COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL MARÍTIMO
ACIDENTE MARÍTIMO
Sumário


A competência para a apreciação de litígios em que esteja em causa a efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente ocorrido no decorrer de actividade marítimo-turística, para observação da vida marinha, pelos danos sofridos por passageiro devido à condução da embarcação durante o transporte marítimo, está deferida ao Tribunal Marítimo.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório
1. ... intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Faro acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Memórias Exímias, Lda., (1.ª Ré), e Victoria Seguros, S.A., (2.ª Ré), pedindo a condenação de ambas as Rés no pagamento à Autora, a título de indemnização:
I) Da quantia de € 35.789,62, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação até integral cumprimento; e
II) Da quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, referente aos valores que a Autora tiver de despender em eventuais intervenções médicas que sejam necessárias em virtude do sinistro sofrido, bem como ao dano biológico que se venha a apurar.

2. Para tanto, e em síntese, alegou que, no dia 26.07.2019, no decurso de uma viagem de barco proporcionada pela 1.ª Ré – proprietária da dita embarcação e que é uma empresa operadora marítimo turística que promove e efectua passeios de barco para observação da vida marinha ao largo da costa algarvia –, sofreu os danos patrimoniais e morais melhor descritos no respectivo articulado inicial, fruto da actuação (pelo menos) negligente da 1.ª Ré, designadamente, da tripulação do referido barco.
Mais alegou que, à data, através da apólice n.º ...34, a 1.ª Ré havia transferido para a 2.ª Ré a responsabilidade civil pelos danos - nomeadamente, causados a terceiros -, resultantes da utilização da sobredita embarcação de que é proprietária e que foi empregue no já mencionado transporte da Autora.

3. Regularmente citada, a 1.ª Ré veio apresentar contestação, na qual se defendeu por impugnação e por excepção, invocando a sua ilegitimidade para os termos da presente acção, alegando que, na data aprazada, quem proporcionou à Autora a sobredita viagem de barco foi a sociedade Wildwatch Algarve, à qual a 1.ª Ré havia cedido a utilização da dita embarcação e da respectiva tripulação entre os dias 23 e 26.07.2019, inclusive.
Por seu turno, a 2.ª Ré, contestando os termos da presente demanda, para além de se defender por impugnação, excepcionou a incompetência material do tribunal, invocando que a Autora exige o cumprimento de obrigações alegadamente resultantes do contrato de seguro (marítimo) titulado pela já mencionada apólice n.º ...34, concluindo ser materialmente competente para tramitar o presente litígio o Tribunal Marítimo de Lisboa, que tem competência territorial alargada ao território nacional.

4. A Autora respondeu às excepções invocadas pelas Rés nos seus articulados, nos termos e com os fundamentos que constam do requerimento com a ref.ª citius 10515344, no qual peticionou, ainda, que fosse admitida a intervenção principal da sociedade Wildwatch Algarve, aproveitando-se, para o efeito, o incidente de intervenção acessória deduzido pela 1.ª Ré.

5. Ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 591.º, n.º 1, alínea d), 593.º, n.º 2, alínea a) e 595.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, dispensou-se a realização de audiência prévia, após o que se conheceu da invocada excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria, decidindo-se:
«…, julga-se procedente a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria do Juízo de Competência Genérica de Lagos para a apreciação do presente litígio e, em consequência, absolvem-se as Rés da instância (ficando, naturalmente, prejudicado o conhecimento das demais questões/excepções invocadas).»

