CAIXA GERAL DE APOSENTAÇÕES
ACIDENTE EM SERVIÇO
DIREITO DE REGRESSO
DIREITO DE REGRESSO DA CGA
Sumário

I - Para impugnar a decisão sobre a matéria de facto o recorrente deve manifestar a vontade de que essa decisão seja alterada e, para o efeito, justificar que a decisão está errada e que foi produzida prova em função da qual determinado facto deve ser julgado de modo diferente.
II - Um terceiro responsável civil pelo acidente qualificado como acidente de trabalho ao serviço de entidades empregadoras públicas não tem intervenção no processo de reparação das consequências do acidente em serviço e, quando demandado, tem à sua disposição a totalidade dos meios de defesa, designadamente probatórios, que o meio processual usado para o demandar lhe consente.
III - Nos termos do artigo 34.º DL 503/99, de 20.11, se antes do acidente em serviço o funcionário já tinha lesões ou doenças é necessário apurar se elas determinavam uma incapacidade e, na afirmativa, qual era esse grau de incapacidade.
IV - O exercício do direito de regresso apenas depende de a CGA ter proferido decisão definitiva a reconhecer o direito do trabalhador às prestações, mas se, não obstante isso, o pagamento está legalmente suspenso enquanto determinada situação se mantiver, a CGA não pode exercer o direito ao reembolso enquanto não autorizar em definitivo o pagamento ao trabalhador.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2023:19066.21.3T8PRT.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:



I. Relatório:
A Caixa Geral de Aposentações, I.P., pessoa colectiva de direito público n.º ...68, com sede em Lisboa, instaurou acção judicial contra a A... Company, sociedade irlandesa, com sede em Dublin, Irlanda, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €23.637,94, acrescida de juros até integral pagamento.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que na sequência de um acidente de viação de que, no exercício da sua actividade profissional, foi vítima um agente da PSP do Porto, ocorrido por culpa do condutor do veículo e igualmente agente da PSP, resultaram para aquele lesões corporais que determinaram a abertura de um processo de reparação do acidente nos termos do disposto no regime de protecção social em matéria de acidentes e doenças profissionais ocorridos no domínio da Administração Pública, no qual por resolução da Direcção da CGA de 2020-08-10, foi fixada ao sinistrado a pensão anual vitalícia de €2.825,20, a que corresponde uma pensão mensal de €201,80, cujo cálculo actuarial ascende a €23.637,94 que será abonado ao sinistrado quando cessar a condição legal de suspensão do pagamento.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que o agente da PSP não usava cinto de segurança na altura do acidente pelo que a sua contribuição para o evento deverá ser fixada em não menos de 15%, que era portador de mazelas pré-existentes ao sinistro não sendo as sequelas que apresenta consequência do acidente, que era efectivo da Polícia Municipal do Porto a qual dispõe de autonomia financeira pelo que será ela e não a autora a suportar a pensão, que está por demonstrar se e quando se verificará a cessação da suspensão de pagamento.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. A CGA considera que não bastaria à recorrida simplesmente impugnar a deliberação alcançada pelos três médicos (cf. al. a) do n.º 1 do art.º 38.º do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro) que integraram a Junta Médica referida em H) dos factos assentes.
2. Se o intuito da recorrida era colocar em causa a deliberação alcançada pelo colégio de médicos que integraram a mencionada Junta Médica, deveria, então, a recorrida ter suscitado a realização de prova pericial realizada nos mesmos termos da Junta de acidentes em serviço realizada em 2020-07-14, a qual seguiu - como aliás está obrigada -, os critérios constantes da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho (cf. n.º 5 do art.º 38.º Decreto-Lei n.º 503/99).
3. A questão sobre a Tabela Nacional de Incapacidades a aplicar nestes casos constitui matéria que já mereceu avaliação jurisprudencial, salientando-se o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 2015-06-23, proc. n.º 2988/12.0TBVIS.CL (disponível na base de dados do IGFEJ em www.dgsi.pt), segundo o qual “Em caso de demanda judicial pela CGA contra seguradora, com base em acidente de viação e de serviço, para reembolso da quantia fixada a título de pensão vitalícia ao sinistrado/servidor do estado fundada num determinado grau de IPP, fixado no procedimento administrativo interno pela CGA, deve recorrer-se à Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais para apurar tal grau de IPP e não à Tabela de Incapacidades Permanentes em Direito Civil”.
4. A recorrida optou por simplesmente impugnar a deliberação alcançada na Junta Médica referida em H) dos factos assentes e a arrolar o médico AA como testemunha nestes autos, o qual, como resulta da pág. 4 da sentença, nunca avaliou o sinistrado com base nos critérios da Tabela Nacional de Incapacidades de Acidentes de Trabalho, tendo antes avaliado o sinistrado à luz da Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil.
5. Pelo que considera a CGA que o depoimento do médico AA, testemunha arrolada pela recorrida, não se afigura relevante para efeitos do apuramento da incapacidade decorrente do acidente de que tratam os autos.
6. Segundo a jurisprudência vertida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2019-09-26, proc. n.º 763/17.4T8SNT.L1.L1-6 (disponível na base de dados do IGLU em www.dgsi.pt): “I. Da análise do n.º 3 do artigo 46.º do Decreto-Lei n.º 503/99 de 20 de Novembro, o único pressuposto para que o direito de reembolso da CGA possa ser exercido é ter sido proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da responsabilidade da mesma, não impondo tal norma que tenham sido pagas integralmente as prestações ao subscritor da CGA.”. No entanto, à cautela, para além de ter feito a demonstração de ter sido proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade (cf. I) e J) dos factos assentes), a CGA produziu nestes autos prova documental e prova testemunhal tendente à prova relativa ao grau de IPP resultante do acidente.
