I- O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), estando-lhe vedado sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador.
II- A Relação, no julgamento da matéria de facto que lhe cumpre efectuar, nos termos do artigo 607.º, n.º 2 e 3, do Código de Processo Civil, por remissão do n.º 2 do seu artigo 663.º, n.º 2, e no uso do poder-dever conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, daquele Código, não está sujeita às alegações das partes, podendo alterar, no condicionalismo previsto nas ditas normas a matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância, desde que funde a decisão nos factos alegados pelas partes
III- As presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do artº 349º do Cód. Civil, em ilacções que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos).
IV- Se determinadas quantias pagas pelo empregador visavam também o pagamento do trabalho prestado pelo trabalhador no âmbito do contrato de trabalho existente, integrando a retribuição base daquele- cfr. artº 262º, nº 2 , al. a) do CT, não é necessário fazer qualquer apelo à presunção estabelecida no artº 258º, nº 3, do mesmo diploma.
Processo 3641/20.6T8MTS.P1.S1
Revista
119/23
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
AA intentou contra A. .. ...... . ........ ....., Lda, acção declarativa de condenação com processo comum, formulando os seguintes pedidos:
“Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser julgada procedente, por provada, a presente acção e a Ré condenada a pagar ao Autor:
“1 - A quantia de € 21.000,00 a título de remunerações base não pagas;
2 - A quantia de € 4.000,00 a título de subsídio de Férias e de Natal vencidos em 2017 e 2018;
3 – A quantia de € 1.000,00 a título de subsídio de férias em 2019;
4 - A quantia de € 2.000,00 a título de proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal no ano de cessação do contrato;
5 – € 4.211,04 de retribuição de horas de trabalho suplementar prestado em dia de descanso;
6 - € 2.388,27 pelo não gozo de 32 dias de descanso compensatório;
7 - € 187,00 de diuturnidades vencidas;
8 - € 2087,18 de juros de mora vencidos até à presente data sobre todas as quantias anteriores
9 - Nos juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento, contados sobre todas as importâncias peticionadas.”
A Ré contestou.
Por requerimento de 8.10.2020, o Autor veio confessar o facto alegado pela Ré no artigo 36.º da contestação, rectificando o alegado na petição inicial.
Foi proferido despacho saneador e realizada a audiência de julgamento.
Em 1.03.2022, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos, e com fundamento no exposto, julgo parcialmente procedente o pedido formulado nos autos, pelo que condeno a ré no pagamento ao autor da quantia global de €3.923,40, acrescida de juros de mora à taxa de 4% contados desde 31/8/2019 e até efetivo pagamento, correspondendo:
a) a quantia de €2.478,00 a proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal do ano de 2019 (ano da cessação do contrato);
b) a quantia de €1.029,60 a retribuição de trabalho suplementar;
c) a quantia de €228,80 a retribuição por dias de descanso compensatórios não gozados; e
d) a quantia de €187,00 a de diuturnidades.”
O Autor interpôs recurso de apelação.
Em 20.03.2023, o Tribunal da Relação proferiu acórdão com o seguinte dispositivo1:
“Em face do exposto acorda-se em julgar o recurso parcialmente procedente, em consequência do que se revoga a sentença recorrida, que é substituída pelo presente acórdão em que se decide condenar a Ré, J. ...... . ........ ....., Lda, a pagar ao Autor, AA, as quantias de:
A. A quantia de ilíquida de €20.000,00 a título de retribuições em dívida desde 01.01.2018 a 31.08.2019, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do vencimento de cada uma das quantias em dívida até efetivo e integral pagamento;
B. A quantia ilíquida de €1.000,00 a título de subsídios de férias correspondente às férias vencidas em 01.01.2018 (referentes ao trabalho prestado em 2017) acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data em que as respetivas férias foram gozadas até efetivo e integral pagamento;
C. A quantia ilíquida de €1.000,00 a título de subsídios de férias correspondente às férias vencidas em 01.01.2019 (referentes ao trabalho prestado em 2018), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
D. A quantia global de ilíquida de €1.750,00 a título de subsídios de Natal vencidos em 15.12.2017 e 15.12.2018, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde, 16.12.2017 (sobre a quantia de €750,00) e de 16.12.2018 (sobre a quantia de €1.000,00) e até efetivo e integral pagamento”.
A Ré veio interpor recurso de revista, arguindo, além do mais, a nulidade do acórdão, e formulando as seguintes conclusões:
A) A Recorrente vem arguir a nulidade do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, secção social, ao abrigo do disposto do arts. 615.º/1/d), 666º, 684.º, 685.º CPC, aplicáveis ex vi art. 77.º CPT.
B) O objeto do recurso da impugnação de facto é delimitado pela n.º1 do art. 640.º CPC.
C) A Relação excedeu os limites do objeto de recurso definidos pelo A./aí Apelante (art. 640.º n.º1, al. (b) CPC), quando analisou outros meios probatórios para além dos indicados na Apelação.
D) Parece-nos não caber à Relação uma repetição de julgamentos, possibilitadora de uma análise global dos meios de prova, que ignore as concretas divergências dos meios probatórios elencadas pelo Apelante, que fundariam o erro de julgamento.
(E) Isto porque, reconhecendo a atual natureza da autonomia probatória da
Relação, esta na sua atuação não pode ignorar o direito da Apelada de exercer o
contraditório, quando a livre apreciação da Relação se manifesta tão
amplamente como no caso em apreço: o tribunal da segunda instância apreciou
toda a prova e usou ainda de presunção judicial.
(F) Designadamente, o uso de presunção judicial pelo Tribunal da Relação
configura uma decisão de facto, que nos termos do n.º3, do art. 3.º CPC, teria de
ser precedida de audição das partes.
(G) Na realidade, permitindo-se que a Relação atue sem estar limitada às provas
trazidas pelas partes, impede-se o exercício eficaz do contraditório: a liberdade do
julgador não pode ir ao ponto de fazer prevalecer uma solução que as partes não
tiveram oportunidade de debater.
(H) O que constitui uma decisão-surpresa, em resultado do não cumprimento do princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3 do CPC.
(I) A jurisprudência tem, na generalidade, entendido que a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, n.º 1, e 685º do mesmo diploma.
(J) Deve, pelas razões e regras apontadas, ser declarado o Acórdão recorrido nulo, pois ignorando a obrigatória audiência das partes, proferiu decisão-surpresa sobre matéria de facto, nomeadamente exercitando presunção judicial excedendo com a sua atuação os seus limites de pronúncia.
II - Do Recurso (Das Questões de Fundo da Pretendida Revista)
(K) Sem prescindir, vem a Recorrente demonstrar o seu total inconformismo em quatro segmentos: (1.º) violação de regra adjetivo-processual (2.º) da ilegalidade da modificação do sentido da prova (3.º) da discordância com as razões de direito invocadas (4.º) abuso de direito.
