CRIME DE INCÊNDIO
INIMPUTÁVEL
MEDIDA DE SEGURANÇA
PERIGOSIDADE
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DO INTERNAMENTO
Sumário


I – A medida de segurança visa primacialmente a defesa da ordem jurídica societária em função da perigosidade criminal associada ao agente inimputável, espécie e duração daquela, sendo que o facto ilícito típico por este perpetrado não constitui o fundamento do decretamento da medida, assumindo tão-só um valor de indício ou prova da perigosidade.
II - A medida de segurança almeja, primeiramente, proteger a sociedade do cometimento de novos e idênticos factos ilícitos-típicos por parte do inimputável perigoso que cometeu um facto ilícito-típico grave. A finalidade securitária há-de compatibilizar-se, sempre que possível, com a finalidade de ressocialização do agente.
III – A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente (art. 40º, nº3 do CP).
IV – No caso, a gravidade objetiva do facto ilícito típico cometido pelo arguido, integrador da tipicidade objetiva do crime de incêndio, p. e p. pelo art. 272º, nº1, al. a), do CP, é revelada, além do mais, pela sua natureza de crime de perigo comum, em virtude de as respetivas condutas típicas serem consideradas pelo legislador como suscetíveis de, amiúde, causarem danos de elevada gravidade, o que justifica a antecipação da punição para momento anterior ao da causação do dano, logo que se verifique a criação do perigo (abstracto), e pela severa moldura penal da pena de prisão aplicável. Tal pensamento legislativo projeta-se ainda, naturalmente, na previsão da medida segurança aplicável, assim se explicando a fixação de um limite mínimo de três anos para a duração do internamento quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime de perigo comum (o qual só pode ser incumprido, por libertação antecipada, se esta se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social).
V - Sobressai também a reiteração de comportamentos por parte do arguido, num curtíssimo lapso temporal, porquanto, primeiro ateou um fogo que colocou em risco, entre o mais, a vida de uma pessoa, para, logo em seguida, a cerca de 350 metros daquele local, atear um novo fogo, que só consumiu uma pequena área de vegetação em virtude da pronta e oportuna intervenção de um terceiro.
VI - Por outro lado, está provado que a congénita anomalia psíquica de que padece o arguido, associada à comorbilidade emergente da dependência alcoólica desde tenra idade, afetando decisivamente as suas capacidades intelectuais, o tornam incapaz de processar cognitivamente a informação percecionada, não possuindo pensamento abstrato que lhe permita ter consciência da ilicitude dos factos de que é arguido, avaliá-los ou determinar-se de forma livre e esclarecida.
VII - A predita incapacidade, conjugada com a reiterada e prolongada recusa do arguido em assumir a sua problemática aditiva e, em conformidade, submeter-se a tratamento (ainda que em regime ambulatório), não obstante os esforços envidados pelos seus familiares para o motivar nesse sentido, que se tem repetidamente revelado infrutíferos, mantendo aquele o consumo excessivo e descontrolado de bebidas alcoólicas, bem como a sua desinserção laboral, familiar e social, estribam e agudizam o sério risco de o arguido cometer futuramente factos típicos da mesma índole dos apreciados nos autos.
VIII - Vigora no âmbito das medidas de segurança o princípio da subsidiariedade da aplicação das medidas detentivas, privativas da liberdade, pelo que estas só se justificam como ultima ratio, cedendo perante a possibilidade de aplicação no caso concreto de medidas não detentivas, nomeadamente a suspensão da execução do internamento, desde que se revelem suficientes e adequadas para acautelar a perigosidade criminal do delinquente inimputável, o que não sucede in casu.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:
           
I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 150/22...., do Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo de Competência Genérica ..., por sentença proferida e depositada em 17.03.2023 (referências ...64 e ...10, respetivamente), foi decidido:

“Por todo o exposto, o Tribunal julga a acusação deduzida improcedente por não provada e, consequentemente:
a) Absolve o arguido AA da prática dos factos objectivos subsumíveis ao disposto no tipo de crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272º, nº1 al. a) e 202.º, alínea a) do Código Penal, em razão de inimputabilidade do arguido;
b) Declara o arguido AA inimputável perigoso e, em razão de tal declaração, ordena, ao abrigo do disposto no artº 91º nº 1 do Código Penal, o internamento do arguido em estabelecimento de cura ou segurança apropriado por um período mínimo de 3 (três) anos e máximo de 10 (dez) anos.”

I.2 Inconformado com a sobredita decisão condenatória, dela veio o arguido AA interpor o presente recurso, que na motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...08) - transcrição:

“1- Decorre do relatório de perícia médico legal efectuada ao arguido que este, desde primeiros anos de vida, evidencia atraso mental conjugado com consumo excessivo de álcool, preenchendo os requisitos para a declaração de inimputabilidade, na data de prática dos factos imputados e arbitrada àqueles primeiros anos de vida;
2- O arguido deveria ter sido declarado inimputável não perigoso;
3- Mostra-se, assim, a nosso ver, insuficientemente fundamentado na Sentença recorrida o juízo de perigosidade;
4- Tal insuficiência de fundamentação, que em abstrato configuraria uma nulidade, deve-se a nosso ver, á inexistência na prova documental relevante, designadamente relatório de perícia médico legal (elaborado com recurso a imprescindíveis conhecimentos técnico-científicos), e testemunhal produzida, de quaisquer factos suficientes para decretar e fundamentar tal estado de perigosidade;
5- Ao decretar o estado de perigosidade do arguido, evidencia a Sentença erro na apreciação da prova;
6- É consabido que a declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena e só poderá haver lugar á aplicação de uma medida de segurança no caso de arguido agente do facto ilícito típico e declarado inimputável revelar um grau de perigosidade com probabilidade de reincidência tão forte que a sociedade tenha de se defender, prevenindo o risco da prática futura de factos criminosos, o que aqui não sucede, corroborado pela prova da idade do arguido, 50 anos, e inexistência de tendência para prática de ilícitos, bem como ao facto de desde tenra idade abusar do álcool e só agora ter sido apurada a prática de factos que abstratamente consubstanciam crime;

CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA E SE MANTENHA O ARGUIDO COMO INIMPUTÁVEL PERIGOSO, E RESPECTIVA MEDIDA DE SEGURANÇA