7. Como prova documental a CGA carreou aos autos uma certidão, certificando os documentos extraídos do processo administrativo do sinistrado, entre os quais se encontra o Auto da Junta Médica referida em H) dos factos assentes, assinado pelos três médicos que a compuseram e fixaram o grau de IPP de 15% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho (cf. fls. 102 da Certidão) e ainda a deliberação da Junta Ordinária do Comando Metropolitano do Porto da PSP, datada de 2019-11-08, que igualmente fixara um grau de IPP de 15% pelo acidente em serviço (cf. fls. 5 da certidão).
8. Como prova testemunhal a CGA arrolou a médica coordenadora do serviço de verificação de incapacidades deste Instituto Público - que se encontra gravado nos autos - a qual explicitou em audiência de julgamento a composição da Junta Medica prevista na alínea a) do n.º 1 do art.º 38.º do Decreto lei n.º 503/99, o seu funcionamento e forma de apuramento do grau de incapacidade permanente resultante do acidente em serviço.
9. Perante a prova documental e testemunhal produzida por este Instituto Público, dificilmente se compreende o entendimento da sentença recorrida, de que “...não ficou demonstrado que o sinistrado tenha sofrido qualquer incapacidade decorrente do acidente dos autos...”.
10. Estando a CGA convicta de que ficou claramente demonstrado que o sinistrado sofreu um grau de IPP de 15% decorrente do evento danoso, pois foi essa a deliberação a que chegaram quer os três médicos que integraram a Junta Médica referida em H) dos factos assentes quer os médicos que anteriormente já haviam observado o sinistrado na Junta Ordinária do Comando Metropolitano do Porto da PSP de 2019-11-08, que igualmente fixara um grau de IPP de 15% pelo acidente em serviço (cf. fls. 5 da Certidão), de acordo com os critérios que, em sede de audiência de julgamento, foram explicitados pela médica coordenadora do serviço de verificação de incapacidades da CGA.
11. Sobre as eventuais mazelas pré-existentes ao sinistro assinaladas pela recorrida haverá igualmente que contar com a regra jurídica vertida no art.º 34.º Decreto Lei n.º 503/99, onde se estabelece que “...quando a lesão ou a doença resultante de acidente em serviço for agravada por lesão ou doença anterior ou quando esta for agravada por acidente, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse...”.
12. Quanto à responsabilidade pelo evento danoso, a recorrida não impugnou a matéria de facto vertida no art.º 5.º da PI, onde se refere que a responsabilidade pela produção do acidente foi imputada ao condutor do veículo segurado por aquela Companhia, remetendo-se para a prova documental constante a página 17 da certidão junta aos autos pela CGA, que é um documento datado de 10-10-2018, no qual a Companhia de Seguros escreve o seguinte: “Vimos pela presente informar que a responsabilidade pela ocorrência do sinistro foi imputada ao condutor do v/veículo (nosso cliente) Sr. BB, por infracção ao disposto no n.º 1 do art.º 18.º e n.º 1 do art.º 24.º, ambos do Código da Estrada”.
13. Em face de toda a prova testemunhal e documental produzida nos presentes autos e em face do disposto no n.º 3 do art.º 46.º do Decreto Lei n.º 503/99, a CGA considera que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que julgue procedente a presente acção.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado ainda que com fundamentação distinta, requerendo «a ampliação do objecto do recurso (artigo 636, n.º 1 do CPC) aos fundamentos da defesa, o que faz a título subsidiário».
Para o efeito apresentou as seguintes conclusões das alegações:
A. A recorrente interpôs a presente acção visando a condenação da recorrida, acção que veio a ser julgada improcedente.
B. A recorrente pede a revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo defendendo que a decisão proferida pela sua junta médica só poderia ser contrariada por prova pericial colegial, que já não por prova testemunhal
C. E, em simultâneo, criticou a valoração que foi efectuada ao depoimento de uma testemunha, Dr. AA.
D. Ora, pese embora tal crítica, a recorrente não apontou razões que pudessem pôr em causa o princípio da livre apreciação da prova de que goza o tribunal (artigo 607, n.º 5 do CPC),
E. Nem impugnou a matéria de facto dada como provada pelo tribunal, ónus que se lhe impunha pois que pressuposto da alteração pretendida.
F. Olvidou ainda o disposto no artigo 389º do Código Civil, do qual decorre que a força probatória das juntas médicas é fixada livremente pelo tribunal.
G. Incorre em erro a recorrente ao entender que o facto de ter ficado provado que a sua junta médica deliberou que o sinistrado CC tem uma IPP de 15% é facto suficiente para estabelecer qua a mesma deriva do sinistro dos autos,
H. Olvidando inclusive que entre os factos não provados figura o que consta do seu artigo 2º.
I. No mesmo erro labora quando entende que os critérios de avaliação da incapacidade em direito de trabalho, mormente o n.º 2 do artigo 34º do DL 503/99 não são dispares da apreciação do nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano: um tem a ver com a avaliação da incapacidade e o outro com os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.
J. Na realidade a recorrida não cumpriu o ónus da prova (artigo 342º do Código Civil), não tendo conseguido demonstrar que a incapacidade que fixou foi consequência directa e necessária do sinistro de 18/10/2017.
L. Mas ainda que assistisse razão à recorrente, no que não se concede, sempre a sua pretensão teria de decair já que, conforme matéria alegada na contestação, o sinistrado era efectivo da Câmara Municipal do Porto (facto provado N), esta goza de autonomia administrativa e financeira pelo que, por força do artigo 43º do DL 503/99, “a Caixa Geral de Aposentações é reembolsada das despesas e prestações que tenha suportado, caso o serviço ou o organismo da Administração Pública possua autonomia administrativa e financeira.”
M. Acresce que, por força do disposto 46º, também do DL 503/99 de 20 de Novembro, o direito ao reembolso da CGA depende da alegação e prova dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do responsável civil, da alegação e prova de que estamos perante um acidente de serviço e do pagamento ao sinistrado da indemnização, sendo que a recorrente não logrou a prova do 1.º, nem do último.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se as conclusões das alegações de recurso contêm impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
ii. Se a ré para impugnar validamente o resultado da Junta Médica necessitava de requerer a produção de meio de prova idêntico ou semelhante.
iii. Se o depoimento de um médico constitui meio de prova susceptível de abalar a prova produzida no processo de reparação de danos por acidente em serviço.
iv. Se o direito que a autora quer exercer tem como único elemento constitutivo a existência de uma deliberação da Caixa Geral de Aposentações a fixar o valor da pensão.
v. Se o montante do capital necessário ao pagamento da pensão é já exigível quando o pagamento da pensão se encontra suspenso e não teve ainda lugar.

III. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
A. No dia 18 de Outubro de 2017, cerca das 16h55m, na Avenida ..., na cidade do Porto, ocorreu um acidente de trânsito que envolveu a viatura policial da Polícia de Segurança Pública de matrícula ..-NP-...
B. No referido dia, hora e local, o Agente Principal da PSP ...89, BB conduzia o veículo policial, marca Toyota, de matrícula ..-NP-.., transportando, como passageiro, no âmbito do serviço de patrulhamento de fiscalização de trânsito, o Agente Principal da PSP ...80, CC.
C. Ao chegarem ao cruzamento da citada avenida com a Rua ..., o condutor do veículo policial, Agente BB, não conseguiu imobilizar a viatura, à sua frente, da viatura que os antecedia, de matrícula ..-..-HF, marca Renault, modelo ..., pelo que embateram nesta.
D. Face à colisão, o Agente Principal ...80, CC, foi projectado para a frente sofrendo uma pancada na cabeça e ficando com dores na cervical, lombar e membro inferior direito, tendo sido transportado para o Hospital de Santo António em ambulância dos Bombeiros do Porto, onde foi assistido.
E. Em 2020-04-08 foi também requerida na CGA a reparação do acidente nos termos do disposto no regime de protecção social em matéria de acidentes e doenças profissionais ocorridos no domínio da Administração Pública, previsto no Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro.
F. Na data do acidente, o sinistrado, CC, era agente Principal da PSP e subscritor da CGA com o número ...14.
G. O descrito acidente sofrido pelo subscritor da CGA ocorreu no âmbito do serviço de patrulhamento de fiscalização de trânsito.
H. Em 2020-07-14, o sinistrado, CC, foi presente à junta médica da CGA, a qual deliberou fixar uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 15% de acordo com o Capítulo I n.º 1.1.1., alínea c), da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.
I. Por resolução da Direcção da CGA de 2020-08-10, foi fixada ao sinistrado, em reparação do acidente de 2017-10-18, uma pensão anual vitalícia de €2.825,20, a que corresponde uma pensão mensal de €201,80 (€2.825,20/14).
J. A CGA promoveu em 2020-12-14 o cálculo actuarial para apurar o capital necessário para suportar os encargos com referida pensão, o qual se cifrou em €23.637,94.
L. O agente CC não usava cinto de segurança na altura do sinistro.
M. O sinistrado era já portador de mazelas pré-existentes ao sinistro dos autos e designadamente padecia de: a) alterações de tipo neurógeneo a nível dos músculos dependentes do miótomo de L5 bilateral com compromisso radicular lombar; b) lombalgias persistentes; c) insuficiência da veia grande safena direita; d) em L4-L5 protusão discal posterior de base larga; e) em L5-S1 protusão discal posterior; f) em L3-L4, L4-L5 e L5-S1 alterações degenerativas; g) hemangioma no corpo de L2; h) irregularidades das plataformas vertebrais de L5-S1 com esclerose circundante; i) tumor cerebral, entre outras.
N) O sinistrado era à data do sinistro, situação que se mantém na presente data, efectivo da Policia Municipal do Porto.
O) O Município do Porto, incluindo no período em que se encontrou de baixa por força do sinistro, sempre lhe liquidou integralmente o salário e abonos a que tinha direito.

IV. Matéria de Direito:
Na fundamentação de direito da sentença recorrida afirma-se que «não ficou demonstrado que o sinistrado tenha sofrido qualquer incapacidade decorrente do acidente dos autos, pelo que a presente acção terá de improceder».
O fundamento da improcedência da acção foi assim a falta de demonstração de que o evento – o acidente ocorrido durante a circulação rodoviária de um veículo automóvel cuja responsabilidade estava transferida, por contrato de seguro para a ré, e em função do qual esta é demandada – tenha sido causa das lesões e da incapacidade do funcionário público a cujo ressarcimento se destina a pensão cujo reembolso é peticionado pela autora Caixa Geral de Aposentações.
Aquela afirmação, que a ora recorrente, na conclusão 9, considera que «dificilmente se compreende», é uma afirmação, repete-se, em sede de fundamentação de direito, a qual, consequentemente, pressupõe a leitura da fundamentação de facto da sentença. Essa fundamentação de facto é constituída somente pelos factos provados, sobre os quais recai em exclusivo a tarefa da determinação, interpretação e aplicação da lei.
Efectivamente é impossível não concordar que na fundamentação de facto da sentença inexiste qualquer facto que associe em termos de causalidade o evento em função do qual a ré pode ser responsabilizada às lesões e à incapacidade permanente a que se reporta a pensão de que a autora quer ser reembolsada. O que a fundamentação de facto da sentença revela é que ocorreu um acidente, que o funcionário público circulava como passageiro no veículo acidentado, que em consequência da colisão dos veículos sofreu dores - alínea D) -, que quase três anos depois foi aberto processo por acidente de trabalho por referência a esse acidente e que nesse processo a Junta Médica da CGA deliberou fixar uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 15% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais.
Em simultâneo o tribunal a quo julgou não provado o seguinte facto: «em consequência do evento de 18-10-2017, o sinistrado, CC, tenha ficado a padecer de uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 15% de acordo com o Capítulo I n.º 1.1.1., alínea c), da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais».
