PRINCÍPIO DO ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
REGULARIZAÇÃO
ADVOGADO
TAXA DE JUSTIÇA INICIAL
PETIÇÃO INICIAL
INCONSTITUCIONALIDADE
IGUALDADE DAS PARTES
INTERPRETAÇÃO DA LEI
JUIZ
DELIBERAÇÃO DO PLENÁRIO DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
DESPACHO DO RELATOR
Sumário


I - O despacho do relator que interpretou o disposto no art. 560.º do CPC no sentido de excluir a admissão da regularização da instância aí prevista quando o autor esteja representado por advogado não afronta o princípio da promoção do acesso à Justiça, porquanto este não autoriza que, ao arrepio das normas processuais impositivas, o julgador opte por soluções ad-hoc que, irrestritamente, viabilizem o acesso à tutela jurisdicional efetiva.
II - A interpretação referida em I mostra-se conforme ao princípio da autorresponsabilização das partes e, na medida em que o patrocínio do autor por advogado não pode ser, fáctica e juridicamente, equiparado à condução da lide pela própria parte (quando tal seja legalmente autorizado), não contende com o princípio da igualdade.

Texto Integral



Proc. n.º 26/23.6YFLSB


(Contencioso)


*


Acordam em Conferência na Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça


Na sequência da notificação do acórdão de 27 de setembro de 2023, desta Conferência, a Autora apresentou requerimento com o seguinte teor:


«AA, Autora nos autos de ação administrativa à margem identificados, em que é Entidade Demandada o CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA, notificada do douto acórdão da conferência, que confirmou o despacho do Venerando Juiz Conselheiro Relator que indeferiu a reclamação da recusa da petição inicial pela secretaria, vem requerer a V. Exa. a junção aos autos de documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, mais requerendo a prossecução dos autos, atenta a regularização ora operada.».


Sobre tal requerimento, foi, pelo relator, lavrado despacho com o seguinte teor1:


«A Autora AA, notificada do precedente aresto proferido em Conferência, requereu a «(…) a junção aos autos de documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça, mais requerendo a prossecução dos autos, atenta a regularização ora operada. (…)».


A Autora não indicou qualquer norma legal na qual se sustente o requerimento em apreço.


No entanto, afigura-se-nos, face ao contexto da causa - apresentação do requerimento na sequência da confirmação da recusa da petição inicial por falta de pagamento da taxa de justiça devida -, ser seguro que a Autora, mediante a junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça, pretende prevalecer-se do benefício concedido pelo art.560.º do Código de Processo Civil (…).


Com efeito, sob a epígrafe “Benefício concedido ao autor”, prevê-se ali que «Quando se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, a parte não esteja patrocinada e a petição inicial seja apresentada por uma das formas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 7 do artigo 144.º, o autor pode apresentar outra petição ou juntar o documento a que se refere a primeira parte do disposto na alínea f) do artigo 558.º, dentro dos 10 dias subsequentes à recusa de recebimento ou de distribuição da petição, ou à notificação da decisão judicial que a haja confirmado, considerando-se a ação proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo.».


Como deflui da interpretação deste preceito (…), a admissibilidade da regularização da instância por intermédio da junção do comprovativo da taxa de justiça em falta apenas pode ter lugar quando a petição inicial não haja sido apresentada por mandatário judicial (independentemente de ser ou não obrigatória a constituição de advogado) ou quando aquele articulado não haja sido apresentado por via eletrónica (…).


Como lapidarmente refere Abílio Neto «(…) Havendo intervenção de mandatário (…) não há lugar a esta tábua de salvação (…)».


Ora, a Autora encontra-se representada por Ilustres Advogados e a petição inicial que deu origem aos presentes autos foi apresentada por intermédio do sistema informático de apoio à atividade dos tribunais judiciais, isto é, pela via prevista na alínea d) no n.º 7 do art.144.º do Código de Processo Civil.


É assim claro que não se mostram reunidos os requisitos de que, à luz daquela norma, depende a admissibilidade da sanação do vício formal que determinou a recusa da petição inicial e o consequente prosseguimento da lide.


Assim, inexistindo qualquer outra norma que, neste particular contexto, legitime o pretendido prosseguimento da causa, deve o requerimento ser indeferido.


Pelo exposto, indefiro o requerimento da Autora em apreço. (…)».


