VENDA DE COISA DEFEITUOSA
VÍCIOS DA COISA
PRAZO DE CADUCIDADE DA ACÇÃO
Sumário

1 - Considerando que as partes estavam em conversações relativamente ao (último) vício que o comprador havia reportado à vendedora e que até àquela data a ré tinha procedido a intervenções no motor na sequência de outras anomalias que lhe foram sendo reportadas pelo comprador, só após a recusa expressa da ré em efetuar de novo uma intervenção no motor vendido é que o autor estava em condições de exercer os seus direitos decorrentes do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, atento o disposto no artigo 329.º do Código Civil.
2 - De qualquer modo, a reparação (ou tentativa de reparação) daquele concreto defeito, pela Ré vendedora, em momento anterior, deve ser interpretada como um reconhecimento, pela vendedora daquele concreto defeito do motor, o que impede que os direitos do comprador sejam prejudicados quer pelo decurso do prazo para a denúncia, quer pelo decurso do prazo para o exercício judicial dos direitos decorrentes do cumprimento defeituoso do contrato.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 2795/21.9T8STR.E1
(2.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita
Adjuntas: Isabel Peixoto Imaginário
Ana Margarida Pinheiro Leite


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:


I. RELATÓRIO
I.1.
(…), Sociedade Unipessoal, Lda., ré na ação de declarativa de condenação com processo comum que lhe foi movida por (…), interpôs recurso da sentença proferida pelo Juízo de Competência Local de Santarém, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, o qual julgou a ação parcialmente procedente, e, consequentemente:
(i) Determinou a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre o autor e a ré e, em conformidade, condenou a ré a restituir ao autor o valor correspondente ao preço que este pagou (€ 2.767,50), ficando o autor obrigado a entregar à ré o motor recondicionado a título de restituição das prestações decorrentes do contrato anulado;
(ii) Condenou a ré no pagamento ao autor de uma indemnização no valor de € 1.534,60, com fundamento em danos emergentes do contrato de compra e venda.
Na ação o autor pediu ao tribunal que:
(a) Determinasse a anulação do contrato celebrado entre o autor e a ré e que esta fosse condenada a restituir ao primeiro o que este pagou a título de preço (€ 2.767,50);
(b) Condenasse a ré a pagar ao autor uma indemnização no valor de € 3.000,00, pelo interesse contratual negativo.
O autor alegou, em síntese, que adquiriu à ré, em 29 de março de 2019, e pelo preço de € 2.767,50, um motor recondicionado para colocar em carrinha ao serviço da sua atividade profissional, a qual após a colocação do dito motor não funcionou e que em abril de 2019, reclamou junto da ré, tendo esta declinado qualquer responsabilidade. Após o arranjo do motor, à custa do autor, o veículo começou a deitar água, tendo sido enviado à oficina da ré, para reparação, em finais de abril de 2019; seis meses depois foi-lhe entregue o motor, mas em março de 2020 foi de novo enviado para as instalações da ré onde permaneceu cerca de um mês e meio; entre a venda em 29.03.2019 e 26 de abril de 2021 a ré sempre foi reconhecendo os defeitos do motor e tentou eliminá-los; o autor teve custos com a desmontagem e montagem do motor e com deslocações, num valor global de € 1.500,00.
A ré contestou, invocando nulidade correspondente à falta de citação, deduziu a exceção de caducidade do direito de ação e impugnou a factualidade da petição inicial.
O tribunal a quo julgou verificada a nulidade decorrente da falta de citação mas dispensou a realização da mesma porquanto a ré já tinha, à data, conhecimento dos termos do processo.
Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual o tribunal fixou o valor da causa, proferiu despacho saneador e o despacho previsto no artigo 596.º do CPC, fixando o objeto do litígio, os factos provados e os temas de prova, bem como admitiu os meios probatórios indicados pelas partes e designou data para a realização da audiência final.
Procedeu-se à realização da audiência final, finda a qual foi proferida a sentença objeto do presente recurso.

I.2.
A recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«A Recorrente não se conforma com a motivação e fundamentação de direito constantes na douta Sentença recorrida, a que foi atribuída a ref.ª Citius 92244553.
2.ª Em sede de contestação, a que foi atribuída a ref.ª Citius 8543833, a Recorrente invocou a exceção perentória de caducidade do direito de ação do A., por este não ter respeitado o prazo de 6 meses previsto no artigo 917.º do Código Civil.