Para compreender o que o tribunal a quo pretendeu assinalar com este julgamento da matéria de facto, veja-se o que consta da correspondente motivação: «No que tange à matéria não provada resultou de insuficiência ou ausência de prova nesse sentido, mormente quanto à incapacidade alegada do sinistrado; bem como quanto ao nexo de causalidade decorrente do acidente de viação de 18-10-2017, porquanto o resultado a que chegou a junta médica da CGA, foi impugnado pela ré, não tendo sido requerida, nomeadamente prova pericial, ao que acresce o depoimento do médico AA que se afigurou fundamentado, com base nas patologias pré-existentes. O depoimento de DD não tem a virtualidade de pôr em causa as conclusões de AA, desde logo porque não observou o sinistrado, e colocou meras hipóteses de possibilidade de agravamento de lesões prévias
Portanto, o tribunal a quo considerou que estava validamente impugnado o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões que posteriormente o funcionário apresentava e na presença das quais lhe foi fixada a IPP de 15%, designadamente porque antes do acidente o funcionário já tinha várias patologias ósseas passíveis de gerar uma IPP por evolução natural ou por agravamento subsequente a um sinistro, o que carecia de ser apurado e não foi.
Perante isto, querendo que da fundamentação da sentença passe a constar um facto revelador desse nexo de causalidade, a recorrente necessitava de impugnar a decisão sobre a matéria de facto quanto ao ponto concreto acima assinalado e preencher os requisitos processuais específicos dessa impugnação.
É essa a primeira das muitas questões que o recurso suscita: a autora impugnou a decisão sobre a matéria de facto, permitindo a esta Relação alterar a decisão sobre o ponto 2 dos factos julgados não provados?
Há impugnação da decisão sobre a matéria de facto quando o recorrente manifesta a vontade de que a decisão relativa à matéria de facto seja alterada e, para o efeito, sustenta que essa decisão está errada, que os meios de prova foram avaliados de forma incorrecta, que foi produzida prova em função da qual determinado facto deve ser julgado de modo diferente, e, por fim, especifica o sentido e conteúdo da decisão que pretende seja proferida.
Havendo impugnação da decisão sobre a matéria de facto, coloca-se então a questão de saber se estão cumpridos os respectivos requisitos, o que inclui a questão de saber onde devem eles mostrar-se cumpridos.
Estipula, com efeito, o artigo 640.º do Código de Processo Civil que para impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Para cumprir essa exigência, o recorrente deve individualizar os factos que estão mal julgados, especificar os meios de prova concretos que impõem a modificação da decisão, indicar a decisão a proferir e, tratando-se de depoimentos de testemunhas gravados, precisar as passagens do depoimento que tal hão-de permitir.
A individualização dos factos pode ser feita de vários modos, mas no mínimo a escolha feita pelo recorrente tem de permitir que não sobrem dúvidas razoáveis sobre o facto cuja decisão é impugnada, uma vez que não cabe à Relação decidir ela mesma face às alegações apresentadas qual ou quais os factos cujo julgamento pode reapreciar e cuja decisão pode alterar, vigorando nesse particular sem reservas o princípio do dispositivo. Também o requisito na indicação da decisão a proferir não é cumprido se apenas se mencionar que a decisão é errada e deve ser alterada. É indispensável indicar como deve então ser decidido o facto, qual a decisão que o tribunal deve proferir, qual a redacção que deve ser dada ao respectivo enunciado de facto.
Por outro lado, as alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir (artigo 639.º do Código de Processo Civil).
Constitui jurisprudência firme que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das alegações de recurso, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se estas forem de conhecimento oficioso e contenderem com o objecto do recurso (artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil).
A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas, e não propriamente do corpo das alegações (ainda que estas possam servir para interpretar aquelas) que se devam interpretar e balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado.
Servindo as conclusões de recurso para sintetizar as questões que se pretende que o tribunal aprecie e o sentido com que as deverá decidir, no caso em que uma dessas questões é a impugnação da decisão da matéria de facto, terão forçosamente de fazer parte das conclusões itens especificando essa pretensão.
Por fim, refira-se que o Supremo Tribunal de Justiça tem uma posição clara e firme quanto a quais e qual ao local onde os requisitos específicos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto devem ser cumpridos para que se possa falar em cumprimento válido (nas conclusões das alegações) e quanto à consequência do seu incumprimento (a imediata rejeição do recurso, nessa parte, sem qualquer convite ao aperfeiçoamento) – cf., entre muitos outros, os Acórdãos de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, de 18.02.2016, proc. n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03.03.2016, proc. n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12.05.2016, proc. n.º 324/10.9TTALM.L1.S1, de 07.07.2016, proc. n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, de 27.10.2016, proc. n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, de 13.10.2016, proc. n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, de 22.02.2017, proc. n.º 1512/07.0TB CSC.L1.S1, de 22.03.2018, proc. n.º 290/12.6TCFUN.L1.S1, de 16.05.2018, proc. nº 2833/16.7T8VFX.L1.S1, de 05.09.2018, proc. n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2, de 31.10.2018, proc. n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1, de 22.11.2018, proc. n.º 2337/06.6TBTVD.L1.S2, de 19.12.2018, proc. n.º 271/14.5TTMTS.P1.S1, de 13.01.2022, proc. n.º 417/18.4T8PNF.P1.S1, de 18.01.2022, proc. n.º 243/18.0T8PFR.P1.S1, todos in www.dgsi.pt –.
A posição do Supremo Tribunal de Justiça, que é igualmente a nossa, é a de que para cumprir minimamente os requisitos específicos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e permitir que essa seja uma das questões a apreciar pelo tribunal de recurso, o recorrente tem de indicar, nas conclusões das alegações de recurso, pelo menos, quais os concretos pontos da matéria de facto cuja decisão pretende ver modificada e qual o sentido da decisão que deve ser proferida sobre eles (os restantes requisitos podem estar cumpridos apenas no corpo das alegações). A ausência dessas indicações nas conclusões das alegações é motivo de rejeição imediata da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Tendo estas ideias presentes cremos dever concluir que no caso as conclusões das alegações de recurso não contêm, do ponto de vista formal e material, uma impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Com efeito, o que a recorrente faz ao longo das suas alegações é mostrar a sua divergência em relação à conclusão que o tribunal a quo escreveu na fundamentação de direito da sentença recorrida, esquecendo que essa conclusão advém da interpretação da fundamentação de facto e que para o efeito de obter a modificação daquela conclusão havia a necessidade de impugnar o respectivo pressuposto factual, isto é, o julgamento da matéria de facto, ou seja, necessitava de manifestar a sua discordância com a decisão de julgar não provado o facto do ponto 2 do elenco dos factos não provados e requerer que o mesmo fosse julgado provado.