Irresignada com este despacho, a Autora AA apresentou reclamação para a Conferência, sustentando, em apertada síntese, que o «(…) 1.º segmento do artigo 560.º do CPC é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) e por violação do direito de acesso à justiça e do princípio da tutela jurisdicional (…)», peticionando, a final, que seja revogado o despacho reclamado e determinado o prosseguimento dos autos.


Nada obsta ao conhecimento do mérito.


*


É enunciado pela Autora que a questão decidenda suscitada na reclamação consiste em saber se «(…) estando a Autora patrocinada e tendo sido a petição inicial apresentada por via eletrónica, não deverá a Autora gozar do benefício previsto no artigo 560.º do CPC, não obstante a sua nova redação dada pelo Decreto-Lei n.º 97/2019 de 26 de julho de 2019, à luz do princípio pro actione, sob pena de se verificar uma situação de denegação de justiça, já que a p.i. originária deu entrada em juízo dentro do prazo legal de impugnação do ato objeto dos autos, mas esse prazo, entretanto, naturalmente, já decorreu. (…)».


Não foi essa a questão apreciada e decidida no despacho reclamado nem tinha que o ser. Como deflui do requerimento acima transcrito, nada foi ali alegado a esse respeito ou com esse sentido, apenas se impetrando o prosseguimento dos autos mediante a junção do comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida.


A via impugnatória que é facultada às partes pelo n.º 2 do artigo 27.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos visa a reapreciação, em acórdão, dos despachos do relator que lhes sejam prejudiciais.


Porém, tal como é entendimento unânime e pacífico no domínio da reclamação para a conferência prevista no n.º 3 do art.652.º do Código de Processo Civil, deve-se, também neste conspecto, entender que as questões dirimidas no despacho impugnado balizam o objeto da apreciação do tribunal coletivo, não podendo, pois, esse meio processual servir para aditar questões ou fundamentos que, em devido tempo, não foram trazidos à liça. Por isso, «(…) exorbita do âmbito desse meio impugnatório o conhecimento de questões que não tenham sido apreciadas nesse despacho (…)»2.


Nessa medida, obtempera-se que cabia à Autora, no requerimento apreciado, exarar a fundamentação que agora profusamente arregimenta em benefício da sua pretensão. E, logo, não o tendo feito, caberia, consequentemente, enjeitar o seu conhecimento, por se mostrar nitidamente extravasado o âmbito admissível da presente reclamação.


Ainda assim e para que dúvidas não restem sobre o posicionamento desta Conferência sobre a temática em apreço e em concreta homenagem ao princípio da promoção do acesso à Justiça (artigo 7.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), abordemos a questão colocada na reclamação.


Vejamos, pois, se, como sustenta a Autora, o caso dos autos demandava solução diversa daquela que foi adotada no despacho reclamado.


Para o efeito, não é despiciendo contextualizar a antecedente tramitação processual.


A petição inicial apresentada pela Autora foi recusada pela secção por falta de pagamento da taxa de justiça. Inconformada, a Autora impugnou judicialmente essa recusa e, ainda inconformada, reclamou do despacho judicial para a secção. Só depois se aprestou a liquidar taxa de justiça devida, sem que sequer tenha indicado a disposição que a autorizaria a regularizar a instância.


Saliente-se que a Autora não questiona, verdadeiramente, a correção da exegese do art.560.º do Código de Processo Civil (na atual redação) que foi delineada no despacho reclamado e que esta Conferência inteiramente sufraga3.


Mas contra ela aduz - embora não o desenvolva - o argumento de que o princípio pro actione deveria ter conduzido a solução diversa daquela que, escorreitamente, decorre dessa interpretação.


É, consabido que, em concretização do princípio da tutela jurisdicional efetiva4, o princípio da promoção do acesso à Justiça (também denominado pro actione ou princípio do favorecimento do processo) estipula que as normas adjetivas (sejam elas administrativas ou civis que devam ser supletivamente convocadas) devem ser interpretadas no sentido de favorecer o acesso à Justiça e assegurar às partes uma tutela jurisdicional de mérito5.


Mas esse princípio não postula nem admite que, ao arrepio das normas processuais impositivas de ónus processuais, o julgador opte por interpretação ab-rogante ou contra legem daquelas6 e/ou informalize o processo, criando, a seu bel-prazer, soluções ad-hoc destinadas a viabilizar irrestritamente o acesso à efetividade da impetrada tutela jurisdicional7.


