FUNDO DE PENSÕES
MORTE DO PARTICIPANTE
BENEFICIÁRIO
ALTERAÇÃO POR TESTAMENTO
VALIDADE
Sumário

1. O testamento pelo qual a participante em contrato de adesão a Fundo de Pensões revoga testamento anterior, deixando a beneficiária do direito ao reembolso desse plano de pensões de ser sua herdeira, não tem a virtualidade de, só por si, revogar a cláusula do contrato de adesão onde se identifica essa concreta pessoa como sendo a beneficiária desse direito ao reembolso, em caso de morte da participante.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
TG veio intentar a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra BBVA Fundos – Sociedade Gestora de Fundos de Pensões, S.A., pedindo a condenação da R. ao reembolso à A. das unidades de participação do contrato de adesão ao Fundo “BBVA Multiactivo Conservador” com o n.º …, conta …, acrescido de juros de mora, à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.
Alegou, para tanto, que no dia 18/07/2019 foi subscrito, por D, um fundo de pensões, junto da R., na importância de €305.000,00, constando como beneficiária a A..
A subscritora faleceu no dia 16/05/2020, tendo a R. reembolsado pessoa diversa da beneficiária, pelo que incumpriu o contratualmente acordado com a subscritora do fundo, prejudicando-a e beneficiando um terceiro alheio ao contrato celebrado. Pretende assim que a R. seja condenada a cumprir ao que se havia efetivamente obrigado.
Citada, a R. contestou, invocando que entregou o produto do resgate das Unidades de Participação do Fundo a pedido da cabeça-de-casal da herança, efetuando a transferência de tais valores para a conta da “Herança indivisa D”, mais alegando que desconhece a quem foram distribuídos os fundos, tendo procedido nesses termos, porquanto lhe foi apresentado um testamento público que revogou expressamente todos os anteriores, considerando e assim revogou também a cláusula beneficiária.
A A. respondeu, sustentando a procedência da sua pretensão inicial.
Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual tiveram as partes oportunidade de discutir as posições já defendidas nos articulados e proferido as suas alegações.
Nessa sequência veio a ser proferido despacho saneador-sentença, ao abrigo do disposto nos Art.ºs 6.º n.º 1, 592.º n.º 1 al. b), aplicável por analogia, e Art.º 595.º n.º 1, todos do C.P.C., por se considerar que os autos já continham todos os elementos necessários para a apreciação do mérito da causa, tendo no final sido decidido julgar a ação totalmente procedente e, em consequência, condenado a R. a entregar à A. o valor correspondente ao reembolso das unidades de participação do contrato de adesão ao Fundo 2BBVA Multiuso Conservador”, com o n.º …, conta …, acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
É dessa sentença que a R. vem interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações de recurso as seguintes conclusões:
I. O presente recurso vem interposto do Saneador Sentença em que a ação foi julgada procedente e a Ré condenada a entregar à Autora valor correspondente ao reembolso das unidades de participação do contrato de adesão ao Fundo 2BBVA Multiuso Conservador”, com o n.º …, conta …, acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento;
II. Vai impugnado, nos termos e para os efeitos do artigo 640º do CPC, o parágrafo 8 da Matéria de Facto dada como provada, onde pode ler-se: 8. A Ré entregou o produto do resgate das Unidades de Participação a Pedido da Cabeça de Casal da herança, por transferência, para a conta “herança indivisa D” no montante de €338.427,78
III. Essa redação ignora o artigo 2º da Contestação, no qual a Ré clarificou que “entregou o produto do resgate das Unidades de Participação a pedido da cabeça de casal dessa herança, por transferência, para a conta “Herança Indivisa D”, no montante de €338.427,78 (valor que inclui o valor do resgate do Fundo de Pensões Multiactivo Moderado “Resgate Total-M”, pelo montante de €293.632,78 e que se encontra em causa nos presentes autos).
IV. Daqui decorre, que a redação da matéria de facto peca por excesso relativamente à matéria alegada pela Ré, devendo ser corrigida em conformidade, para que seja claro que o montante entregue inclui o resgate do produto que se encontra em discussão nos autos, mas cujo valor de resgate foi de €293.632,78.
V. Deve, assim, a matéria de facto ser alterada em conformidade com o artigo 2º da Contestação.
VI. O fundamento principal da Sentença em crise prende-se com a circunstância de a revogação da cláusula beneficiária não ser do conhecimento da Sociedade Gestora.
VII. Essa valoração da matéria radica na i) errónea configuração do contrato que se encontra juntos aos autos e ii) na errónea configuração da natureza jurídica da cláusula beneficiária no âmbito de produtos de Fundos de Pensões, como é o produto em causa nos autos.