Sucede que em nenhuma das conclusões das alegações de recurso encontramos a manifestação de vontade de que a decisão sobre a matéria de facto seja modificada nalgum ponto concreto, ou especificamente que o facto julgado não provado sob o ponto 2 seja julgado provado, nem a indicação concreta da decisão que deverá ser proferida sobre esse ponto, sendo certo que para o efeito não basta que a recorrente «se considere convicta de algo (cf. início da redacção da conclusão 10), é indispensável que dirija ao tribunal a pretensão concreta de que este decida algo e o quê.
A constatação de que a recorrente não impugnou de forma válida a decisão sobre a matéria de facto não encerra o assunto porque a recorrente invoca questões de natureza puramente jurídica que podem viciar a decisão sobre a matéria de facto e das quais cumpre conhecer.
A primeira questão consiste na tese de que para impugnar validamente a deliberação da Junta Médica de atribuição de uma IPP a ré deveria «ter suscitado a realização de prova pericial realizada nos mesmos termos da Junta de acidentes em serviço realizada em 2020-07-14».
Este argumento não procede.
O Decreto-lei n.º 503/99, de 20.11, estabelece o regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública.
Nos termos dos artigos 5.º, n.º 3, e 34.º, n.º 1, daquele regime nos casos em que se verifique incapacidade permanente ou morte, compete à Caixa Geral de Aposentações a avaliação e a reparação dos danos sofridos pelo funcionário, designadamente o pagamento das pensões e outras prestações previstas no regime geral.
Nos termos do n.º 1 do artigo 38.º a confirmação e a graduação da incapacidade permanente são da competência da junta médica da Caixa Geral de Aposentações, composta, no caso de acidente em serviço, por um médico da Caixa Geral de Aposentações, que preside, um perito médico-legal e um médico da escolha do sinistrado.
O n.º 7 da mesma disposição consagra que as decisões da junta médica são notificadas ao trabalhador e à entidade empregadora. E o artigo 39.º estabelece que o sinistrado ou o doente pode solicitar à Caixa Geral de Aposentações a realização de junta de recurso, mediante requerimento, devidamente fundamentado, a apresentar no prazo de 60 dias consecutivos a contar da notificação da decisão da junta médica, sendo que a junta de recurso terá a mesma composição da junta médica, mas deve ser integrada por médicos diferentes dos que intervieram na junta inicial, à excepção do médico da escolha do sinistrado ou doente, que pode ser o mesmo.
Por conseguinte, no processo de reparação do acidente intervêm o trabalhador e a entidade empregadora ou, nos casos em que a promoção do processo é da Caixa Geral de Aposentações, esta entidade, sendo certo que apenas o sinistrado goza do direito de requerer a junta de recurso, no caso de discordar da decisão da Junta Médica.
Daqui resulta que o terceiro eventualmente responsável civil pelo acidente qualificado como acidente de trabalho ao serviço de entidades empregadoras públicas não tem intervenção no aludido processo de reparação das consequências do acidente. Não tendo intervenção no aludido processo, o seu direito de defesa relativamente à responsabilidade por tal acidente não pode ficar subordinado ou condicionado às regras, condições e procedimentos do regime jurídico dos acidentes em serviço no âmbito da Administração Pública, rectius, às regras de um procedimento a que é totalmente estranho e no qual não pode exercer o contraditório, como não pode ficar vinculado ao ali decidido.
Destarte, uma vez demandado, com fundamento no direito de regresso ou direito ao reembolso, pela entidade chamada a suportar as consequências danosas do acidente em serviço para o funcionário, esse terceiro tem à sua disposição a totalidade dos meios de defesa que o meio processual usado para o demandar lhe consente ou proporciona. Logo, pode perfeitamente impugnar os factos alegados para o demandar e utilizar os meios de prova lícitos que entender para procurar tornar duvidosos os factos alegados pelo demandante e/ou demonstrar os factos por si alegados. É essa a essência constitucional do seu direito de defesa.
Dito por outra palavra, pode recorrer a todos os meios de prova legais, aspecto que não se confunde com o de saber se os meios usados produzem o efeito probatório almejado, o que já não se prende com a legalidade do uso do meio de prova (se está vinculado a usar determinado meio de prova ou impedido de usar outro) mas antes com o valor probatório do meio produzido, ou seja, é uma pura questão de julgamento da matéria de facto.
Esta conclusão resolve de imediato a tese esgrimida de seguida pela recorrente, segundo a qual a testemunha arrolada pela ré, médico de profissão, não é «relevante» para apuramento da IPP.
A Junta Médica é constituída por médicos e a matéria que lhes é dada a apreciar e decidir tem natureza médica, pelo que o depoimento de outro médico não pode deixar de constituir um meio válido de produção de prova da IPP. Questão diferente é se o seu depoimento (singular) possui valor probatório suficiente para excluir ou tornar duvidosa a posição (colectiva) dos médicos que intervieram na Junta Médica, mas esta é de novo uma pura questão de julgamento da matéria de facto, não de admissibilidade ou legalidade do meio de prova.
Refira-se, aliás, que este não é o único meio de prova que coloca em causa a conclusão da Junta Médica. Com efeito, a certidão junta pela própria autora inclui documentos onde outros médicos expressam idêntica opinião quanto à preexistência de lesões e à incapacidade permanente que delas já derivava (cf. folhas 83, 84 e 85 da certidão).
A segunda questão de direito colocada pela recorrente baseia-se no n.º 2 do artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 503/99.
