RECUSA
DISTRIBUIÇÃO
JUIZ CONSELHEIRO
TEMPESTIVIDADE
CONFERÊNCIA
ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REJEIÇÃO
Sumário


I - O incidente de recusa, como o da escusa, regulados nos artigos 43º a 47º do CPP, devem analisar-se, no dizer de Henriques Gaspar, como instrumentos processuais de reforço suplementar da garantia da imparcialidade do juiz, completando a função dos impedimentos, cujo regime se mostra regulado nos artigos 39º a 42º do mesmo diploma legal.
II - Mas, como diz o mesmo autor, «(…) não podem ser utilizados a todo o tempo, como estratégia eventualmente escolhida (e guardada) pelos interessados para utilizar no momento que entenderem oportuno: a lei previne o uso do meio como elemento da “teoria dos jogos”».
III - Por isso, o artigo 44º, n.º 1, do CPP, estabelece um prazo limite para a formulação do pedido, que relativamente aos juízes dos tribunais superiores coincide com o início da audiência e/ou da conferência nos recursos, pressupondo a lei ser razoável admitir que o interessado teve oportunidade de se aperceber da existência do motivo “sério e grave”, subjetivo ou objetivo, passível de gerar “desconfiança sobre a imparcialidade do juiz”.
IV - Visando também, como pode ler-se no acórdão do STJ, de 24.01.2023, proferido no processo n.º 299/22.1YRPRT-A.S1-A, prevenir «(…) uma “utilização inútil” nos casos em que a decisão final foi já proferida».
V - No caso em apreço, o incidente de recusa suscitado revela-se indiscutivelmente inútil, considerando que os dois acórdãos prolatados pelo STJ, pese embora ainda não transitados, foram proferidos em data anterior à sua apresentação e se mostram insuscetíveis de qualquer modificação substancial, menos ainda de sentido prejudicial ao requerente e aos demais arguidos, e sempre na estrita medida do que porventura for decidido pelo Tribunal Constitucional.
VI - E a intervenção da Juíza Conselheira recusada, cuja imparcialidade subjetiva não vem sequer questionada, seja quanto à admissão daqueles recursos, seja em sede de apreciação de reclamações e/ou arguição de nulidades daquelas decisões ou do procedimento, não se afigura apta a pôr em crise a sua substância e sentido decisório, nem é espaço processual apropriado a equacionar a aplicação destes meios de garantia reforçada da imparcialidade do juiz, por muito relevantes que possam ser aqueles requerimentos e reclamações.
VII - A circunstância de a Juíza Conselheira recusada só ter sido associada ao processo em momento posterior à prolação e publicação dos acórdãos do STJ, a partir do qual se tornou possível equacionar a sua recusa, a respetiva intervenção já não poderá traduzir-se em modificação substancial do decidido, como, aliás, sucederia com o juiz relator originário, o qual podia até já ter tido intervenção processual não imparcial e, ainda assim, sem possibilidades de ser recusado para além daquele marco temporal, por manifesta inutilidade da recusa, cuja admissão consubstanciaria, assim, um ato proibido, nos termos do artigo 130º do CPC, aplicável ex vi do artigo 4º do CPP.
VIII - A apresentação do pedido de recusa nas referidas circunstâncias configura-se como situação exemplar da utilização conveniente e totalmente entorpecente da normal tramitação do processo, é dizer, da “teoria dos jogos” que a lei pretende prevenir com a estipulação do referido limite temporal para a sua dedução.
IX - É que os fundamentos do pedido, assentes essencialmente na ideia da postergação dos direitos de defesa do arguido, decorrentes da violação dos princípios constitucionais da independência dos tribunais e dos juízes, da proibição do desaforamento e do juiz natural ou legal, a vingar a tese do recusante, não impediriam apenas a Juíza Conselheira aqui recusada, mas sim qualquer outro juiz conselheiro que, segundo o mesmo procedimento aleatório, pudesse ter sido sorteado na redistribuição do processo.
X - Nessa tese e no limite, só o Juiz Conselheiro relator originário estaria em condições de poder continuar a desempenhar essa função, pelo que, enquanto se mantivesse ausente o processo não poderia ser movimentado e, assim, descoberta a porta e o caminho para o protelamento indefinido da eficácia das decisões judiciais, paralisando por completo o andamento dos processos e, em consequência, a realização da justiça em tempo útil e comunitariamente aceitável.
XI - À custa, claro está, de princípios e direitos fundamentais de igual valor e consagração constitucional aos reclamados pelo recusante, designadamente o do pleno exercício da função jurisdicional, das tarefas fundamentais do Estado, do direito universal de acesso ao direito e de obtenção de uma decisão judicial em tempo razoável e mediante processo equitativo, tudo como decorre dos artigos 202º, n.ºs 1 e 2, 9º, al. b), e 18º da CRP, também eles com força jurídica direta e necessariamente objeto de apreciação e consideração concreta por todos os tribunais, nos termos dos seus artigos 18º e 204ª.
XII - Sendo assim, se porventura ocorresse conflito entre tais princípios e direitos fundamentais e aqueles convocados pelo recusante, haveria necessidade de, segundo o critério doutrinário da “concordância prática”, harmonizá-los de maneira a que nenhum deles se sobrepusesse absolutamente aos outros, restringindo cada um deles na medida do estritamente necessário para permitir a realização dos demais.
XIII - Ou seja, nenhum desses princípios e direitos fundamentais é absoluto e prevalece sobre os demais, como evidencia, de resto, o próprio incidente de recusa relativamente aos referidos princípios e direitos invocados pelo recusante, nomeadamente quanto ao do juiz natural ou legal, que, em homenagem ao valor da imparcialidade do juiz, permite afastar um concreto juiz do processo que lhe havia sido aleatoriamente distribuído.
XIV - Em suma, como se afirmou no acórdão do TC n.º 143/2004, de 10.03.2004, a restrição temporal estabelecida no artigo 44º, n.º 1, do CPP, mediante a fixação de um momento processual até ao qual a recusa tem de ser desencadeada, não é materialmente inconstitucional, por si mesma ou conjugada com os artigos 43º, n.º 1, e 103º do CPP, na interpretação aplicativa aqui sufragada.
XV - O pedido de recusa aqui em apreço é extemporâneo e, como tal, deve ser rejeitado.

