I - A providência de habeas corpus não é, pela sua natureza e finalidade, um recurso, não estando no seu âmbito analisar o mérito da “Decisão que atribuiu a excecional complexidade ao presente processo”, nem eventuais nulidades, irregularidades ou “inconstitucionalidade” de que a mesma possa padecer,
II - Não é o recurso dos recursos, nem o último ratio dos recursos, não servindo para discutir aquilo que nos recursos deve ser discutido, e mais concretamente, para discutir o mérito do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação que negou provimento ao recurso e manteve a decisão de 1.ª instância, mesmo que seja com os argumentos do voto de vencido.
III - A jurisprudência vem considerando, a propósito do recurso, que este é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso. No mesmo sentido, consideram na doutrina, Simas Santos e Leal-Henriques, que há manifesta improcedência do recurso quando, «atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos Tribunais Superiores, é patente a sem razão do recorrente, sem necessidade de ulterior e mais detalhada discussão jurídica» sobre o que vem impugnado.
IV - Perante a indefinição do que se deve entender por petição de habeas corpus “manifestamente infundada”, este é um bom critério de orientação a utilizar, com as devidas adaptações, na providência ora julgada.
Proc. n.º 15/22.8JBLSB-AG.S1
Habeas corpus
I- Relatório
1. Os arguidos AA, BB, CC, DD e EE, sujeitos à medida coativa de prisão preventiva, decretada pelo Tribunal Central de Instrução Criminal - J... ., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, no âmbito do proc. n.º 15/22.8JBLSB, vieram requerer ao Ex.mo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, através de Advogado, a providência de habeas corpus, nos termos e para os efeitos dos artigos 222.º e 223.º do Código de Processo Penal, com os fundamentos que ora se transcrevem:
“1.º A 26 de Novembro de 2022, em sede de primeiro interrogatório judicial, foi determinado aos Arguidos a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, prevista no artigo 202.º do CPP, por se considerar existirem fortes indícios de terem praticado crimes.
2.º Em 4 de Março de 2023 foi requerido pelo Ministério Público que fosse declarada a excepcional complexidade do processo, nos termos do n.º4 do artigo 215.º do C.P.P., com a consequente prorrogação do prazo máximo para conclusão do inquérito e elevação do prazo máximo de prisão preventiva para um ano, nos termos da al. c), n.º2, do artigo 276.º, e n.º3 do artigo 215.º, todos do Código de Processo Penal;
3.º Nesse sentido, no 31 de Março de 2023, foi decretada judicialmente a excepcional complexidade nos presentes autos.
4.º Sucede que os arguidos apresentaram Recurso contra a referida Decisão que atribuiu a excepcional complexidade, especificamente através do Processo: 15/22.8JBLSB-AE.L1, que foi devidamente distribuído à 3a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
5.º O referido Recurso já foi julgado, tendo votado pela manutenção da Decisão que atribuiu a excepcional complexidade as Juízas Desembargadoras Dra. Adelina Barradas de Oliveira e Dra. Ana Paramés. Entretanto, divergiu o Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador Rui Miguel Teixeira.
6.º O voto de vencido foi proferido pelo Venerando Desembargador Titular do processo, Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador Rui Miguel Teixeira, que compreendeu sabiamente que os direitos dos recorrentes não foram devidamente assegurados e revogaria o despacho recorrido, por inexistirem fundamentos para manter a excepcional complexidade.
7.º O voto vencido proferido no Processo: 15/22.8JBLSB-AE.L1 foi enfático em ressaltar que: “Quanto a este segmento, embora se conclua pela gravidade da actuação não resulta qualquer dificuldade de investigação”.
8.º O referido voto vencido destacou ainda que: “É dito que o processo tem 4700 páginas, 67 apensos. Trata-se de um volume grande mas só por si não se sabe o que compõem tais 4700 páginas. Tamanho não é sinónimo de dificuldade só por si”.
9.º O voto vencido é assertivo em referir que: “E dito que foram ouvidas 50 testemunhas. Essas já não há que ouvir. E referido está em falta a inquirição de muitas mais. E pergunta-se quantas mais? E porquê? E porque é que não foram já ouvidas?”
10.º O voto vencido demonstrou toda a sua censura quanto à decisão de atribuição de especial complexidade ao afirmar que: “É que dizer que faltam levar a cabo diligências de prova sem dizer quais e porquê e, ao mesmo tempo permitir que cidadãos aguardem presos preventivamente à espera das tais diligências que se desconhecem não tem respaldo legal”.
