em 1º dos factos provados, sem licenciamento.
3º Tais construções nunca ficaram totalmente acabadas e rebocadas e não possuem qualquer utilidade ou aproveitamento nem qualquer valor.
4º Como são obras clandestinas a reconstrução é inviável, pelo que terão de ser completamente demolidas e removidos os inertes.

2. Direito
O Autor, atual proprietário do prédio rústico denominado Herdade da (…), veio a juízo pedir a cessação do contrato de arrendamento rural celebrado entre (…), anterior proprietária e senhoria e a Ré, arrendatária, por denúncia da primeira, mediante comunicações de 16 de março e de 2 de maio de 2011 e cujos efeitos, defendeu, se produziram a partir de 7/12/2013 ou, subsidiariamente, a partir de 7/12/2017.
A decisão recorrida considerou que a senhoria denunciou o contrato – “vistos os factos assentes verificamos que através das comunicações de 16 de março de 2011 e de 2 de maio de 2011, ambas no decurso do prazo da segunda renovação do contrato, com termo em 7 de dezembro de 2014, o senhorio deu cumprimento às referidas exigências, na medida que o comunicou por escrito, fez constar expressamente a finalidade de exploração direta do prédio e cumpriu a antecedência mínima de dezoito meses relativamente ao termo da sua renovação” – mas não reconheceu validade à denúncia, em resumo, pelo seguinte:
O contrato, celebrado ao abrigo do disposto no artigo 29.º, n.º 3, da Lei n.º 46/90, de 22 de agosto, com início em 7/12/1994, teve o prazo inicial de dez anos e três renovações obrigatórias de três anos cada.
Por força da alteração introduzida pelo D.L. n.º 524/99, de 10/12, ao número 3 do artigo 5.º do D.L. n.º 385/88, de 25/10, os períodos das renovações obrigatórias passaram para cinco anos.
O contrato, por efeito da sua vigência imperativa, alcançava o seu termo em 7/12/2019 [7/12/1994 + 10 anos + 3 x 5 anos].
A denúncia destinada a por fim ao contrato em momento anterior – 7/12/2013, subsidiariamente, 7/12/2017 – ao termo da sua vigência obrigatória – 7/12/2019 – não produz efeitos.
Diverge o Autor e argumenta: i) o “regime do Dec.-Lei n.º 524/99, que alterou o Dec.-Lei n.º 385/88 só é aplicável aos contratos de arrendamento rural celebrados no âmbito da liberdade contratual das partes, e não aos contratos impostos pelo Estado ao abrigo das cláusulas especiais do artigo 29.º da Lei n.º 46/90”, ii) o “tribunal a quo, mesmo que entendesse que o termo da última renovação do contrato ocorreu em 07/12/2019, deveria reconhecer e considerar como tempestiva, válida e eficaz a denúncia para 07/12/2019, data que já tinha ocorrido muito antes da prolação da decisão.”

2.1. Se a denúncia é suscetível de produzir efeitos em data posterior à indicada pelo senhorio
Iniciando por esta última questão, a decisão recorrida considerou que à data da produção de efeitos visados pela denúncia – 7/12/2013, subsidiariamente, 7/12/2017 – ainda se encontrava em curso o prazo das três renovações obrigatórias do contrato, de cinco anos cada uma segundo considerou, o qual terminaria em 7/12/2019 e, assim, não reconheceu à denuncia aptidão para fazer cessar o contrato.
Posição diferente manifesta o Autor, de acordo com a qual a denúncia produz efeitos, independentemente, do (des)acerto da data nela indicado para o termo do contrato, uma vez que a pretensão de não renovar o contrato não surge invalidada pelo erro sobre o momento a partir do qual o contrato não se renova.
Segundo o artigo 18.º, n.º 1, alínea b), do D.L. n.º 385/88, de 25/10[4], “os contratos de arrendamento (…) consideram-se sucessiva e automaticamente renovados senão forem denunciados nos termos seguintes:
O senhorio deve avisar também o arrendatário pela forma referida na alínea anterior, com a antecedência mínima de dezoito meses, relativamente ao termo do prazo ou da sua renovação, ou de um ano, se se tratar de arrendamento a agricultor autónomo”.
