RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PODERES DA RELAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
DUPLA CONFORME
DIREITO ADJETIVO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário


I - O acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, mas ao qual seja imputada a violação ou errada aplicação da lei do processo no que diz respeito ao julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, está fora do alcance do n.º 3 do artigo 671.º do CPC.
II – Na reapreciação da matéria de facto impende sobre o tribunal da Relação o poder/dever de formar e formular a sua própria convicção sobre os pontos de facto impugnados, após exame crítico das provas produzidas.
III – A decisão da Relação que se se limita a afirmar que os depoimentos não eram, em geral, de molde a sustentar a posição dos recorrentes e que as provas produzidas tomadas no seu conjunto eram totalmente consistentes com a versão dos factos que havia ficado plasmada na decisão recorrida não observa os poderes/deveres da Relação no julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Texto Integral

AA, residente na … ..., ..., e BB, residente na Rua de ..., n.º 5, ..., propuseram a presente acção declarativa com processo comum contra CC, residente na Rua ..., n.º 5, ...., ... ..., pedindo:

1. A condenação da ré a restituir à herança de DD os 340 326,80 € (trezentos e quarenta mil, trezentos e vinte seis euros e oitenta cêntimos) de que se locupletou;

2. A condenação da ré a pagar juros de mora relativamente à obrigação de restituição das quantias mencionadas em 1), no montante de 85 463,59€ (oitenta e cinco mil, quatrocentos e sessenta e três euros e cinquenta e nove cêntimos), bem como a pagar os juros de mora vincendos até integral restituição das quantias locupletadas;

3. Se declarassem nulas as doações realizadas por DD;

4. A condenação da ré a restituir à herança de DD os 114.829,27 € (cento e catorze mil, oitocentos e vinte e nove euros e vinte e sete cêntimos), que lhe foram doados, bem como a pagar juros de mora desde a citação até integral restituição da mencionada quantia.

Para o efeito alegaram em síntese:

• Que são os únicos herdeiros de DD, falecido no dia ...-01-2021;

• Que a herança permanece indivisa;

• Que DD foi casado com EE até ao dia ...-10-2009;

• Que o casamento dissolveu-se em virtude do falecimento de EE;

• Que, no dia ...-11-2011, DD casou em segundas núpcias com a ré, sob o regime imperativo da separação de bens;

• Que DD e a ré realizaram vida em comum, desde a referida data (...-11-2011) até ao início de Janeiro de 2020;

• Que DD e a ré divorciaram-se ...-...2020;

• Que na constância do matrimónio, a ré apropriou-se de saldos de várias contas bancárias que pertenciam a DD e realizou em proveito próprio despesas que pagou com fundos de contas cujos saldos também pertenciam a DD, no total de 340 326,80 euros (trezentos e quarenta mil, trezentos e vinte seis euros e oitenta cêntimos);

• Que concomitantemente DD realizou doações em numerário à ré no montante de 114.829,27 € (cento e catorze mil, oitocentos e vinte e nove euros e vinte e sete cêntimos);

• Que tais doações são nulas.

A ré contestou e deduziu reconvenção. Na sua defesa apresentou uma versão dos factos diferente da alegada pelos autores. Concluiu no sentido da improcedência da acção. Pediu, em reconvenção, a condenação dos autores a pagarem-lhe a quantia de vinte mil euros (€20 000,009, a título de dano não patrimonial.

Para o efeito alegou:

• Que eram ofensivas do bom nome, honra e consideração dela, ré, a acusação dos autores de que ela se locupletou com a quantia de 340 326,80 euros pertencente a DD;

• Que as considerações dos autores têm provocado graves danos na saúde física e psíquica dela, ré, no seu bom nome, honra, moral e consideração, a ponto de ter sido obrigada a receber apoio médico especializado.

Os autores responderam. Na réplica começaram por alegar que a reconvenção não era processualmente admissível. De seguida, por cautela de patrocínio, sustentaram a improcedência do pedido reconvencional.

No despacho saneador, foi proferida decisão a não admitir a reconvenção.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que, julgando parcialmente procedente a acção, decidiu:

1. Condenar a ré a devolver à herança de DD a quantia de € 75 650,00 (setenta e cinco mil seiscentos e cinquenta escudos), acrescida de juros de mora, desde a data da citação até ao integral pagamento, à taxa devida para as obrigações civis;

2. Absolver a ré dos demais pedidos formulados pelos autores.

Apelação

Os autores não se conformaram com a sentença e interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora, pedindo se revogasse parcialmente a sentença, sendo substituída por decisão:

1. Que condenasse a ré a restituir à herança do Dr. DD os 449.506,07€ (quatrocentos e quarenta e nove mil, quinhentos e seis euros e sete cêntimos) que lhe foram doados, bem como condenada em juros de mora desde a citação até integral restituição da mencionada quantia;

2. Que condenasse a ré a restituir à herança do Dr. DD 5.650,00€ (cinco mil seiscentos e cinquenta euros), referidos no número precedente, bem como a condenasse em juros de mora desde a data da apropriação até integral restituição da mencionada quantia.

O Tribunal da Relação, por acórdão proferido em 25 de Maio de 2023, confirmou a sentença proferida em primeira instância, com excepção de parte dela que condenou a ré a pagar juros de mora desde a data da sua citação. Substituiu essa parte por decisão a condenar a ré a pagar juros de mora desde as datas da apropriação dos valores, concretamente desde 28-01-2020 (1 900 euros); 19-02-2020 (1 900 euros); 20-03-2020 (1 850 euros), até à integral restituição das mencionadas quantias.

A Revista:

Os autores não se conformaram com o acórdão e interpuseram recurso de revista, pedindo:

1. Se anulasse o acórdão recorrido, por violação do disposto no artigo 662.º CPC, devendo o mesmo ser reenviado ao Tribunal da Relação de Évora para que procedesse à reapreciação de cada um dos pontos da matéria de facto de facto impugnada, de acordo com os ditames decorrentes do artigo 662.º CPC;

2. Se declarasse a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, ou pelo menos de falta absoluta de fundamentação, sobre a impugnação de facto respeitante aos factos n.ºs 48-a), 31-a), e bem assim da introdução do facto n.º 45 na lista dos factos provados.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes.

1. Vem o presente recurso interposto do acórdão que decidiu o recurso interposto pelos ora recorrentes, que teve por objeto a decisão proferida pelo Juízo Central Cível de ... – J3 para o Tribunal da Relação de Évora, no qual pediram os Recorrentes que a Recorrida fosse condenada: (i) a restituir à herança de DD os 449.506,07€ que lhe foram doados, e bem assim nos juros de mora desde a citação até integral restituição da mencionada quantia; (ii) e a restituir à herança de DD, 5.650,00€ de que locupletou, e bem assim a pagar juros de mora desde a data da apropriação até integral restituição da mencionada quantia.

2. O Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso, com exceção de questão respeitante ao termo inicial da contagem dos juros de mora referido em (ii) do parágrafo precedente. Vêm os Recorrentes impugnar esta decisão com fundamento na violação dos deveres que decorrem do disposto no artigo 662.º CPC, mas também em nulidades de omissão de pronúncia ou, subsidariamente, falta de fundamentação (artigos 615.º-b-d, ex vi 666.º, ambos do CPC).

3. O acórdão de que ora se recorre estende-se por 45 páginas. Todavia: as primeiras 26 páginas destinam-se ao relatório, não contendo, por isso, qualquer ensaio de ponderação; as páginas 27 a 28 constituem um resumo da pretensão dos recorrentes tal como decorre das conclusões, ou seja, são um resumo do resumo; nas páginas 28 à 31, o Tribunal a quo ocupa-se de afirmar que os recorrentes cumpriram o ónus alegatório previsto no artigo 640.º CPC; das páginas 31 à 32, o tribunal a quo observa que a decisão do tribunal de 1.ª Instância está fundamentada (muito embora tal falta nunca tivesse sido apontada por alguma das partes); as páginas 32 a 33 serviram para dissertar sobre as limitações sofridas pelos Tribunais da Relação em razão da falta de imediação; nas páginas 33 a 35, o Tribunal a quo sintetiza novamente a impugnação da facto dos Recorrentes; nas páginas 35 a 40, são transcritos, acriticamente, sem qualquer apreciação, com simples conversão de voz em texto, os depoimentos das testemunhas ouvidas pela 1.ª instância; finalmente, nas páginas 41 e parte da 42, o tribunal a quo decide, limitando-se essencialmente a dizer que concorda com o Tribunal de 1.ª instância, faltando, porém, explicar por que motivo; segue-se depois a decisão de Direito e o dispositivo.

4. Pelo meio, foi o Tribunal a quo relembrando que aos Tribunais da Relação cabe apenas alterar a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, reiterando amiúde que o conhecimento dos factos pelos Tribunais da Relação sofre de limitações decorrentes da (falta de) imediação. Ou seja, o Tribunal a quo foi-se colando ao conhecido entendimento da função dos Tribunais da Relação em matéria de facto que tem sido persistentemente refutada por este STJ.

5. A impugnação de facto foi dividida em três partes, visando outras tantas questões fácticas: a) titularidade do Saldo da Conta no Millennium BCP com o n.º .........96; b) quantias despendidas em férias e refeições; c) quantias despendidas na aquisição de automóveis.

6. Quanto à questão a), pediram os Recorrentes que: (i) Na lista dos factos provados, o facto n.º 48-a) deveria passar a ter a seguinte redação: “O saldo referido supra em 47 pertencia exclusivamente a DD”. Bem assim, por consequência lógica, deveria ser eliminada a alínea B) da lista dos factos não provados; (ii) Subsidiariamente, se este pedido não procedesse, o facto provado 48- a) deveria ter, pelo menos, a seguinte redação: “Da importância referida em 47, apenas 38.223,72€ pertenciam exclusivamente a DD”.

7. A alteração referida em (i) fundou-se na admissão daquele facto por acordo, nos articulados, que acima foi detalhada. Ou seja, do artigo 574.º/2 CPC e da conduta processual da Recorrida retira-se que o saldo bancário acima mencionado constituía bem próprio de DD.

8. A alteração (ii) foi subsidiariamente pedida para o caso de a anterior não proceder, com fundamento na prova documental produzida e em elementares regras jurídicas. Com efeito, se, em 28.11.2016, à data da desvinculação da conta, os únicos titulares da conta eram DD e a recorrida, se, nessa data, o saldo da conta era 69.817,44€, e, finalmente, se ficou documentalmente provado que 6.630€ constituíam inequivocamente um bem próprio de DD, então seguir-se-ia a conclusão de que, pelo menos, metade dos 63.187,44€ sobejantes, ou seja, 31.593,72€, pertenciam a DD.

9. Ora, compulsado o presente acórdão, verifica-se que esta questão só é mencionada a pretexto do relato dos factos julgados provados pelo Tribunal de 1.ª Instância e da descrição do recurso interposto pelos Recorrentes. Em parte alguma do acórdão resulta a mínima evidência de que o Tribunal a quo haja ponderado a própria impugnação e se tenha ocupado de decidi-la efetivamente. Muito menos resulta qualquer indício, evidentemente, de que o Tribunal a quo tenha dedicado tempo à apreciação dos argumentos mobilizados e dos meios de prova indicados pelos Recorrentes. Esta não é, por conseguinte, uma pronúncia no sentido em que a prevê o artigo 662.º CPC.

