ÓNUS DA PROVA
DESCARATERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO
REGIME DO ARTIGO 72.º DO CPT PERANTE FACTOS NÃO ALEGADOS
ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO ARTIGO 14.º
N.ºS 1
AL. B)
E 3
DA LAT
DO VALOR DA RETRIBUIÇÃO A CONSIDERAR
Sumário

I - Cabe à entidade responsável o ónus da prova dos factos descaracterizadores do acidente, porque constituem factos impeditivos do direito invocado pelo sinistrado, pelo que, estando em causa facto diretamente relacionado com a descaraterização do acidente, assumindo ainda a natureza de essencial nesse âmbito, impende sobre aquela o ónus da sua invocação e prova.
II - A consideração pelo tribunal de factos não alegados está sujeita ao regime previsto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 72.º do CPT.
III- Para a descaraterização do acidente a que se alude no artigo 14.º, n.ºs 1, alínea b), e 3, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, apenas relevam os comportamentos ostensivamente inúteis, indesculpáveis, gratuitos, reprovados por um elementar sentido de prudência, casuisticamente aferíveis pelo padrão do cidadão médio, exigindo-se ainda que a conduta assim delineada seja necessariamente causal do acidente e, além disso, a sua condição/causa única, ou seja, a eclosão do acidente tem na sua génese a exclusiva atuação do trabalhador/sinistrado – sendo que o nexo, no processo causal, estabelece-se entre o facto praticado pelo agente e o dano, em termos de poder afirmar-se que este, numa natural relação de causa-efeito, é resultante daquele.

Texto Integral

Apelação/processo n.º 3486/21.6T8PNF.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo do Trabalho de Penafiel - Juiz 4

Autora: AA
Ré: A..., Lda.

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Nélson Fernandes (relator)
Germana Ferreira Lopes
Eugénia Pedro
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Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
1. Não se logrando acordo na respetiva fase conciliatória, AA deu início à fase contenciosa, na presente ação especial por acidente de trabalho, contra A..., Lda., pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe: a) importância de €2.389,79, a título de indemnização pelo período de I.T.A. (180 dias); b) pela incapacidade permanente, pensão anual, obrigatoriamente remível, no valor de € 25.912,80, devida a partir do dia 27 de Março de 2022; c) €50,00, a título de despesas, com a deslocação obrigatória ao GML Forense do Tâmega e com a deslocação ao Juízo do Trabalho de Penafiel, para a realização da tentativa de conciliação nos presentes autos; juros de mora à taxa legal, desde o dia do acidente, até ao efetivo e integral pagamento das quantias peticionadas.

Regularmente citada, a Ré deduziu contestação, pugnando pela improcedência do pedido, alegando nomeadamente que o evento participado ficou apenas a dever-se a culpa exclusiva da sinistrada, razão pela qual o acidente terá de ser descaracterizado.

Foi proferido despacho saneador, após o que se indicou a factualidade considerada assente e, ainda, de seguida, a que se incluía nos temas de prova.

Realizada a audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença de cujo dispositivo consta:
“Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, decide-se:
1 – Condenar a Ré “A..., UNIPESSOAL LDA.” a pagar à autora AA:
1.1 – a pensão anual, vitalícia e actualizável no montante de €2.429,47 a ser paga mensalmente, até ao 3º dia de cada mês e no seu domicílio devida a partir de 27 de Março de 2022, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão, bem como o subsídio de férias e de Natal, cada um igualmente no valor de 1/14 da pensão anual, a serem pagos nos meses de Junho e Novembro de cada ano, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde o vencimento de cada prestação até efectivo e integral pagamento;
1.2 – A quantia de €50,00 a título de despesas de deslocações a este tribunal, acrescida de juros de mora à taxa de 4% ao ano desde 07-07-2022 e até integral pagamento;
1.3 – A quantia de €3.589,79, a título de indemnização por incapacidades temposrárias, a que se deduz a quantia de €1.200,00 já paga pela R à A, que acresce juros de mora, a contar sobre a quantia diária de cada uma daquelas indemnizações, desde a data a que se reporta cada uma dessas quantias diárias, à taxa de 4% ao ano até integral e efectivo pagamento (Portaria nº 291/2003, de 08 de Abril, em vigor desde 01 de Maio de 2003).
Fixo o valor da acção em € 34.545,80.
Custas pela A e pela R na proporção do respectivo decaimento.
Notifique e registe.”