11.º O voto vencido tece sérias críticas à atribuição de especial complexidade ao ponderar que: “São referidas “diligências subsequentes” às inquirições mas quais diligências? É referido que foram apreendidos equipamentos electrónicos e que foi determinado o seu exame pericial. Mas o que se passa com tais exames? Qual a previsibilidade da sua realização? Quanto tempo é que as perícias vão demorar? E se vão demorar onde está a afirmação de tal ? Quem realiza os exames informou do atraso na realização dos mesmos ? E se o fez onde é que o fez ?”.
12.º O voto vencido é categórico em afirmar que: “Ou seja, nenhum dos argumentos avançados, por si ou em conjunto, justifica, nos termos em que o pedido foi feito e deferido, o decretamento da especial complexidade do processo”.
13.º Em linha de conclusão, o voto vencido enaltece que: “A decisão que fez vencimento entrou pelo mesmo caminho. Apoia-se na promoção do Ministério Público mas não esclarece ou fundamenta (até porque não pode) porque é que o processo é especialmente complexo e qual a dificuldade que o mesmo apresenta em relação aos demais. Entendo, assim que os direitos dos recorrentes não foram assegurados e revogaria o despacho recorrido”.
14.º Nesse contexto, justifica-se a apresentação da presente providência de Habeas Corpus pelos arguidos, por forma a verem devidamente tutelados os seus direitos à liberdade individual ambulatória, que deve ser interpretado como um direito fundamental da pessoa e da sua própria dignidade como pessoa humana, tanto é que o referido instrumento é também proclamado em diversas legislações internacionais.
15.º A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura expressamente que ninguém pode ser arbitrariamente detido, tampouco pode permanecer preso preventivamente sem que sejam observadas as formalidades legais.
16.º Portanto, não podem os arguidos, igualmente, serem mantidos privados da sua liberdade com base em uma ordem ilegal de atribuição de excepcional complexidade e decorrente da manutenção da prisão preventiva ilegal.
17.º O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos assegura especificamente que todo o indivíduo tem direito à liberdade pessoal, pelo que segue terminantemente proibida a manutenção da prisão arbitrária, que só poderia ser mitigado se fundamentado por Lei e desde que respeitado todos os procedimentos legalmente estabelecidos.
18.º A Decisão que atribuiu a excepcional complexidade aos autos limitou-se a repetir a Promoção do Ministério Público, pelo que deixou de esclarecer e fundamentar porque é que o processo é especialmente complexo e qual a real dificuldade que o mesmo apresenta em comparação aos demais processos.
19.º No mesmo sentido, é assegurado o direito a recorrer a um Tribunal à toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção, a fim de que este se pronuncie, com a maior brevidade, sobre a legalidade da sua prisão e em caso de manutenção da prisão ilegal, deve ordenar sua liberdade.
20.º A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais resguarda ainda que toda a pessoa tem direito à liberdade, pelo que ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente e desde que tal prisão seja determinada de acordo com o procedimento legal, não podendo jamais exceder os prazos legalmente previstos.
21.º Já a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 27.º, n.º 1, reconhece e garante os direitos à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos e, expressamente, consagra no artigo 31.º, a providência do Habeas Corpus como uma garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão arbitrária ou ilegal, a ser decidida em até 8 dias.
22.º Quanto à competência para decidir sobre a providência liberatória em referência, não pairam quaisquer dúvidas de que tal incumbência recai ao Supremo Tribunal de Justiça, conforme entendimento que decorre do disposto no artigo 222° do CPP.
23.º Nesse sentido, os arguidos reivindicam através do presente remédio excepcional a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para imediatamente fazerem cessar as ofensas ao seu direito de liberdade, eis que a manutenção da prisão é ilegal e reveste-se de notório abusos da autoridade.
24.º Em virtude da ilegalidade e falta de fundamentação para a atribuição da excepcional complexidade, pretendem os arguidos verem restituída a sua liberdade, pois encontram-se ilegalmente privados da sua liberdade física.
25.º Os arguidos requerem que seja identificada a ilegalidade da atribuição da excepcional complexidade, com fundamento no próprio voto vencido proferido pelo Venerando Desembargador Titular do processo, Exmo. Sr. Dr. Rui Miguel Teixeira, proferido no Processo: 15/22.8JBLSB-AE.L1.
26.º Assim, deve ser reconhecida a ilegalidade e inconstitucionalidade da Decisão que atribuiu a excepcional complexidade ao presente processo, conforme o voto vencido proferido no Processo: 15/22.8JBLSB-AE.L1.