Aliás, como sempre se tem sublinhado na jurisprudência de todas as secções deste STJ e na doutrina, o direito à tutela jurisdicional efetiva não é incompatível com o estabelecimento, pelo legislador, de requisitos processuais que sejam funcionalmente adequados aos fins do processo e conformes com o princípio da proporcionalidade8.


Assim sendo, crê-se ser patente que a solução de gestão processual implicitamente preconizada pela Autora (a aplicação do preceituado no art.560.º do Código de Processo Civil ao caso vertente, cujos contornos supra aflorámos), afrontaria claramente o princípio que a impetrante concita em seu benefício e, consequentemente, o princípio constitucional da legalidade do conteúdo da decisão (cf. art.203.º da Constituição da República Portuguesa).


Deve-se, neste conspecto, acrescentar que essa solução contrariaria ainda o disposto na parte final do n.º 3 do art.80.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, segundo o qual «(…) decorrido que seja o prazo para reclamação da recusa, ou, havendo reclamação, após o trânsito em julgado da decisão que confirme o não recebimento, considera-se a peça recusada (…)», dá-se «(…) a respetiva baixa na distribuição (…)», como se determinou no primeiro despacho reclamado.


Mas mesmo que se devesse diferentemente entender, a consideração que se deve dispensar à peculiar tramitação dos presentes autos sempre aconselharia a que, prudentemente, o relator se abstivesse de adotar uma solução desse tipo e se contivesse nos limites da solução que, com clareza, decorre daquele preceito processual.


Se assim não se procedesse, ter-se-iam preterido, a favor de uma infundada obstinação, os ensinamentos do tão olvidado princípio da autorresponsabilização das partes pela condução da lide9 e abrir-se-ia, no mesmo passo, o campo à arbitrariedade e à incerteza no tratamento de situações processuais substancialmente idênticas.


É, de resto, de sublinhar que o risco (para já, meramente eventual) de extinção do direito de ação10 a que a Autora alude, não pode, legítima e propriamente, ser imputável (ou, sequer, associável) ao despacho reclamado. Esse risco é, antes e em exclusivo, atribuível à porfiada recusa em realizar o pagamento da taxa de justiça - que não podia deixar de saber ser devida, já que está representada por Ilustres Mandatários e é público o entendimento unânime, reiterado e pacífico desta Secção sobre o tema - no momento processualmente adequado para o efeito.


Assim, como se antevê, carece de fundamento sustentar que o tribunal deveria diligenciar no sentido acautelar o direito de ação da Autora quando foi a própria que, pelo modo como conduziu a lide, o colocou em (potencial) risco de extinção.


Deste modo, resta concluir que a solução adotada no despacho reclamado não redunda em denegação de justiça, não se mostrando, em face dos elementos que constam dos autos e da tramitação vinda de descrever, violado o princípio pro actione ou, por essa via, o princípio do acesso à tutela jurisdicional efetiva.


Abordemos, agora, a argumentação atinente à invocação a que a Autora dedica maior atenção, qual seja a violação do princípio da igualdade.


Em sede de fiscalização concreta - a única que se insere na competência material deste Supremo Tribunal (art.204.º da Constituição da República Portuguesa) - cabe somente tomar em consideração as particulares circunstâncias que enformem o caso.


Na verdade, o juízo cuja formulação vem impetrada pressupõe uma relação direta11 entre a norma cuja constitucionalidade se questiona e a Constituição da República Portuguesa, o que equivale por dizer que essa pronúncia deve ter por objeto a norma que haja sido aplicada no caso concreto e/ou a interpretação dela extraída. E, como se sabe, a fiscalização abstrata da constitucionalidade é, como se sabe, exclusivamente reservada ao Tribunal Constitucional (alínea a) do n.º 1 do art.281.º da Constituição da República Portuguesa e art.6.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro).


Importa, assim, apenas determinar se o despacho reclamado interpretou desconformemente ao princípio da igualdade o disposto no art.560.º do Código de Processo Civil, o que determina que devam ser arredadas da ponderação a efetuar hipóteses (de resto, meramente académicas) com contornos factuais diferentes daquelas que os presentes autos patenteiam.


Delimitado o âmbito da apreciação que vem impetrada, ingressemos no seu mérito.


É ponto assente que o princípio da igualdade (n.º 2 do art.13.º da Constituição da República Portuguesa), enquanto estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global, vincula diretamente os poderes públicos (n.º 2 do art.18.º da Lei Fundamental), impondo que dediquem um tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais mas também que se tratem desigualmente as situações de facto que sejam desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais.