7- Entendemos, salvo melhor opinião, que a prova testemunhal e documental produzida nos autos até prolação da Sentença, só por si determina a aplicação do artº 98 do CP, seguindo o principio da subsidiariedade das medidas de segurança, só se aplica mais gravosa caso a menos gravosa se mostre com algum grau de certeza ineficaz, a prova documental junta aos autos – relatório médico legal e informações de acompanhamento do arguido pelos técnicos da D.G.R.S.P - Equipa ... que foram sendo enviado para estes autos, fortalece o juízo de prognose favorável e não pode agora deixar de se entender ser razoavelmente de esperar que com a suspensão da medida de segurança se alcance a finalidade da medida, pois a perícia medico legal identifica a continuação de consumo de álcool excessivo e continuação de falta de tratamento psiquiátrico como origem do risco de reincidência na prática do crime de incêndio, no caso de voluntariamente o arguido continuar com o seguimento do tratamento médico voluntário mencionado nas informações, mostra-se anulado o risco;
8- Salvo melhor opinião, deve este Tribunal ad Quem considerar verificado juízo de prognose favorável suficiente para determinar a aplicação do regime previsto no artº 98 do CP e ordenar a suspensão da execução da medida de segurança decretada ao arguido, ou caso entenda mais cauteloso, ordenar ao Tribunal a quo, que melhor se debruce sobre essa temática;
Termos em que, e nos mais do suprimento de V.ªs Ex.ªs, deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo em consequência revogada a Sentença recorrida, nos termos concluídos, como é de JUSTIÇA”

Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso apresentado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou douta resposta em que pugna pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida (referência ...72).

Formulou as seguintes conclusões:

“1. Na douta sentença que se encontra ora em crise, o Tribunal a quo enumerou os factos provados e não provados, assim como motivou a sua convicção, expondo os motivos de facto que fundamentam a sua decisão e que levaram à prova de todos os pontos da matéria de facto dada como provada.
2. Na construção da sua motivação o Tribunal a quo não deixou de indicar as concretas provas de que se socorreu para considerar os factos como provados, assim como não deixou de esclarecer que as provas que serviram para formar a sua convicção, foram objetivas, coerentes e credíveis, descrevendo os concretos trechos em que se fundou a sua convicção.
3. O Tribunal a quo explicou, de forma lógica e objetivável, o percurso que traçou para dar tais factos como provados, não se verificando qualquer vício/nulidade por falta de fundamentação.
4. Da prova produzida em audiência resultaram factos suficientes para decretar e fundamentar a perigosidade do arguido, pelo que andou bem o Tribunal a quo em dar esse facto como provado, não existindo qualquer erro na apreciação da prova.
5. Em face da factualidade dada como provada, bem andou o Tribunal a quo ao declarar o arguido AA como inimputável perigoso e, em razão de tal declaração, ordenar, ao abrigo do disposto no artº 91º nº 1 do Código Penal, o internamento do arguido em estabelecimento de cura ou segurança apropriado por um período mínimo de 3 (três) anos e máximo de 10 (dez) anos.
6. Não foram violadas quaisquer disposições legais, não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo.”

I.3 Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que defende a improcedência do recurso (referência ...80).
Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP)[1].

Assim sendo, no caso vertente, as questões que importa decidir reportam-se a:
– Nulidade da sentença por insuficiente fundamentação quanto ao juízo de perigosidade do arguido inimputável.
– Inexistência de prova quanto à declarada perigosidade do arguido.
– Subsidiariamente, suspensão da execução da medida de segurança decretada (art. 98º do CP).

III – APRECIAÇÃO: 

III.1 – Dada a sua relevância para o enquadramento e decisão das questões suscitadas pelo ajuizado recurso, importa verter aqui a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada e, bem assim a sua fundamentação para tal decisão da matéria de facto.

O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
“- Da acusação:
1. No dia .../.../2022, cerca das 22:00 horas, o arguido AA, conhecido por “BB”, munido de um isqueiro de cozinha, de cor ..., dirigiu-se à Rua ..., Freguesia ..., concelho ... e, junto à casa de habitação sita no n.º ...5, aproximou-se de umas árvores (cedro) existentes no jardim dessa habitação, propriedade de CC, e, fazendo uso do isqueiro, ateou o fogo a um cedro, afastando-se em seguida.
2. Em face do estado de secura em que se encontrava aquela árvore, assim como a densa vegetação circundante em continuidade horizontal, com diversas plantas e arbustos que compõem o jardim, dadas as temperaturas superiores a 30 graus sentidas durante o dia, o fogo propagou-se rapidamente aos ramos da árvore e a um cabo do sistema de comunicação telefónicas, que foram consumidos pelas chamas.
3. A cerca de dois metros de distância, existiam várias outras árvores, uma linha elétrica e a casa de habitação onde estava estacionado um veículo automóvel, da marca ..., modelo ..., do ano de 2010, propriedade de CC, onde esta se encontrava na altura.
4. O incêndio não tomou maiores proporções porque CC e outros populares se aperceberam das chamas e as apagaram com recurso a baldes de água.
5. Tendo deixado a referida Rua ..., o arguido caminhou cerca de 350 metros, na direção da Rua ... dessa mesma localidade, onde voltou a fazer uso do isqueiro para atear o fogo à vegetação que cobria um talude.
6. Esse incêndio acabou por consumir apenas uma pequena área porque o arguido foi surpreendido por DD que o apagou e imobilizou o arguido até à chegada da GNR, chamada ao local pelos populares.
7. Se não fosse a pronta intervenção de CC e seus vizinhos no combate ao incêndio referido em 1., tal fogo ter-se-ia propagado pela vegetação horizontal e vertical ali existente, habitação de CC e linha elétrica ali existente, de valor bem superior a €5.100,00.
8. Assim tendo colocado em risco também a vida e a integridade física de todos os que ali habitavam assim como elevados prejuízos materiais.
9. Isto porque, estavam reunidas as necessárias condições para a sua propagação, designadamente, as condições climatéricas na ocasião dos factos e o abundante combustível fino e seco existente no local que permitia a continuidade.
10. Deste modo, com a conduta supra descrita, o arguido causou prejuízos no valor aproximado de cerca de 100,00€ (cem euros) a CC, colocando assim em perigo as árvores envolventes, a habitação de CC, veículos e casas de habitação próximas.