27.º A Decisão que atribuiu a excepcional complexidade está eivada de nulidade insanável, por ilegalidade e inconstitucionalidade, que deverá ser reconhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos autos do Habeas Corpus.
28.º Diante da ilegalidade e inconstitucionalidade da Decisão que atribuiu a excepcional complexidade aos autos, a dilatação dos prazos para conclusão do inquérito não se justifica e deve ser reconhecida a sua nulidade.
29.º Através da cessação da excepcional complexidade dos presentes autos, os prazos de duração do inquérito passam a estar excedidos.
30.º Nesse contexto, a decisão que manteve a prisão preventiva em virtude da alegada excepcional complexidade é ilegal e inconstitucional, não podendo os arguidos serem penalizados pela inércia e desrespeito do prazo legalmente instituído.
31.º A prisão preventiva extingue-se, por estar configurada notória ilegalidade, em virtude do excesso de prazo e pela ausência de justificação para a excepcional complexidade.
32.º Tendo sido extrapolado o prazo máximo para que fosse determinada a manutenção da prisão preventiva e estando excedido o limite legalmente instituído de 06 meses de prisão preventiva, os arguidos apresentam o presente Habeas Corpus e requerem seja determinada a libertação imediata.
33.º Ao ser anulada a Decisão que atribuiu a excepcional complexidade aos presentes autos, consideramos que o prazo máximo para dedução do Despacho de Acusação seria o vertido no artigo 215.e, n.Q 2 do CPP, que prevê um prazo máximo de duração da prisão preventiva de 06 (seis) meses, lapso temporal já excedido.
34.º Portanto, deve ser reconhecida a ilegalidade e inconstitucionalidade da Decisão que atribuiu a excepcional complexidade aos presentes autos, pois considera-se ter transcorrido o prazo máximo de 06 meses e considerando que ainda não foi proferido o Despacho de Acusação, a prisão preventiva extingue-se, por estar revelada notória ilegalidade e inconstitucionalidade, em virtude do excesso de prazo.
35.º Nesse sentido, invocamos o disposto no artigo 22.º, n.º 2, al. c) do CPP, que determina que diante do excesso do prazo máximo da prisão preventiva, encontra-se configurado um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, situação ilegal e inconstitucional, não podendo os arguidos serem mantidos em prisão preventiva para além dos prazos fixados legalmente.
36.º Para além disso, invocamos os dispositivos constitucionais pertinentes à matéria, designadamente os artigos 2.º, 20.º n.º 4, 27.º nº 2, 28.º nº 4, 32º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, tudo para dizer que os Arguidos não podem ser mantidos privados da sua liberdade quando esgotado os prazos estabelecidos por lei, sendo certo que deve sempre ser prestigiada a presunção de inocência.
CONCLUSÃO:
Diante do exposto, deve ser reconhecida a ilegalidade e inconstitucionalidade da Decisão que atribuiu a excepcional complexidade aos presentes autos, conforme voto de vencido que foi proferido pelo Venerando Desembargador Titular do processo, Exmo. Sr. Dr. Juiz Desembargador Rui Miguel Teixeira, conforme autos do recurso atrelado ao Processo: 15/22.8JBLSB-AE.L1.
Em virtude do reconhecimento da nulidade insanável da Decisão que atribuiu a excepcional complexidade aos presentes autos, por ilegalidade e inconstitucionalidade, consideramos que o prazo máximo para dedução do Despacho de Acusação seria o vertido no artigo 215.Q, n.Q 2 do CPP, que prevê um prazo máximo de duração da prisão preventiva de 06 (seis) meses, lapso temporal já excedido e a prisão preventiva extingue-se, por excesso de prazo.”.
2. Pelo Exmo. Juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal – J... ., foi prestada a seguinte informação, nos termos do art.223.º, n.º1 do Código de Processo Penal (transcrição):
“1- No dia 26/11/2022, em sede de 1.° interrogatório judicial de arguido detido, foi aplicada aos arguidos AA, BB, CC, DD e EE a medida de coacção de prisão preventiva.
2 - Por se ter considerado encontrar-se fortemente indiciada a prática pelos arguidos, em co-autoria material e em concurso efectivo, dos crimes de associação criminosa, p.p. pelo art. 299.º, de pelo menos (número de vítimas até agora inquiridas) trinta e um crimes de Tráfico de Seres Humanos, p.p. pelo artigo 160.º, de branqueamento de capitais, p.p. pelo artigo 368.º-A, e de vários crimes de falsificação de documentos, p.p. pelo artigo 256.º todos do Código Penal.