(1.º) Da violação de regra adjetivo-processual prevista no art. 662.º CPC
(L) Cremos que, mesmo face à atual amplitude da Relação no julgamento da matéria de facto, quem continua a estar numa posição privilegiada para avaliar credibilidade dos depoimentos é, sem dúvida, o tribunal da 1.ª Instância, que beneficiou da oralidade e da imediação que teve com a prova.
(M) É sempre uma tarefa difícil para o Tribunal superior perscrutar e sindicar qualquer processo de valoração de prova, quando é certo que dispõe de menos elementos e meios menos “ricos” que aqueles de que dispôs o Tribunal a quo
(N) Porquanto o art. 662.º CPC não pode ser entendido como a concessão de um poder discricionário à Relação.
(O) O sentido do art. 662.º, 1 CPC deverá, salvo melhor opinião, implicar que a modificabilidade da decisão de facto só se justificará “se a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior impuserem uma decisão diversa” (art. 662°, n.°1) .
(P) Esta vertente negativa do preceito tem de coexistir com a formulação positiva desse poder-dever.
(Q) O n.º1 do art. 662.º CPC usa a formulação “impuserem decisão diversa”, enunciando um poder-dever de intervenção da Relação que tem de obrigatoriamente intervir quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior impuserem uma decisão diversa (vertente positiva do poder-dever) e está proibida de intervir quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior não impuserem uma decisão diversa (vertente negativa do poder-dever).
(R) O Tribunal ad quem deve evitar, a introdução de alterações à matéria de facto, quando não lhe seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados -como aconteceu no caso em apreço.
(S) Ao modificar a matéria de facto sem esse juízo prévio de necessidade, o Tribunal da Relação fez, conforme o nosso modesto entendimento, violou a regra do art. 662.º, n.º1, na sua vertente negativa.
(T) Pois atuou quando os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento posterior, não impunham uma decisão diversa.
(U) E, em consequência deve ser excluída, porque contra legem, a parte do Acórdão que respeita à impugnação da decisão da matéria de facto, ou seja, todo o ponto 3 do Acórdão.
(V) A aplicação da lei adjetiva pela Relação, em qualquer das dimensões relativas à decisão da matéria de facto provada e não provada, consubstancia violação da lei processual, que pelo disposto no art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, é um dos fundamentos da revista.
(2.ª) Da Ilegalidade da Modificação do Sentido da Prova
(W) Da fundamentação da alteração enuncia o Acórdão: “fazem tais documentos (contrato e recibos) prova de que as partes emitiram as declarações que deles constam (art. 376º, nº 1, do Cód. Civil), mas não já da veracidade dos factos contidos nessas declarações (nº 2 do citado 376º)”.
(X) E como chega a Relação a essa conclusão? Pelo depoimento da testemunha BB, por presunção judicial e pelo depoimento do A..
(Y) O art. 376.º do CC sob a epígrafe “força probatória” dispõe: “1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão (…)”
(Z) A regra geral do ónus da prova (cfr. art. 342.º CC), no caso sub judice, tem a seguinte concretização: sobre o A., Recorrido, impenderia a alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito: os integradores do contrato de trabalho -contraentes, horário, remuneração, período de vigência - e das alterações contratuais ao mesmo - alteração de horário e correspetivo aumento de remuneração.
(AA) Ora, aqui o “contrato de trabalho” foi prova documental junta pelo A., que se aproveitou do seu conteúdo para prova de alguns elementos da sua relação com a R.; e.o., relação de laboral entre A. e R. e a remuneração; pelo que, por efeito das citadas normas legais, designadamente por efeito da indivisibilidade das declarações, se o A. se quer aproveitar parte do seu conteúdo, tem de “aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias” (v. art. 360.º e 376.º, n.º2 CC), mormente, horário e período de vigência.
(BB) As declarações constantes do contrato de trabalho têm conteúdo confessório (cfr. art. 358.º CC), dado que o A., contra os seus interesses, mas a favor dos da R., reconhece que entre ambos vigora contrato de trabalho com horário, período de vigência e remuneração aí plasmada.
(CC) E “a lei não permite ao confitente impugnar a confissão, mediante a simples alegação de não ser verdadeiro o facto confessado. Para lograr o seu objetivo, terá que alegar o erro ou outro vício de vontade de que haja sido vítima, não podendo utilizar a prova testemunhal”( cfr. Acórdão STJ, de 13-04-2011), nem presunção judicial (v. art. 351.º CC).
(DD) O acórdão da Relação também não podia, fazendo uso da sua livre convicção, basear a modificabilidade da prova nas declarações do A. - como fez.
(EE) Primeiro, porque estas declarações não tiveram caráter confessório, pois a confissão pressupõe que os factos confessados sejam desfavoráveis contra o confitente; só aí a sua força probatória será plena. Tanto que o seu depoimento não foi reduzido a escrito visto, como devia, como devia ser, caso tivesse essa característica (art.º 463.º, n.º 1, do CPC).
(FF) Segundo, porque há limites à livre apreciação da prova; ela não abrange “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (cfr. art.° 607.°, n.° 5, do CPC).
(GG) No presente caso, estamos perante uma destas situações: os factos estão plenamente provados por documento.
(HH) Acresce que a Relação deu como provado, através da prova testemunhal, usando as declarações do A. e presunção judicial, convenção em sentido contrário ao conteúdo de um documento particular cuja autoria e assinatura estão reconhecidas, ou seja, deu como provado que as partes acordaram termos diferentes dos constantes na cláusula 4ª e 5.ª do contrato.
(II) Ora, dispõe ainda o art. 394.° CC: “(1) É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores. (2). A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores. (3). O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros”.
(JJ) E esta inadmissibilidade de prova estende-se à prova por presunção judicial por força do art. 351.º CC.
(KK) A jurisprudência tem entendido que a aplicação desta regra não deve ser absoluta: quando exista um começo ou princípio de prova por escrito ou se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita ou em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova.
(LL) No caso presente, não ocorreram nenhuma destas situações excecionais, pelo que o recurso à prova por testemunhas, como à prova por presunção judicial é inadmissível.
(MM) Ora, sendo inadmissível a prova que a Relação usou para alterar o facto n.º 7 de: “pelo menos desde abril de 2017, o autor cumpria 8 horas de trabalho diário, com 40 horas de trabalho por semana” para “a partir de abril de 2017, e para aditar os factos nºs 18 e 19: “Até março (inclusive) de 2017 o A. prestava a sua atividade profissional à Ré em período inferior a 40 horas semanais e 8h horas diárias” e “...passou a prestar de 40 horas semanais e de 8 horas de trabalho diário...", o Venerando Tribunal de recurso violou as enunciadas regras de direito probatório.
(NN) Regras essas, que o Supremo Tribunal pode sindicar analisando o cumprimento ou incumprimento dos princípios de direito probatório. É o que, humildemente, se pede!
(OO) E, dando-se razão à Recorrente neste segmento, terá de se entender que, pelas regras da prova, ficou firmado o conteúdo do contrato de trabalho e, designadamente, das cláusulas 4.º e 5.º do contrato de trabalho:
“4.º Os períodos de trabalho diário e semanal do 2 º Outorgante são, respetivamente, de 8 horas (...)