Texto Integral



Processo n.º 121/08.1TELSB.L1.S1-F


(Recusa)


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório


I. 1. AA, arguido e recorrente no processo de recurso penal n.º 121/08.1TELSB.L1.S1, da 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), veio nele deduzir, por requerimento de 11.10.2023 (referência ......20) incidente de recusa da Juíza Conselheira BB, cuja intervenção como relatora no processo resultou da sua redistribuição, em razão da baixa médica do Juiz Conselheiro relator originário por período de 90 dias.


I. 2. Com a seguinte nota prévia (transcrição parcial):


«(…) impõe-se afirmar que a apresentação do mesmo não pretende, por parte do Arguido e ou da Advogada signatária, significar qualquer menor consideração pessoal e ou técnica relativamente à Exm.ª Senhora Juíza Conselheira visada no mesmo, limitando-se a reagir contra aquela que considera uma objectiva violação do princípio da imparcialidade, efectuada através um procedimento de substituição do titular do processo que não respeita o princípio do juiz natural, violando o princípio da inamovibilidade do juiz do processo».


I. 3. Seguida de apontamento relativo à tempestividade do incidente do seguinte teor (transcrição)


«O Arguido, ora Requerente, apresenta o presente incidente no dia seguinte ao dia da redistribuição dos autos que procedeu à substituição do Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Relator.


Afigurando-se ao Requerente que os artigos 43.º, n.º 1, 44.º, n.º 1 e 105.º, n.º 1, do CPP, se interpretados no sentido de ser extemporâneo o incidente de recusa relativo a Juiz que substituía, na sequência da redistribuição dos autos, o Juiz relator junto de Tribunal superior, quando formulado no dia seguinte ao da redistribuição que determinou que o Juiz recusado iria intervir nos autos, são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 1 e 202.º, n.º 2 e 203.º, da CRP.


Na verdade, assumir que o Arguido poderia/deveria ter apresentado o incidente de recusa em momento anterior põe em causa o direito de defesa legalmente consagrado no artigo 43.º do CPP.


Direito este que integra as garantias de defesa do Arguido em processo penal a que alude o artigo 32.º, n.º 1, da CRP, designadamente, para reacção a situações que ponham (ou possam pôr) em perigo o princípio constitucional da imparcialidade (artigos 202.º, n.º 2 e 203.º da CRP), igualmente resultante do artigo 6.º da CEDH e do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia».


I. 4. A que se seguem os fundamentos do incidente, que, em rigor, são o desenvolvimento da síntese conclusiva final das notas de enquadramento constantes da sua alínea A), que se transcreve:


«Ora, no entendimento do ora Requerente, a redistribuição dos autos a novo Juiz para que exerça as funções de Juiz relator, viola claramente o princípio do juiz natural ou legal, e, assim, os artigos 32.º, n.º 9, da CRP, 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 14.º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, o artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, bem como, o princípio da inamovibilidade do juiz e o artigo 216.º, n.º 1, da CRP;


Tal redistribuição dos autos, ditando o afastamento do Exm.º Senhor Juiz Conselheiro relator titular dos autos, foi efectuada com base em normas que o Arguido reputa como material e organicamente inconstitucionais, cuja aplicação deveria ter sido, desde logo, recusada nos termos do artigo 204.º da CRP;


Verificando-se ainda que a distribuição do processo não foi sequer tomada nos termos do artigo 149.º, n.º 1, al. n) do EMJ por decisão do CSM, ou por decisão da secção de acompanhamento e ligação aos Tribunais, nos termos do artigo 152.º-C, n.º 1, al. g), do EMJ, mas, outrossim, por decisão do Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Presidente do STJ, conforme decorre do Provimento n.º 19/2023, datado de 4 de Outubro de 2023, o que determina, igualmente, a invalidade da redistribuição do processo;


Salvo o devido respeito, que é muito, havendo violação das regras que permitem a substituição do Juiz relator titular (leia-se, o “desaforamento” do Juiz), que terá ainda que apreciar toda e qualquer pretensão/questão interlocutória que no processo seja colocada, e, desde logo, que admitir ou rejeitar o recurso de constitucionalidade já interposto pelo Arguido para o TC, verifica-se motivo sério, grave e adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Juiz substituto e, assim, da Exm.ª Senhora Juíza Conselheira ora recusada, face à objectiva violação daquelas regras, conforme se passa a expor».


I. 5. Fundamentos que se desenvolvem nas várias alíneas a seguir enunciadas, com transcrição dos trechos que, em cada uma delas, se perfilam necessárias a uma mais completa compreensão da posição do requerente:


«B – Da tramitação processual que ditou a redistribuição do processo


(…)


C – Análise da base legal que permitiu a redistribuição do processo


(…)


D – Da incompetência do Exm.º Senhor Presidente do STJ para determinar a redistribuição do processo à luz do artigo 152.º-C, n.º 1, al. g), do EMJ.


(…) Porém, no caso dos autos, a redistribuição dos autos operada não foi sequer tomada pelo CSM ou pela “secção de acompanhamento e ligação aos tribunais”, mas por Provimento ordenado pelo Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Presidente do STJ;


Circunstância que prejudica objectivamente a percepção externa quanto à legalidade do processo de redistribuição e, consequentemente, a aparência da imparcialidade da Exm.ª Senhora Juíza Conselheira recusada dela dependente;


O que constitui fundamento autónomo para o presente incidente de recusa.


Nem se diga que o Provimento que determinou a redistribuição dos autos se baseia em delegação de poderes operada através da deliberação n.º 507/2021,


(…)


Ora, não autorizando o artigo 158.º, n.º 2, do EMJ a delegação dos poderes legalmente conferidos ao CSM no Exm.º Senhor Presidente do STJ, tal autorização de delegação não se retira (nem pode retirar) do previsto no artigo 44.º do CPA e, designadamente, do seu n.º 3, já que o seu n.º 1 exige sempre que exista uma autorização legal para o efeito ou que esteja em causa actos de administração ordinária.


Na verdade, por via do alargamento do conceito jurídico daquela que é um acto de “administração ordinária” de um Tribunal jamais se poderá com o mesmo vir a abarcar no mesmo toda e qualquer situação que envolva o desaforamento de um Juiz, por natureza inamovível, matéria que, ao nível do processo penal, colide com direitos, liberdades e garantias como claramente resulta do artigo 32.º, n.º 9, da CRP.