10. O que temos a respeito desta questão é um nada, um silêncio que impede o conhecimento das razões do Tribunal a quo. De sorte que, salvo melhor entendimento, consideramos que o Tribunal a quo omitiu a pronúncia a este respeito (artigos 608.º/2 e 615.º/1-d, ex vi artigo 666.º/1, todos do CPC). Numa abordagem mais condescendente, dir-se-ia que o Tribunal a quo, ao concordar globalmente com a decisão do Tribunal de 1.ª Instância, apenas omitiu a respeito desta questão qualquer fundamentação (artigos 608.º/2 e 615.º/1-b, ex vi artigo 666.º/1, todos do CPC). Seja qual for o fundamento, é inequívoca a nulidade.

11. Em segundo lugar, alínea b), no recurso interposto da decisão do Tribunal de 1.ª instância, os Recorrentes impugnaram a decisão a respeitos dos factos provados números 67, 68 e 70, e na omissão de qualquer referência pelo Tribunal de 1.ª instância ao artigo 94.º da contestação. Estava em causa saber de que modo haviam sido gastos 551.942,35€, que pertenciam exclusivamente a DD.

12. A Recorrida alegou que esta pequena fortuna foi toda despendida em refeições e férias, tendo trazido ao processo testemunhas que procuraram corroborar esta tese. Os depoimentos destas testemunhas foram, no recurso interposto, dissecados, sendo postas em evidência as incoerências em que incorrem.

13. Ora, de todas as questões levantadas pelos Recorrentes, foi esta a única sobre a qual o Tribunal a quo se pronunciou. Mas fê-lo apenas formalmente, porque na substância não se encontra qualquer pronúncia original, própria, ainda que de sentido coincidente com a do Tribunal de 1.ª Instância. O Tribunal a quo limitou-se a aparentar ponderação, transcrevendo os depoimentos, abstendo-se, porém, de apreciá-los critica e fundadamente.

14. Adicionalmente, os recorrentes chamaram a atenção do Tribunal da Relação de Évora para a circunstância de a própria recorrida ter assumido, nas declarações de parte que prestou, que é detentora de 29 000€ (vinte e nove mil euros) que constituem um bem próprio de DD, os quais se encontram depositados em conta bancária sua. Os Recorrentes indicaram os minutos do depoimento em que esta declaração é realizada. A este respeito, porém, nada é dito pelo Tribunal a quo.

15. Finalmente, e quanto à supra identificada alínea c), não tendo sido dado como provado que DD havia custeado, com bens próprios, a aquisição de dois automóveis que ficaram registados em nome da Recorrida, pelo que a esta os doou, vieram os Recorrentes impugnar, quanto a estes pontos, a decisão de facto.

16. Fundaram a impugnação na confrontação dos articulados, na junção de documentos quer pelos recorrentes quer pela Recorrida, e bem assim nas declarações que esta prestou.

17. Todavia, a referência a estes pontos específicos da decisão de facto e correspetiva impugnação surgem somente no relatório, a pretexto dos factos provados/não provados e das conclusões dos Recorrentes. O Tribunal a quo não fez, pura e simplesmente, nenhum juízo crítico probatório a este respeito

18. De sorte que também aqui cabe dizer que, salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo omitiu a pronúncia sobre a presente questão (artigos 608.º/2 e 615.º/1-d, ex vi artigo 666.º/1, todos do CPC). Ou, numa abordagem mais condescendente, impõe-se a conclusão que o Tribunal a quo omitiu, pelo menos, o dever de fundamentação (artigos 608.º/2 e 615.º/1-b, ex vi artigo 666.º/1, todos do CPC).

19. Ou seja, e em suma: o Tribunal a quo incumpriu claramente os deveres que sobre si recaem e decorrem do artigo 662.º CPC, devendo-se este incumprimento a uma ilegal e caduca interpretação do referido dispositivo.

20. Como acima se demonstrou, a jurisprudência e doutrina mais avalizada sustentam que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção. E que o legislador pretende que a Relação vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise.

21. Afinal, como decorre o acórdão deste STJ supra citado, a reapreciação das provas não pode traduzir-se em meras considerações genéricas, sem qualquer densidade ou individualidade que as referencie ao caso concreto.

22. Ora foi exatamente o que fez o Tribunal da Relação de Évora: abstendo-se, assumidamente, de formar uma convicção própria e autónoma, atendendo à prova produzida, incorreu depois em transcrições, citações e considerações genéricas, sendo certo que, pelo menos, a respeito de duas das questões supra mencionadas, nem desta aparência decisória se pode falar; temos, somente, o silêncio.

A ré, recorrida, respondeu ao recurso. Na resposta começou por sustentar que não cabia recurso de revista do acórdão da Relação, por existir dupla conforme entre as decisões das duas instâncias (n.º 3 do artigo 671.º do CPC).

Para a hipótese de o recurso de revista ser admitido, impugnou as conclusões dos recorrentes, sustentando que não havia qualquer ilegalidade ou falta de pronúncia por parte da Relação, devendo, em consequência, ser mantido o acórdão recorrido.

O tribunal a quo pronunciou-se sobre as nulidades arguidas pelos recorrentes, indeferindo tal arguição.


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Síntese das questões suscitadas pelo recurso:

• Saber se o acórdão recorrido é de anular por violação do disposto no artigo 662.º do CPC e de reenviar ao tribunal da Relação de Évora para reapreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;

• Saber se é de declarar a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia ou pelo menos por absoluta falta de fundamentação, sobre a impugnação respeitantes aos factos 48.-a e 31.º-a, e sobre a introdução do facto n.º 45 na lista dos factos provados.

A resposta ao recurso suscita a questão da admissibilidade da revista.


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Admissibilidade do recurso de revista

Do ponto de vista lógico, a primeira questão que importa solucionar é a de saber se cabe recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Évora. Caso se lhe responda negativamente, fica prejudicado o conhecimento do objecto do recurso.

Adiantando desde já a resposta, o recurso é de admitir ao abrigo da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, apesar de o acórdão da Relação ter confirmado, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em 1.ª instância e de, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, salvo nos casos em que o recurso é sempre admissível [que não abrangem o acórdão recorrido] não ser admitida revista do acórdão da Relação que conforme, sem voto de vencido e sem e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida em 1.ª instância.

O recurso é de admitir porque o n.º 3 do artigo 671.º do CPC tem sido interpretado pelo Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que o acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, mas ao qual seja imputada a violação ou errada aplicação da lei do processo no que diz respeito ao julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto está fora do alcance do preceito. Nesta hipótese, cabe revista do acórdão ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º, embora o recurso tenha por objecto exclusivamente a questão da violação ou errada aplicação da lei do processo no que diz respeito ao julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Citam-se em abono desta interpretação e a título meramente exemplificativo os seguintes acórdãos do STJ: acórdão proferido em 17-12-2020, no processo n.º 7228/16.0T8GMR.G1.S1; acórdão proferido em 25-03-2021, processo n.º 756/14.3TBPTM.L1.S1; acórdão proferido em 14-09-2021, no processo n.º 864/18.1T8VFR.P1.S1; acórdão proferido em 5-04-2022, no processo n.º 1916/18.3T8STS.P1.S1; e o acórdão proferido em 4-07-2023, no processo n.º 19645/18.6T8LSB.L1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.

No caso, os recorrentes insurgem-se contra o acórdão recorrido precisamente com a alegação de que o mesmo violou a lei processual (artigo 662.º do CPC) no julgamento da impugnação da decisão matéria de facto.

Deste modo, considerando a interpretação do n.º 3 artigo 671.º do CPC acima exposto e a verificação das condições gerais de recorribilidade previstas no n.º 1 do artigo 629.º do CPC, admite-se o recurso de revista, ao abrigo do n.º 1 do artigo 671.º do CPC.


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Nulidade do acórdão

Do ponto de vista lógico, a segunda questão que importa solucionar é a de saber se o acórdão incorre na causa de nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – aplicável ao acórdão da Relação por remissão do artigo 666.º do mesmo diploma – ou, no caso de assim se não entender, se enferma da causa de nulidade prevista na alínea b) do mesmo preceito.

Com efeito, na hipótese de se concluir em tal sentido, cabia a este tribunal mandar baixar o processo, a fim de se fazer a reforma da decisão anulada, pelos mesmos juízes quando possível (n.º 2 do artigo 684.º do CPC).

Segundo os recorrentes, o acórdão padece da causa de nulidade prevista na 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC porque não se pronunciou sobre impugnação da decisão do tribunal de 1.ª instância de julgar provada a matéria discriminada sob os pontos números 48-a) e 31-a) nem sobre a pretensão de incluir na lista dos factos provados, sob o n.º 45, a matéria que foi alegada sob o artigo 52.º da petição.

Caso se entendesse que o acórdão se pronunciou sobre tais questões, então ter-se-ia de considerar que estava ferido pela causa de nulidade prevista na alínea b), visto que era totalmente desprovido de fundamentação

Pelas razões a seguir expostas, a arguição das nulidades é de indeferir.

Comecemos pela omissão de pronúncia.

Segundo a 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

Esta causa de nulidade da sentença está directamente relacionada com o n.º 2 do artigo 608.º do mesmo diploma, na parte em que dispõe que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetida à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Sendo incontroverso que os recorrentes impugnaram a decisão do tribunal de 1.ª instância de julgar provada a matéria discriminada sob os pontos números 48-a) e 31-a) e pediram a inclusão, no rol dos factos provados, sob o n.º 45, da matéria que foi alegada sob o artigo 52.º da petição, cabia ao tribunal da Relação pronunciar-se sobre estas questões. E assim fez. Com efeito, ao decidir que considerava provados e não provados os mesmos factos que o foram na 1.ª instância e ao decidir que nada havia a alterar ao que ficou decidido a esse respeito, o tribunal da Relação pronunciou-se sobre a pretensão dos recorrentes, julgando-a improcedente. Não incorreu, pois, em omissão de pronúncia.

Como não incorreu na causa de nulidade prevista na alínea b), que acontece quando a sentença não especifique os fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão.

Em primeiro lugar, a decisão cuja falta de fundamentação é tida em vista pelo preceito é a decisão final de uma causa ou de um incidente e não a decisão relativa à matéria de facto.

Em segundo lugar, mesmo que se entendesse que tal preceito era aplicável à decisão relativa à matéria de facto, a decisão só incorreria na nulidade em apreciação se fosse totalmente omissa quanto à sua fundamentação, condição que não se verifica, pois o acórdão expôs as razões pelas quais manteve inalterada a decisão relativa à matéria de facto. Segundo o acórdão era de manter a decisão relativa à matéria de facto proferida em 1.ª instância porque, em síntese, apreciadas de um modo global as provas produzidas era de aceitar perfeitamente a decisão da Mm.ª Juíza da 1.ª instância.