5 º O presente contrato tem o seu início em 01 de abril de 2016 (...)”.
(PP) Em consequência, deve esse Colendo Tribunal de recurso revogar a modificação da matéria de prova da Relação, neste sentido:
- a redação do 7. dos factos provados deverá retomar a formulação original, eliminando-se a seguinte alteração: “7. A partir de abril de 2017, o autor passou a cumprir 8 horas de trabalho diário, com 40 horas de trabalho por semana”
- eliminado o aditamento 18: Até março (inclusive) de 2017 o A. prestava a sua
atividade profissional à Ré em período inferior a 40 horas semanais e 8h horas
diárias.”
- eliminado o seguinte segmento do aditamento 19: “... passou a prestar de 40
horas semanais e de 8 horas de trabalho diário..."
(QQ) O Tribunal da Relação, no seu douto acórdão ensaia ainda presunção judicial, contra a qual a Recorrente se insurge por violação de regime de prova, fraca logicidade e falta de base.
(RR) Como é comumente aceite, admite-se e é admissível, um controle pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a construção ou desconstrução de presunção judicial, podendo verificar-se a revogar a utilização da mesma pelo Tribunal da Relação, quando este violou alguma norma legal, ou carece de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, ou seja, se o facto conhecido não está provado.
(SS) É esse superior controle da presunção judicial ensaiada pela Relação que, modestamente, se pede.
(TT) In casu, a presunção judicial esgrimida pretendia ser meio de prova para o seguinte o facto desconhecido: - As quantias de €.1000,00 referidas nos n°s 3 e 4 dos factos provados visaram o pagamento, ao A., do trabalho que este, no âmbito do contrato referido em 1) e conforme referido no 7), passou a prestar de 40 horas semanais e de 8 horas de trabalho diário? (facto reapreciado 19.)
(UU) Do Acórdão resulta que a presunção tem por base, outros factos agora reapreciados (factos conhecidos): - 7. A partir de abril de 2017 o autor passou a cumprir 8 horas de trabalho diário, com 40 horas de trabalho por semana. (facto reapreciado 7.); - 18. Até março (inclusive) de 2017 o A. prestava a sua atividade profissional à Ré em período inferior a 40 horas semanais e 8h horas diárias (facto reapreciado 18.).
(W) Ora, como anteriormente concluímos, não é admissível a modificação da prova operada sobre os factos 7. e 18; ficando, deste modo, não provados os factos fundadores da ensaiada presunção.
(WW) E, dito isto, não pode a presunção judicial ensaiada ser positivamente sindicada pois assenta em factualidade não provada.
(XX) E, apenas por esta razão cai por terra a formulada presunção.
(YY) Acresce que, não estando verificada ou provada qualquer alteração do horário do trabalhador em abril de 2017, a explicação do A. deixa de fazer qualquer sentido - fica sem causa o aumento de €1000,00 no salário.
(ZZ) E revela-se a coerência dos argumentos da R.: os 8.000€ transferidos destinavam-se, pura e simplesmente, ao pagamento do contrato de prestação de serviços “Acordo de Confidencialidade e Regulação de Titularidade de Resultados de l&D” (factos provados (8) e (9)).
(AAA) E, nesse contexto, o pagamento tinha como destinatária a sociedade do A. A...... ...... ........... .........., Lda. (consta dos autos prova nesse sentido -v. factos provados (14) e (15).
(BBB) A lógica da hipótese da R. (e a incoerência da hipótese do A. e da presunção) revela-se ainda em outros momentos.
(CCC) Primeiro, o “Acordo de Confidencialidade e Regulação de Titularidade de Resultados de I&D”, por ausência de prova no sentido da cessação, mantém-se em vigor (v. cláusula Décima desse contrato).
(DDD) Segundo, dos factos provados consta que, houve uma transferência para o A., operada pela E... ........... ...., Lda: (4). No mês de agosto de 2017 a sociedade E... ........... ...., Lda. transferiu, a importância de €1.000,00 para crédito nessa mesma conta bancária de depósitos à ordem, de que é 1ª titular a esposa do autor, CC.
(EEE) Esta transferência da sociedade E... ........... ...., Lda., pelo menos, tem de abalar a convicção de que respeitava a contrato de trabalho entre A. e R..
(FFF) Já tem maior coerência a convicção de que se trata de pagamento de serviços de consultoria, pois, como disse o A. “a criação da empresa E..., destinava-se a dar continuidade a esse mesmo projeto [projeto da aqui R.].
(GGG) Terceiro, do email de 03.04.2017 (junto pelo apelante), consta: “Para o valor conversado no sábado e dado que não faz parte do ordenado que usufruo na A. ......, envio um outro NIB de uma conta também minha para realizar essa transferência e que assim nunca haverá qualquer confusão sobre a origem da transferência. É só uma medida preventiva, sabendo que o meu ordenado está no SI Internacionalização e por isso pode ser alvo de auditoria. NIB. .... .... .... .... 2 Banco: Montepio - ...”.
(HHH) Admitimos que este email não é conclusivo, mas cremos que abala- e muito - a lógica da presunção judicial esgrimida pela Relação.
(III) De todo o dito decorre, que, além de ausência de base, tem muitas fragilidades lógicas a presunção da Relação.
(JJJ) O A. também não cumpriu o ónus da alegação do facto que pretende modificação do sentido da prova.
(KKK) Ou seja, o A./Apelante não demonstrou a relação de laboralidade com R. em nenhum momento; designadamente, não alegou e provou a relação de laboralidade da própria prestação de €1.000,00, recebida entre abril e de dezembro.
(LLL) O A. não teve, ao menos, a preocupação de alegar e provar dois dos indícios do art. 12.º CT ; bastando-se pela junção de um contrato de trabalho, que depois rotula de “fictício”.
(MMM) Na realidade, o A. não alega a cessação do contrato de Acordo de Confidencialidade e Regulação de Titularidade de Resultados de I&D, que incluíam serviços de consultoria, que aceita ter prestado á R. e não alega o pagamento total do serviço de consultoria; não alega que as transferências realizadas para a conta da sua mulher não lhe eram dirigidas a ela, que eram estranhas à sua empresa “A...... ...... ........... .........., Lda.”, nem prova que lhe eram dirigidas a si como contrapartida da sua prestação de trabalho ou da sua disponibilidade como trabalhador.
(NNN) E como antes esgrimimos, pelo regime probatório, não é ao Tribunal da Relação, que cabe aperfeiçoar as alegações do A. e fazer a prova dos factos que substanciam a pretensão do A.!
(OOO) Nem é também à R. que cabe fazer essa prova - como parece, em determinados segmentos, fazer crer o Acórdão recorrido.
(PPP) Do disposto decorre, que o A. não observou o ónus da substanciação (de alegação) no que respeita à sua pretensão de demonstrar que as prestações de €1.000,00, recebidas na conta da sua mulher eram contrapartida da sua própria prestação laboral.
(QQQ) O ónus da prova pressupõe o ónus da alegação (cfr. art. 5.º CPC) e ambos cabiam ao A. (v. supra).