- Provou-se ainda que:
Do relatório médico-legal relativo à imputabilidade do arguido
11. Do ponto de vista psiquiátrico, o arguido apresenta um Atraso Mental moderado e dependência alcoólica desde tenra idade.
12. Pelo facto de ser congénita o início da incapacidade poderá, sem dúvida, ser arbitrado ao nascimento.
13. O seu nível e capacidades intelectuais, não lhe permitem cognitivamente processar a informação percecionada, não possuindo pensamento abstrato que lhe permita ter consciência da ilicitude dos factos de que é arguido, avaliá-los ou determinar-se de forma livre e esclarecida, integrando pois pressupostos médico-legais previstos para a inimputabilidade.
14. A probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes dependerá de fatores como a manutenção de consumos de álcool, que se admite que sem o adequado tratamento a probabilidade de repetição de factos típicos semelhantes seja significativa.
- Das condições pessoais do arguido:
15. O arguido é filho de um casal de humilde condição socioeconómica e cultural.
16. O arguido tem 11 irmãos.
17. O pai exercia a profissão de pedreiro por conta própria e a mãe, doméstica, cuidava dos filhos, cultivava os terrenos que circundavam a casa, e geria o único rendimento do agregado proveniente do trabalho do cônjuge.
18. A dinâmica familiar foi descrita como tendo sido tensa por força da autoridade e intransigência paterna face às normas e regras por si impostas.
19. A família residia em casa própria de características rurais, situada na Freguesia ..., com relações de vizinhança de proximidade física e relacional.
20. O arguido frequentou a escola, mas apenas concluiu o 4º ano de escolaridade.
21. Ainda durante o primeiro ciclo, no período da tarde em que não tinha aulas, auxiliava o pai na lavoura.
22. O seu percurso laboral foi exercido de forma irregular, oscilando entre trabalhos à jorna na agricultura, e trabalhos como pedreiro junto de algumas empresas da zona onde reside, sem que conseguisse beneficiar de autonomização financeira consistente.
23. A crescente irregularidade laboral parece ter estado diretamente relacionada com a intensificação dos consumos problemáticos de álcool, adição que iniciou bastante jovem, e que manteve ao longo da sua vida adulta, sem recurso a qualquer tipo de tratamento /acompanhamento por não considerar necessário.
24. O arguido emigrou para a ... na juventude onde trabalhou como jardineiro vinculado a um contrato de trabalho de 9 meses, conforme referiu. Contudo, este vínculo laboral não foi renovado devido à instabilidade/irregularidade verificada durante este período, e regressou a Portugal.
25. Através da Junta de Freguesia de ..., foi proposto ao arguido e pôde beneficiar de vários Contratos Emprego-Inserção por períodos de 1 ano, mas trabalhava apenas um curto período de tempo e não cumpria o tempo integral do contrato, pois quando recebia os salários intensificava os consumos de álcool e deixava de cumprir com as suas obrigações laborais.
26. O arguido não valorou qualquer tipo de relacionamento afetivo, não constituiu família e sempre residiu com os progenitores.
27. Após o falecimento do progenitor, o arguido partilhava a habitação com a sua progenitora, mas após de ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da mãe (proc. nº 8/12.... do Tribunal Judicial ...), esta foi institucionalizada na Santa Casa da Misericórdia ..., onde permanece desde há cerca de 10 anos.
28. Socialmente são-lhe atribuídos hábitos alcoólicos estruturados e continuados desde muito jovem e são-lhe atribuídos, de uma forma geral, comportamentos ou condutas abusivas, agressivas e imprevisíveis.
29. À data dos factos AA residia na morada indicada no processo, e que corresponde à morada da casa dos pais, onde o arguido habita sozinho.
30. A habitação não oferece condições mínimas de habitabilidade e salubridade, mas depois da medida de coação de prisão preventiva ter sido alterada e o arguido ter regressado a casa, uma das irmãs instalou eletricidade no imóvel.
31. O arguido encontra-se desempregado, sendo a situação económica muito precária, cujo rendimento circunscreve-se ao montante que recebe mensalmente de 189,00€, a título de Rendimento Social de Inserção.
32. O arguido beneficia de apoios pontuais das irmãs e alguns vizinhos oferecem-lhe algumas refeições.
33. Profissionalmente inativo e um quotidiano ocioso, o arguido frequenta o café da aldeia, o minimercado ou permanece em casa.
34. Continua a beneficiar do apoio das irmãs que residem nas imediações, familiares que continuam a tentar motiva-lo para efetuar tratamento ao alcoolismo, tentativas que se têm revelado infrutíferas ao longos dos anos.
35. Confrontado com a problemática aditiva, o arguido não a assume, continuando a referir não sentir necessidade de efetuar tratamento ao alcoolismo, mesmo quando instado na sequência da medida de coação aplicada ao arguido, e relembrado que deu o seu consentimento, este expressamente recusou qualquer tratamento, mesmo que tal implique uma medida de contenção.
36. No meio de residência é referido que a dependência alcoólica passou a condicionar todo o quotidiano do arguido, alheando-o de responsabilidades e desestruturando-o aos vários níveis, inclusivamente ao nível da vinculação familiar.
37. Frequentemente alcoolizado, deambula pela freguesia de residência munido de um pau e até de uma navalha e são-lhe atribuídos comportamentos instáveis, pelo que a sua companhia é evitada por vizinhos e conhecidos.
38. É igualmente visto com comiseração e não tem um grupo de amigos estruturado com quem habitualmente conviva, pelo que normalmente anda só.
39. O presente processo foi recebido no seu contexto familiar sem surpresa, sentimento extensível à restante comunidade.
40. O arguido refere como impacto da presente situação jurídico-penal a perda da sua liberdade pelo período de cinco meses (preso preventivamente no estabelecimento prisional de ... à ordem do presente processo) e integração num ambiente com o qual referiu não se sentir à vontade.
41. Ainda que em abstrato, e perante a natureza da problemática criminal em causa, o arguido demonstra, pelo seu discurso, capacidades muito limitadas para formular juízos críticos adequados, sobressaindo uma falta de ressonância emocional perante as vítimas e danos.
Dos antecedentes criminais do arguido:
42. – O arguido não tem antecedentes criminais.”  

Julgou como não provada a seguinte factualidade:
“a) O arguido agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, sendo sua vontade causar incêndio de maior dimensão, o que apenas não conseguiu pela pronta intervenção das pessoas presentes nas imediações que ali acorreram e combateram o fogo, impedindo o seu alastramento.
b) O arguido sabia que no local escolhido para a ignição, próximo de uma casa, o grau de secura da vegetação e os baixos níveis de humidade fariam com que as chamas se alastrassem com rapidez, a árvores, veículos e casas de habitação, como foi sua vontade.
c) O arguido sabia que com a sua conduta colocava em perigo, não só bens patrimoniais de valor elevado, mas também a vida e a integridade física de outrem e mesmo assim não se coibiu de a praticar.
d) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

