ACIDENTE DE TRABALHO
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
MEIOS DE PROVA
DEVER DE COOPERAÇÃO PARA A DESCOBERTA DA VERDADE
CONSEQUÊNCIAS DE INCUMPRIMENTO
Sumário


Em processo laboral não é obrigatória a realização de audiência prévia.
Não ocorre nulidade por decisão surpresa ao ser proferido despacho saneador sentença após a ré empregadora ter sido notificada por nove vezes para juntar aos autos o comprovativo de que comunicou à empregadora à categoria de aprendiz do sinistrado, tendo inclusive sido advertida de que iria ser proferida decisão, e igualmente advertida nos termos do artigo 417º, 2, CPC relativamente à livre apreciação da sua recusa. Sem que a dita ré tenha vindo aos autos responder o que quer que seja. Violando ademais os deveres de cooperação para a descoberta da verdade e de correção processual, fazendo arrastar os autos durante cerca de 7 meses.
Ademais, não tendo a ré informado de que pretendia fazer prova por depoimento de parte não anteriormente indicado nos articulados inseridos em processo laboral, ainda que se entendesse que aquele seria meio adequado para substituir a prova documental necessária à prova do facto (comunicação à seguradora da categoria de aprendiz do sinistrado), no caso, face ao devir do processo e postura processual, é lícito ao senhor juiz retirar ilações probatórias e considerar tal facto não provado.

Texto Integral


I. RELATÓRIO

“EMP01..., Ltª” entidade empregadora interpôs recurso do despacho saneador sentença que julgou procedente a ação emergente de acidente de trabalho, interposta pelo sinistrado AA (com o patrocínio do M.P.)  contra a ora recorrente e contra a seguradora “EMP02..., Companhia de Seguros, S.A.”.

No referido despacho saneador condenou-se:
 “a R. seguradora a pagar o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia de €298,55, com início no dia 28/1/2022, e €40,00 de despesas de deslocação, acrescido de juros de mora, nos termos supra expostos”
“a R. “EMP01...” a pagar o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia de €187,75, com início no dia 28/1/2022, bem como €2.097,58 de diferenças nas incapacidades temporárias, acrescido de juros de mora, nos termos supra expostos.”

