CONTRATO DE TRABALHO
SOCIEDADE POR QUOTAS
SÓCIO GERENTE
SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
DESPEDIMENTO ILÍCITO
Sumário


I- O regime definido para os administradores das sociedades anónimas no art. 398º, nºs 1 e 2, do CSC, não é irrestritamente aplicável aos gerentes das sociedades por quotas, em virtude de o modelo do tipo societário ser muito diferente, embora não possa desconsiderar-se, pura e simplesmente, esse corpo normativo.
II- Ponderada a ratio legis e os princípios gerais que estão subjacentes e afloram na norma contida no art. 398º, nº 2, do CSC, é de concluir que o aqui disposto em matéria de suspensão do contrato de trabalho se aplica às sociedades por quotas.
III- Seria dogmática e sistematicamente incompreensível – e com implicações práticas materialmente injustas – que o contrato de trabalho se suspendesse estando em causa uma sociedade anónima e, incoerentemente, se aplicasse às sociedades por quotas a solução (mais) extrema da sua extinção.

Texto Integral



Revista n.º 2529/21.8T8MTS.P1.S1


MBM/DM/RP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA instaurou ação emergente de contrato individual de trabalho contra Tecnomate, Reparações Industriais, Lda., pedindo, na parte que ora releva: o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho entre o A. e a R., entre 01.02.1988 e 08.02.2021, data em que lhe foi comunicado que já não era trabalhador desta; a declaração da ilicitude do despedimento assim efetivado e consequente condenação da R. a pagar-lhe as quantias correspondentes aos créditos daí decorrentes.


Para tanto, alega, em síntese:


Tendo sido admitido ao serviço da R. em 01.02.1988, adquiriu em 12.12.2003 uma quota no capital social da R.


Por deliberação da respetiva assembleia, tomada na mesma data, foi nomeado gerente da R., tendo também sido deliberado que seria remunerado pelo exercício da gerência.


Dada a incompatibilidade das funções de gerente com a qualidade de trabalhador subordinado, não mais prestou as suas funções de empregado de escritório, tendo-se suspendido o contrato de trabalho.


Em 13.11.2019, renunciou ao exercício da gerência e, em 20.11.2019, cedeu a totalidade da sua quota.


Manteve a qualidade de trabalhador da R., embora o seu contrato de trabalho tenha estado suspenso até ao momento em que renunciou à gerência e cedeu as quotas, nos termos do art. 398.º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, analogicamente aplicável às sociedades por quotas.


Retomada a normal execução do contrato de trabalho, ficou novamente suspenso em consequência da sua incapacidade para o trabalho, decorrente de enfarte de miocárdio sofrido em setembro de 2019, nos termos do art. 296.º, nº 1, do CT.


2. A ação foi julgada improcedente na 1ª Instância.


3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação do Porto (TRP) confirmou a sentença recorrida, considerando verificada a extinção do vínculo laboral, por confusão, 12.12.2003.


4. Inconformado, o A. veio interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do artigo 672º, nº 1, a), do CPC.


5. A R. contra-alegou.


6. A revista excecional foi admitida pela formação dos três Juízes desta Secção Social a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º, do CPC.


7. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, embora com a fundamentação diversa da do acórdão recorrido, por entender que o contrato de trabalho cessou em 12.12.2003, por caducidade, nos termos do art. 343.º, do CT, parecer a que as parte não responderam.


8. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), em face das conclusões das alegações de recurso, as questões a decidir1 são as seguintes:


– Se a nomeação de trabalhador subordinado como gerente da sociedade implica a suspensão do contrato de trabalho ou a sua extinção (por confusão ou por caducidade);


– No primeiro caso, se a renúncia à gerência, em 13.11.2019, determinou o termo da suspensão do contrato de trabalho, configurando a comunicação ao A., levada a cabo pela R. em 08.02.2021, de que “já não era [seu] trabalhador”, um despedimento ilícito.


Decidindo.


II.


9. Com relevância para a decisão, a matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:


A) O autor foi admitido ao serviço da ré no dia 1 de fevereiro de 1988 para, sob as suas ordens, direção e subordinação, desempenhar as funções correspondentes à categoria profissional de empregado de escritório.