VIII. A Sentença assenta, pois, num facto que não se encontra dado como provado e que não foi alegado e que, na própria lógica da Sentença, é um facto essencial da causa, assim violando o disposto nos artigos 5º/1 e 2 e 607º/4 do CPC;
IX. Nada existe, na Lei, que determine que “a revogação de tal cláusula terá que operar por força de aditamento/alteração ao contrato” com o significado restrito que parece atribuir-lhe o Tribunal, ie, como aditamento stricto sensu;
X. A isso obstam o princípio da liberdade de forma e a inexistência de regra em sentido contrário;
XI. A revogação da Cláusula Beneficiária pode ser efetuada mediante disposição testamentária, como foi feito no caso dos autos;
XII. A Sentença em crise radica na errada qualificação da cláusula beneficiária como um contrato a favor de terceiro, por analogia com o regime dos seguros, sem ter em conta a natureza jurídica distinta do contrato celebrado entre a de cujus e a Ré - contrato de adesão individual a fundo de pensões - respetivo regime jurídico e bem assim à natureza jurídica de um fundo de pensões, que é um património autónomo afeto à realização de um plano de pensões individual;
XIII. Ao invés, no caso dos fundos de pensões, por morte do participante, as Unidades de Participação transmitem-se, num fenómeno sucessório, a favor dos beneficiários (beneficiários designados ou aos herdeiros legais), cuja designação sucessória seja prevalente, não sendo um direito próprio do beneficiário, mas uma sucessão deste na posição jurídica que já assistia ao participante (o direito ao reembolso, verificadas determinadas condições)
XIV. Mesmo que se adotasse a qualificação jurídica do contrato que é acolhida na Sentença – com o que se discorda, mas se admite apenas a benefício de raciocínio, restaria concluir que o direito da beneficiária a receber a prestação por parte da R., a existir, apenas se constituiria, no limite, com a morte da de cujus, nos termos do número 1 do artigo 451.º do Código Civil;
XV. Essas estipulações contratuais são livremente revogáveis, nos termos gerais de Direito, desde que o de cujus não tenha – o que não sucedeu, no caso – renunciado ao direito de revogação;
XVI. Em matéria de interpretação do testamento, dispõe o artigo 2187.º do Código Civil, consagrando uma regra subjetivista que manda atender não apenas ao texto deste, mas ainda ao contexto respetivo com vista à reconstituição da vontade real do testador;
XVII. Para a interpretação do testamento vigente à data da morte da de cujus, é necessário apreciar a existência do testamento anterior e da cláusula beneficiária, procedendo às comparações entre os respetivos conteúdos;
XVIII. O testamento outorgado em 08.06.2018 e a cláusula beneficiária outorgada em 18.07.2019 consubstanciaram um conjunto que foi cabalmente alterado pelo testamento de 02.12.2019 em que foram instituídos novos herdeiros e nomeados novos legatários, sendo a própria distribuição dos legados sido completamente alterada e ocorrendo, com efeito, a substituição da totalidade do elenco de sucessores;
XIX. Desse contexto se infere a vontade da testadora de excluir a A. da sua sucessão e do acesso ao seu património, ficando sem efeito a designação beneficiária por si estipulada e que foi justamente essa a sua intenção;
XX. Atendendo à total disjunção entre o último testamento e as disposições mortis causa anteriormente celebradas, não faz sentido uma tese que considerasse que, quisesse a de cujus que alguma delas, pela mera circunstância de não estar integrada em testamento, subsistisse;
XXI. Quis a de cujus, com o seu último testamento, revogar a designação beneficiária feita em 18.07.2019 – o que fez validamente;
XXII. Inexiste nos autos qualquer prova da adesão à cláusula beneficiária por parte da Autora; muito menos, naturalmente, que essa aceitação tenha sido anterior à revogação.
XXIII. Assim, também por força do regime do contrato a favor de terceiro – artigo 448º/1 do CC - se chega à conclusão da livre revogabilidade da cláusula beneficiária.
XXIV. A Decisão sob recurso viola o disposto nos artigos 448º/1 e 2187°/1 do C. Civil.
Pede assim a revogação da decisão sob recurso e que seja proferido acórdão que declare a procedência do recurso e a improcedência da ação.
A A. respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
I. A Ré lançou mão do presente recurso por não se conformar com a Douta decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou totalmente procedente a ação e a condenou a entregar à Autora o valor correspondente ao reembolso das unidades de participação do contrato de adesão ao Fundo BBVA Multiuso Conservador, com o n.º …, conta …, acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
II. Entende a Ré, que a revogação da Cláusula Beneficiária pode ser efetuada mediante disposição testamentária, sendo o contrato celebrado pela de cujus qualificável como sendo um contrato de adesão a fundo de pensões aberto.
III. Não disputa a A. que é possível ao participante dispor sobre o destino da sua participação por ocasião da sua morte, resulta do próprio contrato de adesão que “Em caso de morte: No caso de não designar qualquer beneficiário ou de os beneficiários designados não se encontrarem vivos à data em que teriam direito ao recebimento de qualquer benefício, os mesmos serão pagos aos seus herdeiros legais. No entanto, poderá, em que momento, alterar os seus beneficiários designados.”.
IV. Não pode, no entanto, deixar de discordar da interpretação efetuada pela Ré das clausulas contratuais do Fundo outorgado pela mesma, ora
V. O Fundo de Pensões BBVA Multiactivo Conservador aqui em causa, mais não é do que um contrato celebrado entre a subscritora e o BBVA que se rege nos termos da legislação dos planos de poupança reforma (PPR).
VI. Sobre este instrumento jurídico vigora o DL n.º 158/2002, de 2 de Julho que, no seu preâmbulo, alude à sua importância como forma de orientação de capitais para a poupança a médio e longo prazo destinada a satisfazer as necessidades financeiras inerentes à situação de reforma.
VII. Nos termos do seu art.º 1º, o plano poupança-reforma (PPR) é um certificado nominativo de um fundo de poupança que pode revestir a forma de fundo de investimento mobiliário, de fundo de pensões ou, equiparadamente, de fundo autónomo de uma modalidade de seguro do ramo «Vida».