A questão que o acórdão suscita em matéria de fundamentação é a de saber se ela está em conformidade com as exigências da lei processual, questão que será apreciada mais à frente e que nos remete para o primeiro pedido dos recorrentes: anulação do acórdão por violação do disposto o artigo 662.º e reenvio do processo ao tribunal da Relação para que proceda à reapreciação de cada um dos pontos da matéria de facto impugnados de acordo com os ditames do artigo 662.º do CPC.

Pelo exposto, indefere-se a arguição de nulidade do acórdão.


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Os factos considerados provados e não provados pelo tribunal da Relação foram os seguintes:

Provados

1. Os AA. são os únicos herdeiros de DD, falecido no dia ...-01-2021.

2. DD foi casado com EE até ao dia ...-10-2009.

3. O casamento dissolveu-se em virtude do falecimento de EE, no dia ...-10-2009.

4. Na partilha judicial da herança de EE foram adjudicados a DD, entre outros, os seguintes bens: (a) Fração F do prédio sito na Praceta ..., n.º 6, na União das Freguesias de ... e ..., inscrito na matriz no artigo 723 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 549; (b) Fração M do prédio sito na Casa do ..., Rua da ..., ..., inscrito na matriz no artigo 4119 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1979.

5. No dia .../11/2011, DD casou em segundas núpcias com a ré.

6. DD tinha à data 76 anos e casou com a R. sob o regime de separação de bens.

7. À data do casamento, a R. tinha 56 anos.

8. DD e a R. realizaram, desde a referida data até ao início de janeiro de 2020, vida em comum.

9. No dia ... .01.2020, a R. alojou DD numa residência sénior pertencente à Associação de Solidariedade ..., sita na Av. ..., n.º 1, ..., ....

10. DD passou a residir nessa residência sénior desde aquela data até ao seu falecimento, em ...-01-2021.

11. Em Junho/2020, a R. fez chegar a DD requerimento de divórcio, solicitando a sua assinatura, para de seguida instruir o processo de divórcio de ambos por mútuo consentimento.

12. DD devolveu o documento assinado.

13. O divórcio foi decretado em ... .11-2020, pela Senhora Conservadora da Conservatória do Registo Civil de ....

14. Em 18.11.2011, DD era cotitular com o seu filho, o A. AA, de conta na Caixa Geral de Depósitos (adiante CGD) com o n.º ............60.

15. No dia 18.11.2011, DD fez, a partir da identificada conta n.º ............60, seis transferência bancárias, uma de 50.000 € (cinquenta mil euros), outra de 129.000 € (cento e vinte e nove mil euros), outra de 12.000 € (doze mil euros), outra de 10.000 € (dez mil euros), outra de 32.000 € (trinta e dois mil euros) e uma última de 10.000 € (dez mil euros), no total de 243.000 € (duzentos e quarenta e três mil euros) para uma conta na CGD, de que o DD era o único titular, com o n.º ......200.

16. No dia 18.11.2011, na conta com o n.º ......200, DD constituiu um depósito a prazo designado “Depósito a Prazo Crescente Mais”, no valor de € 225.000 (duzentos e vinte cinco mil euros).

17. No dia 02.12.2011, DD resgatou o referido depósito, deixando €10.000 (dez mil euros) na conta n.º ......200, e transferindo 215.000 € (duzentos e quinze mil euros) para conta na CGD titulada por DD e pela R., com o n.º .....300.

18. À data da transferência referida no artigo precedente, o saldo da conta n.º .....300 era 0,00 € (zero euros).

19. Em 02.12.2011, foram utilizados 220.000 € (duzentos e vinte mil euros) depositados na aludida conta na CGD com o n.º .....300 para constituir um depósito “Caixa Aforro Poupe Mais” na conta sediada na CGD com o n.º ............78, titulada por DD e pela R.

20. À data da transferência referida no artigo precedente, o saldo da conta n.º ............78 era 0,00 € (zero euros).

21. No dia 05.07.2012, a R. transferiu da supra referida conta n.º ............78 para a conta na CGD com o n.º ....700, da qual é a única titular, a quantia de 119.829,84 € (cento e dezanove mil, oitocentos e vinte e nove euros e oitenta e quatro cêntimos).

22. Esta quantia pertencia exclusivamente a DD.

23. Em 29.03.2016, DD vendeu o imóvel sito em ..., seu bem próprio, pelo montante de 170.000 € (cento e setenta mil euros).

24. A quantia paga no ato da escritura a título de remanescente do preço, ou seja, 153.000 € (cento e cinquenta e três mil euros) foi, nesse dia 29.03.2016, depositada numa conta sediada no Millennium BCP, com o n.º .........96, titulada por DD e pela R.

25. À data do depósito referido no artigo precedente, o saldo da conta com o n.º .........96 era 0,00 € (zero euros).

26. Em 27.04.2016, a R. sacou o cheque n.º ........83, ao portador, sobre a referida conta, no valor de 35.000,00 € (trinta e cinco mil euros), o qual veio a ser depositado no dia 28.04.2016 em conta sediada na CGD, da qual DD não é titular nem cotitular.

27. Em 20.05.2016, a R. pediu a emissão de um cheque bancário ao Millennium BCP, utilizando fundos da referida conta n.º .........96, no valor de 70.000 € (setenta mil euros), o qual foi entregue e pago ao Senhor FF.

28. O identificado cheque foi utilizado para adquirir o imóvel sito Rua ..., n.º 5, 6.º Esq. ... ..., de que a R. é a única proprietária.

29. Em 27.04.2016, a R. ordenou uma transferência de 24.500 € (vinte e quatro mil e quinhentos euros), da conta n.º .........96 para uma conta da sociedade do grupo C...... .......

30. A transferência foi realizada para o pagamento do preço da compra de veículos automóveis ou de componentes ou serviços associados a esses veículos.

31. DD, à data de 27.04.2016 não era proprietário de qualquer veículo automóvel.

31-a) A transferência a que se alude em 29 foi realizada em benefício da Ré ou de terceiro.

32. Em Abril de 2016, DD vendeu o imóvel sito no ..., a que se alude em 4-b), seu bem próprio, pelo preço de 93.000,00 € (noventa e três mil euros).

33. O cheque visado entregue a DD no acto da escritura para pagamento do remanescente do preço, no valor de 86.850,00 € (oitenta e seis mil oitocentos e cinquenta euros), foi depositado, no dia 08.04.2016, numa conta sediada na Caixa de Crédito Agrícola, com o n.º ..............95, titulada por DD e pela ré.

34. À data do depósito do cheque referido no artigo precedente, o saldo da conta com o n.º ..............95 era 0,00 € (zero euros).

35. No dia 14.04.2016, a R. ordenou a transferência de 85.346,96 € (oitenta e cinco mil trezentos e quarenta e seis euros e noventa e seis cêntimos) da supra identificada conta com o n.º ..............95 para a conta n.º .........92, titulada exclusivamente pela R.

36. Depois de o falecido ter passado a residir na residência sénior a que se alude em 9), a R. levantou a pensão daquele, paga pela Caixa Geral de Aposentações, no valor de aproximado de 1850 € (mil oitocentos e cinquenta euros), que DD auferiu nos meses de Janeiro/2020, Fevereiro/2020 e Março/2020, e que era paga na conta n.º ....700, sediada na CGD, de que eram titulares DD e a R.

37. Assim, no dia 28.01.2020, a R. ordenou uma transferência de €1900 (mil e novecentos euros) da referida conta n.º ....700 para a conta n.º ....400, sediada na CGD, de que a R. é a única titular.

38. No dia 19.02.2020, a R. fez, ao balcão, um levantamento de €1900 (mil e novecentos euros) da supra identificada conta n.º ....700.

39. E dia 20.03.2020, a R. fez, ao balcão, um levantamento de €1850 (mil oitocentos e cinquenta euros) da supra identificada conta n.º ....700.

39-a) As transferência /levantamentos constantes de 37 a 39 não ocorreram com o conhecimento e/ou concordância do falecido.

40. Em 15.11.2011, DD era cotitular com o seu filho, o A. AA, de conta na CGD com o n.º ....600.

41. No dia 15.11.2011, DD fez uma transferência de 2.841,83 € (dois mil oitocentos e quarenta e um euros e oitenta e três cêntimos) da referida conta com o n.º ....600 para conta na CGD com o n.º ....700, que era exclusivamente titulada pela R.

42. No dia 29.01.2013, DD fez uma transferência de 25.000 € (vinte cinco mil euros) da conta na CGD, com o n.º ...730, titulada por si, para conta na CGD com o n.º ....400, que era exclusivamente titulada pela R.

43. Em 06.10.2016, DD fez um pagamento de 3.000 € (três mil euros), da supra identificada conta no Millennium BCP com o n.º .........96, para uma conta da S...H, S.A.

44. Em 21.10.2016, DD fez um pagamento de 14.170 € (catorze mil cento e setenta euros), da conta n.º .........96 para uma conta da S...V, S.A.

45. Eliminado.

46. A R. era até 16.11.2020, proprietária registada do automóvel de marca Volkswagen Tiguan, de matrícula ..-RZ-...

47. Depois das transferências, pagamentos e cheques sacados sobre a supra mencionada conta n.º .........96, sediada no Millennium BCP e titulada por DD e pela R., no dia 27.11.2016 restava na referida conta um saldo de 69.817,44€ (sessenta e nove mil, oitocentos e dezassete euros e quarenta e quatro cêntimos).

48. No dia 28.11.2016, DD apresentou pedido de desvinculação da referida conta, passando a R. a ser a única titular da mesma e do saldo que nela se encontrava.

48-a) Da importância referida em 47, apenas € 6.630,00 pertencia exclusivamente a DD.

49. No ano de 2012, foi intentada uma ação de Inventário que correu termos na Comarca de Lisboa ... – Inst. Local – Seção Cível – J3 sob o nº 2817/12.4..., em que figurava como cabeça de casal DD, e como interessados os aqui AA., seus filhos.

50. Este processo teve como finalidade a partilha de bens devida pelo facto de DD ter sido anteriormente casado com EE, mãe dos aqui AA., a qual veio a falecer no dia ...-10-2009.

51. DD queixava-se à R. que os seus filhos, em especial o filho AA, aqui A., já tinha em bens e saldos de depósitos recebidos, o triplo do que lhe era devido por aquela herança, entre objetos e outros bens, um depósito de 30.000,00€ efetuado em Dezembro de 2013 ou Janeiro de 2014, numa conta do A. AA, no BCP com o NIB: ... ... .... .... ...89.

52. DD depositou à ordem daquele processo de inventário a quantia de € 25.449,88, a favor do aqui A. e seu filho AA (€ 12.724,94) e da aqui A. e sua filha BB (€ 12.724,94).