3 - No dia 31/03/2023 foi proferido despacho judicial, nos termos dos arts. 215.º, n.º 3, com referência ao art.1.º, al. m), ambos do Cód. Processo Penal, declarando a excepcional complexidade da presente investigação, nos termos e para os efeitos dos arts. 215.º e 276.º, n.ºs 1 e 2 do Código Processo Penal.
4 - No dia 27/09/2023 foi proferido acórdão, pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, mantendo a decisão de declaração de Especial Complexidade nos seus precisos termos.
5 - Tendo presente o disposto no art.215.º, n.as 1, al. a), 2, als. a), d) e e), 3 e 4 do Código Processo Penal, a medida de coacção de prisão preventiva extingue-se decorrido que seja 1 ano sem que tenha sido deduzida acusação.
6 - Nestes termos, tal prazo só terminaria, no que respeita aos arguidos AA, BB, CC, DD e EE, em 26/11/2023.
7 - A medida de coacção de prisão preventiva, aplicada aos arguidos AA, BB, CC, DD e EE, foi reapreciada, e mantida, pela última vez, por despacho judicial datado de 23/08/2023;
8 - Vieram agora os arguidos AA, BB, CC, DD e EE requerer a providência de habbeas corpus, em virtude de prisão ilegal.
Nos termos do art. 222.° do Cód. Processo Penal, a petição de habeas corpus deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
- a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
- b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
- c) manter-se além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.
No caso vertente, não se verificando nenhuma destas situações deverá a presente providência de habeas corpus ser indeferida, por carecer de fundamento legal.”.
3. Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e o Advogado do requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (art.223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP).
II - Fundamentação
4. Das peças processuais juntas aos autos e do teor da informação prestada nos termos do art.223.º do Código de Processo Penal, emergem apurados os seguintes factos relevantes para a decisão da providência requerida:
(i)- AA, BB, CC, DD e EE, foram submetidos a 1.º interrogatório judicial de arguido detido e, no seu final, por despacho proferido no dia 26 de novembro de 2022, considerando que existiam fortes indícios da prática pelos mesmos, em coautoria material e concurso efetivo, de um crime de associação criminosa , p. e p. pelo art.299.º do Código Penal, de pelo menos trinta e um crimes de tráfico de pessoas (número de vítimas até então inquiridas), p. e p. pelo art.160.º do Código Penal, de um crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo 368-A do Código Penal e de vários crimes de falsificação de documentos, p. e p. pelo art.256.º, do Código Penal, foi-lhes decretada a medida coativa de prisão preventiva, nos termos do art.202.º do Código Penal.
(ii)- O Ministério Público requereu, em 4 de março de 2023, a declaração de excecional complexidade dos autos, nos termos do art.215.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, com a consequente elevação do prazo de duração máxima da prisão preventiva para um ano.
(iii)- O Tribunal Central de Instrução Criminal, por despacho de 31 de março de 2023, decidiu, ao abrigo do art.215.º, n.º3, com referência ao art.1.º, al. m), ambos do Código de Processo Penal, declarar a excecional complexidade da investigação, nos termos e para os efeitos dos artigos 215.º e 276.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código.
(iv)- Inconformados com esta decisão de 31 de março de 2023, dela interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, os arguidos AA, BB, CC, DD, EE e FF e, tendo o recurso sido admitido com efeito meramente devolutivo, a 3.ª Secção deste Tribunal da Relação, por acórdão de 27 de setembro de 2023, decidiu negar provimento ao recurso e manter a decisão de declaração de especial complexidade nos seus precisos termos.
O acórdão teve um voto de vencido, onde o Ex.mo Juiz Desembargador, além do mais, consignou o seguinte: “Quanto a este segmento, embora se conclua pela gravidade da actuação não resulta qualquer dificuldade de investigação. (…) É dito que o processo tem 4700 páginas, 67 apensos. Trata-se de um volume grande mas só por si não se sabe o que compõem tais 4700 páginas. Tamanho não é sinónimo de dificuldade só por si. É dito que foram ouvidas 50 testemunhas. Essas já não há que ouvir. É referido está em falta a inquirição de muitas mais. E pergunta-se quantas mais? E porquê? E porque é que não foram já ouvidas? É que dizer que faltam levar a cabo diligências de prova sem dizer quais e porquê e, ao mesmo tempo permitir que cidadãos aguardem presos preventivamente à espera das tais diligências que se desconhecem não tem respaldo legal. São referidas “diligências subsequentes” às inquirições mas quais diligências? É referido que foram apreendidos equipamentos electrónicos e que foi determinado o seu exame pericial. Mas o que se passa com tais exames? Qual a previsibilidade da sua realização? Quanto tempo é que as perícias vão demorar? E se vão demorar onde está a afirmação de tal? Quem realiza os exames informou do atraso na realização dos mesmos? E se o fez onde é que o fez?”. (…) Ou seja, nenhum dos argumentos avançados, por si ou em conjunto, justifica, nos termos em que o pedido foi feito e deferido, o decretamento da especial complexidade do processo. (…) A decisão que fez vencimento entrou pelo mesmo caminho. Apoia-se na promoção do Ministério Público mas não esclarece ou fundamenta (até porque não pode) porque é que o processo é especialmente complexo e qual que o mesmo apresenta em relação aos demais. Entendo, assim que os direitos dos recorrentes não foram assegurados e revogaria o despacho recorrido.”.