Nos termos dessa norma, «quando a lesão ou doença resultante de acidente em serviço ou doença profissional for agravada por lesão ou doença anterior, ou quando esta for agravada pelo acidente ou doença profissional, a incapacidade avaliar-se-á como se tudo dele resultasse, salvo se, por lesão ou doença anterior, o trabalhador já estiver a receber pensão ou tiver recebido um capital de remição».
Se bem entendemos a tese da recorrente, por força desta disposição as lesões ou doenças anteriores ao acidente em serviço não são autonomizadas para efeitos de apuramento da incapacidade e tal como ela terá de pagar a pensão correspondente à incapacidade global apurada por último, também pode exigir do terceiro o reembolso da correspondente quantia.
Esta tese é igualmente improcedente.
A norma em questão apenas estabelece que para efeitos de apuramento da incapacidade permanente a existência de lesões ou doenças anteriores ao acidente não obriga a distinguir o que é efeito delas e o que é efeito do acidente de serviço. Mas esta disposição tem de ser conjugada de imediato com o número seguinte do mesmo preceito legal, segundo o qual «no caso de o trabalhador estar afectado de incapacidade permanente anterior ao acidente ou doença profissional, a reparação será apenas a correspondente à diferença entre a incapacidade anterior e a que for calculada como se tudo fosse imputado ao acidente ou doença profissional».
Por outras palavras, o regime do n.º 2 só se aplica no caso de as lesões ou doenças anteriores não determinarem incapacidade; se, pelo contrário, dessas lesões ou doenças já advinha um grau de incapacidade então é indispensável determinar qual era a incapacidade preexistente e qual é a incapacidade conjunta porque a reparação apenas corresponderá à diferença entre ambas. Logo, resulta claro dos nºs. 2 e 3 do artigo 34.º que quando antes do acidente em serviço o funcionário já tinha lesões ou doenças é necessário apurar se elas determinavam uma incapacidade e, na afirmativa, qual era esse grau de incapacidade para decidir se se aplica o n.º 2 ou o n.º 3.
Acresce que esta disposição legal é uma norma do regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, ou seja, rege sobre a relação funcional entre o trabalhador e a entidade patronal e/ou a entidade encarregue de reparar as consequências das lesões sofridas pelo funcionário em consequência de um acidente de serviço. Este regime jurídico não possui normas de responsabilização de terceiros pelas consequências danosas do evento; essa responsabilidade é sempre determinada segundo o regime geral ou particular aplicável ao evento danoso ou à actividade no decurso do qual ela ocorre.
Mesmo o artigo 43.º, que estabelece o direito da Caixa Geral de Aposentações a ser «reembolsada das despesas e prestações que tenha suportado pela entidade empregadora», não é uma norma legal de responsabilização do terceiro a quem seja imputável a culpa do evento danoso, é somente uma norma que consagra de forma expressa que a natureza infortunística da Caixa Geral de Aposentações não a priva de exigir do responsável pelo acidente o ressarcimento dos encargos que aquela veio a suportar em consequência do evento imputável a este.
Do que se trata, portanto, é de deixar claro que a natureza e as finalidades da Caixa Geral de Aposentações não privam o terceiro de responsabilidade pelos danos que o evento danoso causou … se, nos termos gerais do direito, por eles for responsável.
Por essas razões podemos concluir que a ré podia efectivamente impugnar de forma válida, como fez, não apenas o apuramento da incapacidade que esteve na origem da fixação do capital cujo reembolso vem pedido pela autora, como o nexo de causalidade entre o evento pelo qual ela é responsável civilmente e a incapacidade que após esse evento o lesado veio a apresentar. Tal como podia requerer a produção de qualquer meio de prova legal para tornar duvidosos os factos alegados pela autora ou procurar demonstrar os factos por si alegados. Cabia depois ao tribunal, em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto, apreciar o valor probatórios desses meios de prova e julgá-los suficientes ou insuficientes para a demonstração de tais factos, julgamento que depois teria de ser impugnado pela recorrente para obter uma decisão diferente.
Não tendo essa impugnação sido deduzida, a questão que se pode colocar é somente se a constituição do direito de reembolso da autora se basta com a deliberação da Caixa Geral de Aposentações que fixou uma pensão no âmbito do processo de acidente em serviço aberto na sequência do acidente e na sequência da decisão da Junta Médica de considerar que o funcionário sinistrado apresentava uma IPP de 15%.
Nesse particular seguir-se-á o que o ora Relator já expendeu no Acórdão desta Relação de 14.07.2020, no proc. n.º 1642/15.5T8PVZ.P1, confirmado por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.2020, ambas as decisões publicadas in www.dgsi.pt
O pedido de reembolso deduzido pela autora tem como fundamento legal o artigo 46.º[1] do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro, cuja redacção é a seguinte:
1- Os serviços e organismos que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no presente diploma têm direito de regresso, contra terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional, incluindo seguradoras, relativamente às quantias pagas.
2- O direito de regresso abrange, nomeadamente, as quantias pagas a título de assistência médica, remuneração, pensão e outras prestações de carácter remuneratório respeitantes ao período de incapacidade para o trabalho.
3- Uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, a Caixa Geral de Aposentações tem direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial.
4- Nos casos em que os beneficiários das prestações tenham já sido indemnizados pelo terceiro responsável, não há lugar ao seu pagamento até que nelas se esgote o valor da indemnização correspondente aos danos patrimoniais futuros, sem prejuízo do direito de regresso referido no número anterior, relativamente à eventual responsabilidade não abrangida no acordo celebrado com terceiro responsável.
5- Quando na indemnização referida no número anterior não seja discriminado o valor referente aos danos patrimoniais futuros, presume-se que o mesmo corresponde a dois terços do valor da indemnização atribuída.
Este preceito estabelece, portanto, que uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, a Caixa Geral de Aposentações tem direito de regresso contra terceiro responsável, incluindo seguradoras, por forma a dele obter o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial.