6. Inconformada com esta decisão veio a A. interpor o presente recurso, o qual motivou, concluindo do seguinte modo:
1.ª A única questão colocada à consideração deste Tribunal resume-se a saber qual o tribunal competente em razão da matéria nos presentes autos: o Tribunal Judicial ou o Tribunal Marítimo.
2.ª O Tribunal Marítimo é um Tribunal especializado em questões que envolvam conhecimento técnico sobre sortes de mar, direito ambiental marítimo, achados, recurso das decisões do capitão do porto, contratos de direito comercial marítimo, seguros que envolvam navios, responsabilidade civil envolvendo barcos e navios, etc., com capacidade de julgamento e de decisão quanto a matérias que extravasam o direito genérico e comum.
3.ª Os Tribunais Judiciais, por sua vez, são os Tribunais comuns em matéria cível e criminal, sendo nestes que se resolvem os conflitos atinentes à vida do dia a dia dos cidadãos, independentemente da sua competência ser genérica ou especializada.
4.ª De acordo com o art. 64 do Código de Processo Civil, "São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional." Define-se aqui a competência dos tribunais em razão da matéria, igualmente definida no art. 40 da LOSJ - Lei 6212013, de 26 de Agosto. A mesma Lei determina a competência dos Tribunais especializados, nomeadamente e no que ao presente caso releva a do Tribunal Marítimo, no seu art. 113.°.
5.ª A Sentença que se recorre considera que, face às als. a), c) e D, do artigo 113, acima transcrito, é ao Tribunal Marítimo que compete apreciar e dirimir o conflito dos presentes autos, pois entende que o que aqui está causa é o pedido de uma indemnização por danos causados por um navio ou embarcação em resultado da sua utilização marítima, no decurso de um transporte marítimo e estando em causa um seguro marítimo.
Mas não é assim.
6.ª Tal como defendeu a Recorrente nos autos, em primeiro lugar não estamos aqui em face de uma indemnização pedida por danos causados por uma embarcação, ou resultante da utilização marítima de uma embarcação tout court, ainda que tal, prima fade, possa parecer. O que está em causa nos autos é a existência e determinação de prejuízos causados em virtude de uma determinada acção humana - a condução - que teve como consequência directa, imediata e causal a produção de danos em terceiros, concretamente na aqui A.
7.ª Trata-se aqui de uma simples questão de responsabilidade civil - contratual e extracontratual - enquadrável, como tal, no art. 483 do Código Civil e para a qual não são necessários quaisquer conhecimentos especializados. Não se vê que se tenha de considerar competente para o julgamento da presente acção um Tribunal diferenciado, possuidor de um conhecimento especifico sobre as sortes de mar.
8.ª É esta conduta e o saber se a mesma poderia ou não ter sido levada a cabo de outra maneira que o julgador tem de avaliar. Tal como avaliaria a condução de um veiculo automóvel ou de uma motorizada, não havendo qualquer especificidade na mesma que nos conduza ao Tribunal Marítimo. De acordo com Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2a Edição, págs. 207 e segs), "na base da competência em relação da matéria está o principio da especialização, com a vantagem de reservar para os órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram" ..
9.ª O mesmo se diga quanto à natureza do contrato efectuado pela A. com a empresa detentora da embarcação Lividus, o qual não se pode subsumir a um "contrato de transporte por via marítima". O contrato efectuado pela A. foi um contrato de prestação de serviços turísticos para visualização de cetáceos, no âmbito da actividade de animação turística desenvolvida pela R.
10.ª O transporte por via marítima - seja de pessoas, seja de bens - é o fim em si mesmo, devendo, pela sua óbvia especificidade, ser apreciado, em caso de litigio, num Tribunal especializado. É diferente uma e outra situação e como tal devem ser consideradas.