ANTECEDENTES:
A tentativa de conciliação frustrou-se porque a entidade empregadora não aceitou conciliar-se. Afirmou que qualquer responsabilidade pela eventual diferença de retribuição de €12.325,90 para €20.077,15 que o sinistrado reclama, está integralmente transferido para a seguradora. Esta, por sua vez, apenas aceitou a transferência da responsabilidade da entidade patronal pelo salário anual de €12.325,90 (€677,00x14m +€97,90x11m+€161,00x11m). No mais, por todos os intervenientes foi aceite a ocorrência de acidente de trabalho, bem como o grau de IPP e as IT´s reclamadas.
Apresentada a petição inicial, o sinistrado alega que, pese embora ao tempo do acidente auferisse a retribuição anual de €12.775,15, trabalhava como aprendiz de pedreiro, pelo que, por força de lei, a indemnização é calculada com base na retribuição anual ilíquida de um trabalhador da mesma empresa ou empresa similar que exerça a actividade correspondente à aprendizagem - 71º nº 7 da Lei nº 98/2009. Que no caso corresponde a €20.077,15, demandando a empregadora pela diferença, já que este montante não se encontrava transferido para a seguradora.
A empregadora contestou, referindo que celebrou com a ré seguradora um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho, na modalidade de prémio variável, por via do qual foi transferida a remuneração anual de € 12.325,90. Trata-se de uma apólice, onde o pessoal seguro e o montante das retribuições é variável e consta das folhas de férias, a enviar mensalmente à companhia pelo tomador de seguro, competindo àquele a responsabilidade pela declaração. Nas folhas de férias não está declarada a categoria profissional ou função do autor, mas tão só remuneração anual de € 12.325,90. Desconhece se o autor era aprendiz de pedreiro. A Ré apenas tem conhecimento da informação versada das folhas de seguro para si enviadas, juntas aos autos. Por força de lei, caso o autor seja aprendiz, a remuneração a ter em conta não é efectivamente aquela que o trabalhador acidentado na realidade aufere, mas a que o legislador determina como deve ser calculada. Mas é sobre a empregadora que impende o dever de indicar a retribuição “correcta” (real ou legalmente ficcionada) para efeitos de transferência da sua responsabilidade infortunística. Qualquer entidade patronal minimamente diligente não pode desconhecer a existência desta cláusula que consta do contrato que subscreveu.
 A ré empregadora contestou. Alega que transferiu a totalidade da sua responsabilidade para a Ré seguradora. E que sempre lhe comunicou, quer a categoria profissional de todos os seus trabalhadores, quer todas componentes que compõe a retribuição, nomeadamente o subsidio de turno. A Ré seguradora estava na posse de todos os elementos que lhe permitiam aferir do risco e consequentemente de todos os elementos que lhe permitiam calcular com realidade o prémio seguro a pagar. Não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade por razões que se prendem com a aplicação/interpretação da lei e por algo que escapa ao seu controlo.
A empregadora “EMP01...” foi notificada para “ no prazo de dez dias, proceder à junção dos documentos que comprovam ter comunicado à seguradora a categoria profissional do sinistrado” - despachos proferidos em 11-07-2022, 13-09-2022 (aqui sob pena de condenação em multa), 7-10-2022 (aqui já condenada em multa e com cominação de nova condenação em multa), 7-11-2022 (condenada em multa e com cominação de nova condenação em multa), 30-11-2022(condenada em multa e com cominação de nova condenação em multa), 4-01-2023 (condenada em multa e com cominação de nova condenação em multa), 26-01-2023 (condenada em multa e com cominação de nova condenação em multa).
Foi, ainda, notificado para o efeito por despacho de 1-03-2023, após promoção do Ministério Públio “para que se insistisse novamente com a Ré – Entidade Empregadora, nos termos do disposto no art. 417º, nº. 2, CPC, sem prejuízo da eventual inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º CPC”.
Finalmente, por despacho de 11-04-2023 foi notificada para “dar cumprimento ao anteriormente ordenado (junção dos documentos que comprovam ter comunicado à seguradora a categoria profissional do sinistrado), sob pena de se considerar tal factualidade como não provada, sendo proferida decisão em conformidade”.
A empregadora não respondeu a qualquer dos nove despachos.
Seguidamente o senhor juiz proferiu saneador sentença acima referenciado decidindo a causa.

A EMPREGADORA RECORREU - CONCLUSÕES:

“1. A Ré apresentou contestação onde alegou, entre outros, que comunicou à Ré seguradora quer as retribuições auferidas pelos seus trabalhadores quer as suas categorias profissionais.
2. Na contestação arrolou testemunhas e protestou juntar documentos.
3. Foi considerado na douta sentença que a matéria alegada a comunicação à seguradora da retribuição dos seus trabalhadores e categorias profissionais só poderia ser provada por documento.
4. Salvo o devido respeito labora em erro.
5. Esse facto pode ser provado por testemunhas ou por confissão no âmbito de depoimentos de parte, nos termos do disposto no artigo 364º do Código Civil.
6. Nos termos processuais normais, não obstante não ter junto documentos sobre a comunicação à seguradora, teria ainda oportunidade de alterar os meios de prova e inclusive requerer depoimento de parte da Ré seguradora.
7. Contudo, foi surpreendida com a decisão surpresa proferida sem qualquer contraditório.
8. O presente recuso vem interposto do despacho saneador- sentença proferido nos autos, que julgou a acção procedente, conhecendo do mérito da causa logo na fase de saneamento dos autos, por entender que: a grande parte dos factos estão aceites por acordo e que o um factos alegado pela Ré apenas pode ser provado por documento e o mesmo não foi junto.
9. A decisão recorrida incorre em frontal violação do regime processual aplicável, incorrendo na sanção de nulidade, por vários fundamentos, dir-se-ia, concorrentes.
10.O artigo 591.° n.° 1, alínea b), do CPC, aplicável ex vi do disposto no artigo 1.° do CPT, estatui que, sempre que o Tribunal pretenda conhecer imediatamente do mérito da causa em sede de fase de saneamento, é obrigado a convocar audiência prévia, especificamente destinada a facultar às partes a discussão de facto e de direito da causa – conclusão que é corroborada pacificamente pela jurisprudência dos Tribunais Superiores.
11.O disposto no artigo 593.° n.° 1 do CPC, em conjugação com a norma anterior, estabelece que uma eventual decisão de dispensa da audiência prévia só é admissível dentro de certos condicionalismos, e apenas naqueles casos em que a acção deva prosseguir para além da fase de saneamento, o que é dizer: para a fase de julgamento.
12. O Tribunal a quo pretendeu decidir de imediato do mérito da causa, em sede de despacho saneador- sentença, e tampouco deu cumprimento ao disposto no n.º 3 e 4 do CP.C. conforme impõe o artig 61.º, n.º 2, do C.P.T.
13.Caso o processo prosseguisse os seus termos a Ré poderia vir a juntar documentação, requer o depoimento de parte e outros meios de prova.
14. A douta sentença recorrida violou, pelo menos, o artigo 364 do C.C., 1º, 61º, n.º 2 e 131º do CPT e ainda os 591 e 593 do CPC.
Face ao exposto, dúvidas não sobram de que deverá ser revogada a sentença do Tribunal a quo, sendo substituída por uma outra que fixa as matérias de facto assente e pontos da base instrutória, correndo a ação os seus ulteriores termos.” FIM DE CITAÇÃO.

CONTRA-ALEGAÇÕES: sustenta-se que a apelação não merece provimento.
O recurso foi apreciado em conferência – 659º, do CPC.

QUESTÕES A DECIDIR  NO RECURSO (o seu âmbito é delimitado pelas conclusões [1]):

Nulidade por decisão surpresa ao ser proferido despacho saneador sem qualquer contraditório e sem convocar audiência prévia.
Saber se a recorrente empregadora ainda poderia provar em audiência de julgamento, por depoimento de parte ou testemunhas, ter feito a comunicação à seguradora de que sinistrado era aprendiz de pedreiro e de quanto auferia na sua empresa um trabalhador com a categoria profissional de pedreiro.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS
PROVADOS - OS ACIMA REFERIDOS NO RELATÓRIO E AINDA OS SEGUINTES PROVADOS NA 1ª INSTÂNCIA:
1 – O A. nasceu no dia .../.../1990.
2 – Desempenhava a sua actividade profissional de aprendiz de pedreiro sob as ordens, direcção e fiscalização da R. “EMP01...”.
3 – O A. auferia, como aprendiz de pedreiro, a retribuição base mensal ilíquida de €677,00, acrescida de €4,45/dia de subsídio de alimentação, e ainda €169,25 por mês de subsídio de turno.
4 – Na R. “EMP01...” um trabalhador com a categoria profissional de pedreiro aufere a retribuição base mensal de €1.200,00.
5 - A R. “EMP01...” havia transferido para a R. seguradora a sua responsabilidade civil pela reparação de acidentes de trabalho, através de contrato de seguro, o qual abrangia o A., tendo a R. “EMP01...” comunicado à seguradora a retribuição anual do A. no montante de €12.325,90.
6 – No dia 13/8/2021, pelas 16,00 horas, quando o A. se encontrava no exercício da actividade referida em 2), uma pedra caiu-lhe sobre a mão direita, provocando esfacelo do 2º, 3º e 4 dedos dessa mão.
7 – Em consequência dessa lesão, o A. teve as seguintes incapacidades temporárias:
- ITA desde 14/8/2021 a 21/12/2021 (130 dias);
- ITP de 30% desde 22/12/2021 a 27/1/2022 (37 dias) – data da alta.
8 – O A. encontra-se curado, com uma IPP de 3,4602%.
9 – O A. teve €40,00 de despesas de transportes, que a R. seguradora já aceitou pagar.
10 – A R. seguradora já pagou ao A. a quantia de €3.335,60 a título de indemnização pelas incapacidades temporárias.