2. Dizendo-se inconformada, apresentou a Ré requerimento de interposição de recurso, formulando no final das alegações as conclusões seguintes:
1. Entende a recorrente que não pode subsistir na descrição dos factos dados como provados o que consta do respectivo ponto 16º “A ré confecionava o almoço para as demais trabalhadoras ao seu serviço, incluindo a autora, que ali a tomava.”
2. Tal facto foi dado como provado com o suporte dos depoimentos das testemunhas BB e CC, concluindo-se em face de tal que: “Face ao exposto, necessariamente se tem de concluir que o valor de €4,50 por dia indicado pela A como sendo o da refeição que lhe era fornecida pela R se afigura justo e equitativo.”
3. E é assim que o valor de €4,50x22x11 entra no cálculo da retribuição anual da sinistrada
4. Ora dos depoimentos das testemunhas indicadas na sentença que suportam o facto dado como provado apenas nos excertos supra referidos se tratou ou falou da tal alimentação;
5. Tal matéria não é apta a dar como provado o facto n.º16.
6. Ora, à recorrente não era exigível o pagamento de subsídio de alimentação na medida em que não existe IRCT aplicável.
7. Ambas as testemunhas referiram efectivamente que a determinada altura que não foi concretizada as trabalhadoras almoçavam no local de trabalho, sendo que depois deixaram de o fazer
8. Tal depoimento centrou-se apenas e só no local onde as trabalhadoras almoçavam, não se fazendo qualquer referência se a alimentação era fornecida ou confeccionada pela aqui recorrente ou se eram as próprias trabalhadoras que levavam o seu almoço ou até se o pagavam.
9. A verdade é que ainda que fosse esse o caso de ser a empregadora a confeccionar ou a fornecer gratuitamente o almoço tal tratar-se-ia de uma mera liberalidade que deixou de ser seguida.
10. Assim sendo não pode o facto n.º16 ser dado como provado devendo ser eliminado da matéria factual e em consequência de tal o valor da remuneração anual deverá ser apenas €9310 resultante do salário de €665 x 14
11. Entende também a recorrente que tem interesse para a decisão da causa, a inclusão de um facto na matéria dada como provada, referente à máquina utilizada e na qual resultou o incidente
12. Devedo ser aditado um facto dado como provado com a seguinte redacção: Existia junto da máquina onde ocorreu o incidente um pilão cuja utilização servia para empurrar a matéria que se pretendia picar/moer.
13. Acresce ainda que, entende a recorrente que é indispensável para o bom julgamento da causa estabelecer um outro facto dado como provado, que é o diâmetro da entrada da alimentação da máquina.
14. Devendo assim ser aditado o seguinte facto: O orifício por onde era alimentada a máquina tem um diâmetro não superior a 7 centímetros
15. Entendeu o Tribunal a quo que o acidente ocorreu por mera negligência ou culpa leve e assim dever ser a recorrente condenada a repará-lo.
16. Por outro lado, entende a recorrente que o acidente se deveu a uma culpa grave da própria sinistrada.
17. Na verdade tanto a sinistrada com a aqui recorrente encontram-se de acordo quanto à forma ou à dinâmica do incidente.
18. A divergência encontra-se no facto da recorrente entender que colocar os dedos para empurrar matéria prima dentro de uma máquina em funcionamento através de um orifício que tem entre 6 e 7 centímetros quando deveria utilizar o instrumento que aí se encontrava com esse objectivo é um comportamento temerário!!!
19. O Tribunal a quo entende que é um erro desculpável.
20. Note-se que a recorrente nunca alegou ou sequer pretendeu dizer que a lesão que a sinistrada sofreu foi propositada.
21. O que se pretendeu dizer foi que a introdução dos dedos da sinistrada na máquina foi propositada ou intencional e que tal não resultou de um descuido ou de um desequilíbrio;
22. Sendo certo que até essa introdução exige alguma força.
23. À sinistrada simplesmente será impossível introduzir a mão no referido “túnel” ou “funil” através do tal orifício por lapso.
24. A sinistrada não cometeu menos do que uma falta grave e indesculpável;
25. E essa conduta é grosseiramente negligente, ou seja, reprovável pelo mais elementar senso comum.
26. A realização daquela “tarefa” com a mão dentro do “funil” e a máquina em funcionamento é altamente reprovável face à sua especial perigosidade;
27. E salvo o devido respeito pela óptica do Tribunal a quo, não é pelo facto de se tratar de massa de alho que já é justificável inserir a mão pelo orifício onde no fundo estão as lâminas…
28. Havendo a necessidade de introduzir as mãos ou os dedos na máquina ou no “túnel” de alimentação, o bom senso obriga a desligar a máquina.
29. Ora, está a recorrente em crer que o comportamento da sinistrada é um excelente exemplo de um comportamento temerário e que mostra um desrespeito pelas mais elementares regras de segurança que qualquer um sabe que tem que cumprir.
30. É um comportamento reprovado por um elementar sentido de prudência, revelando assim uma negligência grosseira.
31. Por último verifica-se que esse comportamento é a causa exclusiva do sinistro ocorrido.
32. Não se conformando a recorrente com a apreciação que o Tribunal faz;
33. A sentença recorrida violou ou pelo menos fez uma incorreta apreciação dos preceitos estabelecidos nos artºs 14 alínea b) e n.º3 da LAT.
Termos em que deve o presente recurso ser recebido e julgado procedente e em consequência ser revogada a decisão ora colocada em crise e substituída por acórdão abolvendo a recorrente de todo o pedido.
Caso assim não se entenda deve ser rectificado o cálculo da retribuição anual por força da eliminação do facto n.º16 dado como provado.