VIII. Para a hipótese de morte do participante, o seu art.º 7.º, nº 4 estatui o seguinte: “Por morte, aplicam-se as seguintes regras quanto ao reembolso: a) Quando o autor da sucessão tenha sido o participante, pode ser exigido pelo cônjuge sobrevivo ou demais herdeiros legitimários, independentemente do regime de bens do casal, o reembolso da totalidade do valor do plano de poupança, salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro, e sem prejuízo da intangibilidade da legítima;”
IX. Estamos assim perante um negócio jurídico celebrado entre a subscritora/participada e o BBVA, nos termos do qual e ao abrigo do pertinente Regulamento (juridicamente, um verdadeiro conjunto de cláusulas contratuais gerais), a primeira fez entrega ao segundo de certos recursos pecuniários (unidades de participação) e ficou investida no direito de, conforme os casos, receber deste certo rendimento mínimo anual, ser reembolsada das entregas feitas e seu acúmulo de rendimento, e obter a conversão do capital acumulado numa pensão. Porém, para o caso de morte, ficou estabelecido, de novo em decorrência do previsto no Regulamento, que o capital acumulado era para ser entregue a certas pessoas, neste caso a Autora.
X. Deste modo, entendemos estar perante uma contratação a favor de terceiros no figurino da promessa a cumprir depois da morte do promissário.
XI. Como nos diz Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, II, 10ª ed., p. 410), “O contrato a favor de terceiro é o contrato em que um dos contraentes (promitente) atribui, por conta e à ordem do outro (promissário), uma vantagem a um terceiro (beneficiário, estranho à relação contratual. Essencial (…) é que os contraentes procedam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (…) a terceiro ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário. Assim se distingue o verdadeiro contrato a favor de terceiro daqueles contratos (obrigacionais) cuja prestação principal se destina a terceiro, mas sem que este adquira previamente, segundo a intenção dos contraentes e o próprio conteúdo do contrato, qualquer direito (de crédito à prestação)”, sendo que “o benefício do terceiro nasce diretamente do contrato (…), e não de qualquer ato posterior. Isso não significa que o seu nascimento não possa ser diferido para momento posterior à celebração do contrato, se a lei (art.º 451º, nº 1 ou os contraentes (mediante condição ou fixação de prazo) assim o determinarem”.
XII. Acrescente-se, a propósito, que, dentro dos princípios da liberdade contratual (v. art.º 405º nº 1 do CCivil), a estipulação a favor de terceiro pode traduzir-se, em relação às partes contratantes (promitente e promissário), numa cláusula acessória (v. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 12ª ed., p. 237) e a aquisição do direito pode estar subordinada a certas condições ou sujeita a termo (v. Antunes Varela, ob. cit., p. 421). Nesta medida, e nomeadamente, a existência ou a exercitabilidade de certos efeitos do negócio podem ser sujeitos à condição potestativa da sua revogação, como podem ser postos na dependência de um acontecimento futuro mas certo, como é o caso da morte, de tal modo que os efeitos só começam ou se tornam exercitáveis a partir desse momento (termo suspensivo ou inicial).
XIII. Ora, não tendo a subscritora/participada exercido em seu benefício pessoal a faculdade que lhe assistia nos termos contratados, após o seu falecimento, essa prestação passou automaticamente a ter como sujeitos ativos a beneficiária designada, devendo o BBVA transferir o capital acumulado para a esfera jurídica da terceira beneficiária, pois que foi precisamente isto que lhe foi cometido contratualmente pela promissária para o caso da sua morte.
XIV. Nesta situação, o capital é devido diretamente aos beneficiários, não passando pelo património do promissário nem, consequentemente, fazendo parte da respetiva herança. Neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça – Processo n.º 2303/12.2YXLSB-B.L1.S1 – 6.ª Secção – Relator José Rainho – de 10/01/2017 – disponível em WWW.DGSI.PT.
XV. Ainda, e conforme bem decidiu o Tribunal a quo, é por força do contrato que a beneficiária adquirirá o direito a exigir o reembolso, em caso de morte da subscritora, de forma autónoma e estranha à sucessão, ficando liberta da ação de herdeiros e credores da herança. É certo que, até ao falecimento da subscritora, a beneficiária será apenas titular de uma expectativa de aquisição da titularidade daquele direito. Na verdade, se o beneficiário adquirisse um verdadeiro direito, com a subscrição do contrato, tal direito seria penhorável e transmissível aos seus herdeiros, o que não se verifica já que apenas terá a expectativa de obter uma vantagem patrimonial. Porém, com a morte da subscritora esse direito consolida-se na sua esfera jurídica, como direito próprio.
XVI. Havendo cláusula beneficiária, apenas o beneficiário pode exigir o reembolso da totalidade do valor do plano de poupança, devendo a Sociedade Gestora dar cumprimento ao contratualmente estipulado, sem prejuízo da instabilidade da legítima. Ou seja, a sociedade gestora não tem que se preocupar com a sucessão ou a partilha de bens, às quais é alheia. O beneficiário, adquire por morte do subscritor um direito próprio e não um direito à herança ou a um legado.
XVII. Se a cláusula beneficiária tem que fazer parte do contrato, contendo a identificação da beneficiária, então, também a revogação de tal cláusula terá que operar por força de aditamento/alteração ao contrato, o que não foi o caso dos autos.
XVIII. Integra os termos do contrato de adesão ao Fundo uma declaração de beneficiário em caso de morte assinada pela subscritora D, onde se pode ler que “nos termos do previsto no art.º 4º, n.º 7 alínea a) do Decreto-lei 158/2002 de 2 de Julho, declaro que é minha vontade expressa que, por meu falecimento, os valores de reembolso do contrato de adesão n.º … do Fundo de Pensões Multiativo Conservador conta …, sejam pagos aos seguintes beneficiários: beneficiário 1(nome completo, BI e Morada): TG, cartão de cidadão n.º …, NIF n. …”
XIX. Daqui resulta, não merecendo, no nosso modesto entendimento, qualquer censura à decisão proferida pelo Tribunal a quo.
