PEAP
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIÁRIO
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
EQUIDADE
Sumário

I.–Sendo o Administrador Judicial Provisório nomeado no âmbito de um Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP), tem o mesmo direito a receber remuneração fixa (no montante de 2.000€) e remuneração variável, sendo esta calculada nos termos do artigo 23.º, n.º 4, al. a), e n.º 5 do EAJ.

II.–A remuneração variável corresponderá a 10% do resultado da recuperação, entendendo-se este como sendo a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e aquele que resulta da execução do plano de pagamento aprovado (diferença essa que equivale ao montante dos créditos perdoados).

III.–Com a actual redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, mostra-se processualmente inadmissível fixar tal remuneração com recurso a juízos de equidade.

Texto Integral

Acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.


IRELATÓRIO


Júlio … veio requerer a abertura de PEAP (processo especial para acordo de pagamento) – artigo 222.º-A do CIRE -, pretensão que foi deferida por despacho proferido em 20/01/2023.
Por tal despacho foi nomeado como AJP (administrador judicial provisório) o Sr. Dr. E … – artigo 222.º-C, n.º 4 do CIRE -, tendo sido, desde logo, fixada a remuneração fixa de 2.000€, acrescida de IVA à taxa legal de 22%, no valor global de 2.440€ (ref.ª/citius 52960484).

Em 13/02/2023, foi apresentada a lista provisória de credores (artigo 222.º-D do CIRE), a saber:


Mais tendo sido junto em anexo:



À lista foi apresentada impugnação pelo devedor (1) (ref.ª/citius 5116013), a qual foi decidida pelo tribunal recorrido em 12/03/2023 (ref.ª/citius 53244563), nos seguintes termos:
a)- “(…) o Tribunal decide julgar a impugnação deduzida por JÚLIO … procedente e, por conseguinte, excluir da lista provisório de créditos o CRÉDITO COMUM reconhecido a favor da sociedade CRIA OPÇÕES – ARQUITECTURA E ENGENHARIA LDA., no valor global de 118.122,45€”;
b)- “(…) o Tribunal decide julgar a impugnação deduzida por JÚLIO … parcialmente procedente e, por conseguinte, declarar que o INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL DA MADEIRA, IP – RAM é titular de um CRÉDITO COMUM, no valor global de 153.929,40€ (a saber: 100.000,18€ + 53.929,22€)”;
c)- “(…) o Tribunal decide julgar a impugnação deduzida por JÚLIO … parcialmente procedente e, por conseguinte: 1. Declarar que a sociedade SCALABIS - STC, S.A. é titular de um CRÉDITO COMUM, no valor global de 105.288,79€; 2. Excluir da lista provisório de créditos, o CRÉDITO COMUM reconhecido a favor da sociedade SCALABIS - STC, S.A., no valor global de 18.950,73€.”

De tal decisão recorreu a credora Cria Opções- Arquitectura e Engenharia Lda., recurso que ainda se mostra pendente (cfr. apenso A).

O prazo para negociações foi prorrogado por um mês, nos termos previstos pelo artigo 222.º-D, n.º 5 do CIRE – cfr. requerimento do AJP de 20/04/2023 (ao qual foi junto o acordo subscrito pelo mesmo e pelo devedor) e despacho do dia 10/05/2023.

O plano de acordo de pagamento foi apresentado pelo devedor em 19/05/2023, do mesmo constando:
(…) 3. MEDIDAS PROPOSTAS PARA O PAGAMENTO
No entendimento do Requerente, a sua recuperação passará não só pelo perdão de juros de mora vencidos referente aos seus créditos e outras despesas conexas com os incumprimentos, mas também pela aceitação dos créditos em dois grandes núcleos: os superiores a €150 000,00 e os inferiores a este valor, os primeiros pagos em plano prestacional mensal e os demais em pagamento por prestação unitária. // Assim
1.Para o Instituto da Segurança Social e a Autoridade Tributária // É proposto o pagamento em regime prestacional, nos termos do artigo 196.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ou seja, em prestações são mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao terminus do prazo previsto no nº 5 do artigo 222-D do CIRE.
2.Para os demais Créditos Comuns // Pagamento em regime de prestação única até ao termo do mês seguinte ao transito em julgado da decisão que vier a ser homologada. // O valor a ser pagado comportará perdão total de juros e despesas de qualquer espécie e um perdão de capital de 90% (noventa por cento), pagando assim o Devedor 10% (dez por cento) do capital apurado em dívida numa única prestação. // O pagamento dos créditos comuns será feito, em parte, pelo valor já depositado à ordem do processo executivo 6638/16.7T8FNC que excede os €9 000,00 (nove mil euros).
3.Crédito privilegiado // O pagamento da dívida será feita sem qualquer alteração das condições atualmente em cumprimento, ou seja em prestações mensais até termo.
4. NOTAS FINAIS
O plano apresentado resulta na afetação quase total do rendimento mensal do devedor nos próximos anos, pagando uma parte a pronto e as dívidas de maior envergadura em plano prestacional, garantindo que todos os credores recebem o máximo possível no menor decurso de tempo possível. // Na ausência do apoio dos credores ao presente plano de recuperação, torna-se como certa a declaração de insolvência do devedor que seria menos vantajoso para os seus credores, pois só o credor garantido receberia parte do seu crédito. // Com a aprovação do plano proposto, o devedor terá condições de continuar a cumprir com as suas obrigações perante os seus credores, bem como salvaguardar a sua subsistência. (…)” – a mesma proposta foi depois junta pelo AJP em 24/05/2023.
E, em 25/05/2023, o devedor juntou novamente o plano proposto, desta feita munido de uma errata para “melhor descrição” do mesmo quanto aos créditos do Estado (Fisco e Segurança Social). A aludida correcção consistiu no seguinte aditamento:
“Isto é: em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se o pagamento da primeira prestação nos termos do despacho de admissão do plano prestacional, plano esse que será garantido por hipoteca constituída sob o imóvel do devedor. Com a aprovação do PEAP/plano de pagamento prestacional, os processos executivos em curso na secção de processo executivo serão suspensos e mantêm-se suspensos após aprovação e homologação do Plano de Revitalização até integral cumprimento do plano de pagamentos.”