Na verdade, ao invés do entendimento que parece estar subjacente à Deliberação do CSM n.º 507/2021, (…)


Não se pode considerar que a decisão de substituição de Juiz titular de um processo penal consubstancie, ainda que em caso de baixa médica, uma decisão de “administração ordinária” por, tal decisão repete-se, colidir com direitos do Arguido em processo penal e, concretamente, com o disposto no artigo 32.º, n.º 9, da CRP;


(…)


Com efeito, como se viu já, não tendo o Exm.º Senhor Presidente do STJ competência própria para o acto e não existindo norma legal que habilite o CSM a proceder à delegação da competência para determinar a redistribuição de processos no Presidente do CSM, a delegação de poderes efectuada não tem qualquer base legal, prejudicando o acto da redistribuição efectuada e, assim, a percepção objectiva quanto à imparcialidade da Exm.ª Senhora Juíza Relatora assim determinada por via da mesma.


E – Da inconstitucionalidade orgânica das normas que permitiram a redistribuição do processo:


Acresce que, a lei (leia-se, o EMJ) não define, através de critérios legais, gerais e abstractos, os casos concretos em que haverá que proceder à alteração da distribuição e ou em que se torna legalmente necessário “assegurar a igualação e operacionalidade dos serviços;” (objectivo assumido no artigo 149.º, n.º 1, al. n), do Estatuto dos Magistrados Judiciais), deixando ao Plenário do CSM a função de os prever em sede de regulamento.


(…)


Aqui chegados verificamos que o único critério legal é sempre, ao nível do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a atribuição ao CSM ou à “secção de acompanhamento e ligação aos tribunais” de competência para substituir o Juiz titular do processo “tendo em vista o equilíbrio da carga processual e a eficiência dos serviços.”


(…)


Ora, foi exactamente em execução da atribuição legal constante do artigo 151.º, al. c), do EMJ, que o CSM, em Plenário, veio a aprovar o Regulamento n.º 269/2021, onde no seu artigo 9.º, n.º 8, al. b), se passou a prever, como acima se referiu, sob a epígrafe “Redução ou suspensão da distribuição dos processos por situação de doença” que:


“Em situações de baixas médicas, em que não seja assegurada a substituição do juiz, a distribuição segue, em regra, o seguinte regime: (…)


b) Mais de noventa dias de baixa médica: redistribuição de todos os processos anteriormente distribuídos ao juiz que se encontre de baixa;”.


(…)


Porém, no entendimento do Arguido, ora Requerente, tanto o artigo 151.º, al. c) do EMJ, como o artigo 9.º, n.º 8, al. b), do Regulamento aprovado pelo Plenário do CSM n.º 269/2021, padecem de inconstitucionalidade orgânica em virtude de o CSM proceder, através da regulamentação nele inclusa, à emanação de normas para as quais não tem constitucionalmente competência legal.


(…)


Assim, pese embora o EMJ atribua competência legal ao CSM para regulamentar no âmbito do disposto no artigo 149.º, n.º 1, al. n), do Estatuto dos Magistrados Judiciais, a verdade é que, sob pena de inconstitucionalidade, desde logo, orgânica, não pode ser o CSM a emanar regulamentação que introduza critérios normativos que não estejam como tal anteriormente previstos na lei e sejam restritivos do princípio da inamovibilidade do juiz, como resulta do artigo 164.º, alínea m), da CRP;


(…)


Face à análise que consta do Acórdão acima citado, a que o Arguido não pode deixar de aderir, pese embora a dignidade constitucional do CSM, fica claro que, à luz do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, não compete ao Regulamento n.º 269/2021 (independentemente desde ser, ou não, emanado pelo Plenário do CSM) integrar ou modificar a lei, isto é, no caso “sub judice”, especificar os casos em que se deve considerar em causa a “operacionalidade dos serviços” e, consequentemente, se pode/deve, como regra, afastar o juiz do processo, redistribuindo-o a outro juiz.


Ou seja, não cabe ao Regulamento n.º 269/2021 proceder à previsão inovatória dos casos em que, por via de regra, se pode/deve afastar o juiz natural do processo no seio do processo penal (tendencialmente inamovível) e determinar que tal pode ocorrer à luz da lei sem ser por decisão, necessariamente fundamentada, do CSM.


Efectivamente, sendo os três atributos do juiz (independência, inamovibilidade e irresponsabilidade) verdadeiras garantias estatutárias que suportam a sua imparcialidade, os mesmos são também, no seio do processo penal, uma garantia de defesa do Arguido (artigo 32.º, n.º 9, da CRP); logo, o diploma próprio para a sua regulamentação é o “Estatuto dos Juízes” e nunca, com o devido respeito, que é muito, um Regulamento, mesmo que emanado pelo Plenário do CSM, por estar, como se referiu “supra” em sede de reserva de lei.


Assim, no entendimento do Arguido:


- o artigo 151.º, al. c), do EMJ, na parte em que atribui competência ao Plenário do CSM para aprovar regulamentos sobre a matéria a que alude a al. n) do artigo 149.º daquele Estatuto, onde se concretizem situações não previstas como tal na lei que, em regra, ditam a alteração da distribuição de processos com o fim de assegurar a igualação e operacionalidade dos serviços, é organicamente inconstitucional por violação dos artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 9, 112.º, n.º 5, 164.º, alínea m), 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP.


Acresce que, como decorre do acima exposto;


Também o artigo 9.º, n.º 8, al. b), do Regulamento aprovado pelo Plenário do CSM n.º 269/2021, conjugado com o disposto nos artigos 149.º, n.º 1, al. n) e 151.º, al. c), do EMJ, na medida em que prevê, de forma inovadora relativamente à lei, que o decurso de mais de noventa dias de baixa médica autoriza, por regra, a redistribuição de todos os processos anteriormente distribuídos ao Juiz titular do processo que se encontre de baixa, é organicamente inconstitucional, por violação dos artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 9, 112.º, n.º 5, 164.º, alínea m), 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP;


Inconstitucionalidade orgânica que obrigava a que as normas em causa não fossem aplicadas, nos termos do artigo 204.º, da CRP.


O que se verifica porque, à luz da CRP (164.º, alínea m), da CRP) que não cabe ao CSM (independentemente da forma como o faz) a criação de normas inovadoras relativas a matéria que colide com a amplitude e eficácia do princípio da inamovibilidade do juiz constitucional e legalmente previsto no artigo 216.º, n.º 1, da CRP “os juízes são inamovíveis, não podendo ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei” e no artigo 6.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho), que consagra norma idêntica, mas mais abrangente.