3.ª A Recorrente vendeu em março de 2019 um motor ao A., que foi entregue na oficina por si indicada em 01.04.2019 (facto c) dado como provado).
4.ª Em seguida, o A. foi relatando algumas avarias à Recorrente, solicitando as respetivas reparações.
5.ª Denúncias essas que nunca diziam respeito às mesmas avarias.
6.ª A Recorrente atuou sempre em conformidade, procedendo sempre às necessárias reparações (tudo conforme factos j); k) l); m) e n) dados como provados).
7.ª A última reparação que foi efetuada pela Recorrente reporta-se a abril de 2020, tendo o motor sido entregue ao A. em maio de 2020 (facto n) dado como provado).
8.ª Em 01.04.2021, cerca de 1 ano depois dessa última reparação, o A. denunciou uma nova avaria ao Recorrente (facto o) dado como provado).
9.ª Ao qual, em 26.04.2021, a Recorrente lhe dá conhecimento de que em virtude do terminus do prazo de garantia pela decorrência do tempo, não poderia proceder à reparação da nova alegada avaria que lhe tinha sido reportada (facto p) dado como provado).
10.ª Não obstante, apenas em 27.10.2021, o A., não se conformado com a posição da Recorrente, exerceu o respetivo direito de ação, conforme formulário da petição inicial, com a ref.ª 92244553.
11.ª Ou seja, de acordo com o disposto nos artigos 279.º, alínea c), e 329.º, ambos do Código Civil, 6 meses e 1 dia a partir do momento em que o direito podia legalmente ser exercido.
12.ª O douto Tribunal a quo entendeu que a invocada exceção não deveria proceder porque a ação teria sido colocada no dia 27.04.2021 – leia-se 27.10.2021 – e, assim sendo, no último dia do prazo de 6 meses – págs. 14 e 15 da Sentença recorrida.
13.ª Mas que, de todo o modo, a partir do momento em que a Recorrente procedeu à primeira reparação do motor, esta admite que vendeu um bem defeituoso – págs. 14 e 15 da Sentença recorrida.
14.ª E, nesse caso, já não necessitaria o A. de respeitar o prazo de 6 meses para exercer o respetivo direito de ação quando a sua pretensão de reparação de nova avaria não foi acolhida pela Recorrente – págs. 14 e 15 da Sentença recorrida.
15.ª Como já mencionado, a Recorrente considera que a ação foi interposta 6 meses e 1 dia depois do dia em que tal direito poderia ter sido exercido.
16.ª Não se conformando igualmente que das reparações efetuadas se possa extrair uma confissão tácita por parte da Ré que admitiu ter vendido um motor defeituoso – págs. 14 e 15 da Sentença recorrida.
17.ª Pois, ao contrário do referido pelo douto Tribunal a quo, na pág. 8 da sentença recorrida, a testemunha (...), responsável comercial da Ré, nunca referiu que se procedeu às reparações por mera “cortesia” assim como também referiu perentoriamente que a Ré também sempre entendeu não ter existido qualquer defeito no bem vendido.
18.ª Pelo contrário, o que ocorreu é que foram relatadas algumas avarias e que as mesmas foram sempre solucionadas, sendo que desde a última reparação, em abril de 2020, sendo o motor entregue no mês seguinte, não foi reportada nenhuma avaria mais.
19.ª Tendo o Autor atestado o seu bom funcionamento, aceitando-o.
20.ª Criando-se assim, uma convicção que a Recorrente tinha procedido cem por cento em conformidade com as intenções do Autor.
21.ª Tendo sido apenas relatada uma alegada nova avaria no dia 01.04.2021, conforme excerto do depoimento gravado através da aplicação Habilus Média Studio, com início às 14:47 horas e fim às 15:08 horas, conforme respetiva ata a que foi atribuída a ref.ª Citius 92197484:
Ilustre Advogada do A.: “Desta última vez que se recorda, os problemas foram sempre resolvidos ou houve sempre constantes reclamações por parte do Autor?”
Testemunha: “É assim, da última vez que foi entregue…”
Ilustre Advogada do Autor: “Também não se recorda em que mês?”