Concluídas as negociações, em 06/06/2023 veio o AJP juntar aos autos a acta de abertura dos votos recepcionados, o plano de pagamento e os documentos com o resultado da votação – artigo 222.º-F, n.º 4 do CIRE.
Consta da acta ter sido aprovado o plano de pagamento apresentado – considerando um universo de oito credores (no qual se incluiu o voto da credora Cria Opções – Arquitectura e Engenharia, Lda., cujo crédito foi excluído da lista) e um total de créditos que ascende a 662.747,19€ (excluído o crédito da mesma credora), obtendo-se um quorum de 74,90%.
Mais se consignou na referida acta:
“Confirmado o quorum (considerando a exclusão do credor "Cria Opções — Arquitetura e Engenharia, Lda."), passou-se à contagem dos votos expressos, que ditam o seguinte resultado: // • Votos favoráveis: 2 credor detentor de créditos no valor de 455.161,63 euros; // • Votos contra: 5 credores detentores de créditos no valor de 207.585,56 euros; e // • Abstenções: não se verificaram abstenções. // Considerando que não se verificaram abstenções e que as mesmas apenas contariam para a formação do quorum, o valor de créditos a considerar para contagem dos 2/3 de votos emitidos para aprovação do plano seria de 441.831,46 euros e o valor de 50% dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto contidos na lista de créditos na que se referem os nºs 3 e 4 do artº 222º-D do CIRE, é de 442.435,27 euros. Assim, considerando que os votos favoráveis foram de 455.161,63 euros, verifica-se que o plano de recuperação submetido aos credores é aprovado pelos mesmos, ou seja, verifica-se a aprovação do plano negociado.
Verificando-se que está pendente o recurso do credor "Cria Opções — Arquitetura e Engenharia, Lda." e que este apresentou voto contra a aprovação do plano, a aprovação definitiva está assim pendente do resultado do recurso, dado que o crédito que eventualmente possa vira a ser reconhecido, com direito de voto, pode inviabilizar a aprovação do plano, por não se verificarem as condições previstas no nº 3 do art.º 222º-F do CIRE.”
Igualmente foi anexado o seguinte quadro:


Em 18/06/2023, foi proferida sentença homologatória do plano.(2)

Em 21/06/2023, pelo AJP foi apresentado requerimento referente à respectiva remuneração, solicitando o pagamento das seguintes verbas: a)- Remuneração fixa de 2.000€ (nº 1 do artigo 23º do EAJ); b)- Remuneração variável de 29.556,56€ (al. a) do n.º 4 do artigo 23º do EAJ); e c)- Majoração em função do grau de satisfação dos créditos de 19.623,23€ (n.º 7 do artigo 23.º do EAJ), num total de 51.179,79€ (sem IVA).
Anexou, para o efeito, o seguinte quadro:


Cumprido o contraditório com relação ao devedor, veio o mesmo apresentar requerimento em 07/07/2023, no qual concluiu: “(…) 9. Impõe-se que seja equitativamente ajustada pelo Douto Tribunal a remuneração variável do ilustre AJP; // 10. O Rte sugere que a remuneração variável a atribuir ao ilustre AJP não ultrapasse os €2 000,00 (dois mil euros), por este ver um valor dentro do espirito remuneratório destes processos, ajustado ao trabalho efetivamente realizado e tempo dedicado e dentro das possibilidades do Devedor.

Em 13/07/2023, o tribunal a quo fixou a remuneração devida ao AJP nos seguintes termos:
1.- Declarar que o Sr. Administrador Judicial Provisório é titular de um crédito, a título de remuneração fixa, no montante de 2.000,00€, acrescido de IVA à taxa legal de 22%, no valor de 440,00€, perfazendo o mesmo a quantia global de 2.440,00€;
2.- Declarar que o Sr. Administrador Judicial Provisório é titular de um crédito, a título de remuneração variável, no montante de 18.737,10€, acrescido de IVA à taxa legal de 22%, no valor de 4.122,16€, perfazendo o mesmo a quantia global de 22.859,23€;
3.- Consignar que a primeira prestação no valor de 9.368,55€, acrescida de IVA à taxa legal de 22%, no valor de 2.061,08€ (valor global: 11.429,63€), se venceu no momento da aprovação do acordo de pagamento;
4.- Consignar que a segunda prestação no valor de 9.368,55€, acrescida de IVA à taxa legal de 22%, no valor de 2.061,08€ (valor global: 11.429,63€), se vencerá dois anos após a aprovação do referido acordo de pagamento (a saber: 19 de Junho de 2025);
5.- Consignar que caso o devedor deixe de cumprir o acordo de pagamento aprovado, o valor da segunda prestação é reduzido para um quinto (a saber: 2.285,93€).”