Nem se diga que a norma constante do artigo 9.º, n.º 8, al. b), do Regulamento (aprovado pelo Plenário do CSM) n.º 269/2021 apenas regula o conceito legal dos casos em que se deve “assegurar a igualação e operacionalidade dos serviços”, considerando que o faz por via de um previsão antes inexistente, integrando nele situação que não estão legalmente previstas, em derrogação dos artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 9, 112.º, n.º 5, 164.º, alínea m), 216.º, n.º 1 e 217.º, n.º 3, da CRP;


O que, no entendimento da defesa, prejudica objectivamente a percepção externa quanto à legalidade do processo de redistribuição efectuado e, consequentemente, a aparência da imparcialidade da Exm.a Senhora Juíza Conselheira recusada cuja intervenção depende, necessariamente, da legalidade dessa redistribuição dos autos;


O que constitui fundamento autónomo para o presente incidente de recusa.


F – Da inconstitucionalidade material das normas que permitiram a redistribuição do processo:


Acresce que, o artigo 9.º, n.º 8, al. al. b), do Regulamento, aprovado pelo Plenário do CSM n.º 269/2021, expressa uma norma jurídica regulamentar com caráter modificativo, excessivo e restritivo dos pressupostos legais, negativos, do princípio do juiz natural integra uma das garantias do Arguido em processo penal, sendo estabelecido no artigo 32.º, n.º 9, da CRP (…), bem como, do princípio da inamovibilidade do juiz constitucional e legalmente previsto no artigo 216.º, n.º 1, da CRP (…) e no artigo 6.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei n.º 21/85, de 30 de Julho), que consagra norma idêntica, mas mais abrangente.


No entendimento do Arguido, ora Requerente, a norma constante do artigo 9.º, n.º 8, al. b), do citado Regulamento n.º 269/2021, na parte que concretiza que a situação de baixa médica do Juiz titular pelo prazo de 90 dias dita, em regra, a redistribuição dos processos anteriormente distribuídos ao mesmo, restringe de forma desnecessária, não proporcional e desadequada o princípio do juiz natural constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da CRP, (…);


Mostrando-se o artigo 9.º, n.º 8, al. b), do citado Regulamento n.º 269/2021, materialmente inconstitucional por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 9 da CRP, por prever, como regra, uma restrição ao princípio do juiz natural que não obedece aos requisitos previstos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP.


Tal princípio envolve, como é sabido, a proibição do desaforamento do juiz natural, entendido como aquele a quem foi inicialmente distribuído o processo;


Sendo que, s.m.o., não é a circunstância de se verificar uma baixa médica de 90 dias que dita a necessidade de substituição do juiz do processo, sobretudo em processos que, como no caso concreto, assumam especial complexidade, situação em que não será a regra da substituição do Juiz Relator ao fim de 90 dias que potenciará, de facto, um efectivo incremento à celeridade processual.


(…)


Assim, mesmo para quem entenda que a restrição operada por via do artigo 9.º, n.º 8 do Regulamento n.º 269/2021, é, por via de regra, materialmente constitucional por considerar que a mesma obedece aos requisitos previstos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, não deixará de considerar que o artigo em causa se revela materialmente inconstitucional caso se adira, como se aderiu no caso dos autos, a uma interpretação normativa dele extraída que determine que o prazo de 90 dias aí previsto corre em férias judiciais quando esteja em causa um processo não urgente (leia-se, quando não é suposto o mesmo ser tramitado), como é o caso dos autos.


(…)


Donde, os artigos 149.º, n.º 1, al. n), do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 9.º, n.º 8, al. b), do Regulamento aprovado pelo Plenário do CSM n.º 269/2021, 137.º, n.º 1, do CPC e 28.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, interpretados conjugadamente no sentido de o decurso de mais de noventa dias de baixa médica determinar, por regra, a redistribuição de todos os processos anteriormente distribuídos ao juiz titular do processo que se encontre de baixa, mesmo quando tal prazo decorra, em processo não urgente, nas férias judicias entre 16 de julho e 31 de agosto, são materialmente inconstitucionais por violação dos artigos 18.º, n.º 2 e 32.º, n.º 9 da CRP;


Inconstitucionalidade que obrigava a que a norma em causa não fosse aplicada, nos termos do artigo 204.º, da CRP.


O que, no entendimento da defesa, prejudica objectivamente a percepção externa quanto à legalidade do processo de redistribuição e, consequentemente, a aparência da imparcialidade da Exm.ª Senhora Juíza Conselheira recusada;


O que constitui (também) fundamento autónomo para o presente incidente de recusa.


G – Da redistribuição do processo sem contraditório ao Arguido


Por último, constitui fundamento autónomo para o presente incidente de recusa a circunstância, que se alia ao acima alegado, de todo o procedimento de redistribuição do processo ter ocorrido com violação do princípio do contraditório, quanto se sabe estar em causa questão que se acha nitidamente protegida ao nível do artigo 32.º, n.º 9, da CRP;


O que, aliás, foi já reconhecido por douto despacho, datado de 25.10.2022, prolatado no Apenso B, que transitou em julgado.


Assim, estando resolvida - por decisão transitada em julgado - que a questão da substituição de Juiz titular (seja por que via for) exige que ao Arguido seja dado contraditório, a omissão do mesmo, no entendimento da defesa, prejudica objectivamente a percepção externa quanto à legalidade do processo de redistribuição e, consequentemente, a aparência da imparcialidade da Exm.ª Senhora Juíza Conselheira recusada.


Termos em que, requer a V.ªs Ex.ªs se dignem julgar como procedente, por provado, o presente incidente de recusa, determinando que a Exm.ª Senhora Juíza Conselheira, Dr.ª BB fica impedida de intervir no processo que lhe foi redistribuído, seguindo-se os demais termos do processo até final».


I. 6. Em conformidade com o disposto no artigo 145º, n.º 3, do CPP, a Juíza Conselheira recusada emitiu a seguinte pronúncia:


«(…) 1. Esclarece o requerente que a recusa não se refere, pessoal ou profissionalmente, à signatária.


Quanto a este ponto, apenas se nos oferece dizer que não teve a relatora sorteada qualquer contacto com o presente processo, desde o seu início até ao presente. Também não conhece os arguidos, nem tem relação de proximidade com nenhum dos intervenientes processuais.


Não se nos afigura, pois, existir motivo grave e sério de suspeição sobre a imparcialidade, subjetiva ou objetiva, na decisão de recurso que, aliás, se mostra já decidido.


2. Alegando inconstitucionalidades várias, todas relativas à redistribuição operada, afirma o recorrente: “Com efeito, como se viu já, não tendo o Exm.º Senhor Presidente do STJ competência própria para o acto e não existindo norma legal que habilite o CSM a proceder à delegação da competência para determinar a redistribuição de processos no Presidente do CSM, a delegação de poderes efectuada não tem qualquer base legal, prejudicando o acto da redistribuição efectuada e, assim, a percepção objectiva quanto à imparcialidade da Exm.ª Senhora Juíza Relatora assim determinada por via da mesma.”