A lei prevê um prazo mínimo para a denúncia do contrato de arrendamento rural – dezoito meses relativamente ao termo do prazo ou da sua renovação ou de um ano se se tratar de arrendamento a agricultor autónomo – mas não prevê um prazo máximo, o que significa que o senhorio pode denunciar o contrato “em qualquer momento, desde que respeite o prazo de vigência do arrendamento em curso[5] e, observado o prazo mínimo, a denúncia produz efeitos ainda que em momento posterior à indicada pelo senhorio.
A razão já se afirmou: “(…) o que, efetivamente, constitui elemento desencadeador da extinção do contrato de arrendamento é a denúncia tempestiva, por parte do senhorio, isto é, com observância do prazo não inferior ao legalmente previsto para tal, sendo que a indicação da data concreta em que opera o despejo constitui apenas um efeito necessário dessa denúncia (…) a questão da data em que há-de situar-se o termo do respetivo contrato nada tem a ver com a essência do pedido; por isso, no caso do senhorio pretender fazer cessar o arrendamento em certa data e se verificar que só poderá ser obtido para um momento ulterior, deverá o tribunal julgar em conformidade.”[6]
Assim, reconhecendo a sentença recorrida que o termo das renovações obrigatórias do contrato ocorreu em 7/12/2019 e verificando, como verificou, que a comunicação da então Senhoria à ora Ré, destinada a fazer cessar o contrato, observou a antecedência mínima de dezoito meses, relativamente ao termo última renovação obrigatória do contrato, podia e devia ter declarado válida a denúncia para produzir efeitos em 7/12/2019, data posterior à indicada pela senhoria.
O Autor, a nosso ver, tem razão quanto a esta questão.

2.2. Se o regime do Dec.-Lei 524/99 não é aplicável aos contratos de arrendamento rural celebrados ao abrigo do disposto no artigo 29.º da Lei 46/90
A segunda questão colocada no recurso prende-se com o prazo de vigência obrigatória do contrato; se o prazo de 19 anos que, textualmente, dele resulta [prazo inicial de dez anos e três renovações de três anos cada], como pretende o Autor; se o prazo de vigência de 25 anos [prazo inicial de dez anos e três renovações de cinco anos cada], como se ajuizou em 1ª instância.
O contrato de arrendamento rural foi celebrado nos termos do artigo 29.º da Lei n.º 46/90, de 22/08, como do próprio contrato consta, as partes aceitam e foi julgado provado [ponto 7 dos factos provados].
Esta lei – 46/90 – veio alterar a Lei n.º 109/88, de 26/9 (Lei de Bases da Reforma Agrária), designadamente, o artigo 29.º o qual, sob a epígrafe reservas em áreas entregues para exploração, após a alteração, passou a dispor:
1 - A atribuição de reservas ou a declaração da não expropriabilidade de prédio ou de prédios rústicos em áreas na posse de beneficiários do direito de exploração atribuído por ato administrativo proferido ao abrigo do Decreto-Lei 111/78 e legislação complementar ou sequente são condicionadas à prévia celebração de um contrato de arrendamento rural entre esses beneficiários do direito de exploração e os titulares do direito de reserva.
(…)
3 - Se o contrato referido nos números anteriores não for apresentado no prazo de um mês após a notificação das partes para esse efeito, os serviços competentes do Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação devem notificá-las para celebrarem um contrato de arrendamento, nos termos da Lei do Arrendamento Rural, sujeito às seguintes cláusulas especiais:
a) O prazo é de 10 anos e fica garantido ao arrendatário o direito a três renovações de três anos cada;
b) O início do contrato conta-se a partir da data da efetiva entrega da reserva e o seu termo reporta-se ao final do ano agrícola;
c) Na falta de acordo entre as partes, a renda é fixada em 75%, 80%, 85%, 90% e 95% dos valores máximos permitidos por lei, respetivamente para o primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto anos, e de 100% para o sexto ano e seguintes;
d) Os direitos e os deveres do arrendatário são os decorrentes da legislação relativa ao arrendamento rural, sem prejuízo de outra situação mais favorável já adquirida.