53. Na sequência do referido processo de inventário do Tribunal de Oeiras e, como DD se queixava à R. de que seus filhos, em especial o filho AA, aqui A., já tinham em bens e depósitos monetários recebido mais do que lhes era devido pela herança cujo Inventário correu naquele Tribunal, fez em 01/10/2014 um testamento a favor da aqui R., onde declarou: “…Que é casado no regime da separação de bens com CC, natural da freguesia de ... do concelho de ..., titular do Cartão de Cidadão número ......07, válido até ... de ... de 2017, contribuinte número ... ... .50.__________________________________ Que tem dois filhos de anterior matrimónio.___________________________________ Pelo presente testamento deixa, por conta da sua quota disponível e com dispensa de colação, a sua referida mulher e sucessivamente a GG, única filha de sua mulher o usufruto vitalício de todos os bens imóveis que lhe forem atribuídos no inventário por óbito da sua primeira mulher EE. cujo processo corre termos pelo primeiro Juízo Cível da Comarca de ... sob o n.0 2817/12.4..., sendo a parte remanescente da quota disponível preenchida com outros bens da herança______________________________________ Esta disposição mantêm-se na hipótese de a partilha ainda não estar concretizada na data do óbito do testador, uma vez que, nos termos legais, designadamente do Art. 21190 do CC os efeitos patrimoniais dessa partilha retroagem à data da abertura da herança, coincidente, aliás, com a data do óbito da autora da sucessão, referida EE, devendo o inventário prosseguir para todos os efeitos, designadamente para determinação dos imóveis que integram a parte que, nessa herança, compete ao testador. É vontade do testador que não seja dada qualquer publicidade à sua morte, não devendo ser publicados anúncios de qualquer natureza. A morte deve ser exclusivamente comunicada a sua irmã HH, desde que esta se obrigue a não a divulgar, sendo vontade expressa do testador que os seus filhos BB e AA e mulher deste II não sejam informados, nem participem nas cerimónias fúnebres._____________________ Em caso de doença que impeça o testador de comunicar, ou de comunicar de forma consciente e lúcida, deverão todas as decisões ser exclusivamente tomadas por sua mulher, com exclusão de quaisquer outras pessoas, nomeadamente de familiares ainda que próximos, designadamente filhos e nora.__________________________________ Nomeia testamenteira sua mulher GG que ficará com o encargo de cumprir e fazer cumprir todas as disposições deste testamento…”.

54. No dia 25/05/2017, a aqui R. fez um testamento a favor de DD, revogado em 12 de Outubro de 2020, pelo qual e segundo a sua vontade livremente expressa, declarou: “ ( …/…) E por ela foi dito: Que não tem ascendentes vivos mas tem descendentes. Que, deixa por conta da quota disponível ao seu referido marido DD, natural da freguesia e concelho de ..., o usufruto do imóvel, que constitui a atual residência dos mesmos e que o institui também herdeiro do remanescente da sua quota disponível Declarou ainda a outorgante: - É sua vontade que o seu caixão seja singelo e simples, que o corpo não seja sujeito a exposição pública, permanecendo o caixão fechado durante o velório, podendo o corpo 'ser visto exclusivamente por seu marido e filha - É ainda desejo da testadora que à missa de corpo presente assistam o marido, filha e amigos, devendo ser excluídos das cerimónias fúnebres (velório, missa de corpo presente e cremação) os irmãos, cunhados e sobrinhos, os quais também não deverão ser informados da morte da testadora. - O seu corpo deve ser cremado. Que se seu marido lhe sobreviver é sua vontade que as questões patrimoniais relativas à herança sejam tratadas de acordo com o que a lei estabelecer, com cordialidade e bom senso, que seu marido nunca seja entregue a um lar, por melhor que seja ou pareça, e que sua filha o ajude e ampare, prestando-lhe a assistência necessária, proporcionando-lhe a melhor qualidade de vida possível na medida das suas reais possibilidades e capacidades. - Nomeia testamenteira sua filha GG que ficará com o encargo de cumprir todas as disposições deste testamento. Que revoga expressamente o testamento outorgado neste cartório no dia um de outubro de dois mil e catorze, lavrado a folhas trinta e seis do livro de testamentos …

55. Em face das circunstâncias já referidas em 53, DD voltou em 15/10/2018 a fazer novo testamento a favor da aqui R., no qual declarou: “Que revoga expressamente todo e qualquer testamento, nomeadamente o testamento outorgado neste Cartório Notarial em um de outubro de dois mil e catorze, a folhas trinta e quatro do Livro Dezasseis-T. Que não tem ascendentes vivos, mas que tem descendentes. Que institui herdeira da sua quota disponível a sua referida mulher CC, natural da freguesia de ... e concelho ... consigo residente. Que se a sua mulher não lhe sobreviver institui herdeira da sua quota disponível GG, única filha de sua mulher, natural da freguesia de ..., concelho de ..., solteira, maior, residente na Praceta ... 4, 30 esquerdo, .... É vontade do testador que não seja dada qualquer publicidade à sua morte, não devendo ser publicados anúncio de qualquer natureza e que os seus filhos BB e AA e mulher deste II, bem como os filhos de ambos, não sejam informados, nem participem nas cerimónias fúnebres. Em caso de doença que impeça o testador de comunicar, ou de e comunicar de forma consciente e lúcida, deverão todas as decisões ser exclusivamente tomadas por sua mulher, com exclusão de quaisquer outras pessoas, nomeadamente familiares, ainda que próximos, nora…”.

56. DD e a Ré não possuíam liquidez suficiente para: “poderem cumprir com a decisão do Tribunal de Oeiras, no processo de Partilhas em que o primeiro é cabeça de casal.”.

56-a) Por isso, um Ilustre Advogado, emprestou por essa altura a DD e à R. CC, a quantia de € 25.449,88 com o fim de aquele poder satisfazer e cumprir a decisão do Tribunal de Oeiras.

56-b) Tendo redigido e assinado em 24/09/2015 uma ”Declaração de Honra” onde, ambos, se reconheciam devedores daquela quantia e entregavam como garantia um cheque sobre a conta da R. no valor de 25.229,88 €, ficando a filha da aqui R., de nome GG, de se fazer “executar” caso viesse a subsistir uma eventual impossibilidade de os Declarantes cumprirem com a sua palavra.

57. A mágoa e receio de ser obrigado a dar a seus filhos mais bens ou dinheiro, fez com que DD não mantivesse bens em seu nome, nomeadamente, imóveis ou contas e saldos de depósitos bancários.

58. Razão pela qual fazia transferências de contas bancárias suas, para contas que abria com aquele fim.

59. O casal levava uma vida harmoniosa e, sempre que DD se ausentava, deixava recado escrito a sua mulher, aqui Ré.

60. A R. teve de ser submetida a uma cirurgia a qual já era adiada há dois anos, tendo para o efeito sido internada na Clínica ... em ... no dia .../02/2020.

61. A esta altura DD tinha 85 anos de idade, já apresentava sinais de demência e de parkinsonismo, para além de outras doenças.

62. Como forma de precaver o período anterior e posterior à cirurgia da R., por escolha de DD, ficou na qualidade de “passante” (estadia temporária) e pelo tempo em que a R. se restabelecia da cirurgia, a residir apenas por esse período na “Casa ...” em ....

63. No dia .../02/2020, antes de DD completar um mês de permanência na residência sénior, a R. foi buscá-lo, com a sua filha que, aprontou as malas para o trazer para a casa.

64. Por essa altura DD “fugiu” do quarto onde se encontrava na “Casa ...”.

65. Após o que anteriormente ficou dito, DD telefonava com periodicidade não apurada à Ré, a dizer que o fosse buscar para com ela voltar para casa.

66. Durante a vida de casal não confecionavam comida em sua casa.

67. Almoçavam e jantavam fora, em bons restaurantes ou mandavam vir comida já confecionada.

68. Até 2019 viajavam três a quatro vezes por ano, por períodos de cerca de 15 dias, ficando hospedados em Pousadas e outros locais não concretamente apurados e comendo sempre fora.

69. As despesas pagas por DD respeitavam a consumos e serviços de que ele também usufruía.

70. O que sempre originou despesas mensais avultadas que DD impunha ser ele próprio a pagar, com o dinheiro seu, das suas contas e com o dinheiro transferido para as contas da Ré.

70-a) DD usava e vestia roupas de algumas marcas, designadamente Massimo Dutti e Quebramar.

71. Eliminado.

72. O facto de as transferências terem ocorrido para contas com saldo de zeros euros, deve-se a essas contas terem sido abertas precisamente na data dessas operações bancárias e para receberem esses dinheiros como saldo inicial, tudo por ordem de DD, e por ter mau relacionamento com seus filhos, aqui Autores.

72-a) Para além do referido em 36 a 39, tudo o que foi assinado pela R. e não por DD, foi-o na sua presença e com o seu total conhecimento e aprovação, baseado sempre nos factos e decisões que o mesmo tomara em função das atitudes e comportamentos de seus herdeiros, aqui AA., relativos ao Processo de Inventário (Herança) que correu no Tribunal de Oeiras

73. DD e a Ré desde data do seu casamento em .../11/2011, passaram a viver em ... numa casa situada na Praceta ..., nº 4 – 3º Esq., propriedade da filha da aqui R., de nome: GG, que, aliás, era a morada fiscal do cônjuge marido.

74. Por razões profissionais, ao tempo, a filha da R. não utilizava aquela casa.

75. Em 30/07/2013, DD decidiu comprar uma casa situada também em ..., na Rua ..., nº 24, 3º Esq, casa que ficou registada somente em nome da R. por determinação de DD, por nada querer deixar por sua morte a seus filhos, aqui Autores, entendendo para isso que não poderia ter imóveis ou contas e saldos bancários em seu nome.

75.a) DD decidiu que, quando a filha da R. regressasse não queria continuar a viver naquela casa que não pertencia ao casal, isto por razões de privacidade mútua, quer do casal, quer da sua enteada.

76. No entanto, DD que já tinha na casa da Praceta ... grande parte da sua biblioteca, escritório e outros bens pessoais e já não queria fazer mais mudanças, chegou a acordo com a sua entenda no sentido de o casal continuar a viver naquela casa (da Praceta ...) e ser a filha da R. a ir viver para a casa comprada e situada na Rua ..., também em ....

77. A casa da Rua ... em ..., foi vendida em data não apurada.

78. A casa da Rua ..., nº 5, 6º Esq. em ..., foi decidida comprar, também, por DD.

79. Em 14/04/2016, a ré abriu uma outra conta no CA Agrícola de ... tendo para essa nova conta feita uma transferência de 85.347,92 €.

80. DD foi proprietário de um veículo automóvel de marca “Honda Civic 1.8”, com a matrícula ..-FI-.., até 26.04.2016.

81. Tal veículo foi dado como entrada para a compra de um outro, marca Peugeot, de matrícula ..-RF-...

82. O veículo de marca VolksWagem Tiguan, com a matrícula ..-RZ-.., foi decidido comprar, também, por DD.

83. Pelas razões, além do mais, de nada querer deixar aos seus filhos, DD, além do mais, decidiu que os veículos ficariam registados somente em nome da Ré.

Não provados:

A. Que o somatório dos valores referidos em 44 e 45 corresponde ao preço da compra de um veículo automóvel de marca Volkswagen Tiguan, de matrícula ..-RZ-...

A. 2) Que o eventual benefício de terceiro a que se alude em 31- a) ocorreu por instâncias da R.

A-3) Que as deslocações patrimoniais aludidas em 21, 26, 27, 35, 41, 42, 47 e 48, não tiveram qualquer contraprestação.

B) Que do saldo referido em 47, para além da quantia referida em 48-a) o mesmo pertencia exclusivamente a DD.