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.ºs 635º n.º 4 e 639º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a) A impugnação da matéria de facto;
b) A natureza jurídica do contrato e em que termos é admissível a revogação da sua cláusula beneficiária.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 18 de Junho de 2019 foi subscrito por D, contribuinte fiscal n.º …, um fundo de pensões junto da R., designado de “BBVA Multiativo Conservador” na importância de €305.000,00 (trezentos e cinco mil euros).
2. Ao referido contrato de adesão foi dado o n.º …, conta …, cfr doc. 1.
3. Consta como única beneficiária do contrato celebrado a A., TG.
4. A subscritora do Fundo de pensões, D, faleceu no dia 16 de Maio de 2020 – cfr. Doc. 2.
5. A A. entrou em contacto com a R. para solicitar o reembolso das unidades de participação do fundo, tendo sido informada que o mesmo já tinha sido resgatado.
6. Questionada a R. sobre o pagamento a pessoa diversa da Beneficiária do Fundo, respondeu nos seguintes termos:
“(…) Com efeito, voltamos a frisar que o primeiro testamento da Exma. Senhora D. D (de ora em diante, a "Participante"), veio posteriormente a ser revogado por outro testamento público, no qual não constava a V. representada, a Exma. Senhora TG, como herdeira testamentária.
Ora, a figura da revogação testamentária, faculdade irrenunciável que assiste ao testador a todo o tempo, permite-lhe modelar os efeitos, mormente por via da sua extinção, das deixas testamentárias realizadas por meio de testamento pretérito.
Assim, integrando a posição no fundo de pensões o património da Participante, não podemos ignorar as disposições testamentárias relativas à globalidade desse património, quando em conflito com a cláusula beneficiária.
Efetivamente, constatámos que vem o testamento posterior da Participante a mostrar-se incompatível com a manutenção da cláusula beneficiária celebrada aquando da subscrição do FUNDO BBVA MULTIATIVO CONSERVADOR pela Participante, sendo as disposições do segundo e último testamento relativas à globalidade do património da Participante.
Concomitantemente, à data da efetivação dos putativos direitos da V. representada, que operariam mortis causa por referência à pessoa da Participante, a V. representada não era, à luz do testamento então em vigor, herdeira testamentária da Participante, não tendo, adicionalmente, até à presente data, apresentado prova que corrobore facto diverso, termos em que nos cumpre reiterar que:
I. Não assistem à V. representada quaisquer direitos, ao abrigo da cláusula 9º n.º 4 al. a) e b) do Regulamento do FUNDO BBVA MULTIATIVO CONSERVADOR; e
II. Consequentemente, verificando-se a inexistência de base contratual que legitime o nascimento dos estatutos supra elencados, não goza a BBVA Fundos de legitimidade para proceder a qualquer transferência de fundos a terceiros que não se encontrem abrangidos pelas disposições dos regulamentos dos fundos de pensões à sua gestão. (…)” cfr. documento 3.
7. Resulta da cláusula 9.º n.º 4 al. a) e b) do Regulamento do FUNDO BBVA MULTIATIVO CONSERVADOR que o reembolso das unidades de participação é feito da seguinte forma:
“a) Adesão individual
Os Participantes ou os Beneficiários poderão optar por qualquer das modalidades de pagamento de benefícios legalmente autorizados e a partir da data de reforma, de reforma antecipada ou pré-reforma. Sempre que for legalmente permitido, poderá ainda o reembolso se solicitado nos casos de incapacidade permanente para o trabalho, desemprego de longa duração ou doença grave, entendidos e documentados estes conceitos nos termos da lei em vigor para os produtos do regime PPR e ainda em caso de morte dos Participantes, pelos seus herdeiros ou às pessoas que estes designarem como Beneficiários, nos termos estabelecidos no Plano de Pensões.
b) Adesão coletiva
Nos casos de adesão coletiva, o pagamento dos benefícios será efetuado de acordo com o estabelecido no Plano de Pensões. Se este for contributivo, as contribuições efetuadas pelos Participantes poderão ser reembolsadas nos casos previstos no Plano de Pensões e ainda nos casos de desemprego de longa duração, doença grave e incapacidade permanente para o trabalho, entendidos e documentados estes conceitos de acordo com a lei em vigor para os produtos do regime PPR e ainda em caso de morte dos Participantes, pelos seus herdeiros legais ou às pessoas que estes designarem como Beneficiários, nos termos estabelecidos no Plano de Pensões .”.
8. A R. entregou o produto do resgate das Unidades de Participação a Pedido da Cabeça-de-Casal da herança, por transferência, para a conta “herança indivisa D” no montante de €338.427,78.
9. D realizou testamento a 8 de Junho de 2018, no qual decidiu: «Que revoga todos os testamentos anteriormente feitos; Que não tem descendentes nem ascendentes vivos e faz este testamento do seguinte modo: - Lega a quantia de vinte mil euros a MR (...); Lega o recheio da sua casa de habitação à associação “Apoiarte Associação de apoio aos artistas” (…); do remanescente da herança institui sua herdeira, TG (…). (doc. 2 da cont.)
10. A 2 de Dezembro de 2019, realizou novo testamento público no qual decidiu: «Que revoga todos os testamentos anteriormente feitos; Que não tem descendentes nem ascendentes vivos; que pelo presente testamento, faz os seguintes legado: a) Deixa a quantia correspondente a dez por cento dos valores depositados nas suas contas bancárias, à data da abertura da sua sucessão, a VF (…); b) Deixa a quantia de cinquenta mil euros, em dinheiro, a FC (…); que institui herdeiras do remanescente da herança, em partes iguais: a) PF (…) e b) TA” (doc. 3 da cont).
Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões suscitadas pela presente apelação, iremos então debruçar-nos sobre elas pela sua ordem de precedência lógica, começando pela impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
1. Da impugnação da matéria de facto.
A Recorrente veio impugnar a decisão sobre a matéria de facto no que estritamente se refere ao ponto 8 dos factos provados, pois aí constaria que entregou, por transferência, o produto do resgate, a pedido do cabeça-de-casal, no montante de €338.427,78, o que não estaria correto por se ignorar o que foi alegado pela R. no artigo 2.º da sua contestação, onde se explicita que o valor entregue foi apenas de €293.632,78.
A Recorrida, nas contra-alegações, nada disse sobre esta matéria.
O Art.º 662º n.º 1 do C.P.C. permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou documento superveniente, impuser decisão diversa.
Nos termos do Art.º 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso, está em causa uma mera alteração de pormenor, que não é de todo despiciendo, que tem a ver com o facto alegado pela R. no artigo 2.º da contestação não ter sido relevado nos seus precisos termos na seleção da matéria de facto constante da sentença recorrida.
Foi aí alegado o seguinte: «2.º O que a Ré fez foi bem diferente: a Ré, sabendo da existência de escritura de habilitação de herdeiros e de testamento que instituía herdeiros e legatários - ponto ao qual regressaremos - entregou o produto do resgate das Unidades de Participação a pedido da cabeça de casal dessa herança, por transferência, para a conta “Herança Indivisa D”, no montante de €338.427,78 (valor que inclui o valor do resgate do Fundo de Pensões Multiativo Moderado “Resgate Total-M”, pelo montante de €293.632,78 e que se encontra em causa nos presentes
autos). (Documento 1, que se junta)» (sublinhado nosso).
A A., respondeu a esse articulado, sem impugnar os factos, limitando-se a dizer, a propósito, no artigo 6.º da resposta que: «6.º Assim, deverão ser consideradas improcedentes por não provadas as exceções alegadas de 1º a 14º da contestação». Portanto, a defesa da A. foi meramente de posicionamento jurídico e não de impugnação dos factos em si mesmo considerados. Pelo que, motivos não existiriam para não dar por assente esse facto, tal como alegado na contestação. Até, porque, em bom rigor, é uma confissão pela R. de facto contrário à sua posição e favorável à parte contrária (cfr. Art. 352.º do C.C.).
Assim sendo, não tendo havido oposição à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, determina-se a alteração do ponto 8 dos factos provados, que passa a ter a seguinte redação:
«8. A R. entregou o produto do resgate das Unidades de Participação (no montante de €338.427,78, que inclui o valor de resgate do Fundo de Pensões Multiativo Moderado “Resgate Total-M”) a pedido da cabeça-de-casal da herança, por transferência, para a conta “herança indivisa D” do montante de €293.632,68».
2. Da natureza jurídica do contrato dos autos e da admissibilidade da revogação da cláusula beneficiária.
A presente ação tem como pretensão principal a condenação da R. ao pagamento à A. do reembolso das unidades de participação a que se refere o contrato de adesão dos autos ao Fundo “BBVA Multiactivo Conservador”, acrescido de juros de mora, tendo em atenção que a subscritora veio a falecer e havia sido estabelecido no contrato que a beneficiária do direito ao reembolso era a A., mas a R. entregou esses valores a pessoa diversa.
A R., por sua vez, veio confirmar que pagou o reembolso a pedido da cabeça-de casal da herança da falecida, porquanto lhe foi apresentado um testamento público que revogou expressamente todos os anteriores, deixando a A. de figurar nele como herdeira, revogando assim também a cláusula beneficiária do contrato de adesão ao Fundo “BBVA Multiactivo Conservador”.
Decorre da matéria de facto que, em 18 de Junho de 2019, D subscreveu por adesão um fundo de pensões junto da R., designado de “BBVA Multiactivo Conservador” na importância de €305.000,00 (trezentos e cinco mil euros) (cfr. doc. n.º 1 junto com a petição inicial).
Esse contrato escrito consta de um “Boletim de subscrição/Contrato de Adesão  Individual”, onde se estabelecem as condições de subscrição com base no valor unitário das “Unidades de Participação”, que teriam o valor mínimo de €25,00 para as subscrições eventuais ou periódicas, estabelecendo-se que o valor líquido recebido seria transferido para o Fundo, sendo convertido em “Unidades de Participação” à cotação em vigor à data da transferência.
Quanto ao reembolso das Unidades de Participação, estabelecia-se que os subscritores ou beneficiários poderiam optar por qualquer das modalidade de reembolso legalmente previstas a partir da data de pré-reforma, reforma antecipada, reforma por velhice, podendo ainda ser solicitado em caso de desemprego de longa duração, doença grave ou incapacidade permanente para o trabalho, nos termos aplicáveis para a legislação aplicável aos planos de poupança-reforma (PPR). Esse reembolso poderia ser feito sob forma de renda, capital ou qualquer combinação destes.
Quanto à situação dos beneficiários, em caso de morte, era estabelecida a seguinte cláusula geral: «No caso de não designar qualquer beneficiário ou de os beneficiários designados não se encontrarem vivos à data em que teriam direito ao recebimento de qualquer benefício, os mesmos serão pagos aos seus herdeiros legais. No entanto, poderá, em qualquer momento, alterar os beneficiários designados».