11.ª Entende o Tribunal A quo que estamos perante um contrato de seguro marítimo e que também por tal facto o Tribunal Marítimo seria o materialmente competente para a apreciação dos autos. E uma vez mais, prima facie, assim é.
Mas, não, não é.
12.ª O seguro aqui em causa, longe de ser um seguro marítimo é um seguro obrigatório de responsabilidade civil e assistência, como se percebe pelos riscos garantidos pela respectiva apólice.
13.ª O contrato de seguro marítimo cobre a perda ou dano físico de navios, cargas, terminais e qualquer transporte pelo qual a propriedade seja transferida, adquirida ou mantida entre os pontos de origem e o destino final." São exemplos de seguros marítimos os Seguros de cascos e máquinas, os Seguros de mercadorias, os Seguros P&I, os Seguros de Portos e terminais marítimos, os Seguros de créditos marítimos, os Seguros de construção e reparação de navios. São estes os contratos de seguros marítimos a que se refere a al. f) do art. 113 da Lei n.º 62/2013 e cujos litígios, pela sua especificidade, necessariamente têm de ser dirimidos em sede própria: um tribunal de competência especializada, máxime, o Tribunal Marítimo.
14.ª Na presente acção não está em causa ou discussão um contrato de seguro marítimo como tal, na acepção de um contrato de seguro próprio da "coisa" marítima. Não há aqui qualquer especificidade que obrigue a que seja o Tribunal Marítimo a apreciar a causa: o seguro de protecção náutica que se acciona é, repete-se, um seguro de responsabilidade civil e assistência, tudo se passando, quanto a este, corno se estivéssemos em face de um seguro automóvel.
15.ª Trata-se, nos termos do art. 14 do D.L. 149/14, de 10 de Outubro e ANEXO II, de um seguro de responsabilidade civil obrigatória, que os operadores marítimo-turísticos são obrigados a efectuar e a manter, destinando-se este a cobrir os danos decorrentes da sua actividade, causados aos utilizadores e a terceiros, pelos quais sejam civilmente responsáveis.
16.ª A competência em razão da matéria afere-se pelos termos em que a A. propõe a acção - pedido e causa de pedir -, ou seja, pela relação jurídica tal como esta é configurada na p.i., devendo também para o efeito relevar a vertente subjectiva, respeitante às partes. A causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer.
17.ª No caso concreto a causa de pedir é complexa, uma vez que deriva de múltiplos factos jurídicos, consubstanciando-se no acidente em si. A causa de pedir invocada pela A. não assenta, como ficou demonstrado, na responsabilidade contratual da 1 B R. por conta do transporte marítimo prestado pela mesma mas sim na responsabilidade contratual por conta de um contrato de prestação de serviços turísticos para visualização de cetáceos. O qual implica, pela sua natureza, uma viagem de barco, mas não é um verdadeiro contrato de transporte marítimo.
18.ª O mesmo se diga quanto ao contrato de seguro no qual assenta a causa de pedir: trata-se de um seguro de responsabilidade civil obrigatório e não de um seguro marítimo.
19.ª Nada, na acção proposta, a não ser o “teatro de mar” estabelece qualquer conexão entre o sucedido e o Tribunal Marítimo: pelo contrário, a matéria em questão é, claramente, do foro civilistico e como tal deve ser tratada, devendo por isso ser considerado competente o Tribunal Judicial da Comarca onde ocorreu o sinistro, ou seja, o Tribunal da Comarca de Faro.
20.ª Tal como a autora configurou a acção, a mesma não articulou quaisquer factos que permitam estabelecer conexão com as matérias integradoras da competência do Tribunal Marítimo: quer o pedido formulado quer a sua causa de pedir, não se encontram abrangidas na competência legal daquele.
21.ª A competência do tribunal em razão da matéria terá de se aferir pela natureza da relação jurídica apresentada pela A. na sua petição inicial e não através da interpretação que os restantes sujeitos processuais lhe pretendam atribuir.
22.ª Neste sentido deverá ser revogado o despacho saneador sentença do qual se recorre e que violou, assim, entre outras as normas constantes do art. 65 do CPC, art. 83, n.º 3 al. c) e art. 113 n.º 1 da lei 62/2013.