2.1. Não constam dos autos contra-alegações.

2.3. O recurso foi admitido pelo Tribunal a quo como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

3. Subidos os autos a esta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, de facto e de direito.

Notificadas, as partes não se pronunciaram.

II - Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC) – aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas questões que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: (1) reapreciação da matéria de facto; (2) saber se o Tribunal a quo errou na aplicação do direito a respeito da aplicação da lei e do direito / questão da descaraterização ou não do acidente / do valor da retribuição a considerar.
*

III - Fundamentação
A) Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido fez constar da sentença, pronunciando-se sobre a matéria de facto, o seguinte (transcrição):
“Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1) No dia 27 de Setembro de 2021, pelas 17:00 horas, em Marco de Canaveses, a A foi vítima de um acidente de trabalho, quando exercia as funções de operária fabril, sofreu um traumatismo provocado por uma máquina, de que resultaram lesões ao nível da mão direita.
2) Nessa ocasião a A. encontrava-se a desempenhar as suas funções laborais na linha de produção, na sede da ré;
3) Tais funções traduziam-se em picar massa de alho, sendo que primeiramente os alhos já tinham sido triturados, sendo esta a segunda passagem da matéria prima pela máquina.
4) A massa de alho final destinava-se à confecção de molho para leitões.
5) A A. usava a máquina de picar e, de forma não concretamente apurada, viu 3 dedos da mão direita serem amputados.
6) A A., de forma não concretamente determinada, aproximou, pelo menos, a mão direita do funil da máquina, quando esta se encontrava em funcionamento.
7) À data referida em 1) inexistia avaliação de riscos profissionais da referida máquina
8) De imediato foi promovido pela Ré o pedido de socorro de emergência médica, tendo-se deslocado ao local, os Bombeiros do Marco de Canaveses, os quais prestaram os primeiros socorros.
9) A autora foi, posteriormente, transportada para o Hospital ..., sito em Penafiel.
10) A A. apresenta as seguintes sequelas:
- Membro superior direito: perda de F2 e F3 de D2 e D3 e perda de F3 de D4. Cotos de amputação bem almofadados e dor ao toque no coto de amputação de D 4.
11) Desde o dia referido em 1) da factualidade assente que a A. sente dor em todos os dedos lesionados da mão direita (D 2 – D4); sensação de membro fantasma em D2, D3 e D4; dor no coto de amputação de D4.
12) A A. esteve na situação de I.T.A., 180 dias, no período compreendido entre 28/09/2021 a 26/03/2022.
13) A A tem uma incapacidade parcial permanente (IPP) de 33,375%, tendo tido alta definitiva em 26 de Março de 2022.
14) A A. nunca teve formação profissional, específica e adequada para manusear a máquina referida em 1).
15) A A auferia a retribuição anual de, pelo menos, €665,00 x 14 e trabalhava sob as ordens, direcção e fiscalização da R A... Unipessoal, Lda, NIF - ...05, Endereço: Rua ... ... cuja responsabilidade não se encontrava transferida para qualquer Seguradora.
16) A ré confecionava o almoço para as demais trabalhadoras ao seu serviço, incluindo a autora, que ali a tomava.
17) A A auferia a retribuição de €665,00 x 14.
18) A ré entregou à A a quantia de € 1.200,00, em duas tranches de € 600,00 cada.
19) A A nasceu no dia .../.../1968.
20) A A despendeu €50 com deslocações ao IML e a este Tribunal.

Para além da factualidade acima elencada e com interesse para a decisão não resultaram provados quaisquer outros factos e, designadamente, não se provou que:
a) O “funil” ou o “tubo” onde é colocada a carne tem um diâmetro tão pequeno que somente empregando força física a A conseguiria introduzir a mão no mesmo.
b) A A fez força para introduzir a mão no funil da máquina de picar quando esta estava em funcionamento, o que a A bem sabia, querendo entrar em contacto com as lâminas existentes no interior da máquina, circunstância esta que era do conhecimento da A.
c) A R deu instruções à A para não introduzir a mão no funil da máquina de picar, quando picava massa de alho, e quando a referida máquina estivesse em funcionamento.
d) A A sabia que se introduzisse a mão no funil da máquina de picar, quando estava a triturar massa de alho, estando esta em funcionamento, veria os seus dedos serem amputados.”
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B) - Discussão
1. Reapreciação da matéria de facto
A Recorrente começa por dirigir o recurso à impugnação da matéria de facto, a que destina as conclusões 1.ª a 14.ª.
Entendendo-se que foram cumpridos de modo bastante os ónus estabelecidos no artigo 640.º do CPC, de seguida procederemos à apreciação.