Inconformado com este despacho, no segmento pelo qual foi fixada a remuneração variável do AJP, do mesmo veio o devedor interpor RECURSO, tendo formulado as seguintes conclusões.
1.- Vem o presente recurso interposto da decisão de 13.07.2023 sob a ref. 53859111 onde o tribunal veio:
2.- Declarar que o Sr. Administrador Judicial Provisório é titular de um crédito, a título de remuneração variável, no montante de 18.737,10€, acrescido de IVA à taxa legal de 22%, no valor de 4.122,16€, perfazendo o mesmo a quantia global de 22.859,23€; // 3.- Consignar que a primeira prestaca̧Þo no valor de 9.368,55€, acrescida de IVA à taxa legal de 22%, no valor de 2.061,08€ (valor global: 11.429,63€), se venceu no momento da aprovação do acordo de pagamento; // 4.- Consignar que a segunda prestação no valor de 9.368,55€, acrescida de IVA à taxa legal de 22%, no valor de 2.061,08€ (valor global: 11.429,63€), se venceria dois anos após a aprovação do referido acordo de pagamento (a saber: 19 de Junho de 2025); // 5.- Consignar que caso o devedor deixe de cumprir o acordo de pagamento aprovado, o valor da segunda prestação aí reduzido para um quinto (a saber: 2.285,93€).
Já que,
2.- O Apelante não se conforma com aquela decisão, por entender que o Tribunal a quo proferiu decisão desprovida de suporte legislativo, doutrinal ou jurisprudencial gerando assim um despacho alheio das especificidades dos autos e cuja existência tem a virtualidade de frustra por completo o acesso futuro de devedores ao procedimento especial de acordo de pagamento (PEAP).
3.- A questão central desta Apelação é como determinar a remuneração variável do AJP no âmbito do PEAP.
4.- A decisão em crise entendeu ser de estender ao PEAP a integração interpretativa da lei que a jurisprudência recente elaborou para processos especiais de revitalização (PER), visto que tanto no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o processo n.º 26107/20.0T8LSB.L1-1, datado de 24 de Janeiro de 2023, como no Acórdão da Relação de Guimarães datado de 17 de Novembro de 2022, para o processo n.º 3520/21.3T8GMR.G1, citados pelo despacho em crise tem como devedor uma sociedade e são ambos PER.
5.- O Apelante acredita ser inconcebível a equipação do PER ao PEAP para este efeito, quando as diferenças entre os dois processos são tantas e tão profundas (acórdão do STJ para o processo 1820/17.2T8CHV.G1.S1, de 10.09.2019):
II.- O PER, como previsto no art.17º-A n.1do CIRE, visa a recuperação e revitalização da atividade económica do devedor, tendo também subjacente a tutela do interesse geral da economia na manutenção das atividades económicas (como se extrai do Preâmbulo do DL n.79/2017), enquanto o PEAP, como estabelece o art.222º-A, n.1, não tem como finalidade a viabilização da atividade económica do devedor, mas sim permitir-lhe estabelecer um acordo de pagamento dos seus débitos.
6.- O Tribunal a quo veio determinar que a remuneração do AJP seria fixada em 10% do valor de créditos perdoados (que foram de €181.371,01), mas sem fundamentar porque entende que este perdão constitui a situação liquida do devedor nos 30 dias após a homologação no âmbito do PAEP.
7.- A lei, de facto, não diz o que deve entender-se por situação líquida, muito menos o faz para o processo especial de acordo de pagamento, têm por isso os operadores da justiça de estabelecerem o sentido e alcance do que seja a situação liquida de um devedor sem ctividade empresarial.
8.- Além da natureza especial do devedor no PEAP, existem duas outras notórias diferenças entre processos: a complexidade e a intervenção efetiva do AJP.
9.- O PEAP distingue-se do PER ou do plano de recuperação de insolventes por se assumirem incomensuravelmente mais simples, já que a vida dos primeiros devedores é também mais simplificada do que aquela que resulta da prossecução de uma atividade empresarial.
10.- Já quanto à tramitação, no âmbito do PEAP é o devedor que convida os seus credores para a negociação por contacto direto, procede à negociação e à elaboração do plano sob fiscalização do AJP (nº 1 do art. 222º-D do CIRE).
11.- A redação da lei é clara quando estabelece o papel do AJP como arbitro ou fiscalizador (nº 6 e 8 do art. 222º-D do CIRE), não como negociador e promotor de um plano de recuperação como nos PER ou nos planos de recuperação em processo de insolvência.
12.- Na realidade é abundante a jurisprudência que defende que na ausência de legislação clara e capaz, a remuneração do AJP deve ser fixada em função do resultado da recuperação e com recurso à equidade, (acórdão do Tribunal Relação de Lisboa de 13.11.2018 para o processo 5337/16.4T8VIS-B.C1 e do Tribunal Relação de Évora de 25.01.2018 para o processo 711/15.6T8OLH.E1, ambos processos especiais de recuperação).
13.- Pelo que defende o Apelante ser esta a melhor solução para os presentes autos, uma remuneração do AJP fixada em função do resultado da recuperação e com recurso à equidade, que no âmbito dos presentes autos e atendida a legislação conhecida (e alguma já citada) não deverá exceder os €2 000,00 (dois mil euros)
Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, em consequência, ser revogada a decisão que fixou a remuneração variável do Administrador Judicial Provisório e substituída por outra da lavra deste tribunal que fixe a remuneração variável do Administrador Judicial Provisório em montante mais reduzido e de acordo com a melhor fundamentação e arbítrio.
Assim, será feita, como sempre, inteira JUSTIÇA!”

