IRREGULARIDADE DE NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO
SANAÇÃO DA IRREGULARIDADE PELO TRIBUNAL
NÃO DEVOLUÇÃO DOS AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário


Em caso de irregularidade de notificação da acusação em fase de inquérito, cabe ao juiz, na prolação do despacho previsto no art. 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, determinar a sanação da irregularidade pela secção que lhe está afecta, uma vez que o processo já está em fase de julgamento.

Texto Integral


Neste processo n.º 1778/21.3T9BRG-A.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 1778/21...., a correr termos no Juízo Local Criminal ... (J...), comarca ..., em que são arguidos a Santa Casa da Misericórdia ... e outros, foi proferido despacho em que, considerando haver uma irregularidade no inquérito relativamente à notificação da primeira arguida, se determinou “a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público, para os fins tidos por convenientes”.

Inconformado com esse despacho, do mesmo recorreu o Ministério Público, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões(transcrição) Expurgados os excertos do despacho recorrido e limitando as referências jurisprudenciais ao essencial.:

«1. No âmbito dos presentes autos, no qual são arguidos Santa Casa da Misericórdia ..., AA, BB e CC, foi deduzida acusação pública em 22-11-2022.
2. A arguida Santa Casa da Misericórdia ..., prestou, a fls. 422, Termo de Identidade e Residência (TIR), onde indicou como morada para posteriores notificações, a Rua ..., ....
3. Todavia, conforme resulta de fls. 685 e 715, por lapso dos serviços – cuja responsabilidade assumimos como nossa – a acusação pública deduzida foi notificada à arguida Santa Casa da Misericórdia ... através de via postal simples, com prova de depósito, para a seguinte morada: Rua ..., .... Isto é, não consta da notificação a referência ao andar.
4. Tendo os autos sido remetidos à distribuição, para julgamento, foram os mesmos distribuídos ao Juízo Local Criminal ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da comarca ..., o Tribunal a quo, em 01-02-2023, proferiu o despacho agora colocado em crise (…).
5. O juiz de julgamento pode conhecer oficiosamente da irregularidade relativa à falta de notificação da acusação ao arguido em sede de inquérito e ordenar a sua sanação, em consonância com o disposto no art. 123.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, pois que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores.
6. Tal sanação, porém, deve ser levada a cabo pelos próprios serviços do tribunal, não tendo base legal a determinação da devolução dos autos ao Ministério Público para aquele efeito (ainda que de forma implícita), sob pena de se afrontarem os princípios do acusatório, da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
7. Assim tem defendido esse Tribunal Superior, como resulta, por exemplo, do recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.10.2020 (…), processo 754/19.0T9BRG.G1 (…).
8. Também do Tribunal da Relação de Guimarães:
a) Acórdão (…) de 10.07.2019 (…), processo 260/18.0GEBRG.G1;
b) Acórdão (…) de 25.02.2019 (…), processo 972/17.6T9GMR-A.G1;
c) Acórdão (…) de 06.02.2017 (…), processo 540/14.4GCBRG.G1;
d) Acórdão (…) de 05.12.2016 (…), processo 823/12.8PBGMR.G1;
e) Acórdão (…) de 11.01.2016, (…), todos em “dgsi.pt”.
9. E não só:
a) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.04.2006 (…);
b) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.09.2020 (…), processo 3276/18.3T9SXL.L1-5;
c) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.02.2013 (…);
d) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.10.2013 (…);
e) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.02.2013, (…) e
f) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.11.2013, (…) todos em “dgsi.pt”.
10. É nosso entendimento que ao ter decidido da forma como o fez, violou a douta decisão o disposto no art. 123.º, n.º 2 e 311.º ambos do Código de Processo Penal.»
Pugna o recorrente pela revogação do despacho recorrido e pela sua substituição «por outro despacho que, caso não exista qualquer outra questão prévia nos autos que obste ao conhecimento do mérito da causa, receba a acusação deduzida, dê cumprimento ao disposto no artigo 311-A do Código de Processo Penal, seguindo-se os ulteriores regulares termos do processo.»
O recurso foi admitido.
Não houve resposta.
Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta acompanha a motivação do recurso apresentada na 1.ª instância, reforçando-a com argumentos doutrinários, sendo de parecer que o recurso deve ser julgado procedente e o despacho recorrido revogado.
Cumprido o contraditório, não foi dada resposta ao parecer.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem. , e face às conclusões do recurso, são duas as questões a resolver:
- se se verifica ou não a irregularidade da notificação da acusação à primeira arguida;
- em caso afirmativo, se os autos devem ser remetidos ao Ministério Público para a respectiva sanação ou se esta deve ser determinada oficiosamente pelo Tribunal.