C) Que já em 07/10/2012 DD tinha redigido um texto a que chamou de “AS MINHAS ÚLTIMAS VONTADES” em tudo semelhante aos seus testamentos acima identificados.

D) Que aquando do facto do ponto 63, DD estava numa das suas alucinações e agrediu a R.

E) Que na sequência dos factos dos pontos 63/4, veio o filho AA, que levou o seu pai a almoçar.

F) Que, após este episódio, a R. telefonou e enviou mensagens, repetidamente, durante cerca de três a quatro horas, mas DD nunca atendeu o telefone.

G) Que a partir do facto do 64, DD recusou-se a ver e a falar pessoalmente com a Ré na “Casa ...”, não obstante telefonar três a quatro vezes por dia, dizendo que sentia muito a sua falta e que precisava dela.

H) Que, na sequência do facto referido em 65, a R. aprontava tudo para ir o buscar.

I) Que a ré sempre acedeu aos seus pedidos, contudo, quando se aproximava o dia de deixar a “Casa ...”, seu marido recuava, amedrontado, afirmando que o filho AA o não deixava sair dali com ninguém, para além dele próprio, mas que também o não queria em sua casa e por isso não o tirava dali, onde dizia sentir-se preso.

J) Que mais dizia DD que o filho AA tinha-lhe prometido que o levaria para sua casa, mas que depois dizia que não tinha espaço para o pai, bem como a filha BB, aqui A., que invocava as mesmas razões.

K) Que soube posteriormente a R., pelo Advogado de DD, que este a acusava de ter um amante, razão pela qual queria divorciar-se da Ré.

L) Que os hotéis onde o casal ficava hospedado nas suas viagens, fossem de 4 ou 5 estrelas, designadamente: Pousada do Alvito, Pousada dos Loios/ Convento de Évora, M'Ar de Ar Aqueduto, M'Ar de Ar Muralhas (Évora), Convento do Espinheiro, Naturarte Rio (Vila Nova de Milfontes), Encosta do Castelo (Portel), Hotel D. Vasco (Estremoz), Pestana Alvor Praia, Pestana Blue Alvor, D. Pedro Vilamoura, Hotel Quinta do Lago, DunaMar Hotel Apartamento, Eurotel Altura, Hotel Faro e Beach Club, Vila Park (Santo André), Hotel Flôr de Sal ( Viana do Castelo), Pousada de Viana do Castelo, Casa Melo Alvim (VC), Carmo's Boutique Hotel (P. L.), Cerquido Village e Spa (P.L.), Mercearia da Vila (P.L.), Pousada do Marvão, Sheraton Porto, Ericeira,Vila Galé, Hotel do Parque- Congress e SPA (S. Pedro do Sul), Casa da Figueira Grande(Penamacor), Hotel São Bento da Porta Aberta (Gerês), entre outros.

M) Que, quando viajavam, comiam sempre em restaurantes caros.

N) Que DD usava e vestia de roupas de marcas conceituadas e caras, quer em roupa exterior quer em roupa interior, bem como usava óculos, gravatas, sapatos, e perfumes de marcas caras como: Dolce Gabbana, Hugo Boss, Calvin Klein, Dim, Calcedónia, Gant, Lacoste, Nike, RockPort, Polaroid, Rayban, Pierre Cardin, El Corte Inglês, Paris em Lisboa, Geox, Levis, Benetton, Loja das Meias, entre outras.

N-1) Que a Ré não usava nem consumia bens daquela natureza e custo, mas sim de origem e custos bem mais modestos.

O) Eliminado

P) Eliminado.

Q) Que da quantia a que se alude em 26, parte serviu para pagar a um Senhor Advogado que adiantou dinheiro para que o falecido cumprisse com a decisão do processo de inventário anteriormente referido. O remanescente foi utilizado para outros gastos e viagens de que também DD usufruiu.

R) Que o cheque no valor de 25.449,88€ dado como garantia ao Ilustre Advogado que emprestou igual quantia, era um cheque de uma conta bancária pertencente somente à Ré.

S) Que à escritura de compra e venda realizada no dia 30/07/2013 assistiu e esteve presente DD.

T) Que a casa da Rua ... em ... foi vendida em 14.09.2016, por decisão única de DD.

U) Que a aquisição da casa a que se refere em 78 tenha ocorrido nas condições impostas pelo falecido.

V) Que a casa do ... foi vendida porque o falecido a tinha sempre fechada e nunca a utilizava nas suas muitas férias por entender ser muito trabalhoso e consumir bastante tempo a limpeza e manutenção do imóvel, preferindo sempre alojar-se em hotéis quando àquela região se deslocava ou ia passear férias.

W) Que a transferência referida em 79 foi feita já que os balcões deste banco não comunicavam entre si e a conta inicial dependia de ....

X) que a Ré não sabia das contas e dos movimentos realizados por seu ex-marido, que apenas lhe comunicava quando saía sozinho, que ia ao Banco, com a mesma naturalidade que a informava de que ia comprar maçãs.

Y) Que foi o falecido quem maioritariamente usufruiu dos consumos e serviços pagos com o seu dinheiro.

Z) Que a Ré só através do Procedimento Cautelar nº 5366/20.3... que corre no Juízo Central Cível de ..., Juiz 2, tomou conhecimento da existência de conta conjunta, na CGD, em nome de DD e seu filho, AA.

AA) Que os levantamentos/transferências referidos nos pontos 37 a 39 e bem assim as mais importâncias transferidas para a esfera patrimonial da Ré, visaram pagamentos de despesas com medicamentos, consultas médicas e outros bens para uso exclusivo de DD, assim como ao pagamento de despesas e mensalidades referentes à estadia deste na “Casa ...”.

BB) Que a decisão de compra do veículo referido em 46 e bem assim o facto de o mesmo ter ficado em nome da Ré foi da exclusiva lavra do falecido.


*


Resolução das questões:

O presente recurso tem por objecto a parte do acórdão da Relação de Évora que julgou improcedente a impugnação dos seguintes segmentos da decisão proferida em 1.ª instância, relativa à matéria de facto:

• Do que julgou provado o facto discriminado sob o n.º 48-a);

• Do que julgou não provado, sob a alínea B), que do saldo referido em 47, para além da quantia referida em 48-a), o mesmo pertencia exclusivamente a DD;

• Do que julgou provado os factos discriminados sob os números 67.º, 68.º, 70.º;

• Do que julgou provado o facto discriminado sob o n.º 31-a)

• Do que julgou não provado, sob a alínea A), que o somatório dos valores referidos em 44 e 45 corresponde ao preço da compra de um veículo automóvel de marca Volkswagen Tiguan, de matrícula ..-RZ-...

Os recorrentes insurgem-se ainda contra a decisão da Relação de não aditar aos factos julgados não provados parte da matéria que alegada no artigo 94.º da contestação.

A crítica que desferem ao acórdão é, em síntese, a seguinte:

• O acórdão não se pronunciou sobre a impugnação da decisão de julgar provados os factos discriminados sob os números 48-a) e 31 a), nem sobre a introdução de novos factos sob o n.º 45 [nota: estes novos factos são os que foram julgados não provados sob a alínea A)];

• Caso se entendesse que se pronunciou sobre eles, então teria de entender-se que a decisão de manter inalterados os pontos números 48-a) e 31 a) e a de não julgar provada a matéria da alínea A) são completamente omissas quanto à sua fundamentação;

• O acórdão manteve inalterados os pontos de facto números 67, 68 e 70, mas não formou nem formulou qualquer pronúncia própria sobre eles, o que violava o artigo 662.º do CPC;

• O recurso da decisão relativa à matéria de facto visa garantir o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e a Relação, no julgamento do recurso, tem o dever de formar e formular uma convicção própria sobre a prova produzida e sobre a matéria de facto controvertida, não podendo, tal julgamento, traduzir-se em meras considerações genéricas;

• O tribunal da Relação de Évora não formou uma convicção própria sobre a prova produzida, antes se remeteu a considerações genéricas.

Como se escreveu acima, não se pode dizer que o acórdão da Relação incorreu em omissão de pronúncia nem que a decisão sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto seja totalmente omissa quanto à sua fundamentação.

A questão que a pretensão dos recorrentes suscita [referimo-nos à pretensão de anulação do acórdão por violação do disposto o artigo 662.º do CPC e o reenvio do processo ao tribunal da Relação para que proceda à reapreciação de cada um dos pontos da matéria de facto impugnados de acordo com os ditames do artigo 662.º do CPC] é a de saber se a fundamentação da decisão sobre a impugnação está em conformidade com as exigências da lei processual.

A resposta a esta questão remete-nos, antes de mais, para o regime do julgamento da impugnação da decisão proferida em 1.ª instância relativamente à matéria de facto.

O Código de Processo Civil refere-se à impugnação da decisão relativa à matéria de facto no artigo 640.º, especificando os ónus a cargo do recorrente e as consequências do seu incumprimento.

O artigo 662.º do mesmo diploma, dispõe sobre a modificação da decisão de facto pela Relação.

Os n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, aplicáveis ao acórdão proferido em sede de apelação, por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC, versam, no essencial, sobre a fundamentação da decisão de facto e sobre os critérios que presidem à apreciação das provas.

Destes preceitos decorre que o Tribunal da Relação dispõe de amplos poderes de reapreciação da matéria de facto impugnada, como decorre com clareza da proposta de Lei n.º 13/XII que esteve na origem da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil em vigor. Tais poderes têm em vista permitir à Relação alcançar a verdade material e formar e formular a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados. A formação desta convicção está sujeita às mesmas exigências da formação da convicção do juiz da 1.ª instância, concretamente trata-se de uma convicção assente no exame crítico das provas, devendo o juiz especificar os fundamentos que foram decisivos para declarar um facto provado ou não provado.

Resulta dos preceitos acima indicados que, como sustentam os recorrentes, a reapreciação das provas pelo tribunal da Relação visa a formação e a formulação de uma convicção própria, autónoma, sobre os pontos da matéria de facto impugnados e que é, por referência a tal convicção, que a decisão da 1.ª instância será mantida ou alterada, total ou parcialmente. E para a formação de tal convicção própria é dever da Relação examinar criticamente as provas produzidas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC).

É, assim, de afastar a interpretação restritiva dos poderes da Relação em matéria de facto, segundo a qual ao tribunal de recurso cabia tão só controlar a racionalidade da motivação da decisão proferida em primeira instância, averiguando designadamente se a tal motivação era razoável, obedecia às regras da experiência e era compatível com a prova produzida.

Em abono da interpretação dos preceitos acima indicados sobre os poderes da Relação em matéria de facto citam-se a título de exemplo os seguintes acórdãos do STJ: acórdão do STJ de 11-02-2016, processo n.º 907/13.5TBPTG.E1.S1, acórdão do STJ de 7-09-2017, processo n.º 959/09.2TVLSB.L1S1, acórdão do STJ proferido em 21-09-2017, processo n.º 526/14.9TBCNT.C1.S1. acórdão do STJ proferido em 16-12-2020, processo n.º 4016/13.9TBVNG.P1.S3, acórdão do STJ de 7-06-2022, processo n.º 6138718.0T8VNG.P1.S1, todos publicados em www.dgsi. Na doutrina e a título meramente exemplificativo citam-se Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, página 332, 6.º Edição Atualizada, Almedina, Miguel Teixeira de Sousa, Prova, Poderes da Relação: a lição da epistemologia, Cadernos de Direito privado, n.º 44, páginas 33 a 36.