Nessa medida, a vinculação a que o legislador está sujeito não o impede, em exercício da liberdade de conformação de que beneficia, de estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objetivamente fundadas. Assim não sucedendo, incorreria em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções diferenciadas que sejam objetivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes.


O princípio da igualdade propicia ao legislador a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial. A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio.


A intenção discriminatória não opera, porém, automaticamente, tornando‑se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalístico, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade12.


Assim, como concordantemente refere Gomes Canotilho 13 «(…) a operatividade do princípio da igualdade (…) passa pela comparação das situações fácticas e concretas dos diferentes grupos de destinatários da actividade normativa, a fim de se saber se entre eles se verificam diferenças fácticas com peso suficiente para justificar um tratamento jurídico diferenciado. (…)».


Desse modo, no particular domínio do acesso à tutela jurisdicional efectiva, a concitação do princípio da igualdade determina que a «(…) diferente natureza substancial dos múltiplos direitos e interesses cuja tutela jurisdicional pode ser pedida justifica que a lei possa legitimamente adoptar soluções diferentes. (…)»14.


Regressemos ao caso.


Como se convirá, é possível discernir, na legislação adjetiva civil, vários traços de diferenciação de regime entre partes representadas por advogados e partes que, nos casos em que tal é admissível15, litigam por si.


Desde logo, às partes que não estão representadas por advogados é vedada a interposição de recursos ou a propositura de ações nos tribunais superiores, a suscitação de questões de direito ou a inquirição, por si, de testemunhas que ofereçam (cf. alínea c) do n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do artigo 40.º).


Faculta-se-lhes, porém, a possibilidade de entrega de peças processuais por entrega na secretaria, por correio ou telecópia (alíneas a) a c) do n.º 7 do art.144.º daquele diploma e, paralelamente, o disposto no n.º 5 do art.24.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), o que, por via de regra, não é admitido a quem litigue patrocinado por advogado (cf. n.º 1 do mesmo preceito). As partes que não constituam advogado beneficiam ainda de um regime próprio de notificações (art.249.º daquele diploma).


Acresce, enfim, que a própria lei comete ao julgador o encargo de adequar outras dimensões da tramitação processual às especificidades dessa situação (cf. parte final do n.º 3 do referido art.40.º).


Da consideração das enunciadas particularidades parece emergir que a parte que litigue sem o desejável16 patrocínio por advogado é encarada pelo legislador como estando numa posição desfavorecida, outorgando-se-lhe, consequentemente, um tratamento diferenciado com vista a suprir potenciais iniquidades advenientes dessa condição17.


A limitação atualmente vertida no art. 560.º do Código de Processo Civil parece inserir-se nessa opção legislativa, que há muito se acha sedimentada e que tem plena correspondência na prática judicativa.


Nesse encadeamento, avancemos um pouco mais para alcançar a conclusão que se impõe.


Em consonância com o propósito enunciado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26 de julho18, a restrição que subjaz à solução vertida no despacho reclamado parece assentar em duas premissas que se enunciam de forma distinta mas que são indissociáveis entre si.


Por um lado, aceita-se a premissa de que, por não ser assistido por advogado, o Autor não estará cabalmente inteirado acerca das consequências da falta de pagamento da taxa de justiça aporta para a normal tramitação da lide e, em última análise, para as consequências adversas que daí podem advir para o exercício do respetivo direito de ação.


Por outro lado, perfila-se a premissa de que o Autor estava dispensado de apresentar a petição inicial por via eletrónica, o que, potencialmente, impede que a falta de pagamento de taxa de justiça seja antes detetável e/ou detetada19.


A esta luz, desde logo se antevê que a diferenciação da disciplina jurídica que filia o entendimento professado pela Autora não pode nem deve ser tida como arbitrária ou carecida de fundamento material bastante.


E, além de congruente com outras disposições do Código de Processo Civil e com a aludida opção legislativa, mostra-se necessária e ajustada para tutelar os interesses substantivos de quem, autorizadamente, litiga sem assistência por advogado e, logo, sem os necessários conhecimentos técnicos requeridos para a correta condução da lide.