Segue-se depois um segmento do contrato onde é feita a “Designação de Beneficiário em caso de morte”, donde constam os seguintes dizeres: «Nos termos do previsto no artº 4 nº 7, alínea a) do Decreto-Lei 158/2002 de 2 de julho, declaro que é minha vontade expressa que, por meu falecimento, os valores de reembolso do contrato de adesão n.º … do Fundo de Pensões Multiactivo Conservador, conta …, sejam pagos aos seguintes Beneficiários: Beneficiário 1 (nome completo, BI e marada) TG, cartão de cidadão n.º … NIF …».
Estes contratos eram ao tempo objeto de regulamentação legal que constava genericamente do Dec.Lei n.º 12/2006 de 20 de janeiro, que tinha por objeto regulamentar a constituição e funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões, transpondo para a ordem jurídica nacional a Diretiva Comunitária n.º 2003/41/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 3 de Junho (cfr. Art. 1.º do citado diploma). Aliás, é feita menção específica a este diploma no clausulado do contrato, nomeadamente na “Declaração” que consta do seu final da sua face.
O Dec.Lei n.º 12/2006 de 20 de janeiro veio posteriormente a ser revogado pelo Art. 11.º al. b) da Lei n.º 27/2020 de 23 de julho, que aprovou o regime jurídico da constituição e do funcionamento dos fundos de pensões e das entidades gestoras de fundos de pensões, transpondo a Diretiva (UE) 2016/2341 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de dezembro de 2016, procedendo à quarta alteração ao regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora e resseguradora, aprovado em anexo à Lei n.º 147/2015, de 9 de setembro. Simplesmente, à data do óbito da subscritora dos Fundos, em 16 de maio de 2020 (cfr. facto provado 4), esse novo diploma ainda não tinha entrado em vigor (cfr. Art. 12.º da Lei n.º 27/2020 de 23 de julho) e, portanto, não tem aplicação ao caso.
Ao abrigo da lei aplicável, de 2006, os planos de pensões eram definidos como o programa pelo qual se estabeleciam as condições em que se constituía o direito ao recebimento de uma pensão a título de reforma por invalidez, por velhice ou por sobrevivência ou de qualquer outra contingência equiparável (cfr. Art.º 2.º al. a) do citado Dec.Lei n.º 12/2006 de 20 de janeiro). Sendo os planos de pensões o património autónomo afeto à realização do plano de pensões assim convencionado (cfr. Art.º 2.º al. c) do mesmo diploma).
Esses “Fundos de Pensões” eram geridos por entidades gestoras, subordinados às normas prudenciais estabelecidas nessa lei e sob a supervisão do Instituto de Seguros de Portugal (cfr. Art.s 3.º, 4.º, 66.º e ss. e 93.º do mesmo diploma).
As contingências que podem conferir direito ao recebimento de uma pensão podem ser a pré-reforma, a reforma antecipada, a reforma por velhice, a reforma por invalidez e a sobrevivência, podendo ainda prever-se a atribuição de subsídios por morte a título complementar e acessório (cfr. Art.º 6.º n.º 1 e n.º 2).
Em tudo o que não estivesse especialmente estabelecido nesse diploma legal, os fundos de pensões eram regulados pelas normas aplicáveis à atividade das seguradoras (cfr. Art.º 97.º ainda e sempre do Dec.Lei n.º 12/2006 de 20 de janeiro).
Portanto este tipo de contratos, vivendo paredes meias com a gestão tipicamente financeira de fundos mobiliários, eram essencialmente regulados na lei por semelhança com os contratos de seguro, subordinados a supervisão da entidade reguladora própria: o Instituto de Seguros de Portugal.
Temos de realçar, no entanto, que a Lei n.º 12/2006 de 20 de janeiro não faz menção expressa à revogação do Dec.Lei n.º 158/2002 de 2 de julho, que regulava especificamente os “planos de poupança-reforma” (PPR), sendo que a remissão para este outro diploma também é referida no clausulado do contrato dos autos.
Esse outro diploma, de 2002, já subordinava as entidades gestoras dos fundos à supervisão da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ou do Instituto de Seguros de Portugal, consoante a sua natureza dos fundos de poupança e das entidades gestoras (cfr. Art.º 7.º do Dec.Lei n.º 158/2002 de 2 de julho).
Nessa medida, admitia-se mais claramente que existia uma natureza mista nestes contratos que os assemelhava a realidades compartidas entre o Direito dos Seguros e o Direito dos Valores Mobiliários, que dão forma a um movimento típico contemporâneo de supervisão complementar (vide, a propósito: Menezes Cordeiro in “Direito dos Seguros”, pág.s 322 e ss.).
Em todo o caso, não se nega que a relação jurídica assim estabelecida, por um lado, tem natureza contratual, e por outro, tem como especificidade a possibilidade de nela se preverem prestações em benefício de pessoas que não são partes contratantes. Pelo que, a convocação para o caso do regime jurídico estabelecido no Art.º 443.º e ss. do C.C., relativo aos “contratos a favor de terceiro”, não é de todo despicienda.
Posto isto, debruçando-nos sobre os aspetos centrais deste litígio, verificamos que o Dec.Lei n.º 12/2006 não regula de forma explicita a matéria da possibilidade de alteração das cláusulas beneficiárias em caso de morte do participante nos Fundos, sendo a regulamentação estabelecida no seu Art.º 8.º, relativamente ao cumprimento da obrigação de pagamento dos benefícios, irrelevante para a situação concreta dos autos.