(RRR) Pelo que, também por aqui deve ser afastada a presunção judicial esgrimida, pois a Relação, ao considerar fazer prova de matéria não alegada pelo A., desrespeita as regras probatórias: de alegação e de prova, designadamente as previstas pelos arts. 342.º CC e 552.º, n.º1, al. d) CPC (ex vi art. 1.º CPT).
(SSS) De tudo o que se articulou, resulta que não se pode estabelecer a presunção judicial sem respeitar o regime probatório ou a partir de factos não provados e ainda que não se pode construir presunções que falhe algum nexo lógico.
(TTT) Porquanto, pede-se que se considere a presunção judicial esgrimida pela Relação viciada nos termos apontados e, por isso, eliminada do Acórdão com as respetivas consequências de prova, designadamente, o facto provado (19) aditado pela Relação.
(3.ª) Da Incorreta Aplicação da Presunção Legal da Retribuição (Art. 258.º Ct/2009)
(UUU) Cremos que, ao contrário do que se escreve no douto Acórdão recorrido, não sobrevivendo a modificação da matéria de facto operada pelo Tribunal ad quem, não se poderá dizer que o A. provou que as prestações referenciadas lhe eram individualmente dirigidas como lhe competia (v. factos provados e não provados, com a primeira formulação e acrescido do facto 20.)
(VW) Na realidade, os factos provados (3), (4) e os factos não provados (b), (c) e (d) revelam que o A. não almejou provar que as transferências lhe eram dirigidas: o A. provou que as transferências foram creditadas em conta de que é 1ª titular a mulher do A. e mais nenhum facto (“De resto não se provaram outros factos54”).
(WWW) Razão pela qual, aqui não merece aplicação, a presunção respaldada no n.º 3 do art. 258.º CT/2009.
(XXX) Sobre o funcionamento da referenciada presunção legal, acrescente-se que, embora não conste dos factos provados, subsistem justificadas razões, para o pagamento daquelas importâncias, serem diversas da remuneração do trabalho prestado pelo A. e corresponderem a uma contrapartida do Acordo de Confidencialidade e Regulação de Titularidade de Resultados de I&D.
(YYY) Estão entre estas: a ausência da regularidade das prestações, o seu contexto e o referenciado email de 03.04.2017.
{ZZZ) Pelo que, in casu, não pode funcionar a referenciada presunção e ser invertida o ónus da prova - cabia ao A./ Apelante provar que os €1.000,00 lhe eram dirigidos (cfr. art. 258.º,, n.º3 CT/2009).
(AAAA) O A./ Apelante também não provou, como lhe competia pelas regras do normal ónus da prova, que as oito prestações de €1.000,00 integravam a sua remuneração base salarial, constituindo um aumento salarial.
(BBBB) E, assim, concluindo, também soçobram os demais argumentos esgrimidos pela Relação no ponto 4. do Acórdão.
(4.ª) Do abuso de direito do A.
(CCCC) O A. apresentou várias versões dos factos, nas suas diferentes intervenções:
- petição inicial, a A. alegou a existência de um contrato de trabalho, com início em
1 de abril de 2016 e aumento salarial em janeiro de 2017. Aí juntou contrato de
trabalho, que logo confessou que, em relação ao horário de trabalho, o estipulado não
correspondia à verdade: que tinha sido contratado a tempo parcial e que do contrato
constava tempo integral;
- recebida a contestação, vem confessar lapso de memória e articular em
requerimento com ref. 36727128, que as transferências só se iniciaram em abril de
2017;
- na audiência de julgamento, a sua versão altera e defende, que de 2015 até março
de 2017, vigorava um contrato de consultoria no valor de €1.239,00 e que as partes
em abril de 2017, celebraram contrato de trabalho com horário completo que tinha por
remuneração salarial a quantia de €2.239,00
- No recurso de apelação: o A. retoma a versão inicial e articula a tese de que entre as partes vigorava um contrato de trabalho em momento anterior a março de 2017, que sofreu um aumento salarial em abril de 2017
(DDDD) Assim, o A. arroga-se na p.i. de direitos remuneratórios fundados num contrato de trabalho, depois - por não querer sujeitar-se ao seu conteúdo na totalidade (nomeadamente, início da vigência e horário de trabalho), vem, em audiência, rotular esse contrato de “fictício”, e, em momento posterior, para fazer uso da presunção legal do art. 258.º, n.º3 CT, vem dele se aproveitar.
(EEEE) Esta errática atuação processual do A. excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dos direitos que invoca.
(FFFF) Cremos que se está perante abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium, ou seja, o A. invoca a simulação do contrato de trabalho e depois vem, fazer uso da relação laboral, para reclamar dos correspetivos direitos.
(GGGG) Ou ainda na modalidade de abuso to quoque, que é o abuso de que quem atua ilicitamente, em desconformidade com o direito, e depois se quer fazer prevalecer das consequências jurídicas desse ato. O que no caso em apreço, significou invocar acordo simulatório e, posteriormente, arrogar-se da proteção legal, concedida ao trabalhador, pelo art. 258.º CT.
(HHHH) Na realidade, pouco importa se estamos perante uma e/ou outra modalidade do abuso de direito: o alcance do princípio da proibição do abuso do direito excede o conjunto dos grupos ou tipos de casos considerados na doutrina e na jurisprudência
(IIII) A questão do abuso do direito, que é de conhecimento oficioso, não está sujeita ao princípio da preclusão consagrado, quanto aos meios de defesa do réu, no art. 573º do CPC, visto caber nas exceções previstas no seu nº 2.
(JJJJ) Pelo que ainda é defesa tempestiva e, por isso, se requer o conhecimento da exceção invocada.
(KKKK) E, que por esse efeito, este Supremo Tribunal impeça também, por
abuso de direito, o A. de gozar da inversão do ónus da prova fundada na presunção legal do n.º 3 do art. 258.º CT/2009.
(LLLL) Por todo o exposto, o Acórdão da Relação viola, no seu conteúdo, os seguintes preceitos legais: artigos 334.°, 342.°, 350.°, 351.°, 358.°, 360.°, 376.°, 351.°,393.° e 394 todos do Código Civil (CC); artigos 12.° e 258.°/3 do Código do Trabalho (CT); artigos 3.°/3, 5.°, 552.°/1/d), 607.°/5, 635.°, 639.°, 640.°, 652.°, 662.° todos do Código de Processo Civil (CPC) e o artigo 1.° do Código de Processo de Trabalho (CPT).
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O Autor contra-alegou.
Por acórdão de 26.06.2023, o Tribunal da Relação julgou improcedente a nulidade.
O Exmº PGA emitiu parecer no sentido de ser negada a revista.
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Temos, como questões a decidir:
a) - se o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil);
b) - se ao alterar a matéria de facto, o Tribunal da Relação violou o disposto no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;
c) - se na alteração da matéria de facto, ao valorar a prova testemunhal e ao socorrer-se de presunção judicial, o Tribunal da Relação violou o disposto nos artigos 394.º e 351.º do Código Civil;
d) - se o juízo de presunção judicial que fundamentou a prova do facto 19 carece de coerência lógica e tem subjacente facto conhecido não provado;
e) - se a factualidade apurada permite fazer operar a presunção legal prevista no artigo 258.º do Código do Trabalho.
f) - se o Autor actuou em abuso de direito.