Não consta que tenha sido apresentada Resposta.

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O recurso foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.

Foram colhidos os vistos.

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II.OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º do CPC), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, nº 2, ex vi do artigo 663.º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
No caso, importa decidir a fórmula de cálculo da remuneração do AJP no âmbito de um PEAP, nomeadamente se pode a mesma ser fixada com recurso a um juízo de equidade.

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III.FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para além dos factos e ocorrências processuais já descritos no relatório que antecede, no despacho recorrido fixou-se a seguinte factualidade:
1. Por despacho datado de 20 de Janeiro de 2023, o Tribunal decidiu nomear como Administrador Judicial Provisório, o Sr. Dr. E …;
2. No dia 13 de Fevereiro de 2023, o Sr. Administrador Judicial Provisório juntou aos autos a sua “lista provisória de créditos”, em sede da qual reconheceu créditos referentes a 9 (nove) credores, no valor global de 1.025.450,54€;
3. A lista referida em 2. foi publicada no portal CITIUS no dia 13 de Fevereiro de 2023;
4. A lista referida em 2. foi objecto de impugnação;
5. Por despacho datado de 12 de Março de 2023, o Tribunal proferiu decisão sobre as impugnações deduzidas;
6. Em consonância com a decisão referida em 5. foram reconhecidos no âmbito da “lista definitiva de créditos” os seguintes:



7.O prazo de dois meses para conclusão das negociações foi prorrogado por um mês, mediante acordo prévio escrito entre administrador judicial provisório nomeado e o devedor;
8.A junção do acordo de pagamento foi publicada no portal CITIUS através de anúncio datado de 19 de Maio de 2023;
9.O acordo de pagamento prevê as seguintes medidas:
a)- Créditos do INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL e a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA – pagamento integral em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas;
b)- Créditos do BANCO SANTANDER TOTTA, S.A. – pagamento integral segundo as cláusulas contratuais em vigor;
c)- CRÉDITOS COMUNS - pagamento em regime de prestação única até ao termo do mês seguinte ao transito em julgado da decisão que vier a ser homologada. O valor a ser pago comportará perdão total de juros e despesas de qualquer espécie e um perdão de capital de 90%, pagando assim ao devedor 10% do capital em dívida numa única prestação;
10.Aplicando a cláusula referida no ponto 9., alínea c) supra aos créditos comuns abrangidos, que já foram reconhecidos verifica-se o seguinte:


FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Como resulta do relatório, os autos a que se reporta o presente recurso respeitam a um PEAP, processo instituído pelo Decreto-Lei n.º 79/2017, de 30/06, que levou à alteração do CIRE por aditamento dos artigos 222.º-A e ss.
Trata-se de um regime especialmente direccionado para pessoas singulares que se encontrem em comprovada situação económica difícil (ou em situação de insolvência meramente iminente), permitindo que as mesmas estabeleçam negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento (o qual assenta na reestruturação do passivo existente, com vista, em última escala, a evitar a declaração de insolvência) – cfr. artigos 222.º-A, n.º 1 e 222.º-B do CIRE.
Alcançado esse acordo e transcrito o mesmo para o plano de pagamento – o qual poderá prever reduções de prestações mensais, moratórias, redução ou eliminação de juros ou, até, o perdão de parte do capital em dívida -, terá o mesmo que ser objecto de aprovação pelos credores e de posterior homologação pelo tribunal (como sucedeu no caso)– cfr. artigo 222.º-F do CIRE.

Prescreve o artigo 222.º-C, n.º 6 do CIRE, na redacção conferida pela Lei n.º 9/2022 de 11/04, que a remuneração do AJP “é fixada pelo juiz, na própria decisão de nomeação ou posteriormente, e constitui, juntamente com as despesas em que aquele incorra no exercício das suas funções, um encargo compreendido nas custas do processo, que é suportado pelo devedor, sendo o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça responsável pelo seu pagamento apenas no caso de o devedor beneficiar de proteção jurídica na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo”.

Já o artigo 23.º do EAJ, igualmente na redacção conferida pela Lei n.º 9/2022, dispõe:
1- O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro). 2- Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto. 3- Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º. 4- Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes: a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5; b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6. 5- Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano. 6- Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência. 7- O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 / prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles. 8- Se, por aplicação do disposto nos números anteriores, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue no exercício das funções. 9- À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10 000 por cada um dos devedores do mesmo grupo. 10- A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro). 11- No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.”