(v)- A medida coativa de prisão preventiva de prisão preventiva, aplicada aos arguidos AA, BB, CC, DD e EE, foi reapreciada, e mantida, pela última vez, por despacho judicial datado de 23/08/2023.
(vi)- Não foi ainda deduzida acusação contra os peticionantes.
5. Questão objeto do habeas corpus
Saber se os peticionantes AA, BB, CC, DD e EE, sujeitos à medida coativa de prisão preventiva, se encontram ilegalmente privados de liberdade por se mostrar ultrapassado o prazo de 6 meses vertido no art.215.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem que contra si tenha sido deduzida acusação.
6. Direito
Delimitado o objeto da providência requerida, importa tecer breves considerações sobre este instituto jurídico.
6.1. A liberdade física, liberdade de movimentos, expressão da dignidade da pessoa humana é, desde tempos longínquos, objeto de ilegalidades e violações por abuso de poder.
Como garantia do direito à liberdade física das pessoas e à segurança, o art.27.º, da Constituição da República Portuguesa, formula o princípio de que «todos têm direito à liberdade e à segurança» (n.º1), «e ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão» (n.º2).
Excetua-se deste princípio, a privação da liberdade pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nomeadamente, no caso de «prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.» (art.27.º, n.º 3, al. b) da C.R.P.).
Em reforço do mesmo princípio, o art.28.º da C.R.P. estatui, designadamente, que «A prisão preventiva tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei.» (n.º2) e que « A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.» (n.º4).
A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos nestes preceitos constitucionais.
Para pôr termo à situação de ilegalidade da prisão, o art.31.º da Constituição da República Portuguesa, prevê, como providência específica, o «habeas corpus», dispondo o seguinte:
«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.».
O abuso de poder, referido nesta norma constitucional, traduz uma atuação especialmente gravosa no âmbito dessa ilegalidade, referindo o deputado Barbosa de Melo, em sede de Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, no âmbito da IV Revisão Constitucional, que a ideia por trás da fórmula consagrada no art.31.º, n.º1, “…é que não basta que a prisão viole um aspeto menor, é necessário a violação de um princípio essencial da lei. Uma ilegalidade que é uma mera irregularidade não justifica o habeas corpus que é uma providência excecional.”.1
Anotando este art.31.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira:
“Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27º e 28.º (...).
A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art.27º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc..
Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.
Ainda na doutrina constitucional, Jorge Miranda e Rui Medeiros, em anotação ao art.31.º, n.º1, da Lei Fundamental, defendem, sobre a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus, que esta “…não significa e não equivale á excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.”. 2
Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpus é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”.3
A natureza que esta providência assume na jurisprudência tradicional do STJ, tem sido perfilhada, no essencial, pelo Tribunal Constitucional.4
6.2. O legislador manteve, no atual Código de Processo Penal de 1987, o regime diferenciado de habeas corpus, por detenção ilegal (art.220.º) e, por prisão ilegal (art.222.º), que advém do Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de outubro de 1945.
Dando expressão ao art.31.º da Constituição da República Portuguesa, o art.222.º, do Código de Processo Penal, dispõe que «A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus» (n.º1), estabelecendo como pressupostos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal:
«a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.» (n.º2).
No seguimento do entendimento do habeas corpus, como uma providência extraordinária, a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão.5
A providência de habeas corpus está reservada às situações de clamorosa ilegalidade da prisão, de ilegalidade grosseira, verificável diretamente a partir dos factos documentados, a que urge pôr termo, com caráter urgente, por estar em causa um bem tão precioso como a liberdade ambulatória.
Da essência desta providência extraordinária resulta, ainda, que ela não substitui, nem pode substituir-se aos recursos ordinários, consagrados constitucionalmente no art.32.º, n.º1, da Lei Fundamental, ou seja, não é, nem pode ser meio adequado a pôr fim a todas as situações de ilegalidade de prisão.