(…)
5 - A recusa da assinatura dos contratos a que se refere o número anterior produz os seguintes efeitos:
a) Se a recusa for do beneficiário do direito de exploração, é extinto esse direito de exploração, sem prejuízo do seu direito à indemnização pelas benfeitorias necessárias e úteis que fez na respetiva área, as quais serão determinadas segundo o regime legal das expropriações por utilidade pública, com as necessárias adaptações, ou por acordo dos interessados reduzido a escrito;
b) Se a recusa for do reservatário, extingue-se o direito à reserva sobre a parte abrangida pelo direito de exploração, sem prejuízo do direito à respetiva indemnização, nos termos da lei especial aplicável.
(…)
8 - Com a atribuição das reservas caducam todos os contratos de arrendamento ou quaisquer outros direitos de exploração constituídos pelo Estado sobre as áreas de reserva”.
De acordo com este regime, as atribuições de reservas de prédios rústicos, em áreas na posse de beneficiários do direito de exploração, ficaram condicionadas à prévia celebração de um contrato de arrendamento rural, entre esses beneficiários do direito de exploração e os titulares do direito de reserva, nos termos da Lei do Arrendamento Rural, mas sujeitos a cláusulas especiais.
A recusa de assinatura do contrato, pelos beneficiários do direito de exploração ou pelos titulares do direito de reserva, determinava, respetivamente, a extinção do direito de exploração ou a extinção do direito à reserva.
Assim, para a atribuição do direito de reserva aos proprietários de prédios expropriados ou ocupados, na posse de beneficiários do direito de exploração, ou seja, para efeitos do restabelecimento do direito de propriedade, tal como existia à data da expropriação ou da ocupação, aos proprietários de prédios expropriados (artigos 13.º e 14.º da Lei de Bases da Reforma Agrária), a lei impôs condições aos proprietários que claramente limitaram a sua autonomia contratual, seja na vertente da liberdade de celebração do contrato, estabelecendo sanções para a não celebração do contrato [alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 29.º], seja na vertente da liberdade de estipulação, estabelecendo um regime especial de normas imperativas [alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 29.º].
O contrato dos autos rege-se por estas regras ou cláusulas especiais – prazo de 10 anos e garantia ao arrendatário do direito a três renovações de três anos cada; início do contrato a contar da data da efetiva entrega da reserva e, na falta de acordo, percentagens regressivas de redução durante os primeiros cinco anos de renda – e, na falta destas, pelo Lei do Arrendamento Rural [alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 29.º], o que significa que em matéria de prazos de vigência – inicial e renovações – é aplicável ao contrato o regime das cláusulas especiais e não os prazos gerais previstos pelo D.L. n.º 385/88, de 25/10.
Pondo de parte os arrendamentos a agricultou autónomo, irrelevante para os autos, este D.L. n.º 385/88 estabelecia, à data, para os contratos de arrendamento rurais, um prazo de duração inicial não inferior a dez anos e, em caso de continuidade dos contratos por ausência de denúncia, períodos de renovação sucessivos de três anos [artigo 5.º, nºs 1 e 3, do D.L. n.º 385/88, de 25/10].
O D.L. n.º 524/99, de 10/12, com o propósito de adequar os prazos de renovação dos contratos de arrendamento rural às condições impostas aos agricultores para a obtenção de ajudas comparticipadas pela União Europeia com o compromisso de assegurarem o exercício da atividade agrícola na exploração durante, pelo menos, cinco anos, por forma a não os excluir liminarmente do regime de ajudas comparticipadas, veio alterar o n.º 3 do artigo 5.º do referido D.L. n.º 385/88, ampliando o prazo das renovações de três para cinco anos.