Testemunha: “É assim, há documentos, guias, eu sinceramente não, não me recordo. Mas a partir da última vez que foi entregue deixou de haver qualquer informação por parte do cliente que alguma coisa não estivesse bem”. (13m24s a 13m48s)
Advogado da Recorrente: “ (…) Vocês consideraram que venderam algum motor com defeito ou, entretanto, durante a garantia, foram fazendo algumas reparações por cortesia, ou seja por aquilo que for? Quero que seja a (…) a falar e não eu...”
Testemunha: “Então é assim, segundo me lembro foi vendido um produto recondicionado ao nosso cliente. Um produto recondicionado tem uma intervenção em termos de retificador, que não é feito por nós, portanto, é uma empresa, que nós não somos empresas de retificação, portanto, somos oficina e fazemos a reconstrução mas toda a reconstrução do motor provém, desde as peças que vêm, as que são compradas novas a fornecedores, em retificação de bloco e cabeça e retificadora. E que é montado depois todo o conjunto na nossa oficina e é entregue ao nosso cliente. Quando há uma situação, e falando nesta situação específica, nós não consideramos que haja um defeito, se houvesse um defeito também haveria uma reclamação nossa ao fornecedor que nos fez a venda de componentes que, nas primeiras vezes reclamadas, nós acabámos por trocar. Da nossa parte, e enquanto empresa, fazemos aquilo que nos diz respeito que é colaborar, tentar resolver a situação ao cliente e que foi sempre resolvida pelas vezes que foram reclamadas, que foi o bem recolhido e teve na nossa empresa em intervenção e entregue sempre ao cliente” - (04m56 a 06 m52s)
22.ª Acresce que não foi carreada prova para os autos de que as alegadas avarias denunciadas pelo A. tivessem origem no mesmo problema.
23.ª Ou seja, nada consta que a Ré não tenha conseguido resolver as alegadas avarias que até essa data lhe foram sendo comunicadas antes de cada uma das reparações.
24.ª Tendo a Recorrente sempre procedido em conformidade (factos k) e m))
25.ª É o próprio douto Tribunal a quo que, com base nos factos j); l) e m), salienta que foram sendo reportadas três avarias.
26.ª A avaria seguinte apresentava sempre outro “sintoma” que não aqueles referidos antes da reparação anterior.
27.ª Até ao momento em que o A. denuncia nova avaria, que se reporta a abril de 2020 (facto o).
28.ª Não se podendo, assim, com o devido respeito pela sentença ora recorrida, concluir-se que a Ré não conseguiu reparar as alegadas avarias que lhe iam sendo relatadas.
29.ª Até porque não se sabe a causa dessa nova alegada avaria do motor.
30.ª Consubstanciando-se até numa contradição quando se faz constar que a Ré relatou desde logo ao Autor que considerava não existir qualquer defeito no motor vendido (facto i) dado como provado).
31.ª A Recorrente entende que esta é uma questão fulcral para que a exceção de caducidade invocada deva ser reconhecida.
32.ª Isto porque a última reparação efetuada pela Recorrente reporta-se a abril de 2020 (facto n) dado como provado).
33.ª Tendo o motor sido entregue ao Autor no mês seguinte, em maio de 2020 (facto n) dado como provado).
34.ª E só cerca de 1 ano depois, em abril de 2021, o Autor reporta uma nova avaria à Ré (facto o) dado como provado).
35.ª Não existindo qualquer fundamento para que neste caso, passado cerca de 1 ano, o Autor não tivesse que respeitar o prazo de 30 dias (neste caso 8) para denunciar a avaria.
36.ª Assim como, o já mencionado prazo de 6 meses para intentar a presente ação sob pena de caducidade.
37.ª Prazo esse que contando apenas com o dia em que a Ré comunicou e deu conhecimento ao Autor da sua posição, em 26.04.2021, não foi por este respeitado.
38.ª Pois que o primeiro dia para efeitos de contagem de prazo tem que ser o próprio dia 26.04.2021.
39.ª Caso contrário o legislador teria tido o cuidado igual àquele que teve a respeito no artigo 337.º, n.º 1, do Código do Trabalho, onde prescreve: “O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho”.
40.ª A respeito da necessidade de respeitar o prazo constante no artigo 917.º do Código Civil, vide Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 06.10.2016, proferido no âmbito do Proc. n.º 6637/13.0TBMAI-A.P1.S2, relatado por Orlando Afonso, disponível in www.dgsi.pt: “Sendo a causa de pedir – o vício da coisa –, comum a todas as correspondentes ações (de anulação, indemnização pelo interesse contratual negativo,…), em homenagem ao princípio da unidade do sistema jurídico, deve aplicar-se, por interpretação extensiva, a esta ação de indemnização pelo interesse contratual positivo, decorrente de cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda comercial, por vício da coisa vendida – no caso, farinha imprópria para consumo humano –, o prazo de caducidade de seis meses previsto no artigo 917.º do CC e não o prazo geral de prescrição ordinária de 20 anos, previsto no artigo 309.º do mesmo Código.”