O requerimento de recusa reconduz-se, em substância, à alegação de uma ilegalidade da redistribuição geradora, na tese do requerente, de motivo de recusa por, nessa tese, tal ilegalidade afetar a imparcialidade da Relatora, na ótica da sua perceção objetiva.


O incidente de recusa, preordenado e regulado em função de conhecimento de motivo sério e grave, de natureza pessoal, de relação com o processo ou com os sujeitos processuais, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz (artigo 45.º, n.º 1, do CPP), não constituirá o meio processual adequado ao conhecimento de eventuais irregularidades da redistribuição, realizada de modo aleatório.


Acresce que, dispõe, expressamente, o artigo 205.º, n.º 1 do CPC (aplicável ex vi artigo 4º do CPC), “a falta ou irregularidade da distribuição não produz nulidade de nenhum ato do processo, mas pode ser reclamada por qualquer interessado ou suprida oficiosamente até à decisão final”.


As questões colocam-se em planos distintos, não parecendo afetar, assim, a perceção pública da imparcialidade da relatora, menos ainda, de modo grave e sério.


(…)».


I. 7. Por despacho de 18.10.2023 (referência ......67), determinou-se a realização das providências necessárias ao acesso do relator ao processo principal, em modo de consulta na plataforma Citius, e a junção a este de cópia certificada da ata da distribuição em que se procedeu à redistribuição daquele, apenas quanto ao Juiz Conselheiro Relator, de que resultou o sorteio da Juíza Conselheira ora recusada, o que foi cumprido pela secção de processos.


I. 8. Nessa sequência, no dia 22.10.2023, o requerente deu entrada a dois requerimentos (referências ......91 e ......27):


- no primeiro, na linha da extensa argumentação desenvolvida na fundamentação do pedido de recusa em apreço, assegurar a possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional, reafirmando a inconstitucionalidade normativa dos artigos 43º do CPP e 205º do CPC, n.º 1, antecipando a possibilidade de vir a ser decidido o incidente no sentido que entendeu propugnado na pronúncia da Juíza Conselheira recusada;


- no segundo, também em sintonia com o apontamento do seu requerimento relativo à tempestividade do incidente, referenciado no ponto I. 3. deste relatório, para reiterar o seu entendimento de que, pese embora a constante jurisprudência do STJ, que identifica e cita, no sentido de a recusa só poder ter lugar, nos recursos, até ao início da conferência, assinalar as diferenças do caso sub judice, face aos apreciados em tais decisões, uma vez que o juiz aqui recusado ainda não tinha tido qualquer contacto com o processo e fora sorteado como seu relator em momento posterior ao da prolação do acórdão que conheceu e decidiu o recurso, o que impediria a utilização do incidente com expediente impeditivo do normal andamento do processo e da realização da justiça, afastando a pertinência daquela corrente jurisprudencial e suscitando a inconstitucionalidade normativa dos artigos 43º, n.º1, 44º, n.º 1, e 105º, n.º 1, do CPP, que invocou expressamente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 72º, n.º 2, doa LTC.


I. 9. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. Fundamentação


II. 1. Factos


Dos elementos constantes destes autos e da consulta do processo principal extrai-se, com interesse para a decisão, o seguinte:


a) por acórdão proferido em 12 de novembro de 2018, no J... . do Juízo Central Criminal de..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi decidido, no que aqui interessa:


- condenar o arguido AA pela prática, como coautor, de dois crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, als. a) e d), do CP, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão para cada um deles;


- condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares fixadas, na pena única de 10 (dez) anos de prisão;


- determinar que à pena de prisão fixada seja descontado o tempo de privação de liberdade sofrido pelo arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 80.º, n.º 1, do CP;


- condenar o demandado AA, a pagar solidariamente ao demandante Banco BIC Português, S.A. a quantia de € 9 409 209,25 (nove milhões quatrocentos e nove mil duzentos e nove euros e vinte e cinco cêntimos) e ainda, com outros demandados, a quantia remanescente até perfazer o total de € 11 404 400,84 (onze milhões quatrocentos e quatro mil quatro centos euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de indemnização civil por danos patrimoniais relativos ao negócio do Terreno da ..., acrescida de juros de mora vencidos desde a data de notificação do pedido até efetivo e total pagamento, à taxa de 4% ao ano, se outra taxa não for entretanto de aplicar;


- condenar o demandado, AA, a pagar solidariamente ao demandante Banco BIC Português, S.A. a quantia de € 9 017 196,51 (nove milhões dezassete mil cento e noventa e seis euros e cinquenta e um cêntimo), a título de indemnização civil por danos patrimoniais relativos aos negócios das sociedades ATX e ATX II, acrescida de juros de mora vencidos desde a data de notificação do pedido até efetivo e total pagamento, à taxa de 4% ao ano, se outra taxa não for entretanto de aplicar;


- condenar o demandado, AA, a pagar solidariamente ao demandante Banco BIC Português, S.A. a quantia de € 14 299 041,44 (catorze milhões duzentos e noventa e nove mil quarenta e um euros e quarenta e quatro cêntimos), a título de indemnização civil por danos patrimoniais relativos aos negócios da Palácio das Á..... e dos Terrenos de ..., acrescida de juros de mora vencidos desde a data de notificação do pedido até efetivo e total pagamento, à taxa de 4% ao ano, se outra taxa não for entretanto de aplicar;


- condenar o demandado, AA, a pagar solidariamente ao demandante Banco BIC Português, S.A. a quantia de € 19 646 100,00 (dezanove milhões seiscentos e quarenta e seis mil e cem euros), a título de indemnização civil por danos patrimoniais relativos ao negócio da B.... ... ...., acrescida de juros de mora vencidos desde a data de notificação do pedido até efetivo e total pagamento, à taxa de 4% ao ano, se outra taxa não for entretanto de aplicar;


- condenar o demandado, AA, a pagar solidariamente à demandante P........., S.A. a quantia de € 4 449 851 (quatro milhões quatrocentos e quarenta e nove mil oitocentos e cinquenta e um euros), a título de indemnização civil por danos patrimoniais relativos ao negócio da T...., acrescida de juros de mora calculados sobre o valor de € 4 000 000 (quatro milhões de euros), vencidos desde a data de notificação do pedido até efetivo e total pagamento, à taxa de 4% ao ano, se outra taxa não for entretanto de aplicar.