Importa, no entanto, precisar o seguinte sobre as provas produzidas cuja reapreciação compete à Relação.

Não resulta dos preceitos acima expostos que, quando seja confrontada com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, a Relação tenha o dever de reapreciar toda a prova produzida no processo. O que resulta deles, especialmente do artigo 640.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea b), e das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 662.º do mesmo diploma é que, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, o dever que impende sobre a Relação, em matéria de reapreciação da prova produzida, é o de reapreciar os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas e os meios de prova designados pelo recorrido que, no entender dele, infirmem as conclusões do recorrente.

Interpretados os poderes/deveres da Relação em matéria de julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, com o sentido e o alcance expostos, cabe responder à questão de saber se o acórdão recorrido observou tais deveres na reapreciação da matéria de facto.

A resposta a esta questão implica que se comece por expor em que termos é que os apelantes, ora recorrentes, impugnaram a decisão de facto.

Comecemos pela impugnação do segmento da decisão do tribunal da 1.ª instância que julgou provado sob o n.º 48.º-A: a seguinte realidade: “Da importância referida em 47 – 69 817 44 euros depositados numa conta do falecido no BCP – apenas 6630 euros pertenciam exclusivamente a DD”.

Os recorrentes pediram a alteração da decisão no sentido de se julgar provado “que o saldo referido em 47 pertencia exclusivamente a DD”.

Mais pediram, como consequência lógica da alteração, a eliminação da alínea B) dos factos julgados não provados, ou seja, que “do saldo referido em 47, para além da quantia referida em 48.º-A, o mesmo pertencia exclusivamente a DD”.

Para o caso de não proceder a pretensão anterior, pediram se julgasse provado que “do saldo de 69 817,44 euros, constante da conta n.º .........96, sediada no Millenium BCP, no dia 27-11-2016, pelo menos 38 223,72 pertencia ao Dr. DD”.

A pretensão dos recorrentes assentou na seguinte fundamentação:

Os AA. haviam alegado na petição inicial (artigos 54.º a 56) que o saldo naquela conta a 27.11.2016 pertencia exclusivamente ao Dr. DD, de sorte que, com a desvinculação, este teria feito à R. uma doação de 69.817,44€;

Na parte da sua contestação (v. artigo 91.º) em que a R. se pronuncia sobre esta factualidade, fá-lo para dizer o seguinte: “O constante do artº 56º da P.I. continua a ter como razão e objectivo o que se tem vindo sistematicamente a referir, ou seja, DD nada quereria, por sua morte, deixar a seus filhos, aqui Autores”;

Ou seja: a R. em parte alguma negou/impugnou que o saldo da conta n.º .........96, sediada no Millennium BCP, fosse, à data em que o Dr. DD se desvinculou da mesma, pertença exclusiva deste;

Na verdade, implicitamente, aceitou este facto, tendo apenas justificado esta conduta com o propósito, do Dr. DD, de esvaziar a sua futura herança;

Mas estas razões são irrelevantes para decidir se o facto em causa se considera provado ou não provado;

Ora, o artigo 574.º/2 CPC e a conduta processual da R. impõem, por conseguinte, que se considere admitido por acordo que o saldo bancário acima mencionado constituía bem próprio do Dr. DD;

Sem conceder, e apenas por cautela de patrocínio, caso não proceda a argumentação que acaba de se expender, sempre teria de ser considerado provado que, do saldo de 69.817,44€ constante da conta n.º .........96, sediada no Millennium BCP, no dia 27.11.2016, pelo menos 38.223,72€ pertenciam ao Dr. DD;

Contabilizando as entradas e saídas de dinheiro na referida conta que se encontram provadas (são os factos n.s 24 a 29 e 43 e 44), chegou o Tribunal a quo à conclusão que desta prova documental resultava que, em 28.11.2016, quando o Dr. DD se desvinculou da aludida conta, do saldo de 69.871,44€ somente 6.630€ eram bem próprio do Dr. DD;

Ora, se em 28.11.2016 os únicos titulares da conta eram o Dr. DD e a ré e se, nessa data, o saldo da conta era 69.817,44€. 30 e se esquecendo que a ré admitiu que todo esse saldo pertencia exclusivamente ao Dr. DD, pretendêssemos dizer que, à luz da prova documental produzida, apenas 6.630€ constituíam inequivocamente um bem próprio do Dr. DD, afigurar-se-ia então premente esclarecer a quem pertenciam os 63.187,44€ sobejantes;

Perante a insuficiência da prova documental para esclarecer este aspeto, a conclusão que se impõe é que metade dos 63.187,44€ pertencia ao Dr. DD e a outra metade à R”.

Passemos de seguida à impugnação da decisão de julgar provados os factos discriminados sob os números 67, 68 e 70, concretamente:

Almoçavam e jantavam fora, em bons restaurantes ou mandavam vir comida já confeccionada;

Até 2019, viajavam três a quatro vezes por ano, por períodos de cerca de 15 dias, ficando hospedados em pousadas e outros locais não concretamente apurados e comendo sempre fora;

O que sempre originou despesas avultadas que DD impunha ser ele próprio a pagar, com dinheiro seu, das duas contas e com o dinheiro transferido para as contas da ré.

Os recorrentes pediram se julgassem não provados estes factos e ainda a seguinte alegação feita sob o artigo 94.º da contestação: “as quantias que agora os autores reclamam serviram para pagar, no essencial, consumos e gastos relativos à vida daquele e de só ele beneficiava, assim como viagens, refeições e hotéis programados por DD para si, ou para a vida do casal, e que fazia todo o gosto e impunha ser ele, maioritariamente, a custear e pagar”.

Para tanto alegaram o seguinte:

“A versão inicial destes factos é a que consta dos artigos 36.º a 51.º da contestação da R. Nesta versão, porém, a R. identifica locais e lugares, hotéis e pousadas onde o dinheiro teria sido gasto. Factos estes que, sublinhe-se, foram todos considerados não provados: v. alíneas L), M) e N) da lista dos factos não provados.

Em determinada altura do processo, o Tribunal a quo terá considerado, e bem, que era incompleta e insuficiente a alegação dos artigos 36.º a 51.º da contestação.

Com efeito, após a fase dos articulados, a R. foi convidada a aperfeiçoar a contestação, apresentando prova dos factos alegados nos respetivos artigos 36.º a 51.º, por despacho de 14.09.2021 (ref. CITIUS ......20) com o seguinte teor: “Ao abrigo do disposto no art.º 590º, nºs 2, al. b) e 3 do CPC, convido a R. a indicar quais as viagens que realizou com o falecido, em que anos e meses ocorreram e quais os montantes despendidos em cada uma delas, com indicação do local onde ficaram hospedados e dos montantes pagos. Outrossim deverá indicar em concreto as outras despesas relevantes do falecido, designadamente com roupa e refeições e esclarecer qual o montante da pensão de reforma que o mesmo auferia e em que é que esse dinheiro era empregue, designadamente quais os encargos mensais que tinha de satisfazer.

A ré veio pedir a prorrogação do prazo de 20 dias para responder ao convite, com a seguinte justificação: “ainda não foi possível reunir toda a informação pretendida e já solicitada, nomeadamente, o pedido de documentos bancários que, presume-se, não deverão ser entregues nos próximos dez dias” (v. requerimento apresentado em 19.10.2021 com a ref. CITIUS ......68).

Em 15.11.2021 (ref. CITIUS ......46), a R. veio pedir novamente prorrogação do prazo para apresentar os documentos que comprovassem as referidas despesas, com o seguinte argumentário: “A R. continua a solicitar dados bancários e contabilísticos que lhe permitam melhor concretizar o convite endereçado à R. por via do despacho com a Ref. 93039020, concretização essa que se quer apoiada na máxima documentação possível, o que, reconhecidamente leva tempo a obter. A Ré está próxima de poder utilizar documentação que lhe permita melhor concretizar alguns factos por si alegados, mas continua ainda à espera de declarações de entidades bancárias e outras, pelo que, de momento, pouco mais poderá acrescentar, sendo certo que alguns dos pedidos feitos a essas entidades bancárias, por se referirem, entre outos, ao ano de 2012, portanto informações com cerca de oito anos, estão a levar tempo compreensível a serem entregues e esclarecidas.”

Na audiência prévia ocorrida no dia 11.03.2022, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo voltou a perguntar ao mandatário da R. se estaria interessado em responder ao convite ao aperfeiçoamento.

Nesta data, o mandatário da R. repetiu que não estava em condições de proceder ao aperfeiçoamento da contestação (cf. minutos 1:09 – 3:00 da gravação da audiência prévia).

Ou seja, até março/2022, a R. não só insistia na tese de que as transferências patrimoniais da esfera jurídica do Dr. DD para a sua tinham sido despendidas em viagens, refeições e roupa, como propunha comprovar tais despesas com informação bancária, o que implicaria que essas despesas tivessem sido pagas com um cartão multibanco ou por transferência bancária.

A R., como resulta dos autos e dos factos não provados, jamais conseguiu juntar um documento que fosse que comprovasse as suas alegações quanto ao destino do dinheiro.

Perante esta circunstância, a R. decidiu alterar a trajetória da sua história, o que fez através das testemunhas que arrolou, passando a sustentar que, afinal, todas as despesas foram pagas em numerário pelo Dr. DD.

A testemunha que introduz esta teoria é a Senhora GG, filha da R., a qual veio dizer que o Dr. DD pagava tudo em numerário (minutos 15:45 – 18:45 da gravação do depoimento).

A mudança de rumo é ostensivamente habilidosa, mas simultaneamente pueril, quase infantil (como se de uma criança tentando engar os pais se tratasse). Aliás, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo confrontou a testemunha GG com a inverosimilhança do seu relato (cf. minutos 17:10 – 18:45 da gravação do depoimento). Pelos vistos, no momento da sentença, incompreensivelmente, ter- -se-á convencido da veracidade de um depoimento integralmente disparatado.

Nas suas declarações de parte, porém, a R. tanto disse que o Dr. DD pagava as despesas com numerário, como disse que as pagava utilizando os cartões bancários da própria R. (minutos 56:00 – 56:45).

Perante esta absoluta incapacidade para aperfeiçoar a contestação e de juntar um único documento que atestasse as milionárias viagens e refeições, pensar-se-ia que a posição da R. estaria comprometida, parecia perigar seriamente a possibilidade de se julgar provado o alegado nos factos 36.º a 51.º da contestação.

Atendendo ao dispositivo da sentença ora em crise, dir-se-ia que aquela dificuldade foi ultrapassada por depoimentos testemunhais precisos, credíveis e informativos. Depoimentos, pensar-se--ia, que permitiram ao Tribunal a quo ultrapassar as múltiplas insuficiências que, na fase do saneamento, identificou na contestação. A entender-se de outro modo a contradição seria evidente.