7. Não se mostram juntas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a única questão a decidir consiste em aferir da competência material do tribunal para apreciar e decidir a presente acção, concretamente, concretamente saber se essa competência é deferida aos Tribunais Judiciais Cíveis ou ao Tribunal Marítimo.
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III – Fundamentação Fáctico-Jurídica
1. A A./Recorrente discorda da sentença recorrida, enquanto nela se concluiu pela incompetência absoluta, em razão da matéria, do Juízo de Competência Genérica de Lagos para apreciação do presente litígio, por se haver entendido que competente para o efeito era o Tribunal Marítimo.
Vejamos:

2. Nos termos do n.º 1 do artigo 211º da Constituição, “[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas”, acrescentando-se no n.º 2 que “[n]a primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matéria determinadas”.
Em conformidade com a norma constitucional estabelece-se no n.º 1 do artigo 40º da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário - LOSJ), e no artigo 64º do Código de Processo Civil, que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
No artigo 65º do Código de Processo Civil, estabelece-se que: “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
E, do mesmo modo, estabelece o artigo 83º da Lei n.º 62/2013 que “[p]odem existir tribunais judiciais de primeira instância com competência para mais do que uma comarca ou sobre áreas especialmente referidas na lei, designados por tribunais de competência territorial alargada”, os quais “… são de competência especializada e conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável” (cf. n.º 2), encontrando-se o Tribunal Marítimo no leque dos tribunais com competência territorial alargada (cf. n.º 3, alínea c), ao qual compete, nos termos do n.º 1 do artigo 113º, conhecer (entre outras) das questões relativas a: “a) Indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito; (…) c) Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal; (…) f) Contratos de seguro de navios, embarcações, outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo e suas cargas; (…).”

3. Tendo por base este enquadramento jurídico entendeu-se na decisão recorrida que:
«… através da presente acção visa a Autora a condenação das Rés no pagamento das quantias supra referidas em i) e ii) a título de indemnização pelos danos sofridos no decurso do respectivo transporte marítimo, em embarcação de que a 1.ª Ré é proprietária e a qual se encontra segura junto da 2.ª Ré; transporte este realizado na sequência de um serviço contratado pela Autora junto da 1.ª Ré para esse efeito, mais concretamente, para a observação de golfinhos, utilizando, para tal, a dita embarcação marítima.
Portanto, a causa de pedir invocada pela Autora assenta, desde logo, na responsabilidade contratual da 1.ª Ré por conta do transporte marítimo prestado pela mesma e contratado pela própria Autora, bem como no contrato de seguro, do ramo “seguro de embarcações de recreio - protecção náutica”, ao abrigo do qual a 1.ª Ré transferiu para a 2.ª Ré a (sua) responsabilidade pelos “danos resultantes da utilização do Lividus (…), cobrindo os danos decorrentes da actividade marítimo-turística, causados a terceiros por acções ou omissões suas, dos seus representantes ou das pessoas ao seu serviço.” - cf. artigos 126.º e 127.º da petição inicial.
Assim, atentos os termos da acção assim delimitados pela Autora, verifica-se que na mesma se discutem questões - v.g., danos resultantes da utilização (marítima) de embarcações, contratos de transporte marítimo e seguros de idêntico ramo (marítimo) - cujo conhecimento, aliás mais especializado, está reservado aos Tribunais marítimos, desde logo, nos termos das supra transcritas alíneas a), c) e f) da Lei n.º 62/2013, de 26.08, sendo estes, pois, os materialmente competentes para proceder à tramitação dos presentes autos.
Nesta conformidade, atentas as considerações supra expostas e em face do(s) pedido(s) e da causa de pedir desta acção, verificamos que este Juízo de Competência Genérica de Lagos não é materialmente competente para dirimir este litígio, devendo as questões suscitadas nestes autos ser apreciadas e decididas no Tribunal Marítimo de Lisboa - cf. artigo 83.º, n.º 3, alínea c) e n.º 4 da Lei n.º 62/2013, de 26.08, e respectivo anexo III.
Ora, a violação das regras de competência em razão da matéria gera a incompetência absoluta do Tribunal, que consubstancia uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que obsta a que o Juiz se pronuncie sobre o mérito da causa e implica a absolvição do Réu da instância - cf. artigos 96.º, alínea a), 278.º, n.º 1, alínea a) e 577.º, alínea a) do Código de Processo Civil.»