B. Apreciação do recurso
É o seguinte o teor do despacho recorrido:
«Compulsados os autos, constata-se que a arguida Santa Casa da Misericórdia ..., prestou, a fls. 422, Termo de Identidade e Residência (TIR), onde indicou como morada para posteriores notificações, a Rua ..., ....
Ora, como resulta de fls. 685 e 715, a acusação pública deduzida foi notificada à referida arguida, através de via postal simples, com prova de depósito, para a seguinte morada: Rua ..., .... Isto é, não consta da notificação a referência ao andar, o que significa que não poderemos considerar a arguida notificada na morada constante do TIR e por ela escolhida.
Como é consabido, o despacho de acusação deve ser notificado não só ao defensor - como sucedeu - mas também ao arguido, como obriga o artigo 113º, nº 10, do CPP.
Há ainda que atentar no disposto no artigo 196º, n.ºs 2 e 3, do CPP, donde decorre que após prestar TIR, o arguido será notificado para a morada por si escolhida, mediante via postal simples.
Não tendo a arguida sido notificada da acusação na morada exacta por si escolhida, verifica-se, assim, uma inobservância das disposições da lei do processo penal.
Ora, na falta de previsão expressa que qualifique tal inobservância como nulidade, estamos perante uma irregularidade processual.
Irregularidade, note-se, de acentuada relevância por, em abstracto, afectar as garantias de defesa da arguida e obstar ao normal andamento da lide, nos termos do disposto no artigo 123º, n.º 2, do CPP, a qual constitui uma questão prévia que obsta à apreciação do mérito da causa.
Efectivamente decorre do artigo 123º, nº 2, do CPP que pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado, como sucede.
Isto porque, esse vício é capaz de inquinar não só o acto em causa - a notificação da acusação - mas também os passos subsequentes do processo, desde logo porque é susceptível de impedir a arguida, na tramitação normal dos autos, de requerer, querendo, a abertura de instrução.
Pelo que, tendo em conta que tal irregularidade respeita ao inquérito e atentas as atribuições funcionais que a lei estabelece para essa fase processual, nos termos do disposto no artigo 53º, n.º 2, alínea b) e 263º, nº 1, ambos do CPP, é ao Ministério Público que compete proceder às diligências legalmente necessárias à sua efectiva reparação.
Face ao exposto, nos termos do disposto no artigo 123º, nº 1, do CPP, julgo verificada a assinalada irregularidade processual e, em consequência, determino a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público, para os fins tidos por convenientes.
Notifique e, após trânsito, dê-se cumprimento ao determinado, dando-se a competente baixa.»

1. Irregularidade da notificação da acusação à primeira arguida
Da análise da certidão que serviu para instruir o recurso (ref.ª ...10), resulta:
- a 30 de Abril de 2021, a arguida Santa Casa da Misericórdia ... prestou termo de identidade e residência, indicando o seu representante legal como morada a Rua ..., ... ..., para efeitos de notificações da alínea c) do n.º 1 do art. 113.º;
- a 22 de Novembro de 2022, foi expedida pelos serviços do Ministério Público do DIAP de ... a notificação da acusação da mesma arguida, por via postal simples com prova de depósito, para “Rua ..., ..., ... ...”;
- a 24 de Novembro de 2022, foi a prova de depósito dos Correios ... deixada no receptáculo postal domiciliário da morada indicada na notificação.
Estabelece o art. 196.º, n.º 2, que no termo de identidade e residência – medida de coacção aplicável a todo aquele que foi constituído arguido (n.º 1 do mesmo artigo) – e para “o efeito de ser notificado mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 113.º, o arguido indica a sua residência, o local de trabalho ou outro domicílio à sua escolha.” Do termo deve constar que foi dado conhecimento ao arguido de “que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento” (n.º 3, c), do mesmo artigo).
Foi exactamente o que aconteceu no termo de identidade e residência prestado nos autos pela arguida Santa Casa da Misericórdia.
Já o art. 113.º, n.º 1, c), prevê que as notificações se efectuem por “via postal simples, por meio de carta ou aviso, nos casos expressamente previstos”, ou seja, quando o arguido prestou termo de identidade e residência; no caso dos autos, tratava-se da notificação da acusação que, além de ter de ser feita ao advogado do arguido, a lei obriga que se efectue também a este, nos termos do art. 113.º, n.º 10.
Na notificação da acusação, foi omitida a referência ao andar (2.º), ficando apenas o n.º da porta.
No despacho recorrido, o Mm.º Juiz a quo considerou que estava em causa uma irregularidade que importava sanar.
Face ao princípio da legalidade do art. 118.º, n.º 1, um acto processual apenas será nulo quando tal vício for cominado por lei de forma expressa; de outra forma, “o acto ilegal é irregular” (n.º 2 do mesmo artigo).
Prevê o art. 123.º, n.º 1: “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.” Acrescenta o n.º 2 que se pode ordenar oficiosamente “a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
Em rigor, a notificação da acusação tal como foi feita à arguida Santa Casa da Misericórdia padece de irregularidade, por não ter sido dirigida à concreta morada da arguida; pode sempre colocar-se a hipótese de haver, naquele n.º ..., outros receptáculos para o correio, destinados ao ... e ao ... andar.
Ora, não se tendo a certeza se a arguida foi de facto notificada da acusação, e estando fora de causa a verificação de qualquer nulidade processual, insanável (art. 119.º) ou dependente de arguição (art. 120.º), há que conclui pela existência de irregularidade na referida notificação, cujo conhecimento é oficioso, “na medida em que (…) pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores e não se mostra sanada” Ac. Rel. Lisboa de 8.9.20, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2020:3276.18.3T9SXL.L1.5.49/..
Aliás, neste entendimento convergem quer o despacho recorrido quer o recorrente, e apenas se conheceu da questão para melhor se apreciar o cerne do recurso.