b) inconformado com o acórdão proferido, AA, recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), o qual, por acórdão de 02.06.2021, julgou o recurso apresentado improcedente, muito embora, quanto à responsabilidade civil, tenha determinado tomar-se em conta, no quantum indemnizatório fixado, os valores entretanto recebidos, mantendo integralmente a decisão da primeira instância em tudo o mais;


c) De novo inconformado, o arguido AA, recorreu para o STJ, o qual, por acórdão de 15 de março de 2023 (referência ......91), decidiu:


- rejeitar o recurso do arguido AA e os dos demais arguidos e recorrentes quanto às penas parcelares e julgar improcedente o seu recurso quanto à medida da pena única;


- rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso interposto do acórdão recorrido, quanto à matéria dos pressupostos do pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC e, ainda, julgar os recursos improcedentes, na restante parte cível, confirmando, assim, o acórdão do TRL.


d) Este acórdão foi objeto de reclamação por diversos arguidos, incluindo o recusante AA, arguindo nulidades e inconstitucionalidades várias, as quais foram apreciadas e decididas, sem alteração do dispositivo condenatório do acórdão do TRL e confirmado pelo acórdão reclamado, em novo acórdão do STJ, proferido em 07.06.2023 (referência ......73);


e) deste último acórdão foi, entretanto, nos dias 22 e 23 de junho de 2023, interposto recurso para o Tribunal Constitucional por vários dos arguidos, incluindo o recusante AA;


f) na falta do Juiz conselheiro Relator originário, foi aberta conclusão no processo ao Juiz Conselheiro Presidente da 3ª Secção Criminal do STJ, que, em 07.07.2023, nele exarou o seguinte despacho (referência 11750485)1:


«Pedido de informação que antecede: - deferido:


*


Quanto ao demais, uma vez que o recurso já foi julgado, não sendo este um processo que se enquadre na previsão do art.º 103º do CPP e não existindo norma especial que o classifique como urgente, não resta senão observar o estatuído no art.º 9.º n.º 8 do Regulamento n.º 269/2021 do Conselho Superior da Magistratura, publico no DR n.º 56, de 22 de março de 2021, ou seja, abrir conclusão e aguardar o regresso do Exmo. Conselheiro relator ou que decorra o prazo de 90 dias ali estabelecido para se poder remeter à redistribuição (se não houver interrupção da baixa, tal ocorrerá em 18 de setembro próximo).


(…)».


g) assim ficando por decidir a admissão dos vários recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, bem como os requerimentos apresentados em 10 de outubro de 2023, com as referências ......02 e ......63;


h) no dia 18 de setembro de 2023, o Juiz Conselheiro Presidente do STJ, proferiu o despacho n.º 35/2023 (distribuição), entretanto junto ao processo, com o seguinte teor:


«(…) O Exmo. Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha, a exercer funções na 3ª secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça, apresentou baixa médica de 17/09/2023 até 16/10/2023.


De acordo com o disposto no artigo 9.º, n.º 8, al. a), do Regulamento 269/2021, aprovado pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura (publicado no DR, 2ª série, n.º 56, de 22 de março de 2021), e a delegação de poderes do plenário do Conselho Superior da Magistratura no Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (Deliberação 507/2021 publicada no DR, 2ª Série, n.º 95, de 17 de março de 2021), determino a suspensão da distribuição de processos ao referido Juiz Conselheiro, até ao próximo dia 16/10/2023, nos termos da al. e), da Deliberação (extrato) n.º 507/2021 do CSM, e nos processos urgentes em que a mesma intervenha como adjunto deve ser efetuado novo sorteio.


Cessando a suspensão, a distribuição reinicia-se não relevando o período de suspensão para efeitos de compensação da distribuição ocorrida durante esse período.


(…)»


i) ao processo foi também junto o Provimento n.º 19/2023, emitido pelo Juiz Conselheiro Presidente do STJ, em 4 de outubro de 2023, do seguinte teor:


«No uso das competências que me foram delegadas pelo Conselho Superior da Magistratura (Deliberação 507/2021 publicada no DR, 2ª Série, n.º 95, de 17 de março de 2021) determino o seguinte:


Nos casos de jubilação e nos casos de baixa médica por mais de 90 dias previstos no artigo 9.º, n.º 8, al. a), do Regulamento 269/2021, de 22 de março de 2021, os processos anteriormente distribuídos ao juiz jubilado ou que se encontre na referida situação de baixa médica serão redistribuídos por todos os juízes que componham as secções da respetiva jurisdição.


(…)».


j) nessa sequência, a secção de processos, em 10 de outubro de 2023, remeteu o processo 121/08.1TELSB.L1.S.1 à secção central do STJ para redistribuição, apenas quanto ao Juiz Conselheiro relator (termo de remessa com a referência ......61);


k) redistribuição que se concretizou nessa mesma data, estando o processo incluído na lista anexa correspondente ata da distribuição diária realizada nesse dia, segundo os procedimentos estabelecidos na Lei n.º 55/2021, de 13.08, e da Portaria n.º 88/2023, de 27.03, sob a presidência da Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé, assistida pela oficial de justiça CC, na presença do Procurador-Geral Adjunto José Duarte Silva (cfr. certidão com a referência 142, junta ao processo);


l) da qual resultou a indigitação da Juíza Conselheira BB para relatora do processo, em substituição do originário relator, em situação de baixa médica há mais de 90 dias;


m) no dia seguinte, 11 de outubro de 2023, o arguido AA, apresentou no processo o pedido de recusa da Juíza Conselheira BB.


II. 2. Direito


Dos factos enunciados resulta indiscutível que o recusante apresentou o seu pedido de recusa da Juíza Conselheira a quem o processo foi redistribuído, como relatora, no dia 10 de outubro de 2023, apenas no dia 11 de outubro de 2023, ou seja, em momento posterior à prolação dos dois referidos acórdãos do STJ no processo principal, de, respetivamente, 15.03 e 07.06 de 2023


Tal circunstância convoca, como o próprio antecipou no requerimento inicial e reiterou no requerimento apresentado em 22 de outubro de 2023, a questão prévia da tempestividade do seu pedido.