Os factos constitutivos deste direito, que a norma qualifica como direito de regresso, parecem assim ser i) os pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do responsável civil, ii) os factos que integrem a qualificação como acidente de serviço e iii) a existência de uma decisão definitiva sobre o pagamento ao sinistrado da indemnização devida em conformidade com o regime jurídico de acidentes de serviço e das doenças profissionais, no âmbito da Administração Pública[2].
Nessa medida, sem a demonstração de que a causa do acidente foi um acto culposo do condutor do veículo cuja responsabilidade civil emergente da circulação estava transferida para a ré por contrato de seguro, que entre esse acto e as lesões sofridas pelo funcionário existe um nexo de causalidade e que estas lesões geraram a incapacidade permanente que justifica o valor da indemnização atribuída ao funcionário e fixada pela Caixa Geral de Aposentações não podem considerar-se preenchidos os pressupostos legais do direito de regresso reclamado pela autora.
Refira-se que ainda que a recorrente tivesse impugnado a decisão sobre a matéria de facto e logrado convencer esta Relação de que, não obstante os meios de prova produzidos pela ré, consta dos autos prova suficiente para se julgar provado que em consequência das lesões sofridas no acidente em serviço referido pela autora o funcionário ficou afectado de uma incapacidade permanente de 15% (considerando, como se nos afigura possível, que a avaliação da Junta Médica deve prevalecer por se tratar de um órgão colegial representativo dos dois interessados no caso e de uma decisão de peritos médicos rotinados nessa avaliação proferida após observação do funcionário), a acção devia ser julgada na mesma improcedente.
Com efeito, existe uma diferença entre o direito de regresso previsto nos nos. 1 e 2 e o direito de regresso previsto no n.º 3 do artigo 46.º citado.
Naqueles números prevê-se o direito dos serviços que tenham pago aos trabalhadores ao seu serviço quaisquer prestações previstas no referido regime jurídico contra o terceiro civilmente responsável pelo acidente ou doença profissional. Trata-se, portanto, do direito de que são titulares os serviços com o qual o trabalhador tem o vínculo profissional, ao serviço do qual este se encontrava aquando do acidente. O seu direito depende de o serviço ter pago ao seu funcionário prestações previstas no regime jurídicos dos acidentes em serviços, designadamente despesas de assistência médica e remunerações, e tem por medida o valor efectivamente pago ao trabalhador a esse título.
O n.º 3 refere-se já não ao direito dos serviços de que o trabalhador é funcionário, mas ao direito da Caixa Geral de Aposentações.
No caso de sofrer um acidente de serviço, o trabalhador tem o direito à reparação dos seus danos em dinheiro recebendo, designadamente, a remuneração no período das faltas ao serviço motivadas por acidente em serviço ou doença profissional, e uma indemnização em capital ou pensão vitalícia correspondente à redução na capacidade de trabalho ou de ganho, no caso de incapacidade permanente (artigo 4.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 503/99, de 20 de Novembro).
Nos casos em que se verifique incapacidade permanente ou morte do trabalhador é à Caixa Geral de Aposentações que compete a avaliação e a reparação dos danos sofridos pelo seu subscritor (artigo 5.º, n.º 3). O direito consagrado no n.º 3 do artigo 46.º reporta-se a esta obrigação pecuniária da Caixa Geral de Aposentações perante o trabalhador.
No entanto, uma vez que em grande parte essa obrigação se estrutura mediante pagamentos que irão ser feitos no futuro ao longo da vida do trabalhador, a norma legal em apreço não confere à Caixa Geral de Aposentações um direito de regresso que se vá constituindo à medida que cada pagamento vá sendo feito e na medida de cada pagamento efectuado. A norma atribui à Caixa Geral de Aposentações um direito de regresso cuja medida e extensão é o valor do capital calculado nesse momento como necessário para assegurar o pagamento do conjunto das prestações, incluindo as prestações futuras.
É por isso que para a constituição do direito de regresso a norma não exige a demonstração de que a CGA efectuou o pagamento das quantias reclamadas: uma vez que se trata de um capital destinado a assegurar o pagamento da totalidade das prestações, incluindo prestações futuras, esse pagamento não estará, por definição, feito, ainda que possa estar iniciado.
Percebe-se assim que o facto constitutivo do direito de regresso (deva ele ser classificado como verdadeiro direito de regresso ou de sub-rogação legal[3]) da Caixa Geral de Aposentações (é só desse que tratamos) seja não o pagamento ao trabalhador lesado das prestações a que o mesmo tem direito em consequência do acidente de serviço ou tão pouco o início do seu pagamento, mas apenas a decisão definitiva da Caixa Geral de Aposentações que reconheça ao trabalhador o direito às prestações[4]. A decisão definitiva da entidade com competência legal para avaliar e reparar os danos, concretiza o direito do trabalhador ao recebimento dessas prestações e faz nascer a obrigação da Caixa de pagar as prestações cujo direito reconheceu[5].
O objectivo da norma parece aceitável. Uma vez que existe um responsável directo pelos danos e é sobre este em última instância que recai a obrigação de indemnizar os danos que causou, a intervenção da Caixa Geral de Aposentações tem somente a função de garantir que o trabalhador será sempre indemnizado, mesmo que o responsável civil não o faça ou não tenha meios económicos para o fazer. Por isso, decidido em definitivo que o trabalhador tem direito a uma prestação, a CGA não poderá recusar-se a pagá-la ao trabalhador assim que este lha exija, pelo que está justificado que o esforço da reunião do capital necessário ao pagamento dessas prestações (presentes e futuras) recaia de imediato sobre o responsável pelas lesões que as determinaram[6].
No caso, o funcionário continua a receber a remuneração do seu trabalho. Por esse motivo, como o trabalhador não pode acumular a pensão com a remuneração correspondente ao exercício da mesma actividade, o pagamento da pensão encontra-se suspenso. Tanto quanto nos quer parecer, o pedido de reembolso da CGA não pode deixar de ser afectado por suspensão do pagamento.
