I- A alínea a) do art. 672.º, nº 1, do CPC, pressupõe uma questão de direito que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça – assumindo uma dimensão paradigmática para casos futuros – se mostre necessária para contribuir para a segurança e certeza do direito.
II- Não se encontra verificado este requisito se a solução do litígio se fundou, determinantemente, na interpretação do clausulado do contrato de trabalho acordado entre as partes e com a determinação da sua vontade, sem que se evidencie qualquer controvérsia doutrinária ou jurisprudencial carecida de clarificação jurídica, nem qualquer dificuldade na aplicação do direito.
Processo n.º 3444/20.8T8VFR.P1.S1 (revista excecional)
MBM/RP/JG
Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
I.
1. Hair & Hair – Soluções Capilares, Unipessoal, Lda., intentou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA
2. Na 1ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente, decidindo-se, na parte que ora releva, condenar a R. a pagar à A. a quantia de 14.000 €, a título de indemnização, pela violação do pacto de permanência contratualmente acordado, acrescida de juros de mora.
3. A R. apelou, tendo a A. recorrido subordinadamente.
O Tribunal da Relação do Porto, julgando improcedente o recurso da R. e parcialmente procedente o da A., aumentou para 18.500 € a arbitrada indemnização.
4. A R. interpôs recurso de revista excecional, com base no art. 672º, nº 1, alínea a), do CPC, invocando em síntese:
– A questão controvertida e fundamental no presente processo, prende-se com a interpretação, enquadramento e conjugação das cláusulas relativas ao período experimental e ao pacto de permanência concomitantemente estabelecidas no contrato de trabalho; 1
– Trata-se de questão complexa e inédita e também com inquestionável utilidade prática, “desde logo pela suscetibilidade de aplicação a um número indeterminado de casos futuros, mas também pela eventual ocorrência de danos irreparáveis na esfera patrimonial precisamente da parte mais frágil da relação, a dos trabalhadores, urgindo, por isso, a definição deste tema”.
5. A A. contra-alegou.
6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, pelo que foi determinada a distribuição do processo à formação de apreciação preliminar.
Decidindo.
II.
7. Com interesse para a decisão, é a seguinte a matéria de facto considerada pelo acórdão recorrido:
1º- A Autora […] dedica-se [nomeadamente à venda e colocação de próteses de cabelo humano de acordo com distintos procedimentos especiais; […]
2º- A Autora é a filial em Portugal do grupo S......, líder na Europa na investigação de todos os problemas que afetam o cabelo e o couro cabeludo […].
3º- A Ré é licenciada em medicina e cirurgia […] e exerce a profissão de médica.
4º- Por contrato denominado de prestação de serviços celebrado em 16 de Agosto de 2014, a Ré obrigou-se prestar à Autora, na qualidade de médica, a serviços de direção técnica e supervisão médica dos tratamentos capilares efetuados aos clientes do centro Hair & Hair, sito no ....
5º- Esse contrato vigorou até Julho de 2019, altura em que as partes viram interesse em que a Ré recebesse formação profissional em cirurgia capilar ministrada pela Autora, de modo a poder realizar, além dos serviços referidos no artigo anterior, intervenções cirúrgicas de microcirurgia capilar (micro enxertos) aos clientes da Autora, bem como o acompanhamento das mesmas, mediante o seguimento em consultas pré e pós operatórias.
[…]
7º- Essa formação tinha uma duração de 16 semanas, era ministrada maioritariamente na S...... ......., clínica do grupo S...... de microenxerto […] situada em ..., Espanha, e tinha uma componente iminentemente prática.
8º- A formação ministrada pela Autora é presencial, com possibilidade de assistência e realização de consultas, bem como realização de cirurgias completas, acompanhadas e avaliadas por uma médico cirurgião especialista.
[…]
13º- As partes acordaram que a formação ministrada pela Autora, pelas suas características, tinha um custo de € 15.000,00 (quinze mil euros), acrescido de despesas, e nesse pressuposto, Autora e Ré celebraram um denominado Contrato-Promessa de Contrato de Trabalho em 19 de Julho de 2019, em que a A. figura como Primeira Contraente e a Ré como Segunda Contraente, que revogou o contrato de prestação de serviços […].