Já o Art. 4.º do Dec.Lei n.º 158/2002 de 2/7, sob a epígrafe “Reembolso do valor dos planos de poupança”, estabelece-se o seguinte:
«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, os participantes só podem exigir o reembolso do valor do PPR/E nos seguintes casos:
«a) Reforma por velhice do participante;
«b) Desemprego de longa duração do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar;
«c) Incapacidade permanente para o trabalho do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar, qualquer que seja a sua causa;
«d) Doença grave do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar;
«e) A partir dos 60 anos de idade do participante;
«f) Frequência ou ingresso do participante ou de qualquer dos membros do seu agregado familiar em curso do ensino profissional ou do ensino superior, quando geradores de despesas no ano respetivo.
«2 - O reembolso efetuado ao abrigo das alíneas a), e) e f) do número anterior só se pode verificar quanto a entregas relativamente às quais já tenham decorrido pelo menos cinco anos após as respetivas datas de aplicação pelo participante.
«3 - Porém, decorrido que seja o prazo de cinco anos após a data da primeira entrega, o participante pode exigir o reembolso da totalidade do valor do PPR/E, ao abrigo das alíneas a), e) e f) do nº 1, se o montante das entregas efetuadas na primeira metade da vigência do contrato representar, pelo menos, 35% da totalidade das entregas.
«4 - O disposto nos nºs 2 e 3 aplica-se igualmente às situações de reembolso previstas nas alíneas b) a d), nos casos em que o sujeito em cujas condições pessoais se funde o pedido de reembolso se encontrasse, à data de cada entrega, numa dessas situações.
«5 - Fora das situações previstas nos números anteriores o reembolso do valor do PPR/E pode ser exigido a qualquer tempo, nos termos contratualmente estabelecidos e com as consequências previstas nos nºs 4 e 5 do artigo 21.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.
«6 - Para efeitos das alíneas a) e e) do nº 1, e sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3, nos casos em que por força do regime de bens do casal o PPR/E seja um bem comum, releva a situação pessoal de qualquer um dos cônjuges, independentemente do participante, admitindo-se o reembolso quando ocorra reforma por velhice ou por obtenção da idade de 60 anos pelo cônjuge não participante.
«7 - Por morte, aplicam-se as seguintes regras quanto ao reembolso: «a) Quando o autor da sucessão tenha sido o participante, pode ser exigido pelo cônjuge sobrevivo ou demais herdeiros legitimários, independentemente do regime de bens do casal, o reembolso da totalidade do valor do plano de poupança, salvo quando solução diversa resultar de testamento ou cláusula beneficiária a favor de terceiro, e sem prejuízo da intangibilidade da legítima;
«b) Quando o autor da sucessão tenha sido o cônjuge do participante e, por força do regime de bens do casal, o PPR/E seja um bem comum, pode ser exigido pelo cônjuge sobrevivo ou demais herdeiros o reembolso da quota-parte respeitante ao falecido.
«8 - A descrição objetiva dos casos previstos no nº 1 e dos respetivos meios de prova, incluindo o das situações descritas nos nºs 6 e 7, será feita em portaria conjunta dos Ministros de Estado e das Finanças, da Educação, da Ciência e do Ensino Superior, da Saúde e da Segurança Social e do Trabalho. 9 - Ao reembolso do valor do PPR aplicam-se todas as disposições dos números anteriores, com exceção da alínea f) do nº 1.
«10 - Ao reembolso do valor do PPE aplicam-se todas as disposições dos números anteriores, com exceção das alíneas a) e e) do nº 1, do nº 6 e do nº 9.
O Art. 5.º imediatamente seguinte, estabelece ainda o seguinte.
«1 - Nos casos previstos no artigo 4.º os participantes, herdeiros ou beneficiários podem optar pelas seguintes modalidades de reembolso:
«a) Recebimento da totalidade ou de parte do valor do plano de poupança, de forma periódica ou não;
«b) Pensão vitalícia mensal;
«c) Qualquer conjugação das duas modalidades anteriores.
«2 - Porém, o reembolso ao abrigo da alínea f) do nº 1 do artigo 4.º só pode ser efetuado uma vez em cada ano, e está sujeito aos limites por educando a fixar por portaria conjunta dos Ministros de Estado e das Finanças, da Educação e da Ciência e do Ensino Superior».
Ou seja, os herdeiros legitimários (cônjuge, descendentes ou ascendentes – cfr. Art. 2157.º do C.C.) podem exigir o reembolso da totalidade do plano de poupança, exceto se houver testamento que disponha em sentido diverso ou tiver sido estabelecido que esse direito pertence a um terceiro identificado como beneficiário.
O sentido desta disposição  legal é claríssimo: por um lado, os herdeiros legitimários não podem exigir a totalidade do reembolso, quando o correspondente direito (entendido como o direito à totalidade da herança) não lhes for reconhecido por força de testamento, por serem instituídos outros herdeiros ou legatários, sem prejuízo de poderem certamente sempre exigir logo a parte que corresponda à sua legítima (cfr. Art.ºs 2158.º a 2162.º do C.C.), respeitando-se assim a regra legal da intangibilidade da legítima; mas, por outro, os herdeiros legitimários também não podem exigir a totalidade do reembolso, quando o participante, autor da herança, designou como beneficiário um terceiro (não herdeiro legitimário), pois nesse caso poderão apenas exigir o reembolso da parte que corresponda à legítima (cfr. Art.ºs 2158.º a 2162.º do C.C.).
Em suma, a relevância legal atribuída ao testamento, quanto ao funcionamento da cláusula beneficiária, esgota-se nos limites estabelecidos à possibilidade de os herdeiros legitimários poderem exigir o reembolso da totalidade do plano de poupança-reforma, na estrita medida em que deve ser sempre respeitada a vontade do autor da herança, quer a contratualmente declarada pela designação nominal de um concreto beneficiário do plano poupança (um terceiro não herdeiro legitimário); quer a vontade testamentária que identifique outros herdeiros, para além dos legitimários. Em qualquer dos dois mencionados casos, sem prejuízo de ser salvaguardado sempre o direito daqueles à legítima.