E a contradição é mesmo evidente: o Tribunal a quo, fundando a sua convicção em depoimentos inverosímeis, por vezes até caricatos, decidiu considerar provada uma versão simplificada, sincopada e ainda mais vaga dos factos alegados nos artigos 36.º a 51.º da contestação, quais seja os factos provados n.os 67, 68 e 70. Vejamos.

Comecemos pelos factos provados n.ºs 67 e 68. Quanto a serem bons os restaurantes onde almoçavam e jantavam o Dr. DD e a R. e fazerem, estes, férias 3 ou 4 vezes por ano, por períodos de 15 dias, fundou o Tribunal a quo a sua convicção nas declarações da R., no depoimento de JJ, GG (filha da R.) e KK (p. 24 da sentença).

A testemunha JJ, quanto às supostas viagens, destinos, frequências e duração das mesmas, reconheceu (minutos 33:25 – 34:00) que nunca acompanhou o Dr. DD e a R. a pousadas ou viagens, pelo que tudo o que disse saber foi-lhe contado pela R. e pelo Dr. DD.

Esta mesma testemunha, quanto aos restaurantes frequentados pelo Dr. DD e pela R. disse o seguinte (11:55 – 12:40): “O Senhor Dr. não era pessoa que comesse em grande abundância, mas era pessoa que gostava de variedade e de um certo requinte, portanto eu suponho que frequentassem coisas de qualidade”. De modo que a testemunha JJ apenas supõe, presume, mas não sabe, se eram bons ou maus, caros ou económicos, os restaurantes em que supostamente se alimentavam o Dr. DD e a R.

Ou seja, o Senhor JJ é uma testemunha sem qualquer conhecimento direto dos factos que o Tribunal a quo considerou provados.

A testemunha GG, que é filha da R., foi autora de um depoimento assaz caricato, cuja credibilidade ficou ferida pela forma atabalhoada e incoerente do relato.

No que toca aos restaurantes frequentados pelo Dr. DD e pela R., a instâncias do Ilustre Mandatário da R., que perguntou de que tipo eram os restaurantes em causa, disse GG o seguinte: “Eram aqueles da Avenida ..., aqueles caros. Era aqueles assim com muitos copos em cima da mesa e muitos talheres” (minutos 13:14 – 13:40). Mas não nomeou um que fosse.

Quanto aos hotéis efetivamente frequentados pelo Dr. DD e pela R., disse que os mesmos eram sempre muito luxuosos. Todavia, acabou por reconhecer que era a mãe quem lhe relatava esta informação (minutos 14:30 – 15:15 da gravação do depoimento).

De modo que esta testemunha também não tem conhecimento direto dos factos que, com base no seu depoimento, o tribunal considerou provados.

Finalmente, KK afirmou que, em conversa com o casal (Dr. DD e R.), ficou a saber que estes viajavam, mas não pôde precisar quantas vezes viajaram nem a que locais iriam (minutos 1:50 – 3:24 da gravação do depoimento). Porquanto a testemunha pouco ou nada sabia, o depoimento enveredou, depois, por um estranho caminho, em que a testemunha, que é engenheiro e trabalha numa fábrica, foi convidada a dizer quanto poderia custar a diária numa pousada…

Quanto ao facto vertido no n.º 70, nos termos do qual o Dr. DD suportava todas as avultadas despesas realizadas pelo casal, fundou o Tribunal a quo a sua convicção no depoimento de GG, de KK e LL (p. 25 da sentença).

Quanto ao depoimento de GG, filha da R., não adianta insistir no óbvio para quem ouça os 38 minutos e 7 segundos que o mesmo durou: trata-se de um relato desconexo, repleto de histórias mirabolantes, que envolvem baratas, ratos, e que o Dr. DD lhe fazia lembrar, no modo como lidava com o dinheiro, os feirantes de ...… Não pode merecer qualquer credibilidade.

KK nada disse com relevância a respeito de quem suportava as despesas, com exceção do seguinte excerto (minutos 10:00 – 11:00 da gravação do depoimento) “Cafés, eu não vou discutir. O DD chegava-se sempre à frente. Por duas vezes” Ao que a Meritíssima Juiz perguntou “E não reparou se pagou com dinheiro ou com cartão?”. Respondeu: “Não reparei. Sinceramente, era ser incorreto. Depende da despesa, não é? Ele sendo da velha guarda, sei que não gostam muito dos cartões e gostam de exibir um bocado o dinheiro. Compreendo isso.” Portanto e em resumo: o Dr. DD pagou dois cafés ao Senhor KK; o Senhor KK disse que não sabia se o Dr. DD pagava as contas com cartão ou com dinheiro, mas que lhe parecia uma pessoa da velha guarda (seja lá isto que for). Com base neste depoimento oco, vazio, que é mais uma conversa de café do que um depoimento prestado em juízo, concluiu o Tribunal a quo que o Dr. DD suportava todas as despesas realizadas pelo casal!

Mas esta mesma testemunha (minuto 5:00 – 7:40 da gravação do depoimento) relatou que, tendo a filha da R., GG, precisado de dinheiro, foi o próprio KK quem lho emprestou, e não o Dr. DD. Quis esta testemunha desagravar a imagem segundo a qual a R. se estaria aproveitando financeiramente do Dr. DD, mas acabou por cometer a infelicidade de sugerir que, afinal, o Dr. DD não era assim tão generoso e perdulário.

A Senhora LL realizou igualmente um depoimento inverosímil. Contou admiráveis histórias sobre o despesismo do Dr. DD: num certo almoço, o Dr. DD deixou 100€ de gorjeta (minutos 6:45 – 7:10 e 17:50 – 19:30 da gravação do depoimento), deu 1000€ a cada um dos netos da testemunha no respetivo aniversário (minutos 10:00 - 10:30 da gravação do depoimento) e ainda ofereceu 2000€, em notas (!), à filha da testemunha porque esta tinha representado ... na ..., não se sabe bem a fazer o quê (minutos 20:10 – 21:30 da gravação do depoimento).

Esta mesma testemunha mostrou ser dotada de uma memória fenomenal. Tendo o depoimento nos autos sido realizado em 06.06.2022, lembrava-se, por exemplo, de que a R. quis ir buscar o Dr. DD ao lar no dia 17.02.2020 (minutos 9:00-10:00 e 23:25 – 24:51 da gravação do depoimento), precisão cronológica que até espantou o Ilustre Mandatário da R. Acresce que esta testemunha estava sempre presente e ouviu vários telefonemas entre o Dr. DD (quando este estava internado no lar) e a R. (minutos 11:00 – 14:30 da gravação do depoimento), todos eles com relevância para os factos discutidos nos autos. Trata-se, portanto, do Forest Gump das chamadas telefónicas.

Na sala de audiência, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo confrontou a testemunha com a inverosimilhança do seu relato (minutos 13:00-14:15 da gravação do depoimento). Em sede de elaboração da sentença, estranhamente, o que era grotesco passou a soar-lhe verosímil.

Na verdade, qualquer ouvinte minimamente experiente compreende à légua que o depoimento desta senhora é falso e ensaiado com o propósito de beneficiar a R.

Acresce que as testemunhas MM (minutos 5:10 – 7:00 da gravação do depoimento) e II (minutos 7:40 – 9:50 da gravação do depoimento), que conheceram bem o Dr. DD antes do casamento com a R., falaram de um homem de hábitos de consumo espartanos, ou pelo menos normais, e não de um indivíduo perdulário.

Mais: a Dr.ª NN, diretora do Lar onde o Dr. DD esteve internado nos últimos dias da sua vida, disse, quando inquirida (minutos 2:00 - 3:20 da gravação do depoimento), que quando conheceu o Dr. DD não reparou que o mesmo ostentasse qualquer sinal exterior de riqueza relevante, em termos de vestuário, relógios, etc.

Finalmente, a própria R. afirmou, nas declarações de parte, na mesma frase o seguinte: o Dr. DD pagava tudo no que respeitava à vida familiar; todavia, a R., enquanto viveu com o Dr. DD, não havia sido capaz de poupar dinheiro, pois gastava mais dinheiro neste período da sua vida do que antes do casamento com o Dr. DD (minutos 1:07:45 – 1:09:00, 1:13:30 – 1:14:00 da gravação do depoimento). Em que ficamos? Era o Dr. DD que bancava a faustosa vida do casal, ou a R., afinal, também contribuía?

Mesmo que o Tribunal a quo cresse, por incompreensíveis razões, na versão incoerente e inverosímil da R. quanto ao dispêndio de uma pequena fortuna em férias e refeições, não podia o Tribunal a quo desconsiderar que a R., nas suas declarações de parte, disse de forma clara e inequívoca que é, à data, possuidora de dinheiro do Dr. DD.

Com efeito, a R. afirmou, na sala do tribunal, a instâncias do seu próprio advogado, que é detentora de 29.000€ (vinte e nove mil euros) que constituem um bem próprio do Dr. DD, os quais se encontram depositados em conta bancária arrestada à ordem dos autos de arresto requerido pelos AA. em apenso ao presente processo.

A desconsideração destas afirmações da própria R., proferidas nos minutos 1:15:00 – 1:16:30 das respetivas declarações de parte, configuram mais um grosseiro erro do Tribunal a quo, cuja correção se impõe: não pode julgar-se provado que todo o dinheiro transferido da esfera jurídica do Dr. DD para a R. foi despendido em férias e refeições, porquanto é a própria R. que diz ter, ainda, parte desse dinheiro.

A R. diz, na sala de audiências, que está na posse de 29.000€ que eram bem próprio do Dr. DD, mas o Tribunal a quo não a condena a restituir essa quantia…”

Vejamos, por último, em que termos foi impugnada a decisão de julgar provado o ponto n.º 31-a) e a de julgar não provado a matéria da alínea A) – quantias despendidas na aquisição dos automóveis.

Sob o ponto n.º 31.º-a, o tribunal da 1.º instância julgou provado que “a transferência a que se alude em 29 [transferência ordenada pela ré, em 27-04-2016, de 24 500 euros da conta n.º .........96 para uma conta da sociedade do grupo C.......] foi realizada em benefício da ré ou de terceiro”.

Sob a alínea A), julgou não provado que “os somatórios dos valores referidos em 43 e 44 [por lapso escreveu-se na decisão valores referidos em 44 e 45] correspondiam ao preço de compra de um veículo automóvel de marca Volkswagem Tiguam, de matrícula ..-RZ-..”.

Os valores referidos em 43 e 44 são, respectivamente, os seguintes:

“Em 6-10-2016, DD fez um pagamento de 3 000 euros da conta identificada no Millenium BCP com o n.º .........96 para uma conta da S...H, S.A.”;

“Em 21-10-2016, DD fez um pagamento de 14 170 euros da conta da conta identificada no Millenium BCP com o n.º .........96 para uma conta da S...V, S.A.”.

Os recorrentes pediram, em relação à decisão proferida sob o ponto n.º 31-a), se julgasse provado que a transferência a que se alude em 29 foi realizada para adquirir o veículo de marca Peugeot, de matrícula ..-RF-.., que foi registado em nome da ré.

Em relação à alínea A) dos factos julgados não provados, pediram se julgasse provado, sob o n.º 45, a matéria que dela constava, a qual correspondia à que havia sido alegada no artigo 52.º da petição inicial.