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É a seguinte a factualidade a ter em conta (a negrito as alterações e aditamentos efectuados pela Relação):
1. Autor e ré assinaram, com data de 1/4/2016, um documento intitulado de “Contrato de Trabalho por Tempo Indeterminado” mediante o qual declararam as partes que o autor seria admitido ao serviço da ré para o desempenho de funções de Gestor de Mercados Internacionais, com o pagamento da retribuição mensal ilíquida de €1.239,00 e €4,27/dia subsídio de alimentação, por períodos de trabalhado diário de 8 horas (cláusula 4ª).
2. Durante todo o ano de 2017, o Autor recebeu e a Ré pagou a importância de €1.239,00, sujeita aos legais descontos para a SS e IRS, acrescida dos montantes de subsídio de refeição.
3. Nos meses de abril a julho e de setembro a dezembro de 2017 a ré transferiu, em cada um dos meses, a importância de €1.000,00 para crédito na conta bancária de depósitos à ordem do Banco Montepio com o nº ..............9, de que é 1ª titular a esposa do autor, CC.
4. No mês de agosto de 2017 a sociedade E... ........... ...., Lda. transferiu, a importância de €1.000,00 para crédito nessa mesma conta bancária de depósitos à ordem, de que é 1ª titular a esposa do autor, CC.
5. Com a data de 1/9/2019 o autor assinou com a sociedade E... ........... ...., Lda. um documento intitulado “Contrato de Trabalho” mediante o qual declararam as partes que o autor seria admitido ao serviço desta sociedade para o desempenho de funções de Gestor de Mercados Internacionais, com o pagamento da retribuição mensal ilíquida de €1.239,00 e €4,30/dia subsídio de alimentação.
6. O autor foi solicitado a comparecer em feiras internacionais no estrangeiro realizadas nas seguintes datas:
- dias 6 e 7/1/2018, sábado e domingo, na Feira H... .... .... ....;
- dias 3 e 4/02/2018, sábado e domingo, na Feira S.............. . ..........; - dias 5 e 6/01/2019, sábado e domingo, na Feira H... .... .... ....;
- dias 2 e 3/02/2019, sábado e domingo, na Feira S.............. . ..........; e - dia 27/07/2019, sábado, na Feira C... .........
7. A partir de abril de 2017 o autor passou a cumprir 8 horas de trabalho diário, com 40 horas de trabalho por semana.
8. Em 28 de Julho de 2015, a Ré celebrou um Acordo de Confidencialidade e Regulação de Titularidade de Resultados de I&D, com a sociedade A...... ...... ........... .........., Lda., cujo Sócio e Gerente é o aqui Autor, e com o mesmo por si próprio, aí figurando como Consultor.
9. No âmbito do qual, a Ré, conjuntamente com o Autor, acordou desenvolver um Projeto de Investigação e Desenvolvimento, de adequação e aplicação de matérias-primas (sendo a principal a cortiça) à fabricação de artigos (brinquedos).
10. Tal projeto deveria obedecer ao plano de trabalhos constante do Anexo I ao referido Acordo.
11. Ao abrigo da Cláusula Sexta do Acordo celebrado, pela efetiva atribuição à Ré da globalidade dos direitos de propriedade intelectual, industrial e comercial, incidentes sobre os resultados de investigação emergentes do Projeto, a mesma obrigou-se a compensar financeiramente o aqui Autor e a sua empresa, na qualidade de Consultor, o valor (acrescido de IVA à taxa legal em vigor) estabelecido nos termos que constam do Anexo II ao referido acordo, e que dele faz parte integrante.
12. Tal anexo contém a seguinte estipulação:
“Para a realização deste projecto, o valor para a prestação do serviço é de 10.000,00 Euros para a Fase 1 e 10.000,00 Euros para a Fase 2 Plano de pagamento:
FASE 1 – Concepção e Desenvolvimento – Da arquitectura organizacional à apresentação dos protótipos da colecção
25% (2.5000,00 Euros) a 15 de Setembro de 2015 25% (2.5000,00 Euros) a 15 de Dezembro de 2015 25% (2.5000,00 Euros) a 15 de Março de 2016 25% (2.5000,00 Euros) a 15 de Junho de 2016
FASE 2 – Processo de Comercialização – Da criação da equipa comercial até à apresentação ao mercado da colecção de produtos
50% (5.000,00 Euros) a 15 de Outubro de 2016 50% (5.000,00 Euros) a 15 de Dezembro de 2016 A estes valores acresce a taxa de IVA em vigor”
14. Nos meses de abril de 2015 a ré transferiu a quantia de €615,00 para conta bancárias titulada pelo autor; no mês de dezembro de 2015 transferiu também para conta bancária titulada pelo autor a quantia de €615,00; e em 7 de janeiro de 2017 transferiu a quantia de €1.250,00 também para conta titulada pelo autor.
15. Em agosto de 2015 a ré emitiu um cheque à ordem de “A...... ......, Lda.” na quantia de €615,00.
16. Com a data de 9/4/2015 a sociedade A...... ...... . .............. .........., Lda. emitiu fatura em nome da ré no valor de €1.000,00.
17. A ré tem sede em ..., Distrito de ..., e tem por objeto social o “desenvolvimento, fabricação, produção, representação, comercialização, importação e exportação de produtos de cortiça, nomeadamente, brinquedos, artigos para crianças, artigos de utilidades, artigos de desporto e fitness. Actividades de designer”, com o CAE principal 16295-R3 e CAE’s secundários 47650-R3 e 46493-R3.
18. Até março (inclusive) de 2017 o A. prestava a sua atividade profissional à Ré em período inferior a 40 horas semanais e 8h horas diárias.
19. As quantias de €.1000,00 referidas nos nºs 3 e 4 dos factos provados [a acrescer à quantia mensal de €1.239,00] visaram o pagamento, ao A., do trabalho que este, no âmbito do contrato referido em 1) e conforme referido em 7), passou a prestar de 40 horas semanais e de 8 horas de trabalho diário, quantias aquelas que não eram incluídas nos recibos de remunerações do A., nem sujeitas a descontos legais.
20. As quantias de €1.000,00 referidas nos nºs 3 e 4 dos factos provados foram creditadas na conta bancária aí referida por indicação do A. e com o acordo da Ré.
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• o direito:
a primeira questão- se o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil):
A Recorrente veio arguir a nulidade do acórdão da Relação, argumentando que o mesmo, no que toca à reapreciação da decisão da matéria de facto, violou o princípio do contraditório previsto no artº 3º, nº 3, do CPC, constituindo, assim, decisão surpresa e, por consequência, fazendo-o incorrer em nulidade de sentença por excesso de pronúncia nos termos do artº 615º, nº 1, al. d), do CPC”.