No despacho recorrido, reportando-se ao estatuído na al. a) do n.º 4 do artigo 23.º, escreveu-se:
“(…) considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano (…). Assim, o sentido a dar à expressão “resultado da recuperação”, deverá ter em conta a finalidade principal do processo especial de revitalização e do processo especial para acordo de pagamento que é a da recuperação da empresa e do devedor pessoa singular, (após renegociação do passivo), no pressuposto da sua viabilidade económico-financeira. (…) a interpretação daquela expressão legal (“resultado da recuperação”) que melhor previne as finalidades do processo especial de revitalização e do processo especial para acordo de pagamento é a que foi corroborada pelo recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 17 de Novembro 2022, “segundo a qual o montante do valor da recuperação, para efeitos do cálculo da remuneração variável, é o valor do perdão dos créditos. É sobre esta diferença que há de ser buscado o prémio devido ao senhor administrador judicial, traduzido na atribuição da remuneração variável. Quanto maior for o perdão das dívidas (e consequentemente o benefício da recuperanda), maior será o valor da remuneração variável.”
Em suma: para efeitos do cálculo da remuneração variável do administrador judicial provisório, o montante do valor da recuperação, é o valor do perdão dos créditos.”

Já no que concerne à majoração prevista no n.º 7 do mesmo artigo 23.º, escreveu-se: “A referência ao n.º 5 leva-nos a concluir que a dita majoração está, sem dúvidas, prevista tanto para a liquidação do activo, como para a recuperação de empresas e pessoas singulares”. E, citando o decidido pelo acórdão desta Relação de 24/01/2023 (Proc. n.º 26107/20.0T8LSB.L1-1), acrescenta: “pese embora a majoração do n.º 7 do artigo 23.º se aplique, em regra, apenas nos casos em que exista liquidação do activo, no que respeita aos planos de recuperação aprovados e homologados, será possível essa majoração, mas apenas se e quando o próprio plano preveja que parte dos créditos sejam satisfeitos por via de liquidação de bens, designadamente nos casos previstos nos artigos 195.º, n.º 2, alínea c) e 196.º, n.º 1, alínea e) do CIRE. // A referência na norma a “créditos satisfeitos” e o facto de nela se prever o pagamento do valor da majoração antes do pagamento dos credores, leva-nos a concluir que apenas será aplicável quando os credores tenham valores a receber de imediato por via de qualquer liquidação. // Ora, no âmbito da recuperação, os créditos serão satisfeitos à medida que se forem vencendo de acordo com o previsto no plano, sendo certo que a remuneração variável só se vencerá após dois anos em função do cumprimento do plano. Por isso, no que respeita à recuperação, não existirão créditos satisfeitos e nem o pagamento da remuneração será possível conforme previsto no n.º 7 do artigo 23.º”.

Concluindo depois que “In casu, foram perdoados créditos comuns no valor global de 181.371,01€ (a saber: 5.440,06€ + 181.930,95€) (cfr. FACTO 10.). // Conclui-se, assim, que a remuneração variável do Sr. Administrador Judicial Provisório perfaz a quantia de 18.737,10€ (a saber: 10% de 181.371,01€), acrescida de IVA à taxa legal aplicável de 22%, no valor de 4.122,16€, no valor global de 22.859,26€.”, bem como que a remuneração variável alcançada não será majorada nos termos do artigo 23.º, n.º 7, por o acordo de pagamento não prever que os créditos reconhecidos sejam satisfeitos por via da liquidação do activo do devedor.

Desde já se dirá inexistir qualquer dúvida de, ao presente caso, ser aplicável a redacção do artigo 23.º do EAJ que anteriormente se transcreveu, desde logo por ter sido a remuneração do AJP fixada em data posterior à da entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022 (a própria sentença homologatória do plano foi já proferida ao abrigo do novo regime), lei esta que dispôs directamente sobre o conteúdo da relação jurídica da administração judicial, dessa forma abrangendo as relações já constituídas e que subsistam à data da sua entrada em vigor, o que ocorreu em 11/04/2022 (cfr. artigo 12.º da Lei n.º 9/2022).

Aliás, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 10.º da Lei n.º 9/2022 (regime transitório), “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor” - aludindo o seu n.º 2 aos artigos 17.º-C a 17.º-F, 17.º-I do CIRE (PER) e ao artigo 18.º do CIRE, e os n.ºs 3 e 4 a matéria referente à exoneração do passivo restante. (3)
Como se defendeu no acórdão desta Secção de 20/09/2022 (4), pese embora aludindo a um processo de insolvência, “(…), a fixação da remuneração variável é, claramente, um ato processual e não o efeito de um (ou mais) atos processuais. Remunera-se o administrador da insolvência pelas funções exercidas, compreendendo todos os atos praticados no exercício das suas funções. O direito à remuneração variável não nasce com a prática de atos processuais concretos, mas sim com a nomeação e exercício de funções, ao longo de todo o processo. Logo, não pode considerar-se a fixação da remuneração variável como um efeito de atos processuais anteriores, constituindo, antes, um ato processual, necessário para chegar ao apuro do montante final a distribuir pelos credores e ao fim do processo, quer em sentido de cumprimento das finalidades do processo, quer em sentido estrito como ato a praticar necessariamente antes do rateio final. Assim, sem qualquer dúvida, a regra do art. 10º nº1 da Lei nº 9/2022 é aplicável a esta previsão concreta e, desde que o ato de fixação da remuneração seja praticado após a entrada em vigor da lei – 11 de abril de 2022, nos termos do seu artigo 12º -, como o presente o foi, deve ser efetuado o cálculo segundo as regras em vigor ao tempo.”

E incumbindo obrigatoriamente ao tribunal fixar a remuneração do AJP sempre terá que o fazer segundo as regras previamente estabelecidas para tanto (designadamente no previsto no EAJ quanto à sua fixação, pagamento e limites).
Nessa medida, ao contrário do defendido e pretendido pelo apelante, actualmente, mostra-se afastada a possibilidade de a remuneração a atribuir ao AJP ser fixada com recurso a juízos de equidade, sendo agora irrelevante, para esse efeito, o grau de complexidade do processo, bem como quais os actos que por aquele tenham sido praticados e porque período temporal o foram - como vinha sucedendo anteriormente.