Dispôs o seguinte no artigo 1.º:
Os artigos 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de outubro, passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 5.º
[...]
1 - ...
2 - ...
3 - Findos os prazos estabelecidos nos números anteriores, ou convencionado, se for superior, entende-se renovado o contrato por períodos sucessivos de cinco anos, enquanto o mesmo não for denunciado nos termos do presente diploma”.
E no artigo 2.º:
A alteração introduzida no n.º 3 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de outubro, aplica-se aos contratos em vigor à data do início da vigência do presente diploma, não se aplicando, porém, aos períodos de renovação em curso”.
Sendo inquestionável que o contrato dos autos se encontrava em vigor à data da vigência do D.L n.º 524/99 [o diploma entrou em vigor, em 15/12/1999, cinco dias após a sua publicação de acordo com o n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 74/98, de 11/11, altura em que o contrato se encontrava no período sua vigência inicial de dez anos, com início em 7/12/1994 e termo em 7/12/2004], questiona-se se a ampliação dos prazos das renovações que introduziu é aplicável ao contrato dos autos, mais genericamente, se é aplicável aos contratos celebrados ao abrigo do disposto no artigo 29.º da Lei n.º 46/90.
A resposta, a nosso ver, é negativa.
E resulta do já afirmado, isto é, o artigo 29.º da Lei n.º 46/90 estabeleceu cláusulas especiais para os contratos de arrendamento rural de cuja celebração fez depender a atribuição de direitos de reserva aos proprietários de prédios expropriados ou ocupados na posse de beneficiários do direito de exploração, entre as quais a vigência imperativa do contrato pelo período de 19 anos; o contrato dos autos foi celebrado com observância deste regime o qual dispõe imperativamente sobre o seu prazo de vigência obrigatória, não lhe sendo aplicável os prazos gerais previstos pelo artigo 5.º do D.L. n.º 385/88, Lei do Arrendamento Rural.
Assim, qualquer alteração de normas, sem aplicação ao contrato, como a introduzida pelo D.L 524/99 ao artigo 5.º do D.L. n.º 385/88, é inócua para efeitos da vigência, execução ou cessação do contrato, uma vez que altera normas a ele inaplicáveis.
Acresce dizer que o regime ao abrigo do qual o contrato foi celebrado – artigo 29.º da Lei n.º 46/90, de 22/8 – veio estabelecer cláusulas especiais relativamente ao regime estabelecido na Lei do Arrendamento Rural [artigo 5.º] e a lei geral, como o é D.L. 524/99, não revoga lei especial [artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil].
Assim, o acórdão desta Relação de 06/10/2005: “(…) tratando-se neste particular de lei especial relativamente ao regime estabelecido na Lei do Arrendamento Rural (artigo 5.º) nos termos supra expostos, não lhe é aplicável a alteração introduzida a este dispositivo pelo D.L. n.º 524/99, de 10/12 que aumentou para cinco anos os períodos de renovação.” [7]
Dado este passo, a denúncia é apta a fazer caducar o contrato.
O contrato foi celebrado com o prazo de 10 anos e três renovações obrigatórias de três anos cada, [ponto 8 dos factos provados], teve o seu início em 7/12/1994 e o termo da sua vigência obrigatória em 7/12/2013; em 16 de março de 2011 e 2 de maio de 2011 a senhoria comunicou à Ré que pretendia a entrega do prédio livre e desembaraçado para exploração direta para o seu termo em 07/12/2013 [pontos 9 e 10 dos factos provados]; esta comunicação observou a antecedência de dezoito meses, relativamente ao termo do prazo da última renovação obrigatória do contrato – de 2/5/2011 a 7/12/2013 vão mais de dezoito meses; assim, a denuncia por válida e eficaz é apta a operar a caducidade do contrato, com a consequente entrega do imóvel pela Ré arrendatária ao Autor senhorio.