41.ª Para além de que, efetivamente, quando esta nova avaria é denunciada o prazo convencional de garantia já tinha verificado o seu terminus pela decorrência do tempo (factos d) e n) dados como provados).
42.ª Razões pelas quais, e face ao supra exposto, a decisão ora recorrida viola o disposto nos artigos 279.º, alínea c), 329.º, 916.º e 917.º, todos do Código Civil, devendo V.as Ex.as revogá-la e substituí-la por outra que considere que quando a denúncia foi efetuada em Abril de 2020 já se encontrava esgotado o prazo de garantia, assim como quando a ação foi interposta já o direito de ação do Autor tinha caducado.
43.ª E, consequentemente, absolver a Recorrente de todos os pedidos contra si formulados.
É, POIS, EM SUMA, O QUE NOS PARECE!
MELHOR DECIDARÃO V. EXAS. E ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!».

I.3.
O recorrido apresentou as seguintes conclusões na sua resposta à apelação, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção da sentença.
1.4.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).

II.2.
A questão que cumpre decidir é a de saber se o tribunal a quo decidiu corretamente ao julgar que não se encontra caducado o direito de ação do autor.

II.3.
FACTOS
II.3.1.
O tribunal de primeira instância julgou provada a seguinte factualidade:
«(a) O autor exerce a atividade de comercialização de produtos alimentares em nome individual;
(b) A ré dedica-se, através da marca (…) Motor, à venda de motores usados, recondicionados, caixas de velocidades e componentes;
(c) Em data não concretamente apurada, mas não posterior a 29.03.2019, o autor adquiriu à ré, pelo preço de € 2.767,50, um motor recondicionado Mitsubishi L200 2.5 TD, de 2000, 4D56, fornecido com “bloco, injeção, cabeça e carter”, o qual lhe foi entregue no dia 01.04.2019;
(d) A ré concedeu à autora, a 29.03.2019, uma garantia sobre o referido motor por um período de 12 meses ou até os 50.000 quilómetros, limitado ao bloco armado e à cabeça do motor;
(e) O autor tomou conhecimento da disponibilidade do motor através de anúncio num sítio da Internet, onde o motor recondicionado era dado como “reconstruído” e “como novo”, num estado reputado como bom;
(f) Nos contactos que precederam a aquisição indicada em (c), a ré indicou que o motor era apto a ser colocado numa carrinha de trabalho para transporte de produtos alimentares;
(g) Nessa circunstância, foi transmitido à ré que o motor recondicionado seria destinado a substituir o motor antigo de uma carrinha Mitsubishi L300 2.5 de 2000;
(h) Após a entrega do motor, mecânico encarregue pelo autor procedeu à respetiva montagem, constatando que o veículo não circulava e asseverando que “o carreto da correia de distribuição dos contrabalanços veio com a fêmea do veio desapertada” e que “a bomba injetora vinha com débito e fora do ponto”, do que foi dada nota à ré em data não posterior a 04.04.2019;
(i) Tendo a ré declinado responsabilizar-se pelo referido em (h), indicando que o motor não teria defeito, o autor procedeu à reparação da bomba injetora junto da (…) – Reparação de (…), Lda., com um custo cifrado em montante equivalente a € 200,00;
(j) Após, a 04.04.2019, o veículo circulou por um período de uma manhã, tendo o motor começado a verter água e constatando-se que a junta de colaça estaria queimada;
(k) Tendo o autor exposto as circunstâncias consignadas em (j) a ré, no final do mês de abril de 2019, o motor foi enviado para as instalações desta com vista à sua reparação, havendo sido retornado ao autor no mês de outubro de 2019, persistindo a perda de água no motor;
(l) No mês de março de 2020, foi percecionada uma batida no motor (audível) e um consumo de óleo reputado como excessivo;
(m) Após, igualmente no mês de março de 2020, o motor parou de funcionar, havendo o mecânico encarregue pelo autor indicado à ré que “a água passou toda para o óleo” a 23.03.2020;