[…]


C) O autor adquiriu, no dia 12.12.2003, uma quota no capital da sociedade ré, no montante de € 1400,00


D) O autor manteve a prestação normal com a categoria profissional de empregado de escritório até ao referido dia 12.12.2003, momento em que, em assembleia geral e por deliberação ali tomada, foi nomeado gerente da sociedade.


E) Mais foi deliberado na mesma assembleia, para além da nomeação de gerente, que o exercício da gerência pelo autor seria remunerado.


F) O autor passou então a exercer na sociedade ré as funções de gerente com a remuneração mensal no montante de € 813.00 acrescida de subsídio de refeição no valor de € 5,20.


G) O autor não mais prestou as funções de empregado de escritório.


H) O autor permaneceu no exercício das funções de gerente até ao ano de 2019.


I) Em setembro de 2019 autor foi vítima de um enfarte miocárdio.


J) O autor renunciou à gerência por motivos de saúde.


L) Ao autor foi concedida baixa médica por incapacidade temporária para exercer a sua atividade profissional.


[…]


N) Em 13.11.2019 o autor comunicou à ré a renúncia ao exercício da gerência


O) O autor cedeu a totalidade das suas quotas, no valor de € 20.250.00, o que fez por contrato de cessão de quotas celebrado no dia 20.11.2019.


P) O autor interpelou a ré, por carta registada com aviso de receção, em 5/12/2019, entre o mais, para regularização dos créditos laborais vencidos e não pagos, referentes aos duodécimos de subsídio de férias dos anos 2018 e 2019, 11 dias de férias vencidas e não gozadas referentes ao ano de 2018 e duodécimos de subsídio de natal do ano de 2019.


[…]


T) Era o autor e os restantes gerentes quem perante os trabalhadores da sociedade davam ordens, instruções e orientações dizendo o que deveria ser feito como, onde e de que forma.


U) Era o Autor quem processava e pagava os salários aos trabalhadores, marcava as suas férias, liquidava impostos e contribuições, quem se deslocava e contactava com as instituições bancárias, repartições e serviços públicos designadamente serviços de finanças, da segurança social, em representação da ré, celebrava acordos de pagamentos


V) O cargo de sócio-gerente e remuneração atribuída a esse título ao autor passaram a constar do recibo de vencimento a partir de dezembro de 2003.


X) Posteriormente foi alterado no recibo a designação da categoria do autor para escriturário (janeiro 2007).


Z) A ré – com o conhecimento do autor – comunicou à segurança social o fim do vínculo laboral deste, como trabalhador por conta de outrem, em 30.11.2003.


AA) E o início do vínculo como membro do órgão estatutário em 28.12.2003, o qual findou em 28.11.2019.


[…]


III.

a. Se a nomeação de trabalhador subordinado como gerente da sociedade implica a suspensão do contrato de trabalho ou a sua extinção (por confusão ou por caducidade).

10. Ao contrário do que acontece quanto às sociedades por quotas, a problemática que nos autos (e no recurso) se suscita encontra-se especificamente regulamentada no tocante às sociedades anónimas, dispondo-se no n.º 1 do art. 398º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que, “durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade […] quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo […]”; e, consonantemente, no n.º 2, que, sendo designada como administrador uma pessoa que na sociedade (já) exerça funções como trabalhador subordinado, “os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano”.


Relembra-se que esta última norma foi julgada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 774/2019, de 17.12.2019, Proc. n.º 276/2019 (D.R., n.º 18/2020, Série I de 27.01.2020), por violação dos artigos 55º, d), e 57º, nº 2, a), da Constituição da República, na parte atinente à extinção do contrato de trabalho, mantendo-se, todavia, inalterado o estatuído quanto à suspensão do contrato.


Como se diz neste aresto:


«A incompatibilidade entre o exercício de funções laborais e o exercício do cargo de administrador é usualmente justificada com base em três razões.


Em primeiro lugar, certa doutrina sustenta existir uma impossibilidade estrutural de acumulação das funções: serão inconciliáveis o estatuto de subordinação inerente à condição de trabalhador e o cargo de administrador, que se identifica com a posição de empregador (Paulo de Tarso Domingues, "Administradores trabalhadores - breves notas", Católica Law Review, vol. II, n.º 2, 2019; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, 2016, p. 72; José Engrácia Antunes, A proibição de cúmulo administrador/trabalhador - da sua constitucionalidade, Almedina, Coimbra, 2018, p. 19; Acórdãos do STJ de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, e de 17.11.2016, proc. 394/10.0TTTVD.L1.S1).


