DUPLA CONFORME
PRESSUPOSTOS
PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
REVISTA EXCECIONAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Sumário


I- Existe dupla conformidade decisória, que obsta à admissibilidade do recurso de revista normal e ao conhecimento do seu objecto, nos termos do art. 671º, 3, do CPC, sempre que o acórdão proferido pela Relação, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, confirma a decisão proferida na primeira instância, em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) nos quais se verifica identidade de julgados, sem fundamentação essencialmente diferente – incluindo a apropriação da argumentação de 1.ª instância, neste caso no que respeita à medida legal de promoção e protecção de menor, recorrível junto do STJ em função de se sindicar critérios de legalidade estrita em processo de jurisdição voluntária (art. art. 988º, 2, CPC, a contrario sensu) – e sem voto de vencido.
II- Não tendo sido interposta no requerimento e prazo de interposição do recurso a revista na modalidade excepcional, tendo por finalidade superar o efeito impeditivo da “dupla conforme” no segmento decisório coincidente nos julgados das instâncias, a resposta/pronúncia deduzida no âmbito do despacho previsto para o efeito do art. 655º do CPC não é meio processual legítimo para a (re)configuração da modalidade da revista, perante o requerimento anterior de interposição de recurso, em prazo próprio e observado, e seus fundamentos normativos – pois é insusceptível de aproveitamento processual tendo em vista mudar ou acrescentar o(s) fundamento(s) e o objecto recursivo delimitados nas alegações e conclusões originais e tempestivas –, nem pode servir para alargar esse mesmo objecto para outras situações de (potencial ou efectiva) admissibilidade recursiva. Logo, não é de aceitar a pretensão superveniente, por ser processualmente ilegítima, inadequada para tal intento recursivo e extemporânea, de ser requerida tal revista excepcional nessa resposta/pronúncia, perante o requerimento anterior de interposição de recurso, configurável como revista normal, e seus fundamentos à luz do regime e prazo de recurso aplicáveis (arts. 637º, 1 e 2, 1.ª parte («fundamento específico de recorribilidade»); 639º, 1 e 2; 638º, 1; 672º, 1 e 2, CPC), ficando sempre prejudicada a apreciação da respectiva admissibilidade nessa sede e oportunidade.

Texto Integral



Processo n.º 2034/15.1T8STR.E1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Évora, ... Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. O Ministério Público instaurou acção judicial de promoção e protecção a favor das crianças menores (autos principais e apensos “A” e “B”) AA, BB e CC (arts. 100º e ss da L 144/99, de 1 de Setembro: LPCJP).


2. Após toda a tramitação e providências apreendidas nos autos, foi proferido, por último, acórdão em 31/5/2023 pelo Tribunal Colegial Misto do Juízo de Família e Menores de ... (Juiz 3), que decidiu:

“I. Aplicar ao menor AA a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, ficando à guarda do L. .. ...... . ...... ....., nomeando-se curador provisório da criança o Diretor Técnico da instituição;

II. Aplicar ao menor BB a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, ficando à guarda do C.. ......... ...... – Santa Casa da Misericórdia de ..., nomeando-se curador provisório da criança a Diretora Técnica da instituição;

III. Aplicar à menor CC a medida de confiança a instituição com vista a futura adoção, ficando à guarda do C.. ......... ...... – Santa Casa da Misericórdia de ..., nomeando-se curadora provisória da criança a Diretora Técnica da instituição.

IV. O decretamento da medida suprarreferida tem como um dos seus efeitos a inibição do exercício das responsabilidades parentais dos progenitores, pelo que deverá após trânsito ser remetida certidão da sentença à Conservatória do Registo Civil para efeitos de averbamento ao assento de nascimento das crianças – artigo 1978º-A do Código Civil.

V. Consignar que a medida dura até ser decretada a adoção, não está sujeita a revisão e que não há lugar a visitas por parte da família natural da criança.

VI. Caso decorram seis meses desde a presente data sem que tenha sido instaurado o
processo de adoção, solicite imediatamente ao Instituto de Segurança Social – Centro Distrital de ... informação sobre os procedimentos em curso com vista à adoção das crianças.”

3. Inconformada, a Requerida progenitora dos menores interpôs recurso de apelação para o Tribunal de Relação de Évora (TRE), que conduziu a ser proferido acórdão em 10/8/2023, no qual foi julgado improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão proferido em 1.ª instância.


4. Novamente inconformada, a Requerida progenitora interpôs recurso para o STJ, visando a revogação da decisão recorrida e a entrega dos menores à progenitora, finalizando com 14 Conclusões as suas alegações, a saber:

I. O Tribunal a quo persiste em não reconhecer a mudança das condições pessoais da progenitora como se nada valessem ou importassem.