E motivou essa decisão de facto nos seguintes termos (transcrição):
“A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, faz-se segundo as regras da experiência e a livre convicção do Juiz, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal. No entanto, não se confunde esta, de modo algum, com apreciação arbitrária de prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
É, pois, dentro dos pressupostos valorativos da obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica, que o julgador se deve colocar ao apreciar livremente a prova, reflectindo sobre os factos, utilizando a sua capacidade de raciocínio, a sua compreensão das coisas, o seu saber de experiência feito.
É a partir desses factores que se estabelece, realmente, uma tarefa (ainda que árdua) que se desempenha de acordo com o dever de prosseguir a verdade material.
Assim, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, é nosso dever, para além da enumeração dos factos provados e não provados e a indicação das provas que serviram para formar a nossa convicção, fazer uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão sobre esta matéria, impondo-se ao tribunal, sob pena de incorrer em nulidade (cfr. alínea a) do artigo 379.º do Código de Processo Penal), o dever de explicar porque decidiu de um modo e não de outro.
Os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduzem à formação da convicção do tribunal em determinado sentido e não noutro, devem ser revelados aos destinatários da decisão que são, não apenas os sujeitos processuais mas também a própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
O Tribunal tem de esclarecer porque é que valorou de determinada forma e não de outra os diversos meios de prova carreados para a audiência de julgamento.
Uma vez que só assim se permite aos sujeitos processuais e ao Tribunal Superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe, inequivocamente, o artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Deve, assim, a decisão sobre a matéria de facto assegurar pelo conteúdo um respeito efectivo pelo Princípio da Legalidade, pela independência e imparcialidade dos juízes.
Será à luz deste exacto sentido e alcance da Lei, que o Tribunal procedeu à apreciação das provas constantes dos autos e examinadas em audiência, afinal, as únicas que podem valer para a formação da convicção do tribunal, nos precisos termos do n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal.
Vejamos pois:
O Tribunal considerou toda a prova documental junta aos autos, a saber o relatório pericial de fls. 98 a 106, o auto de notícia de fls. 3 a 5; auto de apreensão, fls. 6; relatório de inspeção judiciária, fls. 93 a 95; auto de exame direto, fls. 135 e 136; cota, fls. 137; informação do Comando Distrital de Operações de Socorro de ..., fls. 124 a 134; relatório de ocorrência dos Bombeiros Voluntários de ... de fls. 140 e relatório da Polícia Judiciária de fls. 141 a 146.
O Tribunal considerou ainda os depoimentos das testemunhas, EE e FF, militares da GNR de ...; CC e DD.
Com efeito as testemunhas EE e FF, militares da GNR referiram que no dia e hora referidos em 1) dos factos provados receberam uma chamada para se deslocarem ao local referido em 1) devido a incêndio. À chegada da patrulha o incêndio já estava por terem ateado fogo a um cedro no jardim da residência de CC, em .... À chegada da patrulha o incêndio já se encontrava em rescaldo, tendo sido informados por CC que momentos antes do incêndio deflagrar na sua propriedade, o arguido tinha passado junto à sua residência e estava mais acima, a cerca de 300 metros, na Rua ..., juntamente com os bombeiros.
Mais referiram que junto dos populares que aí se encontravam, nomeadamente a testemunha DD, que viu o arguido com um isqueiro de cozinha, a atear fogo a umas ervas secas junto a uma borda logo acima da casa da testemunha CC e que o agarrou para o conter até à chegada da patrulha, tendo este foco de incêndio sido apagado de imediato pela referida testemunha. Referiram ainda que o incêndio causado no cedro no jardim da residência de CC, provocou danos nos cabos de telecomunicações.
Por sua vez a testemunha CC, residente na Rua ..., ..., ... referiu que em dia que não sabe precisar mas situado no mês de Julho de 2022, por volta das 22horas encontrava-se na sua residência quando se apercebeu que um dos cedros sitos no seu jardim estava a arder e rapidamente se propagou a um outro cedro aí existente. Mais referiu que chamou os bombeiros e vieram vizinhos ajudar a combater o incêndio, que como estava calor, rapidamente se propagou. Referiu também que teve de retirar a sua viatura, ... que se encontrava aparcado debaixo de um barraco, barraco esse encostado à casa e logo a seguir à varanda do ... andar. Acrescentou que se não tivesse retirado a viatura e não fosse a ajuda dos populares e dos bombeiros o incêndio ter-se-ia propagado à habitação, cujos danos seria muito superiores a 5.100,00€ euros. Mais referiu que no interior da habitação estava o seu marido, o qual tem problemas de mobilidade, tendo a testemunha vivenciado momentos de grande aflição.
Mais referiu que um dos vizinhos foi atrás do arguido que se encontrava mais acima na Rua ... e reteve-o.
Por último referiu que os cedros e uma outra árvore existentes na propriedade arderam completamente e o barraco ainda foi atingido.
A testemunha GG referiu que em Julho de 2022, em dia que não se recorda foi alertado para um incêndio na propriedade da testemunha CC e juntamente com colegas foi ajudar. Entretanto outros populares disseram que o arguido tinha passado momentos antes em direcção à Rua ... e a testemunha foi tentar alcança-lo. Já na Rua ... viu o arguido com um isqueiro de cozinha a chegar fogo a umas ervas secas, junto a uma borda e agarrou-o para o impedir de prosseguir, tendo este caído ao chão. Mais referiu que o reteve até chegar a GNR e apagou rapidamente as chamas.
O arguido prestou declarações em julgamento assumindo que pegou fogo ao cedro existente na propriedade de CC, apresentando como “justificação” que sempre que havia um incêndio em ... os populares da aldeia diziam que era ele (arguido) que os ateava. Nessa sequência, zangado, resolveu mesmo atear o incêndio ao cedro. Mais referiu que sabia que o fogo podia alastrar à casa, mas que não chegou porque as pessoas do lugar vieram logo ajudar.
O Tribunal ouviu as declarações que o arguido prestou aquando do primeiro interrogatório judicial, das quais decorre que o mesmo, nessa sede, negou que tivesse ateado o incêndio descrito em 1), que não tinha sido ele, “mas o vinho” (sic).
Para prova dos factos vertidos em 11) a 14) – factos relativos à inimputabilidade do arguido – o Tribunal valorou o teor do relatório pericial realizado no Instituto de Medicina Legal – Gabinete Médico Legal de ..., o qual concluiu pela inimputabilidade do arguido.
No que respeita aos factos vertidos em 15) a 41), relativos às condições pessoais e de vida do arguido o Tribunal baseou a sua convicção no teor do relatório elaborado pela DGRSP e nos depoimentos de HH e II, irmãs do arguido, as quais, pese embora a defesa tenha prescindido do seu depoimento, foram inquiridas oficiosamente pelo Tribunal e confirmaram que o seu irmão tem um problema aditivo de consumo de álcool, desde novo e também um atraso mental. Mais referiram que após ter sido alterada a medida de coacção de prisão preventiva, imediatamente antes do período Natalício, o arguido permaneceu na residência da testemunha II até depois do Ano Novo, tendo regressado para a casa que pertenceu aos pais, casa essa que foi dotada novamente de electricidade porque não tinha, uma fechadura na porta de entrada, cama e colchão para que o arguido aí vivesse. Mais referiram que também lhe foram fornecidos alimentos. Acrescentaram que o arguido não tem ocupação profissional e não reconhece que tem um problema de adição ao álcool e que precisa de ser devidamente tratado.
Com relação à demonstração da ausência de antecedentes criminais do arguido provado em 42, fundou-se a mesma na ponderação do seu Certificado do Registo Criminal. Refira-se, a propósito, que este Tribunal verificou, da consulta ao sistema CITIUS que efectivamente o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica e detenção de arma proibida no processo 8/12.... do Tribunal Judicial ..., em 29.04.2014, na pena única de 30 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova, pena essa declarada extinta em 30.03.2017.
Porém, não constando já tal condenação no seu CRC, não restava ao Tribunal considerar que o arguido não regista antecedentes criminais.
Do conjunto de toda a prova produzida em audiência não teve o Tribunal quaisquer dúvidas em considerar provados os factos vertidos em 1) a 10) e desde logo que o arguido foi o autor do incêndio.
Também não teve dúvidas que o arguido padece de um atraso mental e um problema de adição ao álcool, o que resultou desde logo das declarações que prestou e do motivo que o levou a atear o incêndio. Tudo conjugado, crê este Tribunal que o arguido, no momento da prática dos factos, não tinha consciência e vontade de os praticar, encontrando-se privado das faculdades mentais necessárias a conhecer e querer a sua conduta, pelo que, devido à sua inimputabilidade, os factos relativos ao dolo e à consciência da ilicitude não podem ser considerados provados.”
 