Em segundo lugar, e mesmo para a doutrina (hoje maioritária) que não considera haver impossibilidade, a opção visará proteger a independência dos administradores, prevenindo potenciais conflitos de interesses. Procurar-se-á assegurar que "o sujeito designado administrador exerce esse cargo sem as limitações que a posição no contrato de trabalho subordinado ou autónomo traria consigo" (cf. Alexandre Soveral Martins, "Comentário ao artigo 398.º", Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Coimbra, 2013, p. 336; Coutinho de Abreu, "Sobre o trabalhador/administrador", Para Jorge Leite - Escritos Jurídicos, vol. II, p. 5; Luís Brito Correia, Os Administradores de Sociedades Anónimas, Almedina, Coimbra, 1993, p. 575; Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I - Relações Individuais de Trabalho, 2007, p. 167, e "Da validade do contrato de trabalho uma sociedade de um grupo para o exercício de funções de administração social noutra sociedade do mesmo grupo", Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Prof. Manuel Alonso Olea, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 435 e 443; Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das sociedades por quotas e anónimas - organização e estatuto dos administradores, Lisboa Petrony, 1990, p. 304; Luís Miguel Monteiro, "Regime jurídico do trabalho em comissão de serviço", Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Prof. Manuel Alonso Olea, Almedina, Coimbra, 2004, p. 512; Engrácia Antunes, cit. pp. 14 e 16; Paulo de Tarso Domingues, cit., p. 16; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1018/1996; Acórdãos do STJ de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, e de 25.11.2014, proc. 284/11.9TTTVD.L1.S1).


Por fim, alude-se a uma finalidade de preservação do modelo legal de governação das sociedades anónimas, que atribui ao Conselho de Administração (e não aos trabalhadores) a competência quanto às decisões fulcrais da empresa, assentando num princípio de livre destituição dos administradores. A confusão nas mesmas pessoas da posição de administrador e de trabalhador (cujo despedimento depende de justa causa) poria em causa tal arquétipo - cf. Engrácia Antunes, cit., p. 18; Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 307; Alexandra Marques Sequeira, "Da designação de trabalhador para membro de órgão estatutário da sociedade empregadora - efeitos no contrato de trabalho", Questões Laborais, n.º 46, 2015, p. 154; António José Sarmento Oliveira, "O contrato de administração. Sua natureza e possibilidade de cumulação com um contrato de trabalho", Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 5, 2005, p. 202.»


E, quanto à debatida aplicação analógica da regulamentação em causa a outros tipos sociais, maxime a gerentes de sociedades por quotas, sintetiza assim:


«Alguns Autores sufragam dever ser mobilizada no contexto das sociedades por quotas (Paulo de Tarso Domingues, cit., p, 22); outros propõem a sua extensão analógica apenas quanto ao segmento normativo em que se estabelece a suspensão contratual (Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 314); outra corrente apela a uma ponderação do caso concreto (Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2017, p. 201; Maria do Rosário Palma Ramalho, Grupos..., cit., p. 521; Luís Brito Correia, "Admissibilidade de remuneração variável de um gerente de sociedade por quotas", Direito das Sociedades em Revista, Ano 1, vol. 2, 2009, p. 14; Acórdão do STJ de 29.09.1999, Acórdãos Doutrinais do STA, n.º 461, p. 762); enquanto que certa doutrina recusa a bondade daquela extensão aplicativa (Luís Miguel Monteiro, "Regime...", cit., p. 512; Alexandra Marques Sequeira, cit., p. 155; António José Sarmento Oliveira, cit., p. 205).»


12. O sobredito regime normativo é, efetivamente, insuscetível de absoluta e automática aplicação analógica às sociedades por quotas, domínio no qual “as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de gerente, melhor, de sócio-gerente e de trabalhador subordinado”, como tem julgado este Supremo Tribunal (v.g., Acs. de 29.09.1999, Proc. n.º 98S364, e de 30.09.2004, Proc. n.º 03S2053).