A questão foi devida e exaustivamente tratada pela Relação nos seguintes termos:
“No caso, o A. então apelante, havia, na apelação, impugnado a decisão da matéria de facto, não estando sequer em causa, na nulidade ora invocada, que esta Relação tenha extravasado o objeto do recurso em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, sendo que a Relação se limitou à reapreciação dos pontos da decisão da matéria de facto que tinham sido objeto da impugnação, para além de que, sempre se diga, no âmbito da reapreciação da decisão da matéria de facto objeto da impugnação, não está a Relação impedida de conhecer de outros pontos para evitar (eventuais) contradições, obscuridades ou ambiguidades.
O Recorrente que impugne a decisão da matéria de facto deve, efetivamente e sob pena de imediata rejeição do recurso, dar cumprimento ao disposto no art. 640º, nº 1, als. a), b) e c), mormente, no que ao caso concerne, na al. b), nos termos do qual deve indicar os meios de prova em que sustenta a impugnação (ao que o A., então apelante, deu cumprimento como se diz no Acórdão ora sob sindicância), tendo, por sua vez, o recorrido, nas contra-alegações e como decorre do nº 2, al. b), do mesmo, a faculdade de indicar os meios de prova em que se sustenta para rebater a impugnação aduzida e, isto, como se diz neste preceito, “[i]independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, (…)”.
(...)
Temos como evidente que a Relação, na reapreciação que faz da decisão da matéria de facto, não está, nem deve aliás estar, limitada aos meios de prova invocados pelo Recorrente, pelo Recorrido e pela 1ª instância, antes podendo e devendo, se o julgar necessário para a reapreciação que tem que fazer e formar a sua convicção, analisar toda a prova que tenha sido produzida e que tenha por conveniente, ainda que sejam todos os meios de prova produzidos no processo ( e não apenas os invocados no recurso), fazer a sua avaliação e recorrendo, se necessário, a presunções judiciais nos termos em que estas sejam admitidas (art. 351º do Cód. Civil), bem como a regras da experiência, do senso comum e/ou da lógica. E, no fim, decidir da impugnação da decisão da matéria de facto.
E tal não consubstancia qualquer excesso de pronúncia, sendo que a reapreciação e decisão da matéria de facto efetuada pela Relação, no caso, teve por objeto os factos que foram objeto de impugnação pelo A., então apelante, estes as questões de facto a apreciar. Para além de que a nulidade por excesso de pronuncia prende-se com o conhecimento de questões, que não de argumentos e, muito menos, com argumentos em sede de apreciação da prova e da fundamentação da decisão da matéria de facto. E, ainda que desnecessário, sempre se diga que, no caso, nessa reapreciação, se atendeu ao depoimento da testemunha BB, invocada pelo A/apelante.
Também não se verifica a alegada violação do princípio do contraditório e decisão surpresa relativamente à apreciação e decisão da impugnação da decisão da matéria de facto. Como já referido, o acórdão reapreciou a matéria de facto que foi impugnada com base nos meios de prova que teve por pertinentes, avaliando-os criticamente e deles extraindo as ilações que entendeu ser de extrair, meios de prova esses que foram, todos, produzidos no processo, sujeitos em sede própria (audiência de julgamento) ao contraditório, e não tendo sido apreciada qualquer nova questão de facto com a qual a Ré não pudesse ou devesse contar, nem se vendo que tenha a Relação, tal como aliás não o tem a 1ª instância, que, previamente à decisão da matéria de facto e em nome do princípio do contraditório, comunicar às partes o sentido da decisão da matéria de facto que irá tomar e sua fundamentação, tenha esta, fundamentação, por objeto a prova pessoal (depoimentos e/ou declarações de parte, depoimentos testemunhais), prova documental, recurso a presunção judicial e, designadamente, a regras da experiência, da lógica, do senso comum. Aliás, nem na fundamentação da decisão da matéria de facto aduzida no acórdão se faz referência ou se invoca presunção judicial, o que aliás sempre seria lícito à Relação fazê-lo, sem necessidade do prévio cumprimento do contraditório.
(...)
O que se fez no Acórdão ora sob censura foi proceder à análise critica da prova, ou falta dela, resultando da leitura de todo a fundamentação que a decisão da matéria de facto que nela foi reapreciada assentou, não necessariamente e, muito, menos, apenas em alguma ou algumas das passagens referidas pela Ré, ora Recorrente, mas na conjugação da globalidade da prova que foi produzida no sentido, em nosso entender, do que se deu como provado, conjugada com a falta de prova, ou falta de prova suficiente e convincente, que contrariasse aquela.
O que ocorre é que a Relação decidiu da impugnação da decisão da matéria de facto a descontento da Ré. Mas tal não consubstancia nulidade de sentença por excesso de pronúncia ou por decisão surpresa mas inconformismo da Ré quanto à decisão e, eventualmente, erro de julgamento, mas não nulidade de sentença por excesso de pronúncia e/ou decisão surpresa, o que são realidades distintas”.
Estas considerações merecem a nossa total concordância, sendo despiciendo acrescentar o que quer que seja.
Não se verifica, assim, a nulidade da sentença invocada.
- a segunda questão- se ao alterar a matéria de facto, o Tribunal da Relação violou o disposto no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil:
Entende a Recorrente que ao modificar a matéria de facto sem o juízo prévio de necessidade, previsto no artº 662º, nº1, do CPC, o Tribunal da Relação violou a regra aí prevista, na sua vertente negativa.
Estipula tal disposição legal:
“Modificabilidade da decisão de facto
1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Sobre esta matéria refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 7.ª ed., pag. 333:
“Com a redação do art. 662.° pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo da correção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Ora, como é jurisprudência consolidada deste STJ (veja-se, o qual seguiremos, o Ac. de 17 de Março de 2022, proc. 6947/19.3T8LSB.L1.S1), nos termos das disposições conjugadas dos artigos 46º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) e 682º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista que, salvo nos casos excepcionais contemplados no nº 3 do artigo 674º do CPC, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, consistindo as excepções referidas “na ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, como dispõe o nº 3 do artigo 674º do C.P.C. (prova vinculada).
Daqui se segue que o sindicar o modo como a Relação fixou os factos materiais só pode ocorrer no âmbito do recurso de revista se aquele Tribunal deu por provado um facto sem produção do tipo de prova que a lei exige como indispensável para demonstrar a sua existência ou se tiver incumprido os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.
Significa isto que, por regra, e salvo nas situações excepcionais assinaladas, é definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação, no âmbito do disposto no artigo 662º, nºs 1 e 2, do C.P.C., em matéria de facto sobre prova sujeita à livre apreciação, não podendo o mesmo ser modificado ou censurado pelo Supremo Tribunal de Justiça, cuja intervenção está limitada aos casos da parte final do nº 3 do artigo 674º do mesmo Código, nos termos do qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, que o mesmo é dizer que o erro de julgamento em matéria de facto em si, quando não esteja inquinado por erro de direito, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça e não pode constituir fundamento de recurso de revista.
Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, se está no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, em matéria de direito.