Quanto ao modo pelo qual foi a remuneração fixada, não se vislumbram razões para discordar do entendimento defendido pelo tribunal a quo, o qual foi já acolhido no acórdão desta Relação de 11/04/2023 (Proc. n.º 498/21.3T8AGH-A.L1, da mesma relatora, mas com distinto colectivo, o qual, ao que se julga, não se mostra publicado).
Como neste aresto se deixou consignado, para interpretação da expressão resultado da recuperação não se poderá deixar de atender à finalidade visada pelo PEAP, qual seja a de permitir a recuperação das pessoas singulares através da aprovação de um acordo de pagamento, que preveja uma reestruturação do seu passivo, evitando-se assim, a sua insolvência pessoal (objectivo que apenas será possível mediante a aprovação de um plano de pagamento que viabilize essa mesma recuperação).
Partindo-se de um juízo de prognose quanto à viabilidade económica do devedor, define-se como e quando ocorrerão os pagamentos (o que será definido no âmbito das negociações encetadas), com o inerente sacrifício/restrição dos interesses dos credores. Claro está que a recuperação será tanto maior quanto maiores forem as restrições impostas aos créditos existentes (e descritos no plano).
Relevante será também realçar que a própria Lei n.º 9/2022 – que aprova medidas legislativas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento -, visou transpor para a ordem jurídica interna a Directiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/06/2019, a qual versa precisamente sobre os “regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas” (artigo 1.º, n.º 2).
Sendo facto inquestionável que a ideia predominante é a recuperação do devedor, com o inerente perdão das respectivas dívidas, não será de aceitar que tal objectivo possa ser inviabilizado com o encargo acrescido referente ao pagamento da remuneração do AJP. Esse não foi, de todo, o espírito do legislador.
A ser assim, julgamos que a interpretação a dar à leitura conjugada dos n.ºs 4 e 5 do artigo 23.º só poderá ser no sentido de a remuneração do AJP corresponder a 10% da situação líquida do devedor, considerando a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e aquele que, a esse título, resulta da execução do plano que tiver sido aprovado e homologado (outra leitura tornaria desprovido de significado os segmentos “em função do resultado da recuperação” – n.º 4 – e “valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer” – n.º 5).
A remuneração variável a fixar dependerá, pois, da medida da recuperação do devedor (tanto assim é que, sendo esta componente da remuneração liquidada em dois momentos diferentes, o pagamento integral da segunda prestação dependerá do regular cumprimento do plano pelo devedor – cfr. n.º 3 e 4 do artigo 29.º do EAJ). Ou, por outras palavras, tal remuneração será calculada tendo por base a redução dos créditos que resulte do plano de pagamento.
A não se entender assim, poder-se-ia, reitera-se, inviabilizar a própria recuperação do devedor (como sucederia nos casos em que o mesmo tivesse de suportar, a título de remuneração variável, uma quantia de tal modo elevada que, ao invés de lhe permitir restabelecer a sua situação económico-financeira, contribuiria para o seu agravamento).
Será, depois, em função dessa recuperação (nos moldes acabados de expor) que a remuneração do AJP deverá ser fixada.
Nesse sentido, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 17/11/2022 (5), em cujo sumário se consignou: “(…) o montante do valor da recuperação, para efeitos do cálculo da remuneração variável, é o valor do perdão dos créditos. 3. A situação líquida do devedor terá por medida a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor de tais créditos resultantes da execução do plano de recuperação, sem que a referência à situação líquida se reporte a qualquer conceito contabilístico ou se procure através dele refletir a diferença entre o ativo e o passivo. (…)”, mais acrescentando no seu texto ser no perdão dos créditos que “há de ser buscado o prémio devido ao senhor administrador judicial, traduzido na atribuição da remuneração variável. Quanto maior for o perdão das dívidas (e consequentemente o benefício da recuperanda), maior será o valor da remuneração variável.” (sublinhado nosso).(6)
Também neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 25/05/2023 (7), em cujo sumário se pode ler: “I– A situação líquida a que se refere a alínea a) do n.º 4 do art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial, é a diferença entre o montante dos créditos reclamados (cfr. art.º 222º D n.º 2 do CIRE) e o montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano. II– A majoração a que se refere o n.º 7 do art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial, apenas será aplicado no PEAP (…) se e quando o Plano de Pagamento (…) previr que parte dos créditos sejam imediatamente satisfeitos por via de liquidação de bens. (..)”.
Defende-se, no entanto, neste último acórdão que, no PEAP, “porque o seu âmbito subjectivo não é a empresa, mas o devedor que não seja empresa, em essência, pessoas singulares, a filosofia deste instrumento jurídico não é a recuperação, que não é aplicável. (…) O PEAP, em consonância com o seu âmbito subjectivo, não exige que o devedor seja susceptível de recuperação, como também não exige que o acordo de pagamento seja conducente à revitalização. Assim, refere Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 319: “Associar-se, no Direito da insolvência, a recuperação a pessoas singulares ou humanas quale tale não seria – não é – natural. Em matérias como esta, com relevo jurídico-económico, a função de recuperação pressupõe a existência, não de uma actividade humana qualquer, mas de uma actividade económica, em que a prática continua e organizada de determinados actos pelos sujeitos (a empresa) se autonomiza e [os] transcende.” E mais adiante (pág. 320) conclui: “A empresa e só a empresa é, portanto, susceptível de recuperação.” A filosofia subjacente ao PEAP é tentar evitar ou prevenir que sobrevenha a insolvência (…) com todas as consequências daí advenientes (…) o objectivo de evitar ou prevenir que sobrevenha a insolvência será tanto mais facilmente alcançado, quando maior for a reconfiguração do passivo conseguida no acordo de pagamento, ou seja, quanto menor for o capital e juros que o devedor continue a pagar, face ao que foi objecto de reclamação.”
E, continua, “É manifesto que não está em causa no PEAP a liquidação da massa insolvente. (…) Analisando de forma conjugada, por um lado, o corpo do n.º 4 e o n.º 5 e, por outro lado, a alínea b) n.º 4, debatemo-nos com dois conceitos que são a chave da fixação da remuneração variável: 1) “resultado da recuperação”; 2) “situação líquida”. O “resultado da recuperação” tem definição legal: “o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano”. O legislador, ao utilizar e definir o conceito de “resultado da recuperação” - nos referidos termos e no conjunto normativo constituído pelos n.ºs 4 e 5, os quais não podem ser dissociados -, tornou-o referencial e condição da interpretação da expressão “situação líquida”. Dito de outra forma: a definição do que seja “situação líquida” está subordinada ao “resultado da recuperação”. (…) Assim, não se vislumbra que a “situação líquida” seja a diferença entre activo e passivo, pois o “resultado da recuperação” não tem qualquer relação ou correspondência com tal diferença, ou seja, esta em nada se projecta ou interfere na recuperação.”, concluindo que a referência à situação líquida não se reporta a qualquer conceito contabilístico ou que, através dele, se procure reflectir a diferença entre o activo e o passivo (conceito unicamente aplicável às sociedades comerciais), antes se devendo entender que o valor correspondente a 10% da situação líquida do devedor terá por medida precisamente a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor de tais créditos resultante da execução do plano de recuperação, sendo esta a interpretação que se coaduna com o disposto no artigo 29.º, n.ºs 3 e 4 do EAJ.
Independentemente da divergência de estarmos ou não em face de uma recuperação do devedor, o certo é que o objectivo do PEAP é o de evitar ou prevenir que sobrevenha a insolvência, e tal objectivo será necessariamente mais fácil de atingir através da diminuição do passivo conseguida no acordo de pagamento, sendo esse o critério a ter subjacente na interpretação da al. a) do n.º 4 e n.º 5 do artigo 23.º.