14º- […]
15º- No ponto 6, da cláusula 3ª do Contrato-Promessa consta que “Concluída com aproveitamento a formação aqui acordada e na sequência da celebração do contrato prometido, a Segunda Contraente obriga-se a exercer a atividade profissional resultante da formação ministrada, durante um período mínimo de 2 anos após o início de vigência do contrato de trabalho, como compensação pelas despesas extraordinárias realizadas pela Primeira Contraente, assumindo, como tal o compromisso de não fazer cessar unilateralmente o contrato de trabalho durante o referido período, mais prometendo confirmar e reiterar no contrato de trabalho prometido a celebração de um pacto de permanência com este conteúdo, nos termos e ao abrigo no disposto no artigo 137.º do Código do Trabalho.”
16º- No ponto 7, da cláusula 3.ª do Contrato-Promessa consta que “Em caso de recusa ou impossibilidade, por parte da Segunda Contraente, da celebração do contrato de trabalho que lhe seja proposto pela Primeira Contraente, de não celebração ou violação do pacto de permanência, a Segunda Contraente incorre no dever de indemnizá-la pelos encargos decorrentes da formação, bem como dos valores recebidos a título de despesas, fixando-se desde já o montante total de indemnização em Euros 15.000,00 (quinze mil euros), acrescido de € 35,00 (trinta e cinco euros), a título de despesas estimadas, por dia efetivo de formação”.
17º- Na Cláusula 8ª, ponto 1, do contrato promessa consta que “Considerando que a área de negócio da Primeira Contraente é extremamente sensível no que respeita a questões de concorrência e considerando que a Segunda Contraente tem acesso a informação sensível da Primeira Contraente, as Partes acordam que, após a cessação do contrato a celebrar, por qualquer meio, a Segunda Contraente compromete-se a não competir, direta ou indiretamente, por si ou por interposta pessoa, com a Primeira Contraente e com as sociedades e entidades do Grupo no âmbito da respetiva atividade, nomeadamente não lhe sendo permitido colaborar com qualquer outra empresa em concorrência direta com a Primeira Contraente e/ou desenvolver por sua conta quaisquer atividades que possam concorrer com a atividade da Primeira Contraente ou com a atividade das sociedades e entidades do Grupo, durante um período de 24 meses”.
18º- Acordaram as partes, nos pontos 2. e 3. da cláusula 8ª do contrato promessa que a Ré, em virtude desse dever de não concorrência pós-contratual, teria direito a receber da Autora uma compensação mensal no valor de € 300,00 (trezentos euros), a ser paga durante os dois primeiros anos de vigência do contrato de trabalho a celebrar, montante que a Ré reconheceu como justo, tendo em conta o valor da retribuição fixado no contrato e as avultadas despesas com a sua formação profissional, suportadas pela Autora.
19º- Acordaram as partes, no ponto 4. da cláusula 8ª do contrato promessa que a violação do pacto de não concorrência pela Ré implicaria a devolução à Autora de todos os montantes recebidos a título de compensação, bem como o pagamento, a título de cláusula penal, de uma indemnização no montante de € 20.000,00 (vinte mil euros), sem prejuízo da responsabilidade civil por eventuais danos, caso excedessem o referido montante.
20º- Na sequência da celebração do aludido contrato-promessa e como acordado, no dia 29/07/2019 a Ré começou o seu curso, no qual recebeu formação, nomeadamente, em anatomia e fisiologia do cabelo, técnicas de micro-enxerto, implantação de folículos e técnica FUE.
21º- Para frequentar a formação em causa a Ré deslocou-se 7 vezes a ..., Espanha: […]
[…]
25º- […] [N]o dia 18 de Outubro de 2019 Autora e Ré celebraram o prometido contrato de trabalho […]
[…]
30º- Tal como previsto na Cláusula 3.ª do contrato-promessa, o contrato de trabalho foi celebrado com pacto de permanência, nos termos do artigo 137.º do Código do Trabalho, como resulta da cláusula 10ª, nº1, tendo a Ré assumido o compromisso de não o fazer cessar unilateralmente durante o período mínimo de 2 anos, como compensação pelas despesas extraordinárias suportadas pela Autora com a sua formação profissional, suportados pela Autora.