A excecionalidade da providência do habeas corpus e a sua separação dos recursos ordinários, é uma constante na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como se mostra sumariado, nomeadamente, nos seguintes acórdãos:
- Acórdão de 02-08-2023 (proc. n.º 405/18.0TELSB-B.S1): “I - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso, não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, cumprindo apenas determinar se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art.222.º, n.º 2, do CPP.”;
- Acórdão de 21-6-2023 (proc. n.º155/20.8JELSB-L.S1): “V. Não cabe à providência aqui acionada substituir-se aos recursos ordinários. Porque a providência de habeas corpus não é um recurso, nem é o recurso dos recursos, nem a última ratio dos recursos, nem serve para discutir aquilo que nos recursos deve ser discutido. VI. A providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso das decisões tomadas numa tramitação processual em que foi determinada a prisão do requerente ou um sucedâneo dos recursos admissíveis.”;
- Acórdão de 16-03-2015 ( proc. n.º122/13.TELSB-L.S1): “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.”6; e
- Acórdão de 1-02-2007 (CJ., ASTJ, XV, tomo I, pág. 180): “I – O habeas corpus não é um recurso, mas uma providência excecional destinada a pôr fim expedito a situações de ilegalidade grosseira, aparente, ostensiva, indiscutível, fora de todas as dúvidas, da prisão”.
No mesmo sentido, na doutrina penalista, referem:
- Germano Marques da Silva: “O habeas corpus não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de ação autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação da liberdade.”7;
- Cláudia Cruz Santos: Os fundamentos de habeas corpus consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus”.8
- Rodrigues Maximiano: “O habeas corpus não tem natureza residual mas sim natureza de uma providência excecional e extraordinária abrangendo as situações de abuso que são distintas das situações de decisão discutível, impugnáveis pela via do recurso”.9
Em matéria de prazos da prisão preventiva, os prazos a considerar são os vertidos do art.215º do CPP, sob a epígrafe «prazos de duração máxima da prisão preventiva», onde se dispõe, nomeadamente, e com interesse para o presente caso:
«1- A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
(…).
2- Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:
a) Previsto no artigo 299.º, no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º, 331.º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e 80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro;
(…)
d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em negócio;
e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;
(…)
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respetivamente, para um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excecional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - A excecional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.».
Como consigna o acórdão do STJ de 16-03-2011, na jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal, são estes os prazos a que o art.222.º, n.º2 alínea c) do C.P.P. se refere para se alegar excesso de prazo de prisão preventiva e não quaisquer outros prazos que corram durante o decurso da prisão preventiva, como os de reexame dessa medida a que alude o art.213.º do mesmo Código.10
Os prazos de prisão preventiva aqui previstos são válidos para as diversas fases processuais nele consideradas, sendo também jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art.215.º, n.º1 alínea a) do Código de Processo Penal, conta-se desde a data do início daquela medida coativa, caducando na data da dedução da acusação.
O juízo sobre a excecional complexidade, a que alude o n.º3 do art.215.º do C.P.P., depende do prudente critério do juiz na ponderação de elementos de facto, constituindo “ um juízo de razoabilidade e da justa medida na apreciação das dificuldades do procedimento, tendo em conta nomeadamente, as dificuldades da investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de actos, as contingências procedimentais das intervenções dos sujeitos processuais, ou a intensidade da utilização dos meios.”.11
Por fim, importa anotar que o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir, salvo se a prisão dever manter-se por outro processo (art.217.º, n.º1, do C.P.P).
6.3. Retomando o caso concreto.
Aceitam os peticionantes que a 26 de novembro de 2022, em sede de 1.º interrogatório judicial, lhes foi aplicada a medida coativa de prisão preventiva, e que o prazo inicial de duração máximo da prisão preventiva até à dedução da acusação, era de 6 meses, nos termos do art.215.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Código de Processo Penal.
Considerando o tipo de crimes imputados aos ora peticionantes, como fortemente indiciados no despacho que lhes aplicou a medida de prisão preventiva, temos esta interpretação da matéria fática como pacífica.
Não é também controvertido que, na sequência de requerimento do Ministério Público, o
Tribunal Central de Instrução Criminal, por despacho de 31 de março de 2023, decidiu, ao abrigo do art.215.º, n.º3, com referência ao art.1.º, al. m), ambos do Código de Processo Penal declarar a excecional complexidade da investigação, nos termos e para os efeitos dos artigos 215.º e 276.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo Código.