O recurso procede quanto a esta questão.

2.2. Litigância de má-fé
Considera o Autor que a Ré litiga de má-fé; argumenta que a Ré, na posse e exploração do prédio, desde 13/01/1977, “sempre se tem negado a restituir o prédio”, “tudo tem feito para se manter por tempo indefinido na posse e exploração do prédio, sem pagar a renda, impedindo o recorrente de exercer o seu direito de propriedade, causando-lhe graves e irreparáveis prejuízos” e que “a conduta da recorrida (…) é claramente ofensiva aos mais elementares princípios da justiça e aplicação do direito, tendo excedido todos limites impostos pela boa fé.”
Segundo a alínea d) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC – previsão legal que o Autor acusa violada – diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Do uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais deve distinguir-se a eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar ou a discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor.[8]
A defesa convicta de uma perspetiva jurídica dos factos, diversa daquela que a decisão judicial acolhe, não implica, por si só, litigância censurável (…) todavia se não forem observados os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé, patenteia-se litigância de má fé.”[9]
No caso, os factos que o Autor imputa à Ré para caraterizar a litigância de má-fé não permitem, a nosso ver, operar a indicada distinção e isto por reportados, todos eles, a posições jurídicas materiais ou substantivas alegadamente assumidas pela Ré – “permanência na posse e exploração do prédio, sem pagar a renda; graves e irreparáveis prejuízos causados ao Autor pela não entrega do prédiosuscetíveis de correção por via de ação do Autor e não a concretas posições assumidas no processo reconduzíveis à violação deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé processuais.
O recurso improcede quanto a esta questão.

3. Custas
Parcialmente vencidos no recurso, incumbe ao Autor / recorrente e à Ré / recorrida o pagamento das custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC), na proporção que se fixa em 1/10 e 9/10, respetivamente.

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

IV. Dispositivo:
Delibera-se pelo exposto, na procedência parcial do recurso, em:
a) alterar a decisão recorrida por forma a julgar válida a denuncia, a declarar a caducidade do contrato de arrendamento em 7/12/2013 e a condenar a Ré a restituir o prédio ao Autor livre de pessoas e bens;
b) julgar improcedente o pedido de condenação da Ré como litigante de má-fé.
Custas pelo Recorrente e Recorrida na proporção de 1/10 e 9/10, respetivamente.
Évora, 18/12/2023
Francisco Matos
Canelas Brás
Maria Domingas Simões


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[1] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos, pág. 395 e Jurisprudência aí indicada; no mesmo sentido, Lebre de Freitas, CPC anotado, 2ª ed., 3º vol. Tomo I, pág. 5 e Abrantes Geraldes, Recursos, novo regime, pág. 23.
[2] É o que decorre, entre outros, dos artigos 627.º, n.º 1, 631.º e 639.º, n.º 1, todos do C.P.C..
[3] Entre outros, Ac. STJ de 6/2/1987, BMJ, 364º - pág. 714.
[4] Diploma que apesar de revogado pelo D.L. n.º 294/2009, de 13/10 [artigo 43.º, alínea a)] se continua a aplicar aos contratos de arrendamento existentes na data da sua entrada em vigor que não houverem sido alterados, no momento da sua renovação, em conformidade com o novo regime [artigos 44.º, n.º 2 e 41.º].
[5] Aragão Seia, Manuel da Costa Calvão e Cristina Aragão Seia, Arrendamento Rural, 2ª ed. pág. 85.
[6] Ac. STJ de 23/04/2002 (proc. 01A4298), jurisprudência e doutrina citada, em www.dgsi.pt
[7] Ac. R.E. de 06/10/2005 (proc. 151/05-2), disponível em www.dgsi.pt
[8] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa, Código de Processo Civil anotado, vol. 1º, 3ª ed. pág. 643.
[9] Ac. STJ de 11/09/2012 (proc. 2326/11.09TBLLE.E1.S1), em www.dgsi.pt