Na verdade, nas palavras de Raul Ventura, citado no primeiro destes arestos:


«Na prática portuguesa existem numerosas pequenas sociedades por quotas em que o sócio-gerente exerce funções que não competem aos gerentes: exemplos típicos são o do gerente que vende ao balcão ou trabalha na oficina, ou "está encarregado de ordenhar as vacas" […].


[…]


[O]ra parece que nestes casos […] faltaria o vínculo de subordinação do trabalhador, que não poderá estar subordinado a si mesmo, na veste de gerente.


[…]


Inegável é que o vínculo laboral, com a respetiva subordinação se estabelece entre a sociedade-pessoa jurídica e o trabalhador: os gerentes não são a entidade patronal, mas sim órgãos desta. Ora, uma sociedade por quotas pode ter mais do que um gerente. No caso da pluralidade de gerentes haverá [poderá haver] quem, representando organicamente a sociedade, exprima as ordens, instruções, fiscalização características do lado ativo da subordinação de um gerente-trabalhador […].


No entanto, no campo dos princípios, o obstáculo da subordinação não […] parece intransponível […].


Por outro lado, não pode alegar-se impossibilidade absoluta do exercício da autoridade patronal. Nas sociedades por quotas a assembleia pode alterar essa situação por duas maneiras; ou destituindo o gerente e elegendo outro (aliás, bastará eleger mais um) que despeça o trabalhador […]; ou dando ao gerente-trabalhador instruções vinculativas (artigo 259º C.S.C.) - […].


Admitida a cumulação das duas espécies de funções, passa-se a outra ordem de problemas, agora a prova da existência do contrato de trabalho subordinado […].


Na falta de expressas declarações negociais, nomeadamente provadas por escrito, haverá que recorrer a todas as circunstâncias do caso. Assim, pode ser decisivo que o contrato de trabalho seja anterior à designação como gerente, pois não é de presumir que o trabalhador - que continua a prestar o mesmo trabalho - queira, por causa daquela designação, precedida normalmente da aquisição de uma quota na sociedade, perder a sua antiga qualidade».


Quanto às circunstâncias a atender em cada caso concreto, o mesmo acórdão destaca os aspetos respeitantes:


“– À anterioridade, ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio-gerente;


– À retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições;


– À natureza das funções concretamente exercidas, antes e depois da ascensão à gerência, designadamente em vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de atividades;


– À composição da gerência, designadamente ao número de sócios-gerentes e às respetivas quotas;


– À existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;


– À dependência, hierárquica e funcional, dos sócios-gerentes que desempenham tarefas não tipicamente de gerência, relativamente a estas atividades.”


13. Igualmente esclarecedor sobre o assunto é o referido Ac. do STJ de 30.09.2004, que refere a dado passo:


“A situação dos sócios-gerentes ou administradores […] é na verdade dificilmente conciliável com a subordinação jurídica que o contrato de trabalho supõe, uma vez que na sua atividade aqueles não se apresentam normalmente adstritos às ordens de quem quer que seja, só tendo que prestar contas dos seus atos de gestão à própria sociedade cujos órgãos diretivos integram.


O vínculo entre a pessoa coletiva e o gestor […], que atua com autonomia, sem controle ou superintendência de outrem, e em representação da pessoa coletiva, revestirá a natureza jurídica do “mandato” - cfr. os arts. 1154º, 1155º e 1157º, todos do Código Civil - embora possa ser retribuído, ou, mais especificamente, de “contrato de administração”.


[…]


Na hipótese de se tratar do sócio-gerente de uma sociedade por quotas, embora seja por via de regra difícil detetar a existência de subordinação jurídica, atendendo às funções que o gerente societário desempenha, este contrato de trabalho será plenamente válido e eficaz, pois que inexiste impedimento legal à coexistência do exercício da gerência neste tipo de sociedades com a execução de um contrato individual de trabalho subordinado.”


14. Pedro Maia, em estudo recente2, também sustenta a existência de razões para não aplicar, nos seus termos estritos”, “o regime extremo a que o legislador sujeitou os administradores das sociedades anónimas” aos gerentes das sociedades por quotas, em virtude de o modelo do tipo societário ser muito diferente, prevenindo, porém, que no plano sistemático não pode desconsiderar-se, pura e simplesmente, esse corpo normativo3.