Ou seja, nas palavras do acórdão do STJ de 12.11.2020, Procº nº 3159/05.7TBSTS.P2.S, citando o acórdão de 06/07/2011, Proc.º nº 645/05.2TBVCD.P1.S1, “se a este Supremo Tribunal de Justiça lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei”, tratando-se então de verificar se o Tribunal da Relação, no uso ou não uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662º do C.P.C., incumpriu deveres de ordem adjectiva, se (des)respeitou a lei processual, relacionados com a apreciação da matéria de facto, o que é inequivocamente matéria de direito.
Em suma, como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de 30.11.2021, Procº nº 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efectuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da prudente convicção do julgador.
“I. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), estando-lhe vedado sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador.
II. São excepções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada ou tarifada)”- Ac. do STJ de 15.09.2021, Proc. n.º 559/18.6T8VIS.C1.S1.
E o que é certo é que a Relação, no julgamento da matéria de facto que lhe cumpre efectuar, nos termos do artigo 607.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, por remissão do n.º 2 do seu artigo 663.º, e no uso do poder-dever conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, daquele Código, não está sujeita às alegações das partes, podendo alterar, no condicionalismo previsto nas ditas normas a matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância, desde que funde a decisão nos factos alegados pelas partes, como é entendimento pacífico deste Supremo Tribunal- cfr. , a título de exemplo, os acórdãos de 17.12.2019, Proc. n.º 603/17.4T8LSB.L1.S1, de 25.09.2019, Proc. n.º 1555/17.6T8LSB.L1.S1, e de 14.07.2021, Proc. n.º 1333/14.4TBALM.L2.S1
Foi o que o acórdão sob censura fez.
A reapreciação e decisão sobre a matéria de facto aí realizada incidiu apenas sobre os factos impugnados pelo Autor/recorrente, sendo que, nessa apreciação, com recurso aos meios de prova invocados, bem como aos restantes que se encontram no processo, e que foram sujeitas ao contraditório, entendeu, no âmbito do seu juízo autónomo, que os elementos probatórios determinavam uma solução diversa.
Como se refere no Parecer do Exmº PGA, “a imposição de uma solução diversa não se encontra sujeita a uma qualquer declaração de juízo prévio de necessidade, já que resulta de um mero poder/dever que encontra a sua origem na própria reapreciação da prova, ou seja, no papel que a 2.ª instância tem como um verdadeiro e efetivo segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto, conforme o expressamente disposto no art. 662.º, nº1, do CPC”.
Não ocorreu, assim, a violação alegada.
- A terceira e quarta questões- se na alteração da matéria de facto, ao valorar a prova testemunhal e ao socorrer-se de presunção judicial, o Tribunal da Relação violou o disposto nos artigos 394.º e 351.º do Código Civil e se o juízo de presunção judicial que fundamentou a prova do facto 19 carece de coerência lógica e tem subjacente facto conhecido não provado:
A argumentação da Recorrente nesta matéria encontra-se vertida nas seguintes conclusões do seu recurso:
“(BB) As declarações constantes do contrato de trabalho têm conteúdo confessório (cfr. art. 358.º CC), dado que o A., contra os seus interesses, mas a favor dos da R., reconhece que entre ambos vigora contrato de trabalho com horário, período de vigência e remuneração aí plasmada.
(DD) O acórdão da Relação também não podia, fazendo uso da sua livre convicção, basear a modificabilidade da prova nas declarações do A. – como fez.
(EE) Primeiro, porque estas declarações não tiveram caráter confessório, pois a confissão pressupõe que os factos confessados sejam desfavoráveis contra o confitente; só aí a sua força probatória será plena. Tanto que o seu depoimento não foi reduzido a escrito visto, como devia, como devia ser, caso tivesse essa característica (art.º 463.º, n.º 1, do CPC).
(FF) Segundo, porque há limites à livre apreciação da prova; ela não abrange “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (cfr. art.º 607.º, n.º 5, do CPC).
(GG) No presente caso, estamos perante uma destas situações: os factos estão plenamente provados por documento.
(JJ) E esta inadmissibilidade de prova estende-se à prova por presunção judicial por força do art. 351.º CC
(QQ) O Tribunal da Relação, no seu douto acórdão ensaia ainda presunção judicial, contra a qual a Recorrente se insurge por violação de regime de prova, fraca logicidade e falta de base.
(WW) E, dito isto, não pode a presunção judicial ensaiada ser positivamente sindicada pois assenta em factualidade não provada.
(RRR) Pelo que, também por aqui deve ser afastada a presunção judicial esgrimida, pois a Relação, ao considerar fazer prova de matéria não alegada pelo A., desrespeita as regras probatórias: de alegação e de prova, designadamente as previstas pelos arts. 342.º CC e 552.º, n.º1, al. d) CPC (ex vi art. 1.º CPT).».
Ao STJ compete decidir se o uso de presunções judiciais ofende qualquer norma legal de proibição de presunções, se padece de manifesta ilogicidade ou se parte (base da presunção) de factos não provados- Ac. de 08.11.2022, Proc. n.º 46/08.0TBMIR.C2.S1.
Na medida em que o juízo presuntivo consubstancia um julgamento da matéria de facto, encontra-se o STJ impedido de apurar a extracção da presunção judicial pela Relação, excepto nos casos de violação de lei e das normas disciplinadoras do instituto, designadamente, sempre que ocorra ilogicidade e/ou a alteração da factualidade adquirida processualmente, ou seja, quando a presunção parta de factos não provados- Ac. de 29.09.2022, Proc. n.º 499/17.6T8STB.E1.S1.
Julgando a Relação provado determinado facto com base numa presunção judicial, ao STJ apenas compete conhecer da sua admissibilidade legal e se o juízo de inferência é desrazoável e de todo improvável- Ac. de 09.03.2022, Proc. n.º 287/20.2T8MTA.L1.S1.
Feito este enquadramento, temos que a inadmissibilidade de prova testemunhal sobre determinado facto em face de específicas regras de direito probatório material constitui uma questão de direito, como tal, não subtraída ao conhecimento do STJ enquanto tribunal de revista, ainda que o seu desfecho se projecte na manutenção ou na eliminação de facto tido como provado- Ac. de 19.05.2020, Proc. n.º 1642/13.0TVLSB.L2.S1.
Face ao disposto no artº 394.º, n.º 2, do CC, não é possível fazer prova testemunhal (proibição absoluta da prova), em relação a qualquer estipulação contrária ao conteúdo dos documentos (e não só em relação à parte em que eles têm força probatória plena - arts. 371.º e 372.º). A finalidade do dispositivo é, claramente, evitar que a eficácia do contido num documento escrito possa ser posto em causa através de um meio de prova mais aleatório e inseguro, como é a prova testemunhal.
Mas não é o caso:
Como acertadamente se adverte no Parecer do Exmº PGA, o contrato de trabalho celebrado entre as partes, ainda que constituindo um mero documento particular, só gozaria de força probatória plena nos termos previstos no artigo 376.º, n.º 1, do CC, desde que não tivesse sido impugnado pelas partes.