Inexistem, pois, razões para censurar o decidido pela 1.ª instância.

Em face de tudo o que se deixou exposto, julga-se o presente recurso improcedente, mantendo-se o despacho recorrido que fixou a remuneração devida ao Sr. AJP – sem prejuízo de tal remuneração poder ter de vir a ser reapreciada, caso o recurso pendente (apenso A) venha a obter provimento.

IVDECISÃO

Perante o exposto, acordam as Juízas desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pelo apelante – artigo 527.º do CPC.


Lisboa, 28 de Novembro de 2023 (acórdão assinado digitalmente)



Renata Linhares de Castro
Teresa de Sousa Henriques
Amélia Sofia Rebelo (vencida nos termos da declaração junta)


Voto de vencida:
Voto vencida por discordar da posição que fez vencimento na definição do elemento normativo ‘situação líquida’ para efeito de cálculo da remuneração variável do AJP no âmbito do Processo Especial para Acordo de Pagamento (PEAP) e, consequentemente, no resultado da apelação, que seria de total procedência, ainda que com fundamento distinto do invocado pelo recorrente.
Discordância que, por facilidade e celeridade de exposição, justificamos por transcrição, no que aqui releva, dos termos e fundamentos do acórdão desta secção de 18.04.2023, relatado por Fátima Reis Silva no processo nº 1998/22.3T8SNT.L1 e por nós subscrito como vogal (acórdão que não foi objeto de publicação, e o que mais justifica a presente transcrição, assim):
O defeito apontado é o de uso de conceito indeterminado – apontando-se não ter sido legalmente definido. Situação líquida é, porém, ainda hoje, o termo usado pela lei que equivale a capitais próprios, termo usado no SNC e a património ou ativo líquido – cfr. neste sentido Paulo de Tarso Domingues in Capital e Património Sociais, Lucros e Reservas – Estudos de Direito das Sociedades, 4ª edição, Almedina, 2001, nota 69 a pgs. 149.
O Código das Sociedades Comerciais exibe ainda hoje, e sem qualquer problema interpretativo conhecido, a expressão “situação líquida” nos arts. 95º (deliberação de redução de capital social), 188º (liquidação da parte), 213º (restituição das prestações suplementares), 236º (ressalva do capital social) ou 513º (outras infrações às regras da amortização de quotas ou ações), apesar de ter deixado de ser previsto no SNC.
“A situação líquida, como o próprio nome indica, representa a diferença entre o ativo e o passivo, sendo uma medida do património líquido da entidade num determinado momento.”
Ou seja, não estamos ante uma indefinição total, tendo o sistema jurídico que ser olhado numa certa perspetiva de globalidade. Nem todos os conceitos usados na lei têm que ser definidos na própria lei, não sendo de todo essa a nossa tradição e ambiente jurídicos.
Tratando-se de capitais próprios, a sua relação com os créditos a satisfazer, ou seja, as alterações introduzidas pelo plano no passivo, é quase intuitiva.
Não está em causa neste recurso a interpretação dos conceitos usados na fórmula de cálculo da remuneração variável dos administradores judiciais, mas sim se os mesmos são suficientemente precisos para permitirem a certeza e segurança jurídicas (determinabilidade) exigidas pela CRP à lei ordinária. E a nossa resposta é positiva.
Veja-se, aliás, que não sendo intuitiva a forma de aplicação do conceito de situação líquida a um devedor pessoa singular (não empresário), ou seja, no específico contexto do PEAP, o conceito forneceu a ferramenta necessária ao cálculo no caso concreto: diferença entre o ativo, ou seja, o património, e o passivo, ou seja, os créditos a satisfazer (grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos) ainda com correspondência aos conceitos a que corresponde.
(…)