31º- Mais ficou estipulado na cláusula 10ª, n.º 2, do contrato de trabalho que, em caso de incumprimento do pacto de permanência, a Ré incorre no dever de indemnizar a Autora pelos encargos e despesas resultantes da formação ministrada, tendo sido fixado o montante total de indemnização de € 18.500 (dezoito mil e quinhentos euros).
32º- E como fixado na Cláusula 8.ª do contrato-promessa, o contrato de trabalho estabelece na cláusula 12ª, nº 1, um pacto de não concorrência pós-contratual, nos termos do artigo 136.º do Código do Trabalho, tendo a Ré se obrigado a não competir direta ou indiretamente com a atividade da Autora após a cessação do contrato de trabalho, durante um período de 24 meses.
[…]
35º- No dia 2 de Março de 2020, a Ré dirigiu à Autora uma carta a comunicar a denúncia no período experimental do contrato de trabalho, com efeitos a partir do dia 15 de Março de 2020, aí constando que “comunica a denúncia, no período experimental, do contrato de trabalho celebrado (…) no passado dia 18 de Outubro de 2019 e com um período experimental de 180 (cento e oitenta dias), com efeitos a partir do próximo dia 15 de Março de 2020.”.- carta junta como doc. n.º 14 com a p.i., a fls. 60 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais.
36º- No dia 5 de Março de 2020, a Ré dirigiu à Autora nova denúncia do contrato de trabalho, através de email enviado pela Ré a BB, onde refere o seguinte: “…de acordo com a conversa havida, uma vez que o período experimental termina a 15 de abril, faz nova denúncia do contrato, com novo termo, de forma a poder fazer as cirurgias confirmadas para Portugal no mês de março.” […]
[…]
39º- A formação profissional em causa, por todas as suas características referidas, permitiu que a Ré ficasse qualificada para exercer as funções de médica-cirurgiã capilar, competência profissional que não teria não fora as despesas em formação especializada incorridas pela Autora.
[…]
65º- A Cláusula 7.ª, n.º 1 do contrato de trabalho celebrado entre as partes prevê que “Os primeiros 180 dias da execução do presente contrato deverão ser considerados período experimental, podendo qualquer das Partes denunciá-lo, sem aviso prévio e sem necessidade de invocação de justa causa, não havendo direito a qualquer indemnização ou compensação.”
[…]
III.
8. Nos termos e para os efeitos do art. 672.º, n.º 1, a), reclamam a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça as questões “cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”, como tal se devendo entender, designadamente, as seguintes:
– “Questões que motivam debate doutrinário e jurisprudencial e que tenham uma dimensão paradigmática para casos futuros, onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa ser utilizada como um referente.” (Ac. do STJ de 06-05-2020, Proc. n.º 1261/17.1T8VCT.G1.S1, 4.ª Secção).
– Quando “existam divergências na doutrina e na jurisprudência sobre a questão ou questões em causa, ou ainda quando o tema se encontre eivado de especial complexidade ou novidade” (Acs. do STJ de 29-09-2021, P. n.º 681/15.0T8AVR.P1.S2, de 06-10-2021, P. n.º 12977/16.0T8SNT.L1.S2, e de 13-10-2021, P. n.º 5837/19.4T8GMR.G1.S2).
– “Questões que obtenham na Jurisprudência ou na Doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação que suscite problemas de interpretação, nos casos em que o intérprete e aplicador se defronte com lacunas legais, e/ou, de igual modo, com o elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, em todo o caso, em todas as situações em que uma intervenção do STJ possa contribuir para a segurança e certeza do direito.” (Ac. do STJ de 06-10-2021. P. n.º 474/08.1TYVNG-C.P1.S2).
– “Questões que obtenham na jurisprudência ou na doutrina respostas divergentes ou que emanem de legislação com elevado grau de dificuldade das operações exegéticas envolvidas, suscetíveis, em qualquer caso, de conduzir a decisões contraditórias ou de obstar à relativa previsibilidade da interpretação com que se pode confiar por parte dos tribunais.” (Ac. do STJ de 22-09-2021, P. n.º 7459/16.2T8LSB.L1.L1.S2).
– Questão “controversa, por debatida na doutrina, ou inédita, por nunca apreciada, mas que seja importante, para propiciar uma melhor aplicação do direito, estando em causa questionar um relevante segmento de determinada área jurídica” (Ac. do STJ de 13-10-2009, P. 413/08.0TYVNG.P1.S1).