Patenteia-se, por seu turno, que aquelas fundantes premissas são manifestamente inaplicáveis ao Autor que litiga assistido por advogado. Por um lado, porque se lhe impõe (sem que venha, na reclamação, questionada a conformidade à Constituição da República Portuguesa dessa solução) a apresentação de peças processuais em juízo por via exclusivamente eletrónica. E, por outro, porque esse Autor beneficiará da competência técnica e da sabedoria que se impõe reconhecer a qualquer advogado, estando, por via disso, mais acautelado o risco inerente à condução da lide.


Tratam-se, em suma, de realidades nitidamente dissemelhantes, tanto do ponto de vista fáctico como num prisma estritamente jurídico.


Nessa medida, a solução legislativa não se pode categorizar como desprovida de razoabilidade, não se perfilando, à luz do que viemos de expor, a sua inadequação para o fim nitidamente protetor da parte mais vulnerável que lhe subjaz.


Remanesce por apreciar20 a linha argumentativa que se atém numa perspetiva sistémica.


Assinale-se, primeiramente, que a entidade demandada não foi ainda sequer citada para os termos da causa, pelo que, nos estritos limites do que esta Conferência cumpre apreciar, a concitação do princípio da igualdade de armas - uma das densificações da noção de processo equitativo (cfr. n.º 3 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa) - carece patentemente de fundamento.


E, em todo o caso, evidencia-se que a diferenciação face ao estabelecido no art.570.º do Código de Processo Civil (que, desde logo, é enunciada na previsão do n.º 3 do art.145.º do mesmo diploma) se justifica pela diversa posição que o Autor e o Réu assumem na lide. Ao demandado, não se concede nova oportunidade para se defender e a preclusão associada à não apresentação da contestação em consequência do não pagamento da taxa de justiça pode, atenta a confissão ficta dos factos, acarretar importantes efeitos na sua posição substantiva. Ao demandante assistirá, em regra em todo o tempo, a possibilidade de propor uma nova ação.


Por isso, não se divisa que do cotejo preconizado pela Autora emerja um argumento valioso para sustentar a existência de uma efetiva desigualdade material.


Noutro plano, refira-se que tanto a norma vertida no n.º 3 do art.8.º da Lei n.º 35/2014 de 30 de maio como a norma contida no n.º 2 do art.15.º-C da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro disciplinam procedimentos que, pelo menos na fase em que aquelas normas se inscrevem, correm perante entidades desprovidas de funções jurisdicionais e nos quais não é obrigatório o patrocínio forense.


Desse modo, tais normas revelam-se, salvo melhor opinião, imprestáveis para o cotejo com uma norma destinada a reger um processo judicial, não podendo, pois, a maior “maleabilidade” que ali se prevê servir como atendível termo de comparação.


Assim, se o acerto da solução legislativa pode ser objeto de questionação doutrinária e de debate jurisprudencial, parece, perante o somatório de todas estas considerações, ser claro que a interpretação do art.560.º do Código de Processo Civil que foi perfilhada no despacho reclamado não fere o basilar princípio a que vimos aludindo.


E se se devesse adotar a perspetiva extensiva da Autora, sempre se deveria considerar que o próprio preceito se mostra, ao invés, consentâneo com o fundamental desígnio de dispensar tratamento diferenciado a realidades que são ontológica e radicalmente diversas.


Assim, em síntese, resta concluir que o despacho reclamado não é suscetível de qualquer reparo quanto à questão nele decidida.


Custas, por vencimento, a cargo da reclamante (n.º 1 do art.527.º do Código de Processo Civil ex vi art.1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UC´s (Tabela II, anexa ao Regulamento das Custas Judiciais e n.º 4 do artigo 7.º deste diploma).


Decisão


Pelos fundamentos indicados, confirma-se o despacho reclamado.


Custas pela reclamante, no valor de 3 UC´s.


*


Lisboa, 22 de novembro de 2023


Orlando Gonçalves (Juiz Conselheiro Relator)


Luís Espírito Santos (Juiz Conselheiro Adjunto)


Nuno Pinto Oliveira (Juiz Conselheiro Adjunto)


António Magalhães (Juiz Conselheiro Adjunto)


João Cura Mariano (Juiz Conselheiro Adjunto)


Teresa Féria (Juíza Conselheira Adjunta)


Mário Belo Morgado (Juiz Conselheiro Adjunto)


Maria dos Prazeres Beleza (Juíza Conselheira Presidente)

___________________________________________________

1. Não se transcrevem as notas de rodapé, constantes do original.↩︎

2. Cf. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 17 de março de 2005, proferido no proc. n.º 0873/03 e acessível em www.dgsi.pt.↩︎