1.1. Ponto 16.º da factualidade provada
Este ponto tem a redação seguinte:
“16) A ré confecionava o almoço para as demais trabalhadoras ao seu serviço, incluindo a autora, que ali a tomava.”
Limitando-se neste momento a nossa análise à pronúncia sobre a matéria de facto – assim o esclarecemos pois que as referências constantes das conclusões ao valor de “€4,50 por dia indicado pela A como sendo o da refeição que lhe era fornecida pela R se afigura justo e equitativo” foi apenas considerado na sentença no momento da aplicação do direito, razão pela qual só quando apreciarmos o direito nos pronunciaremos –, sustenta a Recorrente, nas conclusões 1.ª a 10.ª, que o referido facto não pode subsistir como provado, transcrevendo e localizando, no corpo das alegações, passagens do que diz resultar do depoimento das testemunhas BB e CC, argumentando que, apesar de ambas as testemunhas “referiram efetivamente que a determinada altura que não foi concretizada as trabalhadoras almoçavam no local de trabalho, sendo que depois deixaram de o fazer”, “tal depoimento centrou-se apenas e só no local onde as trabalhadoras almoçavam, não se fazendo qualquer referência se a alimentação era fornecida ou confeccionada pela aqui recorrente ou se eram as próprias trabalhadoras que levavam o seu almoço ou até se o pagavam”.
Pronunciando-se o Ministério Público no parecer emitido pela improcedência do recurso, constata-se que, na pronúncia sobre a matéria de facto, resulta da sentença, na parte que aqui importa, apenas, que “o descrito em 16) foi igualmente confirmado pelas testemunhas BB e CC, sendo o salário mínimo no ano de 2021 de €665,00”.
Apreciando, deixando-se consignado que se procedeu à audição dos registos de gravação no que às testemunhas indicadas na citada motivação diz respeito, de modo integral, diga-se, únicas aliás que são indicadas pela Recorrente e das quais transcreve passagens, o que é possível extrair, com um mínimo de segurança, não vai para além aliás do que resulta das passagens transcritas nas alegações, assim que em determinada altura (“ao princípio”) almoçariam na empresa e que depois teriam deixado de o fazer, sendo que, em face do que se fez constar do ponto 16.º reanalisado, assim que “a ré confecionava o almoço para as demais trabalhadoras ao seu serviço, incluindo a autora, que ali a tomava”. Ou seja, o que resulta é que em momento algum referiram as testemunhas que fosse a Ré quem confecionaria e forneceria o almoço, de modo a que pudesse encontrar-se real sustentação para o que se deu como provado, razão pela qual, em termos de formação de convicção, neste Tribunal de recurso, não possamos acompanhar, porque não sustentada efetivamente na prova, assim a indicada, aquela convicção que teria sido formada em 1.ª instância.
Neste contexto, por apelo a Lebre de Freitas[1], importa relembrar que “o princípio da livre apreciação da prova significa que o julgador deve decidir sobre a matéria de facto da causa segundo a sua íntima convicção, formada no confronto com os vários meios de prova” – “Compreende-se como este princípio se situa na linha lógica dos anteriores: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis” –, sendo que, precisamente em face da aplicação ao caso do mencionado princípio, encontramos afinal razões para considerarmos que a decisão recorrida padece de desconformidade com os elementos probatórios disponíveis. É que, tendo por base o regime legal aplicável, em que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[2] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, deveremos aqui atender às referidas incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, em termos de este Tribunal de recurso, em face da existência de desconformidades, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção (não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPC[3]), assim a anteriormente indicada.
Por decorrência do exposto, sem necessidade de outras considerações, na procedência do recurso nesta parte, determina-se a eliminação do ponto 16.º da factualidade provada.