– “Questão de manifesta dificuldade e complexidade, cuja solução jurídica reclame aturado estudo e reflexão, ou porque se trata de questão que suscita divergências a nível doutrinal, sendo conveniente a intervenção do Supremo para orientar os tribunais inferiores, ou porque se trata de questão nova, que à partida se revela suscetível de provocar divergências, por força da sua novidade e originalidade, que obrigam a operações exegéticas de elevado grau de dificuldade, suscetíveis de conduzir a decisões contraditórias, justificando igualmente a sua apreciação pelo STJ para evitar ou minorar as contradições que sobre ela possam surgir.” (Ac. do STJ de 02-02-2010, P. 3401/08.2TBCSC.L1.S1).
9. A solução encontrada pelas instâncias para o litígio em causa, fundou-se, determinantemente, na interpretação do concretamente clausulado no contrato de trabalho e com a determinação da vontade das partes, em especial no tocante à articulação das suas cláusulas 7ª (estipulação de período experimental) e 10ª (cláusula penal prevista em caso de violação do pacto de permanência), tendo o acórdão recorrido, como consta do respetivo sumário, desenvolvido essencialmente o seguinte raciocínio,:
“1. Tendo as partes acordado no contrato de trabalho um período experimental de 6 meses e concomitantemente um pacto de permanência de dois anos, as cláusulas são compatíveis por não contradizerem os fins nela visados, na medida em que estes são distintos e conciliáveis.
2. Pela fixação do período experimental as partes quiseram salvaguardar a possibilidade de durante os seis meses fixados, não estarem sujeitas a “limitações à liberdade de desvinculação”.
3. Através da cláusula de permanência e da previsão de uma indemnização a ser devida pela Ré em caso de incumprimento daquele, visou-se assegurar o legítimo interesse da autora pelas despesas suportadas com a formação que lhe proporcionou, na expectativa do retorno através da prestação da atividade contratada, pelo menos, durante o período de dois anos.
4. Em termos práticos, tal significa que a A. ou a R. podiam, como o fez esta última, denunciar o contrato sem aviso prévio e invocação de justa causa, nem direito a indemnização, entendendo-se por esta a prevista para o trabalhador em caso de despedimento ilícito [art.º 389.º/1, do CT], ou a devida pelo trabalhador ao empregador em caso de denúncia sem aviso prévio, “sem prejuízo de danos causados pela inobservância do prazo de aviso prévio ou de obrigação assumida em pacto de permanência” [art.º 401.º do CT]. Mas paralelamente, se assim tivesse procedido a Autora, esta perderia o investimento que fez com a formação da Ré, tendo em vista que esta ficasse qualificada para exercer a atividade contratada, não podendo exigir-lhe qualquer indemnização ou compensação pelas despesas realizadas com a formação que lhe proporcionou; fazendo-o esta, como é o caso, sujeita-se ao acordado relativamente à obrigação de permanência e dever de indemnização pelo incumprimento.”
10. Vale por dizer que não se está perante qualquer controvérsia doutrinária ou jurisprudencial carecida de clarificação jurídica, nem em face de qualquer dificuldade na aplicação do direito, mormente ao nível da interpretação ou densificação de normas, conceitos ou institutos jurídicos, mas, antes, no domínio da mera interpretação e articulação de cláusulas de um determinado contrato, problemática que por isso é alheia à esfera do fundamento específico da revista excecional expresso na fórmula (especial/particular) “relevância jurídica”, em cujo âmbito não cabe, só por si, como se sabe, o eventual desacerto do juízo valorativo operado pela decisão recorrida.
Com efeito, o que fundamentalmente opõe as partes são os precisos termos da interpretação, articulação e aplicação de determinadas cláusulas de um concreto contrato, e não propriamente o regime jurídico dos institutos em causa, razão pela qual não se vê que a intervenção do Supremo pudesse assumir relevância paradigmática (e determinante) em casos futuros.
A revista excecional é, pois, inadmissível.
IV.
11. Nestes termos, acorda-se em não admitir o recurso de revista excecional em apreço.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 23 de Novembro de 2023
Mário Belo Morgado (Relator)
Ramalho Pinto
Júlio Manuel Vieira Gomes
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1. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