NÃO PROVADOS:

- que a R. “EMP01...” tenha comunicado à R. seguradora que o A. era aprendiz e que um trabalhador com a categoria profissional de pedreiro auferia na sua empresa a retribuição base de €1.200,00.

B) NULIDADE DO DESPACHO SANEADOR POR DECISÃO SURPRESA

Refere a recorrente que ocorre nulidade por decisão surpresa ao ser proferido despacho saneador sem qualquer contraditório e sem convocar audiência prévia.
A recorrente esquece que o direito processual laboral tem norma própria sobre o assunto, que se afasta do regime processual civil e que dispensa a regra da convocação da audiência preliminar. Assim, no que em particular se refere ao processo especial de acidentes de trabalho, findos os articulados o juiz profere despacho saneador destinado a conhecer imediatamente do mérito da causa e apreciação dos pedidos deduzidos, sempre que o estado do processo o permitir - 131º, 1, b), do CPT. Diga-se que também no âmbito do processo comum laboral, findos os articulados o juiz pode decidir de imediato do mérito da causa se o processo já contiver os elementos necessários e a simplicidade da causa o permitir, tudo sem prejuízo do contraditório - 61º CPT.
A esta dinâmica de simplificação e aceleração não é estranho o facto de estarem em jogo direitos indisponíveis e interesses de ordem pública. Ademais, tanto o processo especial de acidentes de trabalho como o processo comum laboral comportam no início do processado uma tentativa de conciliação obrigatória, o que não acontece no processo civil, onde é suposto as partes já terem exposto os seus pontos de vista - 54º, 2, 55º, 108º, 1, CPT. No caso concreto dos acidentes de trabalho, frustrando-se a tentativa de conciliação, as partes têm inclusive a obrigação de tomar posição expressa sobre várias questões que importam ao litígio, incluindo sobre a retribuição do sinistrado e a entidade responsável, sob pena de litigância de má fé- 112º CPC.
Não faltaram, portanto, ocasiões para discutir a questão que está em causa nos autos.
Parece-nos ainda afrontoso que se diga que inexistiu contraditório sobre a questão da falta (ou não) de comunicação da empregadora à seguradora da categoria (aprendiz) e retribuição do sinistrado.
Em primeiro lugar a questão ficou expressa na tentativa de conciliação que se frustrou precisamente por esse motivo.
Em segundo lugar ficou claramente expressa nos articulados, sendo aliás a única questão controvertida e sobre a qual todos os intervenientes se concentraram.
Em terceiro lugar, a empregadora foi notificada por nove vezes para juntar aos autos a documentação comprovativa da comunicação que terá efectuado à seguradora. Uma das vezes foi inclusive com a cominação “de se considerar tal factualidade como não provada, sendo proferida decisão em conformidade”. Sem que a empregadora alguma vez se dignasse sequer responder aos despachos. Frisa-se, aliás, o comportamento processual impróprio da parte. Para além de, nestes entretantos, entre o primeiro e o nono despacho, terem decorrido cerca de 7 meses, num arrastamento inaceitável num processo que reveste natureza urgente.
Depois de tudo isto, é fortemente irrazoável vir agora invocar falta de contraditório, tento mais que a parte nunca respondeu aos despachos, nem apresentou qualquer justificação para a sua omissão.