(n) O motor foi recolhido por transportadora incumbida pela ré e enviado para as instalações desta com vista à sua reparação no mês de abril de 2020, havendo sido retornado ao autor em data não apurada do mês de maio de 2020;
(o) Em 01.04.2021 o mecânico encarregue pelo autor transmitiu à ré a existência de uma batida interna do motor e de um consumo de óleo reputado como excessivo;
(p) Desde pelo menos 12.04.2021 até 26.04.2021, o autor e a ré mantiveram contactos com vista a aquilatar as circunstâncias subjacentes ao descrito em (o), havendo a ré declinado qualquer intervenção nesta última data com fundamento no decurso do período de garantia;
(q) Para acudir às necessidades da sua atividade profissional, o autor adquiriu uma outra viatura em maio de 2019;
(r) O autor despendeu, com vista à desmontagem e montagem do motor, dos seguintes valores:
- O valor de € 276,00 (acrescido de Imposto sobre o Valor Acrescentado à taxa de 23%);
- O valor de € 384,00;
- O valor de € 60,00;
- O valor de € 300,00;
(s) O autor despendeu montante não superior a € 200,00 (gasóleo, mão-de-obra e portagens), nas circunstâncias referidas em (k), entre o concelho da (…) e o concelho de (…), havendo a ré contribuído para tais despesas com um montante de € 120,00.
II.3.2.
O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade:
«(a) Entre Abril e Maio de 2019, com fundamento na necessidade de reparação do motor adquirido à ré, o autor tenha incorrido em perda de negócio (venda de mercadoria) ou que tenha deixado de cumprir atempadamente com as entregas aos seus clientes;
(b) O autor haja despendido, com vista à desmontagem e montagem do motor, dos seguintes valores:
- O valor de € 19,86 (acrescido de Imposto sobre o Valor Acrescentado à taxa de 23%), correspondente a “tubo intercooler”, de € 18,00 correspondente a “líquido anticongelante verde concentrado” e de € 50,00 correspondente a “ol. BP visco 5000 10W40”;
- O valor de € 19,95 correspondente a “vela incandescente”, de € 17,77 correspondente a “correia alternador”, de € 60,00 correspondente a “ol. BP visco 5000 10W40” e de € 18,00 correspondente a “líquido anticongelante verde concentrado”;
- O valor de € 154,00 correspondente a “reparação turbo 4913356-02900”, € 7,56 correspondente a “anilha injetor”, € 5,28 correspondente a “anilha fundo injetor” e de € 23,06 correspondente a “válvula pressão óleo motor”;
- O valor de € 60,00 correspondente a “ol. BP visco 5000 10W40”, € 38,65 correspondentes a “jogo pastilhas travão frt”, € 24,59 correspondentes a “rotula esq inf braço suspensão”, € 4,62 correspondentes a “tampão radiador”, € 20,25 correspondentes a “líquido anticongelante verde concentrado” e € 20,00 correspondentes a “alinhamento da direção”».

III.
Apreciação do objeto do litígio
Na ação o autor/apelado pediu ao tribunal que fosse decretada a anulação do contrato de compra e venda que outorgou com a ré/apelante e que esta última fosse condenada no pagamento de uma indemnização, no valor de € 1.534,60, com fundamento em danos emergentes do contrato de compra e venda. Resulta do relatório supra que o tribunal de primeira instância determinou a anulação do contrato de compra e venda celebrado entre o autor e a ré, com as legais consequências, ou seja, a restituição ao comprador/autor do valor correspondente ao preço que este pagou (€ 2.767,50) e a entrega do motor objeto da venda à vendedora e condenou a ré no pagamento ao autor de uma indemnização no valor de € 1.534,60, com fundamento em danos emergentes do contrato de compra e venda.
No presente recurso está em causa apenas aferir se os direitos do autor decorrentes de um alegado cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda comercial[1] celebrado entre as partes se extinguiram por caducidade.
Na perspetiva da recorrente (ré/vendedora) a presente ação foi interposta 6 meses e 1 dia depois do dia em que tal direito de ação poderia ter sido exercido, defendendo que das reparações ao motor vendido que ela foi efetuando não se pode extrair que, ao fazê-las estava a admitir ter vendido ao autor um motor defeituoso.
Vejamos.