III.2 – Questão prévia – correção da sentença:

Consta da alínea a) do dispositivo da sentença recorrida:
“Por todo o exposto, o Tribunal julga a acusação deduzida improcedente por não provada e, consequentemente:
a) Absolve o arguido AA da prática dos factos objectivos subsumíveis ao disposto no tipo de crime de incêndio, p. e p. pelo artigo 272º, nº1 al. a) e 202.º, alínea a) do Código Penal, em razão de inimputabilidade do arguido;”
Compulsada a fundamentação de direito vertida na sentença, verifica-se que a Mma. Juíza, após concluir que a conduta do arguido apurada nos autos preencheu a tipicidade objetiva do crime de incêndio que lhe era imputado na acusação, expressa aí o correto e legal entendimento de que ele não pode ser responsabilizado por intermédio da aplicação de uma pena visto não ter atuado com culpa, em virtude de, à data dos factos, ser inimputável.    
Com efeito, menciona o Tribunal a quo: «No caso dos autos resultou provado que o arguido ateou o incêndio em causa nos autos. Trata-se de um incêndio de relevo o qual pôs em perigo a vida de pessoas – designadamente a de CC e dos habitantes que se encontravam na residência desta e criou perigo para a habitação. Não existem causas de justificação que afastem a ilicitude dos factos praticados pelo arguido. Assim, cometeu o arguido facto típico e ilícito. Contudo, para que o comportamento do arguido seja qualificado como crime, justificando-se o juízo de desvalor ético-social que se encontra ligado à aplicação de uma pena, é ainda necessário que o arguido tenha actuado com culpa. Tal exigência decorre do Princípio Constitucional da Culpa, corolário do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que atribui à culpa a natureza de pressuposto e fundamento de toda a pena e da sua medida. Uma das causas de exclusão da culpa é a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, prevista no artº 20º do Código Penal. (…) Agindo sem culpa o arguido deve ser absolvido da prática do crime que lhe é imputado.» [referência ...64]
Em conformidade, cremos que o sobredito trecho do dispositivo, atenta a linguagem empregue, se apresenta como ambíguo, podendo permitir uma leitura que o torne contraditório face ao expendido na fundamentação de direito, pois que ao declarar-se a absolvição do arguido “da prática” dos factos objetivos subsumíveis ao disposto no tipo de crime de incêndio em questão, o leitor pode ser levado a pensar que o arguido não cometeu os factos objetivos do crime, o que contraria a realidade e o próprio pensamento do Tribunal expresso na decisão recorrida, tanto mais que se assim fosse vedada estava a possibilidade de aplicar ao arguido uma medida de segurança (atenta a perigosidade criminal verificada).
Ao abrigo do disposto no art. 380º, nº1, al. b) e nº2, do CPP, cumpre expurgar a decisão da sobredita ambiguidade/obscuridade, de modo a que se mostre claro que o Tribunal considerou preenchidos pela conduta do arguido os elementos objetivos do tipo de crime em apreço, mas que o absolve, por não verificação dos elementos subjetivos atinentes à culpa/consciência da ilicitude. Para tanto, basta alterar a expressão «Absolve o arguido (…) da prática (…)» por “Absolve o arguido (…) pela prática”.   

III.3 – Quanto à análise das sobreditas questões suscitadas pelo arguido neste recurso:

III.3.1 – Sobre a arguida nulidade da sentença recorrida por insuficiência de fundamentação:

No que concerne aos requisitos da sentença, preceitua o art. 374º, nº2, do CPP, que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Por seu turno, prescreve o art. 379º, nº1, al. a), do CPP [na parte que ora releva]:
“1 - É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º […]”.
A Lei ordinária portuguesa, como corolário do disposto no art. 205º, nº1, do Texto Fundamental (Constituição da República Portuguesa), consagra expressamente o dever de fundamentação das decisões finais, sentenças e acórdãos – art. 374º, nº2 do CPP –, bem como aponta a fundamentação como requisito essencial na apreciação da prova produzida em audiência – art. 365º, nº2 -, e na escolha e determinação da sanção a aplicar ao arguido – art. 375º, nº1.
O Supremo Tribunal de Justiça, em diversas decisões, tem consubstanciado o dever de fundamentação da sentença do seguinte modo: para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, a sentença deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência[2].
Paulo Saragoça da Matta[3] entende que a fundamentação das sentenças consistirá:
«(a) num elenco das provas carreadas para o processo;
(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;
(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,
(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente»  
Pertinente também, e por nós acolhido, o entendimento que sobre a fundamentação tem José Mouraz Lopes[4], nos seguintes termos:
«No processo de elaboração da fundamentação da decisão o procedimento tem de fundar-se na fundamentação lógica e racional do raciocínio do juiz, em função da prova que foi produzida e do modo como se chegou à decisão tomada. Na fundamentação assume especial importância a demostração da prova que sustenta os factos.
Deverá sempre explicar-se o porquê de determinada valoração, e porque não outra. O que levou o tribunal a decidir-se por esta ou aquela opção de prova através de um exame crítico das provas produzidas».
Por outro lado, a motivação não tem de ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta que seja razoável, aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência, o que sucederá sempre que do seu conteúdo se consiga extrair as razões subjacentes à decisão tomada pelo julgador.
Volvendo ao caso vertente:
No recurso por si deduzido, o arguido AA, concordando com a sua declarada inimputabilidade, invoca, ainda que de modo pouco assertivo, a nulidade da sentença recorrida por carecer de suficiente fundamentação relativamente ao juízo de perigosidade do arguido inimputável ali emitido.
Todavia, compulsada a motivação do recurso, constata-se que o recorrente demonstra confusão entre a verificação da aludida nulidade e a mais percetível discordância que manifesta relativamente ao sentido da decisão do Tribunal a quo a propósito da perigosidade do arguido, pois o que realmente sustenta é que não foi produzida prova suficiente da existência dessa perigosidade, divergência que do ponto de vista jurídico-processual teria antes de ser tratada no contexto da impugnação da decisão sobre a matéria de facto e/ou, por referência à integração do conceito “perigosidade”, do erro de direito (questões autónomas que infra abordaremos).      
A motivação expendida pelo Tribunal a quo na sentença recorrida é suficiente e cumpre cabalmente os requisitos legais, permitindo aos seus destinatários compreenderem o raciocínio do julgador subjacente à decisão de facto e de direito tomada.
Respigada a motivação da decisão de facto adiantada pelo tribunal a quo, verifica-se que o Tribunal elencou, de forma nominativa, a prova por declarações, testemunhal, pericial e documental produzida nos autos em que se estribou para, em concatenação, formar a sua convicção, incluindo no tange aos factos atinentes à perigosidade do arguido inimputável.
Assim, o Tribunal recorrido justificou a decisão de facto quanto aos pontos 11) a 14) no teor do relatório pericial de exame médico-legal junto aos autos a fls. 98 a 106, relativamente ao qual não se vislumbra razão para colocar em causa o respetivo valor probatório reforçado – cf. disposições conjugadas dos arts. 151º e 163º do CPP –, nomeadamente, por desvio quanto à base factual nele pressuposta ou manifesto desatendimento dos atuais conhecimentos técnico-científicos disponíveis.
Fundou-se ainda nas próprias declarações do arguido no que tange ao facto de este padecer de um atraso mental e de um problema de adição ao álcool, que motivaram a prática dos factos ajuizados.
Por outro lado, no que concerne às condições pessoais e sociais do arguido [factos provados 15) a 24)], a Mma. Juíza louvou-se no teor do relatório social elaborado pela DGRSP, bem assim nos corroborantes depoimentos prestados pelas testemunhas HH e II, irmãs do arguido, a quem conferiu credibilidade e que demonstraram razão de ciência. 
Ao nível da fundamentação de direito, relativamente à necessidade de aplicação de uma medida de segurança, expressa-se na sentença:
«Há, pois, que considerar a aplicação de uma medida de segurança. Na verdade, para que uma tal medida seja aplicável é necessário que no momento da condenação se verifique, cumulativamente, uma situação de inimputabilidade e uma situação de perigosidade.
Ora, o relatório pericial em apreço reconhece o arguido como sendo um individuo perigoso já que o arguido apresenta uma total ausência de capacidade crítica (cfr. artº 91º do Código Penal).
Assim sendo, aplicaremos uma medida de segurança.»
 A sobredita fundamentação, não sendo modelar, apresenta-se ainda assim como aceitável, suficiente e racionalmente lógica, permitindo a quem lê a decisão apreender e compreender as razões subjacentes à decisão sobre a matéria de facto tomada pelo julgador.
Se o arguido/recorrente discorda do juízo decisório prolatado pelo tribunal recorrido (como é legítimo) é questão diversa, que extravasa o âmbito da apontada nulidade por omissão ou insuficiência de fundamentação, entroncando já no eventual erro de julgamento, de facto ou de direito.
Inexiste, destarte, a arguida nulidade da sentença recorrida por falta/insuficiência da fundamentação.

III.3.2 – (In)existência de perigosidade criminal:

Tomamos como definitivamente fixada a matéria de facto dado como provada (e não provada) na sentença recorrida, uma vez que o recorrente não procedeu, pelo menos validamente, à impugnação da decisão da matéria de facto, quer por via da denominada revista alargada quer mediante a sua adversão ampla.
No recurso, apesar de se alegar genericamente a existência de “erro na apreciação da prova”, ao declarar o estado de perigosidade do arguido, não se invoca a existência na sentença recorrida de qualquer dos vícios previstos no nº2 do artigo 410º do CPP – os quais igualmente não se vislumbram ex officio –, nem se procede à impugnação da decisão sobre a matéria de facto nos termos do artigo 412º, nºs 2 e 3, do mesmo diploma legal, o que implicava necessariamente a especificação dos concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, bem assim das concretas provas que obrigavam a decisão distinta da recorrida.
Por conseguinte, cumpre aquilatar se a matéria de facto apurada permite concluir, como fez o Tribunal a quo, pela existência no caso de um estado de perigosidade criminal justificador da aplicação ao arguido (inimputável) de uma medida de segurança de internamento.
Estipula o art. 91º, nº1 do Código Penal (CP) que “Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do art. 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.
No nº2 desse preceito legal prescreve-se que “quando o facto praticado por inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”.
Por seu turno, de acordo com o preceituado no art. 92º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal, o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, não podendo exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável.
A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente – art. 40º, nº3 do CP.
Como considera Cavaleiro de Ferreira[5], «é comum à pena e à medida de segurança o fim de defesa da sociedade, isto é, a natureza de meio ou medida de tutela jurídica», sendo que «a pena reage à culpabilidade do delinquente e a sua medida não deve, por isso, exceder os limites da sua correspondência à culpabilidade», cabendo às medidas de segurança «a defesa da ordem jurídica em correspondência com a perigosidade criminal», conformando-se as mesmas com a «a espécie e a duração da perigosidade criminal», num campo em que com vista à sua aplicação, «o crime tem valor sintomático ou de prova», não se assumindo como fundamento de tal decretamento.
Nas palavras de Figueiredo Dias[6], «Medida de segurança é toda a reação criminal, detentiva ou não detentiva, que se liga à prática, pelo agente, de um facto ilícito típico, tem como pressuposto e princípio de medida a sua perigosidade, e visa, ao menos primacialmente, finalidades de defesa social ligadas à prevenção especial, seja sob a forma de pena de segurança, seja sob a forma de (re)socialização.». A finalidade socializadora há-de, sempre que possível, prevalecer sobre a finalidade de segurança.
O insigne autor aponta ainda à «medida de segurança» uma finalidade secundária, de prevenção geral (positiva ou de integração), que, no entanto, «não possui qualquer autonomia no âmbito da medida de segurança: ela só pode ser conseguida, de uma forma reflexa e dependente, na medida em que a privação ou restrição de direitos em que a aplicação e execução da medida de segurança se traduz (privação ou restrição da liberdade física, interdição de profissões, atividades ou exercício de direitos, etc.) possa servir para afastar a generalidade das pessoas da prática de factos ilícitos típicos».[7]
O mesmo autor considera que a legitimação da medida de segurança provem da sobredita finalidade global de defesa social: de prevenção de ilícitos-típicos futuros pelo agente perigoso que cometeu um ilícito-típico grave. Daí que «uma medida de segurança só possa ser aplicada para defesa de um interesse comunitário preponderante e em medida que não se revele desproporcional à gravidade do ilícito-típico cometido e à perigosidade do agente. Como só deste modo poderá aceitar-se que a aplicação da medida de segurança, não sendo função da ideia jurídico-penal de culpa, nem encontrando nesta o seu limite, todavia constitua uma reação aceitável nos quadros do Estado de Direito como respeitadora da dignidade da pessoa.»   
No caso vertente, consideramos que a gravidade objetiva do facto ilícito típico cometido pelo arguido AA, a par da perigosidade criminal associada àquele, conferem arrimo à decisão do Tribunal a quo de lhe aplicar a medida de segurança de internamento em estabelecimento de cura ou segurança, sanção que, pressupondo limitação da liberdade do arguido, não se revela, contudo, desproporcional à imperiosa defesa social da comunidade perante o concreto e acentuado risco de cometimento por aquele de novos factos da mesma natureza.
Encontra-se provada factualidade suscetível de preencher a tipicidade objetiva do crime de incêndio, previsto no artigo 272º, nº1, alínea a), com referência ao artigo 202º, alínea a), ambos do CP.
Tal ilícito criminal constitui um crime de perigo comum.
 Conforme explicita o legislador no ponto 31 da introdução do Código Penal, referindo-se aos crimes de perigo comum, «o ponto crucial destes crimes não falando, obviamente, dos problemas dogmáticos que levantam – reside no facto de que as condutas cujo desvalor de ação é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o neste capítulo (3º do Título III) está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstrato) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a proteção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta».
Há, pois, uma antecipação da punição para momento anterior ao da causação do dano, logo que se verifique o perigo.
Como mencionado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.09.2007, processo nº 07P2270, disponível em www.dgsi.pt, «a norma em questão define um crime de perigo comum e concreto. De perigo comum, porque, na construção do tipo, o “perigo” constitui elemento que deve resultar da ação, mas que se estende ou deve verificar-se ou produzir-se em relação a um número “indiferenciado e indiferenciável” de “objectos sustentados ou iluminados por um ou vários bens jurídicos”; de perigo concreto, porque na construção do tipo, o “perigo vale o mesmo que o dano, porque é o perigo que constitui a forma de violação do bem jurídico; o perigo é elemento do tipo legal, sendo os bens jurídicos protegidos a vida, a integridade física e os bens patrimoniais de elevado valor.»
Assim, a lei penal, pelos preditos fundamentos, onde impera a imprescindível concessão de proteção face ao nefasto risco de afetação de bens jurídicos de enorme relevância (vida, integridade física e bens patrimoniais alheios de valor elevado), reconhece a acentuada gravidade objetiva de condutas como a perpetrada pelo arguido e reflete tal perceção na pena abstrata prevista, punindo-as severamente: com pena de prisão de 3 a 10 anos.
Tal pensamento legislativo projeta-se ainda, naturalmente, na previsão da medida segurança aplicável, assim se explicando a fixação de um limite mínimo de três anos para a duração do internamento quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime de perigo comum (o qual só pode ser incumprido, por libertação antecipada, se esta se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social).
No caso, sobressai a reiteração de comportamentos por parte do arguido, num curtíssimo lapso temporal, porquanto, primeiro ateou um fogo que colocou em risco, entre o mais, a vida de uma pessoa, para, logo em seguida, a cerca de 350 metros daquele local, atear um novo fogo, que só consumiu uma pequena área de vegetação em virtude da pronta e oportuna intervenção de um terceiro – cf. factualidade vertida nos pontos 1) a 10) dos factos provados.
Por outro lado, está provado que a congénita anomalia psíquica de que padece o arguido, associada à comorbilidade emergente da dependência alcoólica desde tenra idade, afetando decisivamente as suas capacidades intelectuais, o tornam incapaz de processar cognitivamente a informação percecionada, não possuindo pensamento abstrato que lhe permita ter consciência da ilicitude dos factos de que é arguido, avaliá-los ou determinar-se de forma livre e esclarecida – cf. factualidade vertida nos pontos 11) a 13).
A sobredita incapacidade, conjugada com a reiterada e prolongada recusa do arguido em assumir a sua problemática aditiva e, em conformidade, submeter-se a tratamento (ainda que em regime ambulatório), não obstante os esforços envidados pelos seus familiares para o motivar nesse sentido, que se tem repetidamente revelado infrutíferos, mantendo aquele o consumo excessivo e descontrolado de bebidas alcoólicas, bem como a sua desinserção laboral, familiar e social, estribam e agudizam o sério risco de o arguido cometer futuramente factos típicos da mesma índole dos apreciados nos autos - cf. factualidade vertida nos pontos 14), 23), 26), 28), 29), 32) a 38) e 41).
O arguido deve ser considerado criminalmente perigoso e, como tal, sujeito à aplicação de uma medida de segurança, nada havendo a censurar à sentença recorrida neste conspecto.     
 Improcede, neste segmento, o recurso.

III.3.3 – Suspensão da execução do internamento:
  
Estatui o art. 98º do Código Penal:

“1 – O tribunal que ordenar o internamento determina, em vez dele, a suspensão da sua execução se for razoavelmente de esperar que com a suspensão se alcance a finalidade da medida.
2 – No caso previsto no nº2 do artigo 91º, a suspensão só pode ter lugar verificadas as condições aí enunciadas.
3 – A decisão de suspensão impõe ao agente regras de conduta, em termos correspondentes aos referidos no artigo 52º, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados.
4 – O agente a quem for suspensa a execução do internamento é colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social. É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 53º e 54º.
(…)
6 – É correspondentemente aplicável:
a) À suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 92º e nos nºs 1 e 2 do artigo 93º;
b) À revogação da suspensão da execução do internamento o disposto no artigo 95º.”