Com a declaração da excecional complexidade o prazo de duração máximo da prisão preventiva até à dedução da acusação, elevou-se para 1 ano, nos termos do art.215.º, n.ºs 1, alínea a), e 3 do Código Penal.
Os arguidos ora peticionantes não se conformaram com a decisão judicial de declaração de excecional complexidade dos autos e dela interpuseram recurso, mas o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 27 de setembro de 2023, não lhes deu razão e decidiu “negar provimento ao recurso e manter a decisão de declaração de especial complexidade nos seus precisos termos”.
Porém, como o acórdão da Relação teve um voto de vencido, onde o Ex.mo Desembargador consignou que, no seu entender, o recurso merecia provimento e revogaria o despacho recorrido, vêm os ora peticionantes requerer ao Supremo Tribunal de Justiça, através da presente providencia de habeas corpus, que seja “reconhecida a ilegalidade e inconstitucionalidade da Decisão que atribuiu a excecional complexidade ao presente processo, conforme voto de vencido proferido no Processo: 15/22.8JBLSB-AE.L1” (art.26.º).
Alegam, neste sentido e em síntese, que tal Decisão “está eivada de nulidade insanável” (art.27.º), pois “limitou-se a repetir a promoção do Ministério Público, deixando por esclarecer e fundamentar porque é que o processo é especialmente complexo e qual a real dificuldade que apresenta em comparação com os demais processos” (art.18.º), pelo que, “anulada” que seja a Decisão, sendo o prazo máximo de duração da prisão preventiva de 6 meses, mostra-se já excedido (art.33.º), não podendo ser mantidos os peticionantes nos termos do disposto no art.222.º, n.º2, alínea c), do C.P.P. (art.35.º).12
Vejamos.
A “Decisão que atribuiu a excecional complexidade ao presente processo” é o despacho judicial de 31 de março de 2023, proferido pelo Tribunal Central de Instrução Criminal.
Os erros procedimentais de que padecerá este despacho, nomeadamente, “ilegalidade”, “nulidade insanável” por alegada falta de fundamentação, e “inconstitucionalidade”, deviam ser arguidos no recurso a interpor dessa decisão.
No caso, os ora peticionantes não arguiram qualquer nulidade insanável, falta de fundamentação, ou “inconstitucionalidade”, no recurso que interpuseram para a Relação, incidindo o objeto do mesmo sobre a não verificação dos requisitos necessários à declaração dos autos como de excecional complexidade, por não se mostrar devidamente justificada e amparada em provas robustas e contundentes.
Ao Tribunal da Relação incumbia decidir, com base num critério de razoabilidade e da justa medida na apreciação das dificuldades do procedimento, se no caso se verificavam os requisitos da excecional complexidade do processo, tendo decidido, por maioria, que se verificava essa excecional complexidade.
É manifesto, como atrás se deixou consignado, que a providência de habeas corpus não é, pela sua natureza e finalidade, um recurso, não estando no seu âmbito analisar o mérito da “Decisão que atribuiu a excecional complexidade ao presente processo”, nem eventuais nulidades, irregularidades ou “inconstitucionalidade” de que a mesma possa padecer.13
Por outro lado, a providência excecional de habeas corpus não é o recurso dos recursos, nem o último ratio dos recursos, não servindo para discutir aquilo que nos recursos deve ser discutido, e mais concretamente, para discutir o mérito do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso e manteve a decisão de 1.ª instância, mesmo que seja com os argumentos do voto de vencido.
Nestes termos, a pretensão dos peticionantes de anulação da “Decisão que atribuiu a excecional complexidade ao presente processo” e, implicitamente, a anulação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que o confirmou, extravasa claramente os poderes de cognição do Supremo em matéria de habeas corpus.
A prisão preventiva dos arguidos ora peticionantes foi ordenada por factos pelos quais a lei o permite e, na atual fase processual, face à declaração de excecional complexidade do processo, confirmada pelo Tribunal da Relação, o prazo máximo de duração dessa medida de coação, é de um ano, a contar desde o seu início (26 de novembro de 2022).
Não se mostrando esgotados, nesta altura, os prazos máximos estabelecidos por lei para a duração da prisão preventiva, que o Tribunal de 1.ª instância vem mantendo em reexames, é evidente que a decisão impugnada pelos peticionantes não viola o disposto nos artigos 2.º, 20.º n.º 4, 27.º nº 2, 28.º nº 4, 32º, 202º e 204º, todos da Constituição da República Portuguesa, nem qualquer outro preceito.
Em suma, a medida coativa de prisão preventiva a que se encontram sujeitos os peticionantes mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31.º da Constituição da República Portuguesa e 222.º do Código de Processo Penal.