2. Quais os serviços competentes para sanar a irregularidade
A quem compete, então, chegados os autos já à sua fase jurisdicional, proceder à reparação da irregularidade: aos serviços do Ministério Público (que a cometeram, certamente por lapso involuntário) ou ao Tribunal, onde correm agora os autos?
Nesta questão, afigura-se óbvio que a própria sistemática legal seria suficiente para fornecer uma resposta: o Livro VI do Código de Processo Penal trata das fases preliminares (Título I) – a notícia do crime, as medidas cautelares e a detenção –, do inquérito (Título II) e da instrução (Título III); já o Livro VII versa sobre o julgamento.
Ora, não há dúvidas de que o dominus das duas primeiras – sem prejuízo da intervenção judicial, sempre que a lei processual penal o exija – é o Ministério Público (art. 263.º, n.º 1); já a instrução é da competência do respectivo juiz (art. 288.º, n.º 1) e a fase de julgamento cabe ao juiz que irá realizar este (art. 311.º, n.º 1).
A lei determina com rigor a competência – estanque, quanto à direcção da respectiva fase processual – de cada um destes intervenientes e os actos que lhes cabem realizar, bem como aos respectivos serviços.
Daí que, uma vez no âmbito de competência do juiz como titular do processo, não possa haver devolução deste pelo juiz ao Ministério Público, mesmo para suprir uma nulidade de inquérito: havendo autonomia de actuação do Ministério Público, “não tem fundamento legal qualquer «ordem» [de um juiz] para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” Ac. STJ de 27.4.06, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2006:06P1403.A7/..
E, desde a prolação do acórdão acabado de citar, muitos outros se têm pronunciado no mesmo sentido, por ser esse o único que respeita o princípio constitucional da autonomia do Ministério Público, previsto no art. 219.º, n.º 2, da Lei Fundamental. Este traço característico do Ministério Público não serve apenas para o proteger da intervenção do poder executivo, mas também para fazer uma clara “separação de águas” em relação à função jurisdicional, de modo a que esta não se lhe possa sobrepor, nos domínios da exclusiva competência daquele.
Como consequência, e numa situação em que os autos estão na fase de “apreciação do juiz para designar data para julgamento, e sendo este competente para apreciar a irregularidade de notificação da acusação aos arguidos, é também da competência do juiz a ordem de suprimento da irregularidade detectada, a qual apenas poderá ser cumprida pelos serviços administrativos que lhe devem obediência, não podendo ser executada pelos serviços do Ministério Público” Ac. citado na nota 3..
No momento do despacho recorrido, os autos encontravam-se precisamente nessa fase, a do saneamento do processo, prevista no art. 311.º, n.º 1: “Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.
E, como se referiu, este saneamento integra já a fase de julgamento, não havendo norma que permita a devolução dos autos ao Ministério Público: “não cabe na esfera de competência do juiz julgador censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito” Ac. desta Relação de 6.2.17, proc. n.º 540/14.4GCBRG.G1, in www.dgsi.pt., uma vez que esta fase processual já foi ultrapassada. Ac. Rel. Lisboa de 23.10.13, proc. n.º 1231/11.3T3AVR.C1, in www.dgsi.pt.
Notando – e bem – que havia uma irregularidade, só havia então um caminho a tomar pelo Mm.º Juiz a quo: “a determinação imediata à respectiva secretaria judicial do cumprimento da notificação” Ac. desta Relação de 25.2.19, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2019:972.17.6T9GMR.A.G1.91/. regular da acusação, quer porque a solução escolhida violar a aludida autonomia do Ministério Público quer por elementares razões de economia processual.
Entende-se, por isso, assistir razão ao recorrente, o que terá por consequência a revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que ordene a reparação da citada irregularidade pelos serviços do Tribunal.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o despacho recorrido na parte em que ordenou a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público, e determinando a sua substituição por outro que ordene aos serviços do Tribunal a quo a reparação da citada irregularidade, após a qual se seguirão os normais termos do processo.
Sem custas.

Guimarães, 14 de Novembro de 2023
(Processado em computador e revisto pela relatora)

Os Juízes Desembargadores

Cristina Xavier da Fonseca
Carlos da Cunha Coutinho
Pedro Freitas Pinto