Para o efeito alegaram:

“No artigo 35.º da petição inicial, alegaram os AA. que, em 27.04.2016, a R. ordenou uma transferência de 24.500€, da conta n.º .........96 para uma conta da sociedade do grupo C...... ....... Este facto foi levado à lista dos factos provados sob n.º 29.

Alegaram os AA., no artigo 37.º da petição inicial, que o Dr. DD não era, em 27.04.2016, proprietário de qualquer automóvel (o que também se considerou provado – v. n.º 31 dos factos provados).

Naquele mesmo artigo 37.º, disseram os AA que, atendendo a que o Dr. DD não era proprietário de qualquer automóvel, a transferência haveria de ter sido realizada em benefício da R. ou de terceiro.

À lista de factos provados levou o Tribunal a quo o seguinte facto 31-a): “A transferência a que se alude em 29 foi realizada em benefício da Ré ou de terceiro”.

Apoiando-se nesta conjunção alternativa, concluiu o Tribunal a quo que não ficou provado que a supra aludida transferência bancária houvesse sido realizada em benefício da R. Erradamente, porém.

É verdade que o Tribunal a quo deve ter em conta o que os AA. alegaram na petição inicial, mas também tem de considerar o que se seguiu a esta primeira peça processual.

E o que se seguiu foi que, nos artigos 79.º a 82.º da contestação, a R. confirmou que aquela quantia foi utilizada para comprar um veículo automóvel que foi registado em nome da R., justificando esta circunstância com o facto de o Dr. DD não querer deixar quaisquer bens aos filhos.

Aliás, a própria R. juntou à contestação, sob doc. 17, uma proposta de venda de um veículo Peugeot cuja data é 14.04.2016, ou seja, treze dias antes da mencionada transferência. Dessa proposta consta que o preço do veículo em causa foi 25.299€ + outra viatura. A outra viatura é o Honda Civic que, como a própria R. alega, foi entregue à troca. Decorre também desta proposta de venda que na data da aceitação foi entregue um cheque de 799€. Ora, quando somamos 799€ a 24.500€ (que é o valor da transferência referida no artigo 35.º da petição inicial), chegamos ao montante de 25.299€, ou seja, o preço do Peugeot que a R. comprou para si com bens próprios do Dr. DD.

De resto, na justificação da convicção (v. p. 20, parágrafo 4, da sentença), o próprio Tribunal a quo reconhece que a R. “também admite a aquisição de um veículo automóvel”.

De modo que o facto provado n.º 31-a) deve passar a ter a seguinte redação “A transferência a que se alude em 29 foi realizada para adquirir um veículo da marca Peugeot, de matrícula ..-RF-.., que foi registado em nome da R”.

Semelhantes erros de julgamento cometeu o Tribunal a quo relativamente ao segundo veículo comprado com bens próprios do Dr. DD e registado exclusivamente em nome da R.

Nos artigos 50.º e 51.º da petição inicial, os AA. descrevem transferências realizados para a conta de empresas do grupo S......., em 06.10.2016 e em 21.10.2016, no montante de 17.170€.

Estes factos foram levados à matéria de facto provado sob n.ºs 43 e 44.

Um veículo da marca Volkswagen Tiguan, de matrícula ..-RZ-.., foi registado em nome da R. no dia 30.11.2016 (conforme decorre do doc. 39 junto à petição inicial).

No artigo 81.º da contestação diz a R. o seguinte: “Mais tarde, e não gostando do Peugeot ..- -RF-.., decidiu DD que melhoraria o seu conforto e segurança, comprar um outro veículo da marca VolksWagen Tiguan, com a matrícula ..-RZ-..”.

E no artigo 82.º da contestação, a R. confirma que este veículo foi registado em nome da R. porquanto o Dr. DD não queria ter veículos registados em seu nome.

Em consonância, nos factos provados sob os n.ºs 82 e 83, pode ler-se que o veículo da marca Volkswagen Tiguan, com a matrícula ..-RZ-.., foi decidido comprar, também, por DD e que, pelas razões, além do mais, de nada querer deixar aos seus filhos, DD, além do mais, decidiu que os veículos ficariam registados em nome da R.

A própria R. confirmou esta sequência fáctica nas suas declarações de parte (1:10:00 – 1:12:15).

Posto isto, não se chega a alcançar o raciocínio que pode fundar a decisão do Tribunal a quo de considerar que se não provou que os supra mencionados 17.170€ transferidos para a conta de duas empresas do grupo S......., concessionária da marca Volkswagen, poucos dias antes de a R. se tornar proprietária de um Volkswagen, serviram para pagar o preço deste automóvel.

Chega a ser de bradar, pois a própria R. não infirma em parte alguma da sua contestação este facto, antes confirmando-o e justificando a decisão do Dr. DD.

De modo que deve considerar-se provado o facto alegado no artigo 52.º da petição inicial, e que a sentença simplesmente ignorou, com o seguinte teor “O somatório dos valores pagos (ou seja 17.170€) corresponde ao preço da compra de um veículo automóvel da marca Volkswagen Tiguan, de matrícula ..-RZ-..”.

Como se vê pela exposição efectuada, os recorrentes não só indicaram os meios de prova que, no seu entender, impunham a alteração da decisão proferida em 1.º instância, como procederem a uma desenvolvida análise crítica dela e da conduta processual das partes, relevante para a formação da convicção sobre a matéria em questão.

Se é certo, como se escreveu no acórdão do STJ de 7-09-2017, no processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1. publicado em www.dgsi.pt, que o exame crítico da prova que impende sobre o tribunal da Relação não compreende o dever de rebater ponto por ponto todos os argumentos do impugnante, também é certo que tal exame crítico não prescinde da reapreciação das provas indicadas pelo recorrente e pelo recorrido. Mais: quando as provas sejam contraditórias e o tribunal der crédito a umas em detrimento de outros é dever do tribunal expor as razões da sua opção, pois só assim cumpre o dever de especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (n.º 4 do artigo 607.º do CPC).

Examinado o acórdão recorrido, é de reconhecer razão aos recorrentes quando alegam que o tribunal a quo não procedeu ao exame crítico das provas que ele indicou como fundamento do erro na apreciação da matéria de facto.

Na verdade, embora tenha ouvido os depoimentos das testemunhas (II, a MM, NN, JJ, a GG, OO, PP, QQ), e os do autor AA e da ré, CC, e narrado os factos referidos por eles, não procedeu ao exame crítico de tais depoimentos, não indicando, por exemplo, quais os que mereciam e os que não mereciam, e quais as razões do crédito e do descrédito.

Limitou-se a afirmar que, apreciados de um modo global, os depoimentos não eram em geral de molde a sustentar a posição dos recorrentes e que as provas produzidas tomadas no seu conjunto eram totalmente consistentes com a versão dos factos que havia ficado plasmada na decisão recorrida.

É certo que, ao afirmar que os depoimentos, apreciados de um modo global, não sustentavam a tese dos apelantes e que davam suporte à decisão do tribunal da 1.ª instância, o tribunal da Relação expressou, ainda que de forma implícita, uma convicção sobre a prova produzida. Sucede que a convicção que manifestou e que fez coincidir com a do tribunal da 1.ª instância não se encontra alicerçada em exame crítico da prova. O acórdão é omisso sobre as razões que o levaram a concluir que a prova dava suporte à decisão do tribunal da 1.º instância, mas já não à pretensão dos recorrentes.

E, pese embora o muito respeito que nos merece o acórdão recorrido, a exposição de tais razões era especialmente exigível. Com efeito, por um lado, os recorrentes insurgiram-se contra a decisão da 1.º instância com argumentação pormenorizada e muito desenvolvida. Por outro, o próprio acórdão reconhece que os depoimentos foram contraditórios.

A conclusão a que se chega é a de que o tribunal a quo não curou de formar e formular a sua própria convicção sobre os factos impugnados e de proceder à análise crítica dos meios de prova, tendo-se limitado a verificar se a prova que testemunhal e os depoimentos do autor e da ré suportavam a decisão da 1.ª instância, como o atestam os seguintes trechos do acórdão: “Pois que importará não perder de vista que não vai o Tribunal ad quem substituir à convicção do Tribunal a quo (que assistiu e mediou a produção das provas) a sua própria convicção (no fundo, trata-se apenas de uma questão de convicção). Uma decisão, diga-se, que respeita cabalmente a prova em que se funda – pois que, afinal, a resposta que este Tribunal de recurso tem que dar ao caso é se a convicção que foi formada na 1.ª instância tem suporte na prova produzida. Ora, isso é aqui, claramente, respondido de forma afirmativa, auditados que foram os depoimentos prestados pelas pessoas que os produziram nessa audiência”.

Por todo o exposto é de concluir que o tribunal a quo não apreciou a impugnação da decisão relativa à matéria de facto com observância dos deveres prescritos no n.º 1 do artigo 662.º e no n.º 4 do artigo 607.º do CPC, aplicável por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC. Em consequência, há fundamento para o anular na parte em que decidiu manter inalteradas as seguintes decisões do tribunal de 1.º instância relativas à matéria de facto:

• A que julgou provada o facto discriminado sob o n.º 48-a);

• A que julgou não provada, sob a alínea B), que do saldo referido em 47, para além da quantia referida em 48-a), o mesmo pertencia exclusivamente a DD;

• A que julgou provados os factos discriminados sob os números 67.º, 68.º, 70.º;

• A que julgou provado o facto discriminado sob o n.º 31-a)

• A que julgou não provado, sob a alínea A), que o somatório dos valores referidos em 43 e 44 [por lapso escreveu-se na sentença de 1.ª instância 44 e 45] corresponde ao preço da compra de um veículo automóvel de marca Volkswagen Tiguan, de matrícula ..-RZ-...

Cabe ainda ao tribunal da Relação pronunciar-se sobre o aditamento aos factos julgados não provados de parte da matéria que foi alegada no artigo 94.º da contestação.


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Decisão:

Julga-se procedente o recurso de revista e em consequência:

1. Anula-se o acórdão da Relação na parte em que julgou improcedente a impugnação das seguintes decisões relativas à matéria de facto:

• Da que julgou provada o facto discriminado sob o n.º 48-a);

• Da que julgou não provada, sob a alínea B), que do saldo referido em 47, para além da quantia referida em 48-a), o mesmo pertencia exclusivamente a DD;

• Da que julgou provados os factos discriminados sob os números 67.º, 68.º, 70.º;

• Da que julgou provado o facto discriminado sob o n.º 31-a)

• Da que julgou não provado, sob a alínea A), que o somatório dos valores referidos em 43 e 44 corresponde ao preço da compra de um veículo automóvel de marca Volkswagen Tiguan, de matrícula ..-RZ-..;

2. Determina-se que a Relação profira nova decisão na qual aprecie a impugnação dos pontos de facto atrás indicados e se pronuncie sobre o aditamento aos factos julgados não provados de parte da matéria que foi alegada no artigo 94.º da contestação.


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Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrida ter ficado vendida no recurso, condena-se a mesma nas custas do recurso.

Lisboa, 16 de Novembro de 2023

Emídio Santos (relator)

João Cura Mariano (1.º adjunto)

Fernando Baptista de Oliveira (2.º adjunto)