Na verdade, ignora-se se aquela sustação do pagamento virá em algum momento a ser levantada e se a informação de que a CGA diz depender o pagamento irá interferir com o cálculo efectuado, isto é, com o valor das prestações que a CGA irá efectivamente suportar e em função das quais se procede ao cálculo do capital.
Tendo a CGA sustado o pagamento das pensões atribuídas por se verificar um impedimento legal do seu pagamento não pode excluir-se a possibilidade de as pensões que a CGA atribuiu não chegarem nunca a ser pagas, designadamente se o trabalhador continuar a receber os seus salários da entidade patronal e vier a receber da seguradora (leia-se do responsável) uma indemnização para ressarcimento integral de todos os danos presentes e futuros que para si resultaram do acidente.
Ora não nos parece que a lei possa consentir que a CGA obtenha a condenação da ré a pagar-lhe um capital que ela pode nunca vir a ter de despender a favor do seu subscritor.
O direito ao reembolso do capital nasce, nos termos do n.º 3 do artigo 46.º do 503/99, de 20 de Novembro, com a decisão definitiva de atribuição ao trabalhador das pensões relativas à incapacidade permanente porque a lei pressupõe que a partir desse momento a CGA vai logo necessitar desse capital para pagar tais prestações.
Estando assente que por enquanto a CGA não vai efectuar esse pagamento e não se sabendo quanto vai durar essa situação e como é que ela cessará relativamente ao valor das prestações a suportar pela CGA, o fim social da norma referida não pode ser alcançado, razão pela qual ela não deve ser aplicada nas concretas circunstâncias que se nos deparam.
A CGA não pode receber já o capital de que necessitará apenas se e quando tiver de pagar as prestações e em simultâneo continuar sem pagar qualquer prestação que pode mesmo nunca vir a ter de pagar.
Claro que nessa situação a improcedência do pedido de reembolso ocorreria por não estar verificada uma condição – não estar ainda autorizado o pagamento das prestações fixadas –. Na situação dos autos improcede por falta de demonstração de um dos requisitos legais do direito de regresso.


V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a sentença recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, a qual vai condenado a pagar à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
*
Porto, 25 de Outubro de 2023.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 776)
António Paulo Vasconcelos
Judite Pires


[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
_____________
[1] A argumentação tecida pela ré em função do disposto no artigo 43.º do mesmo diploma é totalmente descabida no caso porque esse preceito trata do direito ao reembolso da CGA sobre a entidade patronal do funcionário, quando o que está em causa na acção é o direito de regresso da CGA sobre o terceiro responsável pelo sinistro, situação de que trata o artigo 46.º citado no texto.
[2] Segundo se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-07-2016, proc. n.º 1270/13.0TBALQ.L1.S1, in www.dgsi.pt, «Poderá discutir-se a natureza deste direito (cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal de 30/05/2013 (proc. nº 1056/10.3TJVNF.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt) uma vez que a atribuição à CGA da faculdade de exigir a entrega do capital de forma antecipada em relação ao pagamento das pensões ao sinistrado, parece afastar-se tanto do direito de regresso verdadeiro e próprio como da sub-rogação legal, pois que ambas as hipóteses pressupõem que o lesado foi já ressarcido. Independentemente da sua exacta qualificação, o direito da CGA dirige-se contra o terceiro responsável pelo acidente ou seguradora respectiva, e nasce “Uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade” (art. 46º, nº 3, do Decreto-Lei nº 503/99)
[3] Faz a distinção o Acórdão do STJ de 30-5-2013, proc. nº 1056/10.3TJVNF.P1.S1,in www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler: «II - Uma vez proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, a CGA pode reclamar do terceiro responsável, incluindo seguradoras o valor do respectivo capital, sendo o correspondente às pensões determinado por cálculo actuarial. III – Muito embora o art. 46º nº3 do DL nº 503/99 de 20 de Novembro designe este direito como de regresso, tal qualificação é discutível, porquanto um dos pressupostos do direito de regresso é o pagamento ao lesado, e, no caso da CGA, basta a decisão definitiva desta sobre o direito às prestações que lhe compete satisfazer(sublinhado nosso).
[4] Cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 19-10-2017, in www.dgsi.pt, cujo sumário assinala que «Ocorrendo um acidente, simultaneamente de viação e de serviço, imputável a culpa de terceiro e em que é sinistrado um subscritor da C. G. A., esta entidade, depois de proferida decisão definitiva sobre o direito às prestações da sua responsabilidade, goza do direito de regresso contra aquele terceiro responsável, incluindo seguradoras, nos termos do n.º 3 do art.º 46º do DL n.º 503/99, de 20.11, com vista ao reembolso do capital de remição que pagou pela reparação da respectiva incapacidade permanente.».
[5] No sumário do Acórdão da Relação de Coimbra de 23-06-2015, proc. n.º 2988/12.0TBVIS.C1, in www.dgsi.pt, afirma-se identicamente o seguinte: «i) Com o regime jurídico previsto nos art. 592º e segs. do CC, a sub-rogação pressupõe o cumprimento da obrigação por parte do respectivo titular, e a prescrição do respectivo direito só começa com esse cumprimento, como, de resto, decorre do art. 306º, nº 1, 1ª parte, do CC; ii) O art. 46º, nº 3, do DL 503/99, de 20.11, define um regime específico de execução prática da responsabilidade última pela indemnização, em caso de acidente simultaneamente de trabalho e de viação, que não pressupõe o pagamento prévio pela entidade que abonar a pensão por IPP do servidor do estado; assim, a Caixa Geral de Aposentações pode exigir judicialmente a entrega imediata do capital necessário para suportar o encargo do pagamento da pensão, determinado por cálculo actuarial.» (sublinhados nossos).
[6] No Acórdão citado na nota 1 o Supremo Tribunal de Justiça afirma que «…no caso do art. 46º nº 3, do Decreto-Lei nº 503/99, a via fixada pela lei foi a da possibilidade de exigência antecipada do capital necessário – segundo cálculo actuarial – para suportar encargos futuros com a pensão do sinistrado» (sublinhados nossos).