O regime legal da venda de coisa defeituosa constante do Código Civil faculta ao comprador diversos meios jurídicos, entre os quais o direito de anulação do contrato. De acordo com o disposto no artigo 905.º do Código Civil, aplicável à compra e venda de bem defeituoso por força do disposto no artigo 913.º do mesmo diploma legal, no caso de a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidade asseguradas pelo vendedor ou necessárias à realização daquele fim, o comprador tem o direito à anulação do negócio por erro ou dolo, verificados os respetivos requisitos de relevância do erro sobre o objeto do negócio (artigo 251.º do Código Civil)[2]. Por força da mesma remissão, o comprador de coisa defeituosa tem igualmente o direito a uma indemnização embora com a modificação introduzida pelo artigo 915.º do CC: na anulação por simples erro, a indemnização só é devida se o vendedor conhecer ou devia conhecer a deformidade da coisa.
O artigo 917.º do Código Civil sob a epígrafe Caducidade da ação dispõe o seguinte:
«A ação de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no n.º 2 do artigo 287.º».
Ao que julgamos, é entendimento dominante que o artigo 917.º do Código Civil se aplica, por interpretação extensiva, a todas as ações decorrentes do cumprimento defeituoso e, como tal, aplicável a qualquer outra pretensão derivada do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda – neste sentido, vide por todos Ac. da RE de 27/10/2022, processo n.º 154/20.0T8LRS.L1.G. e Ac. do STJ de 18/09/2014, processo n.º 1857/09.9TJVNF.S1.P1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt.
O disposto no artigo 917.º tem, pois, de ser conjugado com o artigo 916.º do mesmo diploma legal, que sob a epígrafe Denúncia do defeito dispõe o seguinte:
«1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, exceto se este houver usado de dolo. 2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa. 3. Os prazos referidos no número anterior são, respetivamente, de um e de cinco anos caso a coisa vendida seja um imóvel».
Assim, no caso de simples erro, o comprador tem o ónus de denunciar, por qualquer meio, ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, até trinta dias depois de conhecido o defeito (ou a ineficácia da sua reparação) e dentro de seis meses após a entrega da coisa. Tratando-se, porém, de uma compra e venda comercial o prazo de denúncia é de oito dias, atento o disposto no artigo 471.º do Código Comercial[3]. O artigo 471.º do Código Comercial é omisso quanto ao momento a partir do qual se começa a contar o prazo de 8 dias, havendo quem considere que o prazo se inicia com a entrega, argumentando que a lei comercial é mais exigente do que a civil no que respeita ao dever de exame do comprador e que o prazo de oito dias não se pode contar do conhecimento do defeito porque tal interpretação não tem qualquer correspondência com a letra do artigo 471.º do Código Comercial; segundo um outro entendimento, para o qual propendemos, aquele prazo de 8 dias deve contar-se da data em que o comprador descobre o vício da coisa comprada, ou, pelo menos, daquela em que o teria descoberto se agisse com a diligência exigível no tráfico comercial. Como refere Pedro Soares Martinez[4] «(…) a letra do artigo em causa nada esclarece, nem num sentido nem noutro, pois limita-se a dispor que, a partir do momento em que o comprador recebe a mercadoria, o contrato haver-se-á como perfeito, se os defeitos não forem reclamados dentro de oito dias; da letra da lei não se pode inferir que este prazo esteja relacionado com a entrega. Perante a omissão do diploma mercantil, e tendo nele o legislador assentado, claramente, no sentido de que o prazo se inicia com a descoberta, a unidade do sistema jurídico leva a interpretar o artigo 471.º do Código Comercial de forma análoga ao estabelecidos nos artigos 916.º, n.º 2 e 1220.º, n.º 1». Por conseguinte, no caso de compra e venda comercial o comprador tem 8 dias após o conhecimento respetivo ou após o momento em que podia conhecê-los se fosse devidamente diligente para denunciar os defeitos que verifique na coisa adquirida, reclamando deles junto do vendedor.
A falta de cumprimento do ónus de denúncia tempestiva – o que tem de ser provado pelo vendedor réu na ação nos termos do disposto nos artigos 342.º e 343.º do Código Civil – implica a caducidade dos direitos contratuais do comprador, a saber, do direito de anulação, de redução do preço, de reparação ou substituição da coisa, de resolução e indemnização, a menos que ocorra causa impeditiva da caducidade.
A caducidade é uma forma de repercussão do tempo nas situações jurídicas que, por lei ou contrato, devam ser exercidas dentro de certo termo. Expirado o respetivo prazo sem que se verifique o exercício, há extinção[5].