O arguido pugna pela suspensão do internamento decretado, alegando, em súmula, que “a prova testemunhal e documental produzida nos autos até prolação da Sentença, só por si determina a aplicação do artº 98 do CP, seguindo o principio da subsidiariedade das medidas de segurança, só se aplica mais gravosa caso a menos gravosa se mostre com algum grau de certeza ineficaz, a prova documental junta aos autos – relatório médico legal e informações de acompanhamento do arguido pelos técnicos da D.G.R.S.P - Equipa ... que foram sendo enviado para estes autos, fortalece o juízo de prognose favorável e não pode agora deixar de se entender ser razoavelmente de esperar que com a suspensão da medida de segurança se alcance a finalidade da medida, pois a perícia medico legal identifica a continuação de consumo de álcool excessivo e continuação de falta de tratamento psiquiátrico como origem do risco de reincidência na prática do crime de incêndio, no caso de voluntariamente o arguido continuar com o seguimento do tratamento médico voluntário mencionado nas informações, mostra-se anulado o risco” – cf. conclusões 7ª e 8ª.

Vejamos.
Vigora no âmbito das medidas de segurança o princípio da subsidiariedade da aplicação das medidas detentivas, privativas da liberdade, pelo que estas só se justificam como ultima ratio, cedendo perante a possibilidade de aplicação no caso concreto de medidas não detentivas, desde que se revelem suficientes e adequadas para acautelar a perigosidade criminal do delinquente inimputável.
Mostrando-se viável a formulação de um juízo de prognose favorável de que o agente inimputável conseguirá em meio livre obter o tratamento necessário para debelar a sua perigosidade criminal, ou seja, para que se abstenha do previsível cometimento de novos factos típicos de jaez semelhante aos que determinaram a aplicação da medida de segurança, o Tribunal deve suspender a execução do ordenado internamento, nas condições previstas no art. 98º do CP. In casu, ante a situação enquadrável no nº2 do art. 91º e no nº2 do art. 98º, a suspensão deverá permitir ainda defender a ordem jurídica e assegurar a paz social.
Como pertinentemente se observa no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2017, Processo nº 98/15.7JAGRD.C1.S1, acessível in www.dgsi.pt, «A suspensão da execução do internamento reclama que o tribunal adquira uma convicção fundada quanto à necessidade preventiva-especial de neutralização da perigosidade criminal e, no caso dos crimes referidos no n.º 2 do art. 91.º do CP, quanto à necessidade preventivo-geral de pacificação social, não imporem o internamento do inimputável. Em suma, que num juízo de prognose, a liberdade se mostre adequada às necessidades de prevenção especial de recuperação do inimputável e de inocuização ou neutralização da perigosidade criminal, através do tratamento da anomalia psíquica, e de prevenção geral positiva de pacificação social. Neste entendimento, consideramos que não há razões de censura da decisão quanto à não suspensão da execução do internamento.»
A sentença recorrida fundamentou a não suspensão do internamento, nos seguintes termos:
«A questão da execução da medida em regime livre depende da capacidade do arguido se tratar ou de ter suporte nesse tratamento. Ora, os factos ocorrem desde logo porque o arguido se não quis tratar, estando descompensado. Não existe suporte familiar ou social para o arguido.
É verdade que seria, em abstracto, possível conceber um tratamento em ambulatório mas a verdade é que o suporte familiar e social para o arguido é incipiente, o mesmo não reconhece o seu problema de adição e recusa tratamento, pelo que os consumos de álcool sem controlo leva a que a perigosidade aumente exponencialmente.
É do conhecimento generalizado que para que a doença seja tratada em meio livre é necessário um envolvimento a nível terapêutico, social, judicial, bem como existir a necessária supervisão, para que seja assegurada a indispensável continuidade terapêutica.
Ora, como é bom de ver, tal não existe, desde logo porque o arguido não apresenta suporte familiar capaz, nem evidenciou capacidade de se reger a si próprio.
Fundando-se a suspensão numa prognose favorável, num juízo positivo (e não na mera ausência de prova), entendemos que tal juízo não pode ser feito.»
Concordamos integralmente com a sobredita fundamentação.
O arguido, também por força da inaptidão intelectual de que padece, tem demonstrado ao longo dos anos (tinha cerca de 50 anos à data da prática dos factos) absoluta incapacidade para reger convenientemente a sua pessoa, designadamente para se abster da adoção de condutas desconformes às sãs regras sociais de convivência e, mormente, para ultrapassar de modo perene a sua acentuada e prolongada problemática aditiva, consistente no consumo abusivo de bebidas alcoólicas. Nunca se submeteu voluntariamente - nem sequer para eventualmente se eximir ao cumprimento de uma medida de coação privativa da liberdade -, a tratamento de cura da sua adição alcoólica, ainda que em regime ambulatório, sistematicamente negando ou desvalorizando essa problemática. O parco apoio familiar e social de que beneficia revelou-se sempre infrutífero para motivar – na medida do possível, atendendo à anomalia psíquica que afeta sobremaneira o seu desenvolvimento intelectual – o arguido a adotar comportamento tendente a superar esse fator de risco de cometimento de novos factos penalmente tipificados, nomeadamente da mesma espécie do ajuizado nos autos.      
Destarte, como entendido pelo Tribunal recorrido, não se mostra possível conjeturar que o arguido logre, em meio livre, mediante tratamento da anomalia psíquica e da problemática aditiva, reprimir a sua demonstrada perigosidade criminal, de modo a que se assegure a defesa e tranquilidade sociais.      
Soçobra, também nesta parte, o recurso.     

*
IV - DISPOSITIVO: 
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em:

IV.1 – Ao abrigo do disposto no art. 380º, nº1, al. b) e nº2, do Código de Processo Penal, determinar a alteração da redação da alínea a) do dispositivo da sentença recorrida de modo a que onde consta «Absolve o arguido (…) da prática (…)» passe a constar “Absolve o arguido (…) pela prática”.  

IV.2 – Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em conformidade, manter a sentença recorrida.
 
*

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça (arts. 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal), sem prejuízo da proteção jurídica de que beneficia na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos.

Notifique (art. 425º, nº6, do CPP).
*
Guimarães, 14 de novembro de 2023,

Paulo Correia Serafim (relator)
J.M.S. Cruz Bucho (1º adjunto)
Fátima Furtado (2ª Adjunta)
(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade.
[2] Neste sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 13/10/1992, in CJ, Ano XVII, 1992, tomo I, p.36, de 21/03/2007, processo nº 07P024, disponível em www.dgsi.pt, de 23/04/2008, in CJSTJ, tomo II, p. 205, e de 08/01/2014, processo nº 7/10.0TELSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, p. 265.
[4] “Gestão Processual: Tópicos Para Um Incremento da Qualidade da Decisão Judicial”, in Revista Julgar, nº10, 2010, págs. 142 e 143. 
[5] In “Lições de Direito Penal”, II, p. 59.
[6] In “Direito Penal II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 1993, pág. 414. 
[7] In “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 92