Só que o Autor/recorrido nunca aceitou que o horário de trabalho nele constante tivesse vigorado desde o início do contrato, conforme se verifica do invocado na PI, nos seus arts.º 6.º e 8.º,
O que é expressamente aceite pela própria Recorrente- conclusão (CCCC) das suas alegações de recurso.
Não houve, assim, qualquer confissão sobre esta matéria.
Por outro lado, as presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do artº 349º do CC, em ilacções que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos)- Ac. do STJ de 11.05.2023, Proc. 3154/18.6T8GDM.P1.S1
Efectivamente, a presunção consiste num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência comum - cfr., sobre a noção de prova por presunção Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 214, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, págs. 500 e 501 - sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artº 351º do CPC).
O acórdão recorrido não fez uso de qualquer presunção judicial, já que apenas confirmou a ausência de prova da versão da Recorrente sobre o pagamento dos 1.000,00 € mensais, salientando que o argumento da recorrente até carecia de sentido.
Ou seja, dada esta considera- b censuramesmo diploma. , netribuiçeecndi Exmº PGA, usção de ilogicidade do argumento utilizado, de modo algum se pode considerar preenchido o conceito do art.º 349.º do CC.
Como tal, também aqui a Recorrente carece de razão.
- a quinta questão- se a factualidade apurada permite fazer operar a presunção legal prevista no artigo 258.º do Código do Trabalho:
A recorrente alega sobre esta questão:
«(VVV) Na realidade, os factos provados (3), (4) e os factos não provados (b), (c) e (d) revelam que o A. não almejou provar que as transferências lhe eram dirigidas: o A. provou que as transferências foram creditadas em conta de que é 1ª titular a mulher do A. e mais nenhum facto (“De resto não se provaram outros factos”).
(WWW) Razão pela qual, aqui não merece aplicação, a presunção respaldada no n.º 3 do art. 258.º CT/2009.
(YYY) Estão entre estas: a ausência da regularidade das prestações, o seu contexto e o referenciado email de 03.04.2017.
(ZZZ) Pelo que, in casu, não pode funcionar a referenciada presunção e ser invertida o ónus da prova – cabia ao A./ Apelante provar que os €1.000,00 lhe eram dirigidos (cfr. art. 258.º, n.º3 CT/2009). (AAAA) O A./ Apelante também não provou, como lhe competia pelas regras do normal ónus da prova, que as oito prestações de €1.000,00 integravam a sua remuneração base salarial, constituindo um aumento salarial.».
Foi dado expressamente como provado que:
19. As quantias de €.1000,00 referidas nos nºs 3 e 4 dos factos provados [a acrescer à quantia mensal de €1.239,00] visaram o pagamento, ao A., do trabalho que este, no âmbito do contrato referido em 1) e conforme referido em 7), passou a prestar de 40 horas semanais e de 8 horas de trabalho diário, quantias aquelas que não eram incluídas nos recibos de remunerações do A., nem sujeitas a descontos legais.
De onde se retira que tais quantias visavam também o pagamento do trabalho prestado pelo Recorrido no âmbito do contrato de trabalho existente com a recorrente, integrando a retribuição base do primeiro- cfr. artº 262º, nº 2 , al. a), do CT, não sendo necessário sequer fazer qualquer apelo à presunção prevista no artº 258º, nº 3, do mesmo diploma. E essa desnecessidade em nada altera a decisão sob censura.
- a sexta questão- se o Autor actuou em abuso de direito:
Numa breve abordagem sobre a problemática do abuso de direito diremos:
Estabelece o art. 334º do Código Civil que “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
“Abuso de direito – a) é um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar a situações em que um preceito legal, certo e justo para as situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram. B) Ocorrerá esta figura quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento da justiça dominante na comunidade social…
São as seguintes as concepções que procuram precisar a essência do abuso de direito: 1 – a teoria subjectiva…, 2- a teoria objectiva… 3 – e uma teoria intermédia…
O nosso legislador (C. Civ. 1966) aceitou a concepção objectiva. Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que o acto se mostre contrário, mas exige-se que o titular do direito tenha excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício” (João Melo Franco, Herlander Antunes Martins, Dicionário de Conceitos e Princípios Jurídicos, Almedina, 2ª edição, págs. 17 e 18).
Uma das modalidades do abuso de direito é o “venire contra factum proprium”.
São pressupostos desta modalidade do abuso de direito (João Baptista Machado, Tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’, obra dispersa, 1991, pág. 416):
1 – A existência de uma situação objetiva de confiança;
2 – O investimento de confiança e irreversibilidade desse investimento;
3 – A boa fé da contraparte que confiou.
Passando ao caso concreto, também aqui se concorda com o Parecer do Exmº PGA, que exemplarmente define assim a situação:
A posição assumida pelo Autor no processo pode não ter sido completamente linear, mas, considerando que o contrato de trabalho formal celebrado entre as partes é significativamente distinto da relação laboral efetivamente desenvolvida, admite-se que tenha existido alguma dificuldade na forma de reflectir a situação factual e formal em termos jurídicos, o que tenha determinado essa atuação processual.
De resto, a matéria de facto dada como provada vem a confirmar no essencial a posição que o Autor assumiu sobre a factualidade ocorrida, pelo que não se consegue vislumbrar, na situação concreta, matéria para considerar que o Autor tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dos direitos invocados, de forma a ter sido ofendido o sentimento de justiça dominante na comunidade social.
Mas, e mesmo que assim não fosse, também nunca o alegado abuso teria o efeito pretendido pela recorrente – o Autor não beneficiar da inversão do ónus da prova fundada na presunção legal do n.º 3 do art. 258.º CT –pois, considerando a factualidade dada como provada nos pontos 19) e 20), essa presunção nem necessita de ser aplicada, sendo a decisão a mesma, conforme já acima se referiu.
Improcede, assim, o recurso.
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Decisão:
Nos termos expostos, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 23/11/2023
Ramalho Pinto (Relator)
Domingos Morais
Júlio Gomes
Sumário (da responsabilidade do Relator):
___________________________________________________
1. Embora não conste do dispositivo, o Tribunal da Relação alterou a matéria assente, alterando a redacção do ponto 7 e aditando os pontos 18, 19 e 20:
“7. A partir de abril de 2017 o autor passou a cumprir 8 horas de trabalho diário, com 40 horas de trabalho por semana.
18. Até março (inclusive) de 2017 o A. prestava a sua atividade profissional à Ré em período inferior a 40 horas semanais e 8h horas diárias.
19. As quantias de €.1000,00 referidas nos nºs 3 e 4 dos factos provados [a acrescer à quantia mensal de €1.239,00] visaram o pagamento, ao A., do trabalho que este, no âmbito do contrato referido em 1) e conforme referido em 7), passou a prestar de 40 horas semanais e de 8 horas de trabalho diário, quantias aquelas que não eram incluídas nos recibos de remunerações do A., nem sujeitas a descontos legais.
20. As quantias de €1.000,00 referidas nos nºs 3 e 4 dos factos provados foram creditadas na conta bancária aí referida por indicação do A. e com o acordo da Ré.”↩︎