1.2. Aditamento de novos factos
1.2.1. Nas conclusões 11.ª e 12.ª consta o seguinte:
- “Entende também a recorrente que tem interesse para a decisão da causa, a inclusão de um facto na matéria dada como provada, referente à máquina utilizada e na qual resultou o incidente”;
- “Devendo ser aditado um facto dado como provado com a seguinte redacção: Existia junto da máquina onde ocorreu o incidente um pilão cuja utilização servia para empurrar a matéria que se pretendia picar/moer.”
Socorrendo-nos ainda do corpo das alegações, apenas se invoca que “todas as testemunhas referiram e a fotografia junta com a Contestação mostra claramente que para a utilização da máquina encontrava-se disponível um pilão ao lado da mesma”, “sendo que o mesmo servia para empurrar a matéria prima que se pretendia picar para baixo junto dos discos”, seguindo-se extratos do que se diz resultar dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD, para se afirmar de seguida que, “tendo sido referido pelas 3 testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento que junto da máquina se encontrava um utensílio cujo objectivo era empurrar a matéria que se pretendia picar” “e que em caso de utilização o incidente não se daria, parece à recorrente que seria fundamental que tal facto estivesse elencado nos factos dados como provados”.
Da referida invocação, importa dizê-lo, não se extrai, pois que não referido, por um lado, se o facto que se pretende ver aditado foi ou não alegado pela Ré / recorrente na sua contestação, sendo que o que se constata é que não o foi, e, não o sendo, qual o fundamento legal que imporia que, ainda assim, mesmo que porventura resultasse da discussão da causa, devesse ser considerado, tendo designadamente presente o regime que se encontra estabelecido no artigo 72.º do CPT.
Dispõe-se no referido normativo, no que aqui importa, designadamente o seguinte: “1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve o juiz, na medida do necessário para o apuramento da verdade material, ampliar os temas da prova enunciados no despacho mencionado no artigo 596.º do Código de Processo Civil ou, não o havendo, tomá-los em consideração na decisão, desde que sobre eles tenha incidido discussão. 2 - Se os temas da prova forem ampliados nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respetivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias. (…)”.
Por sua vez, resulta do artigo 5.º do CPC, mais uma vez na parte que aqui releva, o seguinte: “1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. 2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; (…)”.
Assim o relembramos pois que, a respeito da questão relacionada com a exigência ou não de culpa na violação, como temos afirmado em outros Arestos e resulta também no recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de outubro de 2021[4], “cabe à entidade responsável o ónus da prova dos factos descaracterizadores do acidente, porque constituem factos impeditivos do direito invocado pelo sinistrado”, pelo que, no que aqui importa, dada a natureza do facto que se pretende ver aditado, porque diretamente relacionado com a descaraterização do acidente, assumindo aliás a natureza de essencial nesse âmbito, se impunha à Ré, aqui recorrente, que esse tivesse expressamente alegado na sua contestação, impondo-se-lhe ainda, depois, o ónus da sua prova.
Não tendo sido, como se viu, o facto que se pretende aditar sequer alegado, ainda que porventura tivesse resultado da discussão da causa, então, como resulta do regime legal antes mencionado, tratando-se de facto essencial, importa que possamos extrair que tenha sido observado o regime previsto nos n.ºs 1 e 2 do citado artigo 72.º, para que pudesse ter sido considerado pelo Tribunal recorrido.
Ora, com o referido objetivo, vista a motivação constante da sentença, constatamos que o Tribunal recorrido aí introduziu considerações a respeito do “pilão” e sua utilização ou não, evidenciando-se deste modo que tal matéria teria sido objeto de discussão em audiência de julgamento.
Na verdade, fez-se constar da motivação constante da sentença o seguinte:
“Quanto à tarefa que a A desempenhava aquando do acidente – picando alhos pela segunda vez -, modo de funcionamento da máquina na execução dessa tarefa – sendo uma máquina de picar carne, os discos por onde sai o produto acabado ficavam com os orifícios entupidos com a massa de alho assim que esta de alguma forma secava, pelo que a máquina ficava com a massa de alho congestionada no seu interior, sendo inviável usar o “pilão” para empurrar a massa de alho (pois que tendo esta uma consistência pastosa e quase líquida, se o “pilão” fosse usado a massa de alho sairia do orifício e não era possível fazer a tarefa em questão, para além de a massa ter de ser introduzida no orifício com a ajuda das mãos pois que não era possível usar o pilão nessa tarefa (atenta a forma da massa pastosa e quase liquida), pelo que a máquina funcionava ora com momentos de aparente pausa ora com solavancos repentinos e velocidade elevada (conforme os buracos do disco fossem sendo desobstruídos), colando-se a massa de alho às luvas da operadora –, forma como tal tarefa era usualmente realizada pelas trabalhadoras da R (que usavam a mão com a luva posta para conduzir a massa de alho para o orifício do funil e aí, usando os dedos, mexiam a massa de alho para fazer com que a massa se movimentasse e desobstruísse os orifícios do disco), sendo que a funcionária mais antiga da R era a testemunha CC (como esta afirmou e foi confirmado pela testemunha BB) e era esta que usualmente ensinava as demais trabalhadoras e que esclarecia as suas dúvidas, sendo o conhecimento e os métodos de trabalhado da R transmitidos verbalmente entre as funcionárias da R, pelo que é plausível que o método de produção da massa de alho para integrar molho de leitão seguido na organização produtiva da R fosse, à data do sinistro, o referido pelas testemunhas CC e BB.
Contudo, nenhuma das testemunhas inquiridas presenciou o acidente – sendo que a testemunha BB até estava ausente do serviço por baixa médica, estando a testemunha CC a trabalhar na mesma sala, mas num ponto extremo. Porém, a testemunha CC contou a forma como a A, logo após o acidente a procurou para que a ajudasse e o estado em que se encontrava, não tendo a testemunha qualquer dúvida ao afirmar que a A estava prostrada e combalida, sendo de afastar completamente a hipótese de deliberadamente a A ter introduzido os dedos na máquina de molde a serem amputados. Ambas as testemunhas relataram que o acidente se terá ficado a dever ao facto de a A ter necessidade de empurrar a massa de alho com as mãos para o orifício do funil, ter de movimentar a massa de alho para descongestionar a máquina usando as mãos junto à superfície, e de ter de usar luvas de borracha, pelo que, com a consistência e aderência da massa de alho, as luvas terão sido puxadas para baixo e num movimento repentino e rápido da máquina a mão da A terá sido puxada em direcção ao mecanismo de corte – “sem fim” -, sendo que o funil permitia perfeitamente a entrada da mão da A, bem como a mão de cada uma das testemunhas CC e BB; e o uso da luva, a reduzida dimensão do cilindro e o facto de haver muita massa de alho pegajosa e pastosa no próprio funil terá impedido a A de retirar a mão com a rapidez necessária para evitar o acidente.
Por seu turno a testemunha DD - técnico de higiene e segurança no trabalho, que prestou serviços à R de avaliação de riscos profissionais apresentada pela entidade empregadora, tendo elaborado o documento referido pela ACT na informação junta aos presentes autos em 23/2/2022, sendo que o documento de avaliação de riscos profissionais está datado de 07/01/2022, ou seja dois dias após a visita inspetiva da ACT (na sequência da comunicação que a essa entidade foi feita no âmbito dos presentes autos) – referiu que em caso algum um operador da máquina deveria introduzir os dedos no “funil” da máquina, mas não conseguiu esclarecer qual o procedimento que deveria ser adoptado no caso da máquina picadora ser usada para triturar alhos e muito menos para triturar o resultado de uma primeira trituração de alhos (massa de alho), pois que é evidente que o uso do “pilão” era impossível, como decorre de regras de experiência comum e foi relatado pelas testemunhas BB e CC. Aliás, sequer conseguiu explicar se aquela máquina era a adequada para realizar tal tarefa.
Todavia do referido documento junto aos autos pela ACT é possível concluir, sem margem para dúvidas, que à data do sinistro inexistia avaliação de riscos profissionais da referida máquina.
Por tudo o exposto, teve-se por provado o vertido em 3) a 7) da factualidade provada e não provado o vertido em a) a d) da factualidade não provada.
Pois bem, cumprindo-nos apreciar, na consideração de que afinal a matéria que se pretende aditar teria sido objeto de discussão em audiência, ouvidos que foram nesta sede recursiva integralmente (não obstante claras dificuldades por decorrência de barulhos que se constatam) os registos de gravação, assim das três testemunhas indicadas pela Recorrente e que foram consideradas na motivação antes citada, o que se constata, salvo o devido respeito, é que a Recorrente, em vez de atender a tudo o que foi referido, faz uma escolha de passagem que possa de algum modo dar sustentação ao que defende no presente recurso, sendo que, porém, para além de sequer serem fieis as transcrições que faz nas alegações, o que resulta, na consideração de tudo o que efetivamente foi referido pelas testemunhas, é um claro suporte às considerações que o Tribunal recorrido fez constar da motivação: a testemunha BB, fazendo é certo no depoimento referência à existência do pilão, a pergunta sobre como faziam, disse que era normal meterem a mão (minutos 7), que tratando-se de alho parecia uma pasta… parece cola, que é diferente picar alho e carne … que a massa ficava pegajosa…, que usavam luvas … mas como era uma pasta … (minutos 8); CC, referindo é certo a existência do utensílio para empurrar, referiu que era normal às vezes meter os dedos… que é mais pegajoso… que normal meterem a mão no orifício… às vezes na pontinha… com o dedo…, era normal (minutos 8) e, perguntada sobre qual teria sido a origem do acidente, referiu que, como é pegajoso aquela coisa puxa a luva… puxou a mão para baixo…, referindo ainda sobre a velocidade da máquina nessas alturas, que aquilo demora… vai indo um bocadinho… a gente vai empurrando (minutos 9); por último, DD, referindo efetivamente que em nenhuma situação seria normal introduzir a mão na máquina e que para empurrar a matéria a moer utiliza-se o pilão (minutos 4/5), como ainda a pergunta sobre a causa do acidente que era uma situação complicada… houve uma distração… uma falha… de segurança que levou a negligenciar o perigo (minutos 8/9) intenção de meter lá a mão para remover… ou limpar (minutos 9/10), no entanto, como bem o salienta o Tribunal, reconheceu que não tem sequer experiência com estas máquinas (minutos 10)… que nunca picou alho (minutos 11), não esclarecendo o que deveria ser feito caso se tratasse de picar alho … por se tratar de uma pasta (sendo confrontado com o que teria sido referido nesse âmbito pelas outras testemunhas) e, confrontado com o que teria sido dito por outra testemunha, assim que iam lá com as luvas … que é uma pasta já líquida (minutos 14) e por isso pode justificar ir lá com os dedos…, acabou por referir não ponho em causa isso…, como depois, confrontado com a afirmação de que sendo uma coisa pegajosa… que não há hipótese de usar o pilão com pasta de alho (minutos 19) , apenas refere que devia usar o pilão… não sendo possível nunca meter lá as mãos (19/20) e, por fim, para além do mais, questionado se não se deveria usar outra máquina diferente para picar alho, respondeu talvez… (minutos 20/21). Ou seja, como antes o dissemos, o que se fez constar da motivação encontra, afinal, na nossa ótica, adequado suporte na prova que é indicada e que foi produzida, mesmo para efeitos de não poder formar convicção positiva nos termos defendidos pela Recorrente.
Sendo do modo indicado, o recurso terá de improceder nesta parte, o que se decide.