O prazo de caducidade, salvo se a lei fixar outra data, começa a correr a partir do momento em que o direito puder legalmente ser exercido (artigo 329.º do Código Civil).
A caducidade só é detida pela realização dentro do prazo legal ou convencional, do ato a que a lei ou uma convenção atribuem o efeito impeditivo (artigo 331.º/1, do CC); na prática, a causa impeditiva da caducidade coincidirá com a efetivação do próprio ato sujeito à caducidade[6]. Estando em causa atos de natureza judicial, o ato impeditivo da caducidade será a proposição da ação, isto é, o recebimento da respetiva petição inicial pela secretaria do tribunal, não se exigindo para o efeito quer a citação quer a notificação do réu.
No caso de caducidade legal/convencional relativa a direito disponível, a caducidade pode ser impedida sempre que haja um reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido (artigo 331.º/2, do Código Civil). O reconhecimento do direito deve ser sempre claro e inequívoco, não podendo oferecer quaisquer dúvidas sobre a atitude de quem o reconheceu e só vale como tal quando ocorra antes de esgotado o prazo de caducidade.
O reconhecimento do direito não é um meio interruptivo da caducidade, uma vez que não inutiliza o tempo já decorrido e não determina o início de um novo prazo de caducidade (como aconteceria na prescrição); o reconhecimento do direito torna-o estável e subtrai-o definitivamente à caducidade, tal como se tratasse do exercício da ação judicial. Impedida a caducidade e estabilizado o direito, não fica, no entanto, o direito imune às regras da prescrição, que lhe serão, em princípio, aplicáveis.[7]
No caso da compra e venda defeituosa o reconhecimento por parte do vendedor do(s) defeito(s) impede que os direitos do comprador sejam prejudicados pelo decurso do prazo para denúncia previsto no artigo 916.º do CC e impede que os direitos do comprador sejam prejudicados pelo decurso do prazo para o exercício judicial do direito (artigo 917.º do CC).
«O direito reconhecido ficará sujeito às regras da prescrição, se se tratar de um direito prescritível e os direitos novos (ainda) não reconhecidos, como por exemplo, os direitos decorrentes do reaparecimento do defeito aparentemente eliminado ou do aparecimento de defeitos novos, ficarão sujeitos aos prazos de caducidade, nos termos gerais do contrato de compra e venda ou do contrato de empreitada»[8].
Regressando ao caso concreto, no presente recurso não vem posto em causa que o autor foi denunciando tempestivamente os defeitos de funcionamento do motor e que a data de 26.04.2021 é aquela em que a ré se recusa a realizar (nova) intervenção no motor, argumentando com o decurso do prazo de garantia.
Porém, na perspetiva da apelante, os direitos de anulação e de indemnização caducaram porque a presente ação deu entrada em tribunal seis meses e um dia após a ré ter declinado a sua responsabilidade pela reparação da anomalia comunicada, sustentando ainda que não houve da sua parte reconhecimento do direito do autor com efeitos impeditivos da caducidade.
Importa, antes de mais, determinar quando se deve considerar iniciado o prazo de seis meses previsto no artigo 916.º do Código Civil.
Temos por seguro que, no caso, aquele prazo não se iniciou com a entrega da coisa (ocorrida em 01.04.2019) porquanto resulta da factualidade provada que desde aquela data, ocorreram anomalias várias que foram reportadas à ré, a qual recebeu o motor nas suas instalações com vista à sua reparação e tentou eliminar os defeitos, embora nem sempre com sucesso, como sucedeu, por exemplo, com a avaria reportada em 04.04.2019, quando o motor começou a verter água e havia suspeita de que a junta de colaça estaria queimada, na sequência da qual o motor foi enviado para as instalações da ré com vista à sua reparação, havendo sido retornado ao autor no mês de Outubro de 2019, persistindo a perda de água no motor, e com a batida no motor e consumo de óleo excessivo, reportados à ré em março de 2020 (tendo o motor deixado de funcionar), após o que o motor foi de novo enviado para as instalações da ré com vista à sua reparação, anomalia que se repetiu em abril de 2021. Assim, tendo havido tentativas frustradas de eliminação do defeito, mantendo a coisa vendida os mesmos vícios, os direitos decorrentes destas situações ficam sujeitos a um novo prazo de caducidade (que não se conta, portanto, a partir da data da entrega do bem).