4. A recorrente discorda deste entendimento, argumentando, em síntese, que, não estamos em face de uma indemnização pedida por danos causados por uma embarcação, ou resultante da utilização marítima de uma embarcação tout court, “ainda que tal, prima facie, possa parecer”; que o que está em causa nos autos é a existência e determinação de prejuízos causados em virtude de uma determinada acção humana - a condução - que teve como consequência directa, imediata e causal a produção de danos em terceiros, concretamente na aqui A., tratando-se, pois, de uma questão de responsabilidade civil – contratual e extracontratual –, enquadrável no artigo 483º do Código Civil, e para a qual não são necessários conhecimentos especializados; que o contrato efectuado entre a A. e a empresa detentora da embarcação é um contrato de prestação de serviços turísticos para visualização de cetáceos, no âmbito da actividade turística desenvolvida pela R.; e que o contrato de seguro em causa não é um contrato de seguro marítimo.
Porém, salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

5. Como se sabe, constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário pacíficos que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir) [cf., entre outros, os Acórdão do Tribunal dos Conflitos: de 21/10/04 proferido no Conflito n.º 8/04; de 23/5/2013, Conflito n.º 12/12.; e de 21/01/2014, Conflito n.º 044/13 – disponíveis em www.dgsi.pt].
Ora, em face da causa de pedir invocada e do pedido formulado, não subsistem dúvidas de que com a presente acção visa a A. a efectivação da responsabilidade civil emergente do acidente ocorrido no decorrer do transporte marítimo no âmbito da actividade marítimo-turística que diz ter contratado com a 1ª R., durante a qual sofreu os danos que especifica na petição inicial.
Ou seja, está em causa a indemnização pelos danos sofridos pela A. resultantes da utilização da embarcação marítima onde decorria a dita actividade, nos termos gerais de direito, no caso pelas regras da responsabilidade civil contratual e extracontratual, cabendo, por conseguinte, no âmbito de aplicação da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 113º da Lei n.º 62/2013.
E não impede tal atribuição de competência aos Tribunais Marítimos o facto de a A. imputar a responsabilidade pela produção do evento à “condução” da embarcação pelo “Skipper”, porquanto este dirige a embarcação por conta da R. e esta, além de ter a seu cargo a obrigação de deslocação da A. durante a duração da actividade em causa, que integra a obrigação principal do transporte por via marítima, tem o dever de protecção, indissociável daquela obrigação principal, que é o dever de garantir que o passeio se realize em condições de segurança e que o passageiro chegue incólume ao seu destino.
E é precisamente por estar em causa, como pressuposto da responsabilidade civil assacada à R., a inobservância destas regras de segurança durante o transporte marítimo, em que a A. funda a demanda, que se justifica o deferimento para conhecimento da questão aos tribunais marítimos.
Acresce que, como resulta do que acima se disse, e ao contrário do que entende a A., o contrato em causa, embora tenha uma componente de prestação de serviços para “visualização de cetáceos”, tem como prestação principal a obrigação de transporte, ou seja a deslocação do passageiro contratante do serviço na embarcação marítima durante a duração da actividade, pelo que esta actividade também é subsumível à norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 113º da Lei n.º 62/2013.
E o mesmo se diga em relação à alínea f), porquanto a 2ª R. é demandada por via do contrato de seguro de protecção náutica da embarcação, que cobre os danos decorrentes da actividade marítimo-turística causados a terceiros. E ainda que se trate de um contrato de responsabilidade civil obrigatório para a 1ª R., dada a sua actividade de operador marítimo-turístico, nos termos do artigo 14º do Decreto-Lei n.º 149/14, de 10 de Outubro (que aprova o Regulamento das Embarcações Utilizadas na Actividade Marítimo-Turística) e Anexo II, não deixa de ser um contrato de seguro marítimo de responsabilidade civil, que abrange o transporte marítimo contratado no âmbito da dita actividade.

6. Deste modo, improcede a acção, confirmando-se a decisão recorrida.
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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
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Évora, 23 de Novembro de 2023
Francisco Xavier
Ana Pessoa
Maria João Sousa e Faro
(documento com assinatura electrónica)