1.2.2. Consta, por sua vez, das conclusões 13.ª e 14.ª:
- “Acresce ainda que, entende a recorrente que é indispensável para o bom julgamento da causa estabelecer um outro facto dado como provado, que é o diâmetro da entrada da alimentação da máquina”;
- “Devendo assim ser aditado o seguinte facto: O orifício por onde era alimentada a máquina tem um diâmetro não superior a 7 centímetros”
Pronunciando-se o Ministério Público pela improcedência, cumprindo-nos pronúncia, importa esclarecer, pois que a Recorrente o não refere quando o deveria fazer, que o que estará em causa é a matéria da alínea a) considerada não provada, com a redação seguinte “o “funil” ou o “tubo” onde é colocada a carne tem um diâmetro tão pequeno que somente empregando força física a A conseguiria introduzir a mão no mesmo. Tal matéria, resultando afinal do alegado nos artigos 12.º a 14.º da contestação (“12. Ora, o “funil” ou o “tubo” onde é colocada a carne tem inclusivamente um diâmetro pequeno, exactamente para impedir que ocorram lesões com qualquer distracção ou “por ato infortuito” como refere a A. sinistrada; 13. À A. sinistrada é impossível introduzir a mão no referido “túnel” ou “funil” por lapso ou por distracção ou “ato infortuito”; 14. O introduzir a mão no “funil” ou “tubo” de alimentação carece até de algum esforço dado o reduzido diâmetro”), a verdade é que aí não se alegou o que agora se pretende ver provado, assim que “o orifício por onde era alimentada a máquina tem um diâmetro não superior a 7 centímetros”. No entanto, aceitando-se que se trate de facto concretizador para efeitos de aplicação do regime previsto nos artigos 5.º do CPC e 72.º do CPC, nos termos que delineámos no ponto anterior da nossa apreciação, em termos de poder ser considerado por este Tribunal superior ainda que não atendido em 1.ª instância, como o temos entendido em outros arestos, a verdade é que sequer encontra adequado suporte na prova que é indicada, assim pela Recorrente, ou seja, dessa não resulta, com suficiente suporte, que o diâmetro seja efetivamente não superior a 7 centímetros.
É que, sendo verdade que a testemunha DD refere que o diâmetro será de 6/7 centímetros (minutos 6), no entanto, a testemunha BB, dizendo que não sabia a largura do funil, afirmou, porém, que a mão entrava … que podiam lá meter a mão inteira (minutos 9/10) e a testemunha CC, por sua vez, que seria normal meterem a mão no orifício… às vezes na pontinha… (minutos 8), ou seja, dúvidas ficam sobre saber qual seria afinal o diâmetro do orifício por onde era alimentada a máquina, a que acresce, importa tê-lo em conta, que se trataria de facto concretizador do facto que foi efetivamente alegado, esse a que antes nos referimos, sempre importaria que se pudesse dar esse como provado, o que no caso, em face da prova produzida e aqui indicada, como o salienta bem o Tribunal recorrido, não pode afirmar-se, justificando-se assim que tivesse sido considerado não provado.
Em face do exposto, improcede o recurso também nesta parte.