O testamento não tem assim a virtualidade de, só por si, alterar a cláusula pela qual se faz a designação do beneficiário do plano poupança-reforma em caso de morte do participante.
É certo que o Art.º 2187.º n.º 1 do C.C. estabelece que, na interpretação das disposições testamentárias, observar-se-á o que pareça ser o mais ajustado à vontade real e efetiva do testador, conforme o contexto do testamento.   No entanto, sem necessidade de grandes lucubrações, verifica-se que o testamento nem sequer expressou a vontade expressa no sentido de a A. deixar de ser a beneficiária do plano poupança-reforma convencionado com a R.. O testamento limitou-se a indicar como herdeiros pessoas diversas da A.
É certo que havia um testamento anterior, datado de 8 de Junho de 2018, onde se estabelecem vários legados, atribuindo o remanescente da herança à A. (cfr. facto provado 9), sendo que esse testamento foi revogado pelo datado de 2 de dezembro de 2009, que institui outros legados, fazendo herdeiras do remanescente outras duas pessoas, que não a A. (cfr. facto provado 10). Mas concluir daí que a testadora já não queria que a A. figurasse como beneficiária do plano poupança-reforma, ou dos fundos de pensões, é completamente abusivo e infundado.
Nada, na prática, justifica que não possamos ser levados a pensar que a vontade da testadora se limitou ao entendimento de que a situação patrimonial da A. já estaria devidamente salvaguarda, por ser a beneficiária do plano poupança, não se justificando por isso ser também instituída como herdeira em testamento.
Nada, na prática, nos legitima a conclusão de que a cláusula beneficiária foi revogada, muito menos pelo testamento vigente à data da abertura da sucessão.
Ponto é que, a autora da herança, como é afirmado em ambos os testamentos, não tinha herdeiros legitimários e, portanto, poderia dispor do seu património como bem entendesse, podendo igualmente manter a A. nesta ação como beneficiária do plano poupança-reforma, ou dos fundos de pensões.
Se essa não era a sua vontade, por ter mudado a sua opinião (o que, objetivamente, se desconhece, por nada ter sido alegado nesse sentido), nada a impediria de, ainda em vida, alterar o contrato celebrado com a R.. Como não o fez, o contrato continua a vincular a R. nos seus precisos termos (cfr. Art.º 406.º n.º 1 do C.C.).
Ora, a R., ao arrepio do convencionado, decidiu pagar o reembolso a pessoa diversa. Ao proceder desse modo, incumpriu o contrato e realizou a prestação debitória a quem não era devida, não se tendo assim extinguido a sua obrigação (cfr. Art.º 770.º do C.C.).
Por essa razão, entrou em responsabilidade obrigacional, devendo responder pelos prejuízos a que esse incumprimento deu lugar (cfr. Art.º 798.º do C.C.), o que compreende, para além do cumprimento da obrigação devida, o pagamento de juros de mora a contar da citação, tal como peticionados (cfr. Art.ºs 804.º, 805.º n.º 1 e 806.º do C.C.).
A R. ainda argumentou que, nos termos do Regulamento do Fundo (v.g. Art.º 9.º n.º 1 al.s a) e b)), estaria estabelecido que poderia entregar o valor devido do reembolso à beneficiária ou aos herdeiros. Mas esta cláusula só faz sentido se os herdeiros tivessem efetivamente direito a esse reembolso.
Admite-se que, havendo vários credores relativamente à obrigação de reembolso, pudesse ser estabelecido que a devedora poder-se-ia libertar da sua obrigação mediante o cumprimento a qualquer dos seus credores. Mas, para tanto, necessário seria que o cumprimento da prestação nesses termos servisse o interesse de pelo menos uma pessoa que fosse credora.  Seria o caso, por exemplo, dos herdeiros serem herdeiros legitimários e, por isso, terem direito a parte do reembolso, por força da sua quota legítima. Nesse caso, poderia ser indiferente pagar aos herdeiros ou ao beneficiário. Assim não será quando os herdeiros não têm qualquer direito ao reembolso.
Que sentido faria estabelecer a possibilidade de prestação debitória relativamente a um terceiro que não tem qualquer interesse direto no cumprimento dessa obrigação, não correspondendo esse ato a qualquer tipo de satisfação do interesse do único e real credor?
Julgamos assim que não será por força dessa estipulação do Regulamento que os herdeiros passarão a ter semelhante crédito sobre a R., não fazendo qualquer sentido que esta cumpra a prestação a favor de quem é terceiro, sem interesse atendível e direto na sua realização.
A R. sabia, pela prova documental que lhe foi apresentada, que a participante no plano poupança não tinha herdeiros legitimários, consequentemente não tinha de salvaguardar a possibilidade de estar a ser violada uma hipotética quota legítima. Por isso, só poderemos concluir que, ao proceder como fez, não cumpriu o contrato.
Em face de todo o exposto, só poderemos concordar com a condenação da R. a entregar à A. o valor correspondente ao reembolso das unidades de participação do contrato de adesão ao Fundo 2BBVA Multiuso Conservador”, com o n.º …, conta …, acrescido de juros à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, tal como decidido pelo tribunal a quo, improcedendo as conclusões apresentadas em sentido contrário.
*
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, por não provada, mantendo a sentença recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pelo apelante (Art.º 527º n.º 1 do C.P.C.).

Lisboa, 5 de dezembro de 2023
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
José Capacete