É que, se é verdade que o incidente de recusa, como o da escusa, regulados nos artigos 43º a 47º do CPP, se devem analisar, no dizer de Henriques Gaspar2, como instrumentos processuais de reforço suplementar da garantia da imparcialidade do juiz, completando a função dos impedimentos, cujo regime se mostra regulado nos artigos 39º a 42º do mesmo diploma legal, não o é menos, como diz o mesmo autor3, que os mesmos «(…) não podem ser utilizados a todo o tempo, como estratégia eventualmente escolhida (e guardada) pelos interessados para utilizar no momento que entenderem oportuno: a lei previne o uso do meio como elemento da “teoria dos jogos”».


Por isso, o artigo 44º, n.º 1, do CPP, estabelece um prazo limite para a formulação do pedido, que relativamente aos juízes dos tribunais superiores coincide com o início da audiência e/ou da conferência nos recursos, pressupondo a lei ser razoável admitir que o interessado teve oportunidade de se aperceber da existência do motivo “sério e grave”, subjetivo ou objetivo, passível de gerar “desconfiança sobre a imparcialidade do juiz”.


Ou, como pode ler-se no ponto III do sumário do acórdão do STJ, de 24.01.2023, proferido no processo n.º 299/22.1YRPRT-A.S1-A, relatado pelo Conselheiro António Latas, “O art. 44.º do CPP não prevê que o requerimento possa ser tempestivamente apresentado depois da decisão final, como sucedeu no caso presente, pois o que se pretende é impedir que um juiz suspeito de parcialidade chegue a decidir o processo ou determine o curso ulterior do processo numa das suas fases fundamentais. Pretende-se, assim, com o estabelecido no art. 44.º do CPP sobre os prazos de dedução do incidente de recusa, não só evitar a utilização surpreendente e abusiva, conforme as conveniências do requerente da recusa, quando os factos são conhecidos anteriormente, como, fundamentalmente, uma “utilização inútil” nos casos em que a decisão final foi já proferida4 (negrito e sublinhado nossos).


Ora, no caso em apreço, o incidente de recusa suscitado revela-se indiscutivelmente inútil, considerando que os dois acórdãos prolatados pelo STJ, pese embora ainda não transitados, foram proferidos em data anterior à sua apresentação e se mostram insuscetíveis de qualquer modificação substancial, menos ainda de sentido prejudicial ao requerente e aos demais arguidos, e sempre na estrita medida do que porventura for decidido pelo Tribunal Constitucional.


Acresce que a intervenção da Juíza Conselheira recusada, cuja imparcialidade subjetiva não vem sequer questionada, seja quanto à admissão daqueles recursos, seja em sede de apreciação de reclamações e/ou arguição de nulidades daquelas decisões ou do procedimento não se afigura apta a pôr em crise a sua substância e sentido decisório, nem é espaço processual apropriado a equacionar a aplicação destes meios de garantia reforçada da imparcialidade do juiz, por muito relevantes que possam ser aqueles requerimentos e reclamações.


Isso mesmo, aliás, foi reconhecido e decidido no acórdão do STJ, de 23.01.2017, também citado pelo recusante no requerimento apresentado no dia 22.10.2023 (referência ......27), proferido no processo n.º 10/11.2JALRA.C1-A, relatado pelo Conselheiro Manuel Augusto Matos, suportado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 143/2004, de 10.03.2004, proferido no processo n.º 509/2003, relatado pela Conselheira Maria Fernanda Palma5.


Para melhor compreensão da posição assumida a propósito nesse aresto do Tribunal Constitucional, que culminou com a afirmação da conformidade constitucional do artigo 44º do CPP, transcreve-se parcialmente a respetiva fundamentação, a que se adere e dispensaria quaisquer outras considerações sobre o ponto em discussão:


«8. Sendo esses os parâmetros constitucionais, qual é a resposta no caso proposto? A questão é tão‑somente esta: se os factos que poderiam suscitar o risco de parcialidade são conhecidos apenas antes da decisão sobre uma arguição de nulidade suscitada, não será afectado o valor da imparcialidade, se já não puder ser conhecida a questão que motiva o pedido de recusa?


Como se viu, o Código de Processo Penal estabelece restrições à possibilidade de suscitar a recusa de juiz, estabelecendo momentos a partir dos quais a recusa não pode ser invocada – o início da audiência, o início da conferência e o início do debate instrutório – quanto a factos conhecidos anteriormente. Pretende‑se, assim, não só evitar a utilização surpreendente e abusiva, conforme as conveniências do demandante, da recusa como, fundamentalmente, uma “utilização inútil”.


Por outro lado, admite ainda o referido artigo 44º a recusa do juiz quanto a factos conhecidos após o início da audiência e do debate instrutório, quando tais factos tiverem sido conhecidos supervenientemente (após o início da audiência ou do debate instrutório). Também aí a “lógica” subjacente é a de se impedir que um juiz suspeito de parcialidade chegue a decidir o processo ou determine o curso ulterior do processo numa das suas fases fundamentais. Mas já o conhecimento de factos que justificariam a recusa posterior à sentença, mesmo que anterior ao trânsito em julgado, não é pertinente. Por já ter sido tomada a decisão, a recusa não seria já adequada a evitar o risco de parcialidade. No que se refere à fase de recurso, vigora a mesma “lógica”, sendo possível a recusa de juiz até ao início da conferência. Se os factos forem conhecidos posteriormente, já não se evitaria adequadamente o risco de uma decisão parcial. Estando‑se perante um tribunal colectivo, em que o juiz suspeito de parcialidade já poderia ter influenciado a decisão do recurso, entende‑se que o risco da parcialidade não será evitável com uma possível decisão favorável do pedido de recusa.


9. Tanto no que se refere às decisões de primeira instância como à decisão do recurso, a não admissão da arguição de nulidade poderá justificar‑se numa perspectiva de razão de ser da recusa, a qual consiste em evitar o risco da desconfiança dos intervenientes processuais e de todos em geral. Com efeito, tal risco já não será verdadeiramente evitável quando as decisões, embora não transitadas, já tiverem sido tomadas e tornadas públicas.


Se é certo que uma nulidade pode ser consequência da não imparcialidade anterior de uma decisão e que a decisão da própria arguição pode vir a convalidar a situação anterior, também é verdade que a arguição de nulidade não é meio adequado para reparar uma eventual anterior parcialidade da decisão, destinando‑se antes a corrigir vícios da decisão (por exemplo, quanto à sua fundamentação ou à sua articulação lógica ou ao conhecimento de questões). Assim, não só uma decisão de uma arguição de nulidade não é o meio típico de uma decisão parcial, como não pode, em si mesma, evitar ou sanar a eventual não imparcialidade anterior.