C) PROVA DA COMUNICAÇÃO À SEGURADORA DA CATEGORIA DO SINISTRADO DE APRENDIZ DE PEDREIRO (E DA RETRIBUIÇÃO MÉDIA DOS TRABALHADORES DA CATEGORIA “PEDREIROS”)
A questão consiste em saber se a recorrente empregadora ainda poderia provar em audiência de julgamento, por depoimento de parte ou testemunhas, que dirigiu à seguradora a comunicação de que sinistrado era aprendiz.
O caso trata de um seguro de prémio variável.
O diploma que regula as condições da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho por conta de outrem define  como sendo seguro “a prémio variável” aquele em que a apólice cobre um número variável de pessoas seguras, com retribuições seguras também variáveis, sendo consideradas pelo segurador as pessoas e as retribuições identificadas nas folhas de vencimento que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador do seguro - cláusula 5ª, b), do Anexo das Condições Gerais da Portaria nº 256/2011 de 5 de Julho.[2]
Os aprendizes, como é o caso do sinistrado, integram-se no conceito de trabalhadores para efeitos de serem abrangidos pelo seguro- clª 1ª, al. e), da referida portaria.
Note-se que a lei de acidente de trabalho (NLAT), tendo presente que estes percebem remunerações inferiores, contém uma cláusula de protecção estipulando que se o sinistrado for praticante, aprendiz ou estagiário[3] a indemnização é calculada com base na retribuição anual média ilíquida de um trabalhador da mesma empresa ou empresa similar e que exerça actividade correspondente à formação, aprendizagem ou estágio - 71º, 7, NLAT e de igual modo cláusula 21º, 1, 4 da portaria.
A determinação da retribuição segura é sempre da responsabilidade do empregador que, para o efeito, tem de informar o empregador dessa condição de aprendiz, que influi na apreciação do risco (e da correspondente retribuição anual média do correspondente trabalhador não aprendiz) - cláusulas 7º, 1, 21º, 1, da portaria que vem sendo invocada.
 A obrigação de comunicação das remunerações e a indicação dos praticantes, aprendizes ou estagiários está expressamente prevista na referida portaria nos seguintes termos:
Cláusula 24.ª
1 - Para além do previsto no capítulo ii, o tomador do seguro obriga-se:
a)
A enviar ao segurador, até ao dia 15 de cada mês, cópia das declarações de remunerações do seu pessoal remetidas à segurança social, relativas às retribuições pagas no mês anterior, devendo no envio mencionar a totalidade das remunerações previstas na lei como integrando a retribuição para efeito de cálculo da reparação por acidente de trabalho, e indicar ainda os praticantes, os aprendizes e os estagiários;
.....

2 - Salvo convenção em contrário, as comunicações previstas nas alíneas a) e c) do número anterior são efectuadas por meio informático, nomeadamente em suporte digital ou correio electrónico.”