II. Donde resulta que (…) a decisão proferida pelo Tribunal a quo aparenta ser um castigo/punição aplicada aos progenitores por factos passados, descurando em absoluto, os presentes.

III. Sendo os primeiros penalizados com esta decisão os menores.

IV. (…) resulta que a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção não salvaguarda o superior interesse da criança, devendo, por isso, ser revogada e os menores entregues à progenitora que reúne, actualmente, as condições necessárias para os poder receber na sua casa.

V. Toda a intervenção deve ter em conta o “interesse superior da criança”, princípio consagrado no art. 3º, nº 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança, que a Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo coloca à cabeça dos princípios orientadores (alínea a) do art. 4º), e enquanto conceito jurídico indeterminado carece de preenchimento valorativo, cuja concretização deve ter por referência os direitos fundamentais, como o direito da criança ao desenvolvimento integral da sua personalidade, e a situação casuística.

VI. O menor AA, o mais velho dos três menores, nunca foi ouvido ao longo do processo.

VII. O certo que, tendo em conta a natureza da decisão, tendo esta efeitos irreversíveis, os menores têm não só o direito de ser ouvidos, de acordo com o disposto nos arts. 4º e 84º, ambos da Lei nº 147/99, como a este direito encontra correspectividade no dever do tribunal ouvi-los.

VIII. A audição dos menores é tanto mais fundamental quando se tem em conta que essa audição ajudará a concretizar o interesse superior dos mesmos.

IX. As visitas da progenitora ao menor AA e bem assim ao BB e à CC têm vindo a decorrer com normalidade e com a frequência determinada pelo Tribunal.

X. A audição da criança num processo que lhe diz respeito não pode ser encarada apenas como um meio de prova, com o qual se pretende fazer prova de um facto relevante no processo.

XI. Trata-se antes de mais de um direito da criança a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.

XII. Entende-se que essa fatla afecta a validade das decisões finais dos correspondentes processos, por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva e, por isso mesmo, processual.

XIII. Assim sendo, deve o acórdão recorrido ser anulado e, consequentemente, deve ser determinada a baixa do processo a fim de, ou ser ouvido o menor AA, se a sua capacidade de compreensão assim o determinar, ou ser justificada a sua não audição.

XIV. Do que se vem de expor resulta igualmente que a medida de confiança a instituição com vista a futura adopção não salvaguarda o superior interesse da criança, devendo, por isso, ser revogada e os menores entregues à progenitora que reúne, actualmente, as condições necessárias para os poder receber na sua casa.

O MP apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.


5. Foi proferido despacho pelo aqui Relator ao abrigo e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, do CPC, considerando o regime de irrecorribilidade contemplado no art. 671º, 3, do CPC (“dupla conformidade” de julgados).


Respondeu a Requerida e Recorrente, alegando que a revista interposta não tinha sido “denominada” ou “nomeada”, pugando pela interposição e admissão da revista como excepcional, ao abrigo das als. a), b) e c) do art. 672º, 1, invocando, no último caso, oposição com o Ac. do STJ de 14/12/2016 (sem junção de qualquer cópia), e, reiterando, no essencial, as Conclusões antes formuladas.





Dispensados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir, desde logo enfrentando a questão da admissibilidade da revista.


II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS


Questão prévia da admissibilidade da revista


1. Estão preenchidos em concreto os requisitos gerais de admissibilidade do recurso ordinário (arts. 629º, 1, 631º, 1, CPC) e os requisitos especiais de admissibilidade da revista enquanto espécie (art. 671º, 1, CPC), tendo por objecto decisão proferida em processo de jurisdição voluntária (art. 100º da LPCJP (Lei 147/99, de 1 de Setembro); 986º-988º, CPC) e sendo o acórdão recorrido objecto de impugnação em sede de interpretação e aplicação de critérios de legalidade estrita quanto à decisão sobre a medida de promoção e protecção a aplicar aos menores (art. 988º, 2, CPC, a contrario sensu; quanto ao regime imperativamente fixado ao tribunal e mobilizado pelo acórdão recorrido, v. os arts. 3º, 1 e 2, 4º, em esp. als. a) e e), 34º, 35º, 1, al. g), 38º-A, da LPCJP, e 1978º, em esp. 1, als. c) a e), e 3, do CCiv.), legitimando-se assim a recorribilidade em 3.º grau junto do STJ em face do regime especial aplicável às decisões proferidas em processos de jurisdição voluntária1.


Porém.


2. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo e impedimento ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra junto do STJ, em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) nos quais se verifica identidade de julgados, sem fundamentação essencialmente diferente e sem voto de vencido, ou, para além disso, em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos (mesmo que sem confirmação integral no dispositivo) e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (mesmo que só com procedência parcial do recurso).