O sentido fundamental do impedimento do risco de não imparcialidade está ligado, indiscutivelmente, à decisão principal, ao “poder de decidir” do juiz suspeito e não tem de cobrir decisões sobre incidentes em que o poder jurisdicional do juiz fica esgotado quanto à matéria da causa (artigo 666º, nº 1, do Código de Processo Civil) – e em que, portanto, já não é possível impedir que uma decisão não imparcial do processo seja tomada.


Por outro lado, não deixa o Direito, também, de fornecer meios reparadores de uma situação efectiva de não imparcialidade que se venha a detectar tardiamente, em face dos prazos legais justificados pela natureza do instituto da recusa de juiz. Assim, tanto a revisão da sentença (artigo 449º do Código de Processo Penal), como, de algum modo, a responsabilidade penal e civil do juiz são formas de reparar os danos de uma decisão não imparcial de um juiz, impedindo que o valor constitucional em causa, agora na perspectiva da sua reparação e não já da sua prevenção, seja postergado».


Perante este esclarecido entendimento e adequada interpretação do regime legal sobre a recusa e a escusa, logo se percebe que toda a argumentação do recusante soçobra. De facto, independentemente de a Juíza Conselheira recusada só ter sido associada ao processo em momento posterior à prolação e publicação dos acórdãos do STJ, momento a partir do qual se tornou possível equacionar a sua recusa, a respetiva intervenção já não poderá traduzir-se em modificação substancial do decidido, como, aliás, sucederia com o juiz relator originário, o qual, como referido, podia até já ter tido intervenção processual não imparcial e, ainda assim, sem possibilidades de ser recusado para além daquele marco temporal, por manifesta inutilidade da recusa, cuja admissão consubstanciaria, assim, um ato proibido, nos termos do artigo 130º do CPC, aplicável ex vi do artigo 4º do CPP.


Por outro lado, no que concerne à possibilidade de o incidente ser usado por conveniência e segundo a “teoria dos jogos” que a lei pretende prevenir com a estipulação do referido limite temporal para a sua dedução, que o recusante, no referido requerimento posterior ao pedido, expressamente refere, para a afastar, é, no caso em apreço e ao contrário do ali sustentado, evidente, afigurando-se mesmo como situação exemplar dessa utilização conveniente e totalmente entorpecente da normal tramitação do processo.


É que os fundamentos do pedido, assentes essencialmente na ideia da postergação dos direitos de defesa do arguido, decorrentes da violação dos princípios constitucionais da independência dos tribunais e dos juízes, da proibição do desaforamento e do juiz natural ou legal, a vingar a tese do recusante, não impediriam apenas a Juíza Conselheira aqui recusada, mas sim qualquer outro juiz conselheiro que, segundo o mesmo procedimento aleatório, pudesse ter sido sorteado na redistribuição do dia 10 de outubro de 2023 ou em momento posterior.


Nessa tese e no limite, só o Juiz Conselheiro relator originário estaria em condições de poder continuar a desempenhar essa função, pelo que, enquanto se mantivesse a sua situação de baixa por doença, o processo não poderia ser movimentado.


Estaria, assim, descoberta a porta e o caminho para o protelamento indefinido da eficácia das decisões judiciais, paralisando por completo o andamento dos processos e, em consequência, a realização da justiça em tempo útil e comunitariamente aceitável, à custa, claro está, de princípios e direitos fundamentais de igual valor e consagração constitucional aos reclamados pelo recusante, designadamente o do pleno exercício da função jurisdicional, das tarefas fundamentais do Estado, do direito universal de acesso ao direito e de obtenção de uma decisão judicial em tempo razoável e mediante processo equitativo, tudo como decorre dos artigos 202º, n.ºs 1 e 2, 9º, al. b), e 18º da Constituição da República Portuguesa (CRP), também eles com força jurídica direta e necessariamente objeto de apreciação e consideração concreta por todos os tribunais, nos termos dos seus artigos 18º e 204ª.


Sendo assim, se porventura ocorresse conflito entre tais princípios e direitos fundamentais e aqueles convocados pelo recusante, haveria necessidade de, segundo o critério doutrinário da “concordância prática”, harmonizá-los de maneira a que nenhum deles se sobrepusesse absolutamente aos outros, restringindo cada um deles na medida do estritamente necessário para permitir a realização dos demais.


Ou seja, nenhum desses princípios e direitos fundamentais é absoluto e prevalece sobre os demais, como evidencia, de resto, o próprio incidente de recusa relativamente aos referidos princípios e direitos invocados pelo recusante, nomeadamente quanto ao do juiz natural ou legal, que, em homenagem ao valor da imparcialidade do juiz, permite afastar um concreto juiz do processo que lhe havia sido aleatoriamente distribuído.


Em suma, como se afirmou no citado acórdão do TC, a restrição temporal estabelecida no artigo 44º, n.º 1, do CPP, mediante a fixação de um momento processual até ao qual a recusa tem de ser desencadeada, não é materialmente inconstitucional, por si mesma ou conjugada com os artigos 43º, n.º 1, e 103º do CPP, na interpretação aplicativa aqui sufragada.


Assim sendo, o pedido de recusa aqui em apreço é extemporâneo e, como tal, deve ser rejeitado, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo arguido requerente.


III. Decisão


Em face do exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por intempestividade, o pedido de recusa formulado pelo requerente AA


Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cfr. artigos 513º e 524º do CPP e 1º, 2º e 7º, n.ºs 1 e 4, do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).


Lisboa, d. s. certificada


(Processado e revisto pelo relator)


João Rato (Relator)


Jorge Gonçalves (1º Adjunto)


Albertina Pereira (2º Adjunto)


_______________________________________________

1. A data indicada é a que se mostra certificada pela plataforma Citius, através da qual o despacho foi inserido no processo, pelo que resulta de manifesto e inócuo lapso de escrita a data de 7.08.2023 aposta, in fine, pelo Juiz Conselheiro subscritor.↩︎

2. Cfr. anotações ao artigo 43º do CPP, in “Código de Processo Penal Comentado” de António Henriques Gaspar, et al., 3ª Edição Revista, Almedina, 2021.↩︎

3. Anotações ao artigo 44º, in ob. e loc. citados, que aqui se acompanha de perto.↩︎

4. Disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, e também no “Sumário dos acórdãos das Secções Criminais”, n.º 303 de Janeiro de 2023, disponível no sítio https://www.stj.pt/.↩︎

5. Disponíveis nos sítios https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/ e https://www.tribunalconstitucional.pt/, respetivamente.↩︎