Finalmente, a condição especial 01 refere que nos seguros a prémio variável são cobertos pelo contrato os trabalhadores ao serviço do tomador do seguro de acordo com as folhas de retribuições periodicamente enviadas ao segurador ao abrigo do disposto da cláusula 24ª, 1, al. a), todos da referida portaria. Estipulando, em caso de incumprimento, consequências de resolução e/ou de aumento do prémio - condição especial 01.
Finalmente recorda-se que documento é qualquer objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto. Prova documental é, em consonância, a que resulta de documento - 362º CC. Documentos particulares são todos os não exarados pelas autoridades públicas, notário ou outro oficial público provido de fé pública - 363º CC.
Do quadro exposto resulta que a retribuição e a condição de aprendiz dos trabalhadores devem ser comunicadas por escrito (envia-se cópia das declarações de remuneração e indica-se os aprendizes) e por meio informático. Donde se colhe que a respectiva prova se faz por documento não podendo, a priori, ser substituído por outro meio de prova que não seja superior. A omissão da forma gera nulidade do acto - 364º, 1 e 220 CC.
É certo que caso esteja em causa uma mera formalidade “ad probatioem ” em vez de “ad substantiam” permite-se que o documento seja substituído por confissão, mas nunca por prova testemunhal (“Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.”- 364º, 2, CC”.
Expressamos dúvidas sobre se tal documento poderia ser substituído por confissão através de depoimento de parte como pretende o recorrente, por tal não ser claro e em face da imperatividade que norteia grande parte das disposições da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho e da necessidade de certeza jurídica inerente a este regime especial do seguro - artigo 2º, 3º, cláusula 24º, 1, a), da portaria referida.
Contudo, no caso é de indeferir a pretensão por outra ordem de razão que emerge com maior evidência.
Na verdade, como referimos no relatório do acórdão, a recorrente empregadora foi notificada por nove vezes para juntar aos autos os documentos que comprovassem ter comunicado à seguradora a categoria profissional (de aprendiz) do sinistrado. Na última das notificações inclusive sob a cominação de “se considerar tal factualidade como não provada, sendo proferida decisão em conformidade”.
A empregadora não respondeu a qualquer dos nove despachos. Mesmo perante o último despacho e respectica cominação, nada veio dizer.
Ora, se a empregadora pretendia requerer depoimento de parte porque entendia que a prova daquela comunicação poderia ser feita de tal forma, então impunha-se que tivesse informado o senhor juiz dessa intenção. Tanto mais que o senhor juiz o notificou de que iria proferir decisão sobre a causa, caso persistisse a omissão.
Ademais, o depoimento de parte nem sequer foi requerido na contestação, que contém apenas rol de testemunhas, para além de que no processo laboral com os articulados devem as partes requerer quaisquer provas, com excepção do rol de testemunhas que, neste processo especial de acidentes de trabalho, é apresentado 10 dias após o despacho saneador[4] - 63º, 1, 133º CPT).
O inusitado número de vezes que foi notificado para apresentar documentação sem que algo visse dizer, para além de representar no mínimo descortesia processual, traduz violação do dever de cooperação- 7º CPC.
Competia ao senhor juiz dirigir activamente o processo, providenciar pelo seu andamento célere, simplificar e agilizar, bem como convidar as partes a praticar actos, ao abrigo do dever de gestão processual, tanto mais que estamos perante processo classificado de urgente - 6º CPC.
Realce-se, aqui, que foi a empregadora notificado por despacho de 1-03-2023, após promoção do Ministério Públio “para que se insistisse novamente com a Ré – Entidade Empregadora, nos termos do disposto no art. 417º, nº. 2, CPC, sem prejuízo da eventual inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º CPC”.
Ora, o referido artigo 417º do CPC consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade que impende sobre todos, inclusive as partes, estipulando que estas têm o dever de prestar a sua colaboração, mormente facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Se houver recusa da colaboração devida e se o recusante for parte, estipula a referida norma que o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios - sem prejuízo da inversão do ónus da prova que ao caso não releva porque este já impendia sobre esta parte. A empregadora não tinha assim como desconhecer isto, porque de tal foi avisada e porque a cominação decorre de lei.
A ré empregadora optou por se remeter ao silêncio perante o anúncio de que iria ser proferida decisão de mérito, sem que tal merecesse da sua parte qualquer reacção, tudo depois de inúmeras anteriores notificações.
Afigura-se-nos, pois, lícita a ilação de (não) prova retirada pelo senhor juiz.
Foram só estas as questões objecto de recurso, e certo é que são estas que delimitam a acção do tribunal. Mantemos por isso o decidido.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do recorrente.
Notifique.

23-11-2023

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Francisco Sousa Pereira
Vera Sottomayor


[1] Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.
[2] Diploma que aprova a parte uniforme das condições gerais e condições especiais da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem, em conformidade com o disposto no artigo 81º, da Lei 98/2009 de 4 de setembro (NLAT).
[3] Ou outras situações de formação profissional.
[4] As declarações de parte que podem ser requeridas mais tarde diferenciam-se do depoimento de parte e, ademais, perfilhamos de que aquelas primeiras só podem ser requeridas pelos próprios, no caso a seguradora e não pela empregadora.