3. Verifica-se sem quaisquer dúvidas que – no que toca ao objecto recursivo delimitado pela Recorrente nas Conclusões da revista, relativa à entrega dos menores para adopção – a existência de “dupla conformidade decisória” no dispositivo decisório e na fundamentação das instâncias quanto à questão de mérito reapreciada pela Relação, relativa à medida de promoção e protecção aplicada aos menores em situação de perigo, sem voto de vencido, nos termos do aludido art. 671º, 3, do CPC, inclusive com apropriação integral do decidido em 1.º grau (v., em confronto, as págs. 41-49 do acórdão proferido em 1.ª instância e as págs. 33-41 do acórdão do TRE).


De tal sorte que a Requerida e aqui Recorrente recebeu duas decisões que se pautaram pela análise e sindicação dos fundamentos da aplicação da medida legal de “confiança a instituição com vista a futura adopção” ao abrigo dos mesmos pressupostos legais, que, pelo seu teor, definiram de modo consolidado a correspondente situação jurídica sem recurso a instituto jurídico diverso e com motivação jurídica coincidente e subsequente fungibilidade entre si das decisões no resultado jurídico pretendido na acção2.


Tudo visto, não é admissível a revista normal interposta pela Recorrente na decisão impugnado, considerado o aludido e sindicado impedimento colocado pelo art. 671º, 3, do CPC.


4. Acresce que, para superar o efeito impeditivo da “dupla conforme” no segmento decisório coincidente nos julgados das instâncias, a Recorrente não interpôs revista, seja na modalidade de revista excepcional (art. 672º, 1, CPC), seja na modalidade de revista extraordinária (art. 671º, 3, 1ª parte, 629º, 2, CPC), que teriam (ou poderiam ter), mesmo que por forma subsidiária, o efeito de neutralizar a irrecorribilididade do art. 671º, 3, do CPC.


5. A interposição de tais modalidades de revista enquanto espécie não resulta do requerimento tempestivo de interposição do recurso, que, na falta de qualquer outro fundamento específico de recorribilidade – ónus de indicação do recorrente, nos termos do art. 637º, 2, 1ª parte, conjugado com o art. 639º, 1 e 2, sempre do CPC –, apenas pode ser configurado como revista normal ou regra, com a correspondente sujeição ao respectivo regime de admissibildade.


Sem prejuízo.


6. Não se admite a pretensão superveniente à interposição recursiva, por processualmente ilegítima, inadequada para tal intento de impugnação e extemporânea, de ser requerida revista excepcional na resposta ao despacho proferido nos termos do art. 655º do CPC, como pretendeu a Recorrente, perante o requerimento anterior de interposição de recurso e seus fundamentos normativos à luz do regime e prazo de recurso aplicáveis (reitere-se o art. 637º, 1 e 2, 1.ª parte («fundamento específico de recorribilidade»); 639º, 1 e 2; 638º, 1; 672º, 1 e 2, CPC) – pelo que nunca seria de aceitar tal requerimento, ficando sempre prejudicada a apreciação da respectiva admissibilidade nessa sede e oportunidade3.


Na verdade, como tem sido reconhecido neste STJ, a resposta/pronúncia deduzida no âmbito desse despacho (típico para exercício de contraditório em face da possibilidade de não conhecimento do recurso) do art. 655º do CPC não é meio processual legítimo para esse efeito de (re)configuração da modalidade da revista, perante o requerimento anterior de interposição de recurso, em prazo próprio e observado, e seus fundamentos – pois é insusceptível de aproveitamento processual tendo em vista mudar ou acrescentar o(s) fundamento(s) e o objecto recursivo delimitados nas alegações e conclusões originais e tempestivas –, nem pode servir para alargar esse mesmo objecto para outras situações de (potencial ou efectiva) admissibilidade recursiva.


Falece, assim, inapelavelmente, também por esta via, o propósito de a Recorrente ascender à mobilização dos poderes cognitivos do 3.º grau de jurisdição.


III) DECISÃO


Em conformidade, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.


Custas pela Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


STJ/Lisboa, 16/11/2023


Ricardo Costa (Relator)


Luís Espírito Santo


Ana Resende

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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1. V., por todos, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, Processo de execução, processos especiais e processo de inventário judicial, Artigos 703.º a 1139.º, Almedina, 2020, sub art. 988º, págs. 439-440.↩︎

2. RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Artigos 546.º a 1085.º, 2.ª ed., Coimbra Editoria, Coimbra, 2015, sub art. 671º, pág. 181.↩︎

3. V., por ex. e mais recentemente, Acs. do STJ de 15/3/2022, processo n.º 17315/16.9T8PRT.P3.S1, de 12/7/2022, processo n.º 5029/15.1T8VNF-A.G2.S1, de 20/12/2022, processo n.º 3241/15.2T8GMR.G1.S1, e de 3/5/2023, processo n.º 1866/14.2T8OAZ-AI.P1.S1, sempre como Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