1.3. Nos termos que resultam da apreciação anteriormente realizada, a base factual a atender, para dizermos de Direito, é aquela que foi considerada pelo Tribunal a quo, com a alteração que antes determinámos.

2. Dizendo de Direito:
Cumprindo-nos agora verificar se a sentença recorrida aplicou adequadamente a lei e o direito, constata-se que, em face das conclusões apresentadas pela Recorrente, no sentido de ver alterado o julgado, misturando-se é certo argumentos de facto com argumentos de direito, no que a estes últimos diz respeito, percebe-se que é invocando, designadamente, o seguinte:
- quanto ao valor de €4,50x22x11 utilizado no cálculo da retribuição anual da Sinistrada, esse não pode ser considerado, por não resultar provado o facto 16.º e não lhe ser exigível o pagamento de subsídio de alimentação na medida em que não existe IRCT aplicável, pelo que o valor da remuneração anual deverá ser apenas €9310 resultante do salário de €665 x 14;
- colocar os dedos para empurrar matéria prima dentro de uma máquina em funcionamento através de um orifício que tem entre 6 e 7 centímetros quando deveria utilizar o instrumento que aí se encontrava com esse objetivo é um comportamento temerário, que não resultou assim de um mero descuido ou de um desequilíbrio – essa introdução exige alguma força e à Sinistrada será impossível introduzir a mão no referido “túnel” ou “funil” através do tal orifício por lapso –, tratando-se de uma falta grave e indesculpável, de uma conduta grosseiramente negligente, ou seja, reprovável pelo mais elementar senso comum, face à sua especial perigosidade, não sendo pelo facto de se tratar de massa de alho que já é justificável inserir a mão pelo orifício onde no fundo estão as lâminas, sendo que, havendo a necessidade de introduzir as mãos ou os dedos na máquina ou no “túnel” de alimentação, o bom senso obriga a desligar a máquina – a sentença recorrida violou ou pelo menos fez uma incorreta apreciação dos preceitos estabelecidos nos artºs 14 alínea b) e n.º3 da LAT.
Pronunciando-se o Ministério Público pela manutenção do julgado, cumprindo-nos apreciar, em termos de ordem lógica, pois que dessa dependerá a necessidade de apreciação da outra questão, não se levantando ainda questões a respeito de estarmos no caso perante um acidente de trabalho – a Recorrente não o questiona –, como ainda o decidido na parte em que se considerou não estarmos perante responsabilidade agravada por violação de regras de segurança, importa que a nossa análise comece pela questão da descaraterização ou não do acidente, ao invocar a Recorrente que a sentença recorrida violou ou pelo menos fez uma incorreta apreciação do estabelecido no artigo 14.º, alínea b), e n.º3, da Lei nº 98/2009 (LAT).