3. Não tendo sido localizada jurisprudência deste Supremo Tribunal sobre a matéria, impõe-se notar que decidiram no sentido firmado no despacho reclamado os seguintes arestos: acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de dezembro de 2021, proferido no proc. n.º 4269/21.9T8BRG.G1 e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de abril de 2023, proferido no proc. n.º 12998/22.9T8PRT.P1, acessíveis em www.dgsi.pt.↩︎

4. Inscrito, no que à impugnação de atos administrativos diz respeito, no n.º 4 do art.268.º da Constituição da República Portuguesa.↩︎

5. A este respeito, v. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Almedina, pág. 146 e Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 5.ª Edição, Almedina, pág. 426.↩︎

6. Neste sentido, ensinam Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira - ob. cit., pág. 148 - «O princípio do favor do processo não significa – nem era essa a intenção do legislador – muito longe disso que os tribunais devam fazer tábua rasa das normas jurídicas onde vão consagrados pressupostos processuais (…) ou outros requisitos e condições da prática regular dos atos processuais das partes.

O processo administrativo não é propriamente dominado pelo princípio da informalidade: as regras processuais, mesmo que puramente adjetivas, são postas em consideração de interesses e valores relevantes como os da segurança, da ordem pública, da justiça e da eficiência – e são para (fazer) cumprir, como é óbvio (…)».↩︎

7. Como escrevem Jorge Miranda e Rui Medeiros - Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra, pág. 439 - «(…) Aliás, bem vistas as coisas, no âmbito do artigo do artigo 20º, e uma vez que é legítima a interposição por lei de ónus processuais às partes, o tribunal nem sequer está vinculado “a que, seja qual for a conduta processual da parte, se profira sempre uma decisão sobre o mérito da causa” (…)».↩︎

8. Idem, nota 7.↩︎

9. Segundo o qual são as partes que devem suportar os riscos advenientes do modo como conduzem a lide.↩︎

10. Associado, pela Autora, ao decurso do prazo de caducidade contido no n.º 1 do artigo 171.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.↩︎

11. Assim, Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., tomo III, págs. 705 e 716, Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª Edição, Almedina, págs. 981 a 983 e, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18 de maio de 2016, proferido no proc. n.º 0388/15 e acessível em www.dgsi.pt.↩︎

12. Seguiu-se, de perto - mas em termos necessariamente sintéticos -, a jurisprudência do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 563/96, de 10 de Abril de 1996, in www.tribunalconstitucional.pt↩︎

13. In R.L.J., ano 124, pág. 327.↩︎

14. Cita-se Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., vol. I, pág. 438.↩︎

15. A constituição de mandatário é, em processo civil (e diferentemente do que, em regra, sucede no processo administrativo - cf. n.º 1 do artigo 11.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), um direito das partes e só constitui um dever nos casos legalmente previstos. Sobre o tema, v. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 245/97, acessível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970245.html.↩︎

16. Como já explicitava Manuel de Andrade - Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, pág. 87 – o patrocínio «(…) convém ao interesse privado das partes e ao interesse público da boa administração da Justiça (…)».↩︎

17. Elucidam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora - Manual De Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, pág. 190 - que «Os litigantes não são, do ponto de vista dos seus próprios interesses, as pessoas mais indicadas para orientar o processo. O conflito directo de interesses aguça, sem dúvida, o engenho e estimula a sua combatividade mas as paixões geradas pela luta privam as partes da serenidade de espírito indispensáveis à defesa mais eficaz da sua posição (…)», tanto mais que (…) faltam ao comum das partes a experiência e os conhecimentos necessários à exacta valoração das razões que lhes assistem em face do direito aplicável. (…)».↩︎

18. Ali consta que, com aquelas alterações, se pretendeu proceder «(…) ao desenvolvimento e aperfeiçoamento de diversos regimes já consagrados, como seja o da apresentação de peças processuais por mandatários e pelas partes (…)».↩︎

19. Recorde-se que, nos termos conjugados do n.º 2 do art.558.º do Código de Processo Civil e do n.º 1 do art.9.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto (e, paralelamente, nos termos do n.º 3 do art.80.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), a verificação dos fundamentos de rejeição da petição inicial deve preferencialmente ser efetuada pelo sistema informático de apoio à atividade dos tribunais.↩︎

20. A respeito da premência desta apreciação, v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, loc. ult. cit..↩︎