Concordamos que os PEAPs apresentam, estatisticamente, menos complexidade que os PERs, mas também existem PERs simples e insolvências rápidas e leves em termos de procedimentos. Mas o funcionamento das regras acaba por reconhecer essas diferenças. Tal como sucedeu nestes autos, em PEAP, por regra, a primeira parcela da remuneração, que apenas releva, do lado ativo, com o património, será negativa, não dando lugar a qualquer remuneração. Assim, apenas se fixará a remuneração por recurso à majoração de 5% sobre os créditos satisfeitos, ainda assim dependendo do cumprimento do acordado com os credores, como já se explicitou.
No caso, o valor dos créditos a satisfazer pelo plano (€589.304,94), por superior ao valor conhecido do património relevante do devedor, correspondente ao imóvel por ele relacionado nos autos (quer se considere o respetivo valor patrimonial tributário - € 200.334,48 -, quer se considere o valor de aquisição alegado pelo devedor na petição - €324.800,00), traduz uma situação patrimonial líquida negativa que, como tal, inviabiliza a primeira parcela da remuneração variável, prevista pela al. b) do nº 4 do art. 23º do EAJ. Por outro lado, considerando que a desconsideração, pela sentença recorrida, da segunda parcela da remuneração variável (a fixar por recurso ao grau de satisfação dos créditos nos termos do nº 7 do art. 23º do EAJ) não foi objeto de recurso, impor-se-ia aqui concluir não haver lugar à fixação de outra remuneração ao Sr. administrador judicial provisório para além da correspondente à componente fixa de €2.000,00, já reconhecida, e assim, concluir pela procedência do recurso.

Amélia Sofia Rebelo


(1) À impugnação apresentada apenas respondeu a credora CRIA OPÇÕES – Arquitectura e Engenharia Lda. (ref.ª/citius 5136683).
(2)Anúncio de publicidade da homologação datado de 19/06/2023.
(3)Como se refere no acórdão do STJ de 29/03/2022 (Proc. n.º 2309/16.2T8PTM.E1-A.S1, relator Jorge Arcanjo), disponível in www.dgsi.pt, como os demais que vierem a ser citados, sem menção à sua origem: “Na sucessão de leis no tempo, o problema terá que ser resolvido, em primeiro lugar, através de normas de direito transitório especial (ou seja, normas da própria lei nova que disciplinem a sua aplicação no tempo), depois pelas normas de direito transitório sectorial (ou seja, que regulem na aplicação no tempo das leis sobre certa matéria), e finalmente por normas de direito transitório geral (ou seja, que definam o modo de aplicação no tempo da generalidade das leis, independentemente da matéria sobre que versam). Só na ausência de qualquer regime especial é que se deve indagar, sucessivamente, da existência de normas de direito transitório sectorial ou de direito transitório geral - como é o regime fixado no art. 12 do CC - para, na sua falta, recorrer aos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência.”.
(4)Proc. n.º 9849/14.6T8LSB-E.L1, relatora Fátima Reis Silva.
(5)Proc. n.º 3529/21.3T8GMR.G1, relator Fernando Barroso Cabanelas (o qual, pese embora verse sobre um caso de PER, tem aqui plena validade). No mesmo sentido, veja-se o acórdão desta Secção de 24/01/2023 (Proc. n.º 26107/20.0T8LSB.L1-1, relator Nuno Teixeira).
(6)Vide, ainda, DAVID SEQUEIRA DINIS/TIAGO LOPES VEIGA, A remuneração do administrador judicial – algumas questões, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 7, 2023, onde se pode ler: “(…) é relativamente comum que os planos de recuperação sejam aprovados e homologados, sem que a situação líquida dos devedores se torne, em resultado dos mesmos, positiva. Ciente deste facto, segura­mente que o legislador não quis que a remuneração variável fosse calculada por referência à situação líquida em sentido técnico-contabilístico, por­quanto, se assim fosse, estaria a aceitar que, em várias situações, os admi­nistradores judiciais, apesar do seu trabalho e do esforço bem sucedido de recuperação, não teriam direito à remuneração variável. (…) A jurisprudência também se tem inclinado para a interpretação segundo a qual a remuneração variável dever ser calculada à luz do valor do perdão dos créditos e não da situação líquida stricto senso.”
(7)Proc. n.º 601/22.6T8VRL-A.G1, relator José Carlos Pereira Duarte.