6.4. O art.223.º, n.º6 do Código de Processo Penal, estabelece que «Se o Supremo Tribunal de Justiça julgar a petição de habeas corpus manifestamente infundada, condena o peticionante ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 30 UC.».
A jurisprudência vem considerando, a propósito do recurso, que este é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso.14
No mesmo sentido, consideram na doutrina, Simas Santos e Leal-Henriques, que há manifesta improcedência do recurso quando, «atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos Tribunais Superiores, é patente a sem razão do recorrente, sem necessidade de ulterior e mais detalhada discussão jurídica» sobre o que vem impugnado.15
Perante a indefinição do que se deve entender por petição de habeas corpus “manifestamente infundada” , aquele é um bom critério de orientação a utilizar, com as devidas adaptações, na providência ora julgada.
O Supremo Tribunal de Justiça considera que uma avaliação perfunctória dos fundamentos do pedido de habeas corpus, nos termos formulados pelos peticionantes, é manifestamente infundado, pelo que devem estes ser condenados numa soma, nos termos do art.223.º, n.º6, do Código de Processo Penal.
III - Decisão
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decidem os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em:
a) Indeferir, nos termos do art.223.º, n.º4, alínea a), do C.P.P., o pedido de habeas corpus peticionado pelos arguidos AA, BB, CC, DD e EE, por falta de fundamento bastante;
b) Condenar cada um dos peticionante nas custas do processo, fixando em 4 (quatro) UCs a taxa de justiça (art.513.º do C.P.P., por aplicação analógica, e art.8.º, n.º 9 e tabela anexa do R.C.J.); e
c) Condenar cada um dos peticionantes, nos termos do art.223.º, n.º 6, do C.P.P., no pagamento de uma soma de 10 (dez) UCs.
Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)
Albertina Pereira (Juíza Conselheira Adjunta)
Vasques Osório (Juiz Conselheiro Adjunto)
Helena Moniz (Juíza Conselheira Presidente da Secção)
____________________________________________
1. Assim, Diário da Assembleia da República, de 12-9-1996, II série –RC, n.º 20, pág. 523 e Cons. Maia Costa, in “Julgar”, n.º29, “ Habeas corpus: passado, presente, futuro”, pág.238.↩︎
2. Cf. “Constituição Portuguesa anotada”, Coimbra ed., 2005, tomo I, págs. 342/343.↩︎
3. Cf. acórdão do STJ de 9/08/2017, in www.dgsi.pt.↩︎
4. Cf. acórdão n.º 423/2003, Proc. n.º 571/2003, de 24.09.03, in www.tribunalconstitucional.pt↩︎
5. Cf. acórdãos do STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196, e de 03-03-2021, proc. n.º 744/17.8PAESP-A.S1, in www.dgsi.pt.↩︎
6. Todos publicitados in www.dgsi.pt↩︎
7. In “Curso de processo penal”, vol. II, Verbo, edição de 2011, pág. 420.↩︎
8. In “RPCC, ano 10, n.º 2, pág. 310).↩︎
9. In “Direito e Justiça”, Vol. XI, 1999, tomo 1, pág. 197, “«Habeas Corpus»,…”.↩︎
10. Cf. proc. n.º 155/10.6 JBLSB, in www.dgsi.pt↩︎
11. Cf. acórdão do S.T.J. de 26-01-2005, proc. n.º 05P3114, in www.dgsi.pt↩︎
12. Por lapso manifesto, o art.35.º da petição refere o “…art.22.º, n.º2, al. c), do CPP”.↩︎
13. Anotamos, ainda assim, a título de obiter dictum, que a falta de fundamentação de despacho judicial (art.97.º, n.º 1, al. b) e 5 do C.P.P.) não integra qualquer nulidade insanável, mas uma simples irregularidade (art.118.º, n.º1 do C.P.P.), que deve ser arguida nos termos e prazo do art.123.º do C.P.P. sob pena de sanação, e que os peticionantes atribuem a “inconstitucionalidade” à Decisão, sem procederem a um enunciado normativo.↩︎
14. Cf. acórdãos do STJ de 01.03.2000 (proc. n.º 2/00-3), de 16.11.2000 (proc. n.°2353/02-3), de 23 de março de 2023 (proc. n.º 428/19.2JDLSB-B.S1), in www.dgsi.pt., e de 26 de setembro de 2023 (proc. n.º 28/20.4SVLSB-C.S1).↩︎
15. Cf. “Recursos Penais”, 9.ª ed. Rei dos Livros, pág. 130.↩︎