15. Ponderada a ratio legis e os princípios gerais que estão subjacentes e afloram na norma contida no art. 398º, nº 2, do CSC, é imperioso concluir que o aqui disposto em matéria de suspensão do contrato de trabalho constitui, precisamente, uma das dimensões normativas que não pode deixar de aplicar-se às sociedades por quotas.


Na verdade, tendo presente todo o contexto normativo, doutrinário e jurisprudencial que foi exposto, compreende-se que neste caso seria dogmática e sistematicamente incompreensível – e com implicações práticas materialmente injustas – que o contrato de trabalho se suspendesse estando em causa uma sociedade anónima e, incoerentemente, se aplicasse às sociedades por quotas a solução (mais) extrema da sua extinção.


Acresce que não se vislumbra qualquer motivo que validamente pudesse justificar tal solução, aliás já julgada inconstitucional relativamente às sociedades anónimas, nos termos antes mencionados, e cuja razão de ser, quanto a estas, se reconduziria apenas ao propósito (intransponível para situação ora em análise) que o legislador terá tido de “prevenir que um sujeito estranho à sociedade celebrasse com esta um contrato de trabalho fictício, imediatamente antes da sua designação como administrador, com vista a assegurar a sua posição profissional depois das funções sociais, à custa da sociedade” (sobredito aresto do Tribunal Constitucional, que a este propósito cita Coutinho de Abreu, "Administradores e trabalhadores de sociedades - cúmulos e não", Temas Societários, Almedina, Coimbra, 2006, p. 16, e Governação das Sociedades Comerciais, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, p. 66; Ricardo Costa, Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2014, p. 806; Paulo de Tarso Domingues, cit., p. 20, nota n.º 39; Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 193; Raul Ventura, "Nota sobre a interpretação do artigo 398.º do Código das Sociedades Comerciais - exercício de outras atividades por administrador de sociedade anónima", O Direito, ano 125, n.º III-IV, 1993, p. 263, e ainda o Ac. do STJ de 25.11.2014, proc. 284/11.9TTTVD.L1.S1).

b. Se a renúncia à gerência, em 13.11.2019, determinou o termo da suspensão do contrato de trabalho, configurando a comunicação ao A., levada a cabo pela R. em 08.02.2021, de que o mesmo “já não era [seu] trabalhador”, um despedimento ilícito.

16. É indiscutível que o A. – após a aquisição de quota da sociedade R. e da sua nomeação como gerente – deixou de exercer funções como trabalhador subordinado, funções que, neste caso concreto, eram inconciliáveis com o exercício do cargo de gerente, como se alcança, desde logo, dos pontos g), t) e u) da matéria de facto.


Em face da solução dada à questão anterior, também não oferece dúvidas que o contrato de trabalho se suspendeu naquele momento, suspensão que terminou quando o A. renunciou à gerência, em 13.11.2019.


Vale por dizer que a comunicação que lhe foi feita pela R. em 08.02.2021, no sentido de que “já não era [seu] trabalhador”, configura um despedimento ilícito.


Quanto às consequências do despedimento, é questão que naturalmente não foi abordada pelo acórdão recorrido, por ter ficado prejudicada pelo julgado quanto aos pontos que em relação a ela têm precedência lógico-jurídica.


O art. 679.º, do CPC, exclui do julgamento da revista a “regra da substituição do tribunal recorrido”, consagrada no art. 665.º, do mesmo diploma, relativamente ao julgamento da apelação, pelo que o processo terá de ser remetido ao TRP, para conhecimento de tal matéria.


IV.


17. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, remetendo-se autos à Relação para apreciação das consequências do despedimento ilícito do A.


Custas da revista, bem como nas instâncias, a cargo da R.


Lisboa, 23 de Novembro de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Domingos Morais


Ramalho Pinto





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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. O vínculo laboral e a prestação de serviços à sociedade por gerentes e administradores, in Sociedades Comerciais – A Constituição de Sociedade Comercial como Meio para a Criação do Próprio Emprego, coordenação de Maria de Fátima Ribeiro, Almedina, Coimbra, 2023, pp. 43 e ss.↩︎

3. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