Está igualmente provado que entre 12.04.2021 e 26.04.2021 o autor e ré mantiveram contactos com vista a aquilatar as circunstâncias subjacentes à anomalia reportada na data de 01.04.2021 (existência de uma batida interna do motor e de um consumo de óleo reputado como excessivo) e que a ré, em 26.04.2021, declinou qualquer intervenção no motor com fundamento no decurso do período de garantia.
Em nosso entender, só após esta recusa da ré em efetuar de novo uma intervenção no motor vendido é que o autor estava em condições de exercer os seus direitos decorrentes do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, concretamente os resultantes do vício que foi comunicado à ré na data de 1 de abril de 2021, atento o disposto no artigo 329.º do Código Civil, considerando que as partes estavam em conversações e que até àquela data a ré tinha procedido a intervenções no motor na sequência das anomalias que lhe iam sendo reportadas pelo comprador – em sentido idêntico, veja-se acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2021[9].
Estando assente que na data de 26 de abril de 2021 a ré declinou a sua responsabilidade por qualquer (nova) intervenção no motor, com fundamento no decurso do prazo de garantia convencional, e que é a partir dessa data que começa a contar o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do CC, importa chamar à colação o disposto no artigo 279.º, alínea b), do Código Civil, de acordo com o qual na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr. Assim sendo, o prazo de seis meses previsto no artigo 916.º do CC iniciou-se em 27 de abril de 2021 (e não em 26 de abril de 2021, como sustenta a apelante).
A presente ação foi interposta em 27 de outubro de 2021.
Logo, a ação judicial destinada a efetivar os direitos de anulação do contrato e de pagamento de indemnização pelos danos emergentes da celebração do contrato foi proposta dentro do prazo de seis meses.
É quanto basta para julgar improcedente a presente apelação e confirmar a sentença recorrida.
De qualquer modo sempre se aduzirá o seguinte: a anomalia que foi reportada à ré em 01.04.2021 - existência de uma batida interna do motor e de um consumo de óleo reputado como excessivo – é idêntica àquela que lhe havia sido reportada em março de 2020, na sequência da qual o motor foi recolhido por transportadora incumbida pela ré e enviado para as instalações desta com vista à sua reparação no mês de abril de 2020.
A reparação (ou tentativa de reparação) daquele defeito, pela ré, em março de 2020 deve ser interpretada como um reconhecimento, pela vendedora (ora apelante), daquele concreto defeito do motor, o que impede que os direitos do comprador sejam prejudicados quer pelo decurso do prazo para a denúncia, quer pelo decurso do prazo para o exercício judicial dos direitos decorrentes do cumprimento defeituoso do contrato. Ou seja, a reparação (ou tentativa) de reparação, no ano de 2020, da anomalia que se traduzia na existência de uma batida interna do motor e de um consumo de óleo reputado como excessivo, a qual se veio a verificar de novo em abril de 2021, deve interpretar-se como um reconhecimento, pela ré, daquele concreto defeito, sendo, por isso, um facto impeditivo da caducidade invocada pela ré na ação.

Sumário: (…)

III.
DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
As custas da presente instância recursiva são da responsabilidade da recorrente, sendo que no caso apenas são devidas a esse título custas de parte porquanto a recorrente procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida pelo impulso processual.
Notifique.
Évora, 7 de dezembro de 2023
Cristina Dá Mesquita
Isabel Peixoto Imaginário
Ana Margarida Pinheiro Leite


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[1] A 1.ª instância considerou que está em causa uma compra e venda comercial, o que não vem posto em causa no presente recurso.
[2] No caso de o comprador pretender a anulação do contrato tem de provar a essencialidade do erro e a cognoscibilidade, por parte do vendedor, da essencialidade para aquele do elemento sobre que incidiu o erro.
[3] Dispõe este normativo legal o seguinte: «As condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as coisas compradas no ato da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou não as examinando, não reclamar dentro de oito dias. § único. O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no ato da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado».
[4] Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coleção Teses, Almedina, pág. 376.
[5] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2011, Almedina, pág. 207.
[6] Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 224.
[7] Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, Coimbra Editora, 2008, pág. 178.
[8] Ac. do STJ de 21.02.2019, processo n.º 404/17.0T8VCT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 812/19.1T8PVZ.P1, consultável em www.dgsi.pt