2.1. Questão da descaraterização ou não do acidente
Consta da sentença recorrida, a propósito da questão que agora nos ocupa, o seguinte (transcrição):
“(…) Da excepção de descaracterização do acidente.
A R pugna pela descaracterização do acidente dos autos nos termos do artigo 14º, nº 1, alíneas a) e b) da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro (NLAT).
Dispõe o artigo 14º, sob a epígrafe descaracterização do acidente, que:
“Artigo 14º
Descaracterização do acidente
1- O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
2- Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
3- Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Nos termos do citado artigo 14º, n.º 1, al. a), considera-se existir causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pela entidade empregadora da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
Para que ocorra uma situação de descaracterização por violação de regras de segurança impõe-se a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei; violação, por acção ou omissão, dessas condições, por parte da vítima; que a actuação desta seja voluntária e sem causa justificativa; que o acidente seja consequência necessária dessa actuação, isto é que exista nexo de causalidade entre a referida violação e o evento (Vd. Pedro Romano Martinez, “Direito do Trabalho”, 2ª edição, Almedina, pág. 833; e Carlos Alegre, “Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais” – Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, Almedina, pág. 61).
O primeiro dos apontados requisitos está relacionado com o disposto no art. 17º, nº 1 al. a) da Lei 102/2009, de 10.09, segundo o qual constituem obrigações do trabalhador “cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador”.
E, no que se refere às instruções de segurança estabelecidas pelo empregador, não basta a sua existência, sendo necessário também que elas sejam transmitidas ao trabalhador. Como se pode ler no Ac TRP de 7/7/2016, Relatora Exma Senhora Juiz Desembargadora Paula Leal de Carvalho, publicado em www.dgsi.pt, não satisfaz tal requisito o eventual conhecimento pelo sinistrado de noções ou regras de segurança decorrentes seja da sua experiencia profissional, seja do senso comum e/ou da prudência [caso este em que a descaracterização do acidente deverá ser equacionada porém no âmbito da situação prevista na al. b) do nº 1 do art. 14º, mas não já no âmbito da sua al. a)]. É necessário que, efectivamente, o empregador adopte medidas/instruções expressas e concretas de segurança e que as transmita ao trabalhador. No Acórdão do STJ de 03/03/2016, Processo 568/10.3TTSTR.L1.S1, publicado no mesmo local, pode ler-se: “o cumprimento de tais obrigações pressupõe que o empregador lhe tenha fornecido a necessária informação e ministrado a adequada formação em matéria de segurança e saúde no local de trabalho. Efectivamente, e conforme resulta do artigo 282º, nº 1 do Código do Trabalho/2009, o empregador deve informar os seus trabalhadores sobre aspectos relevantes da sua protecção em matéria de segurança e saúde e deve assegurar-lhes formação adequada que os habilite a prevenir os riscos associados ao exercício da respectiva actividade, conforme lhe impõe o nº 3. Iguais obrigações decorrem do artigo 127º do mesmo compêndio legal, que sob a epígrafe “deveres do empregador” estabelece no seu nº 1, alínea f), que constitui obrigação deste fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidentes de trabalho. E identicamente estabelece o nº 1 do artigo 20º da supracitada Lei nº 102/2009, que o trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho em que se insere e o exercício de actividades de risco elevado que lhe estejam associadas.
Olhemos, agora, a al. b) do n.º 1 e o nº 2 do citado artigo 14º. Por negligência grosseira entende-se o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na (própria - Vd. Carlos Alegre in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2º edição, pág. 186 e 187) experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão. Como se pode ler no Ac STJ de 16/6/2016, relatora Exma Senhora Juiz Conselheira Ana Luísa Geraldes, publicado no mesmo local: são considerados pressupostos jusnormativos da descaracterização com fundamento na negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau por parte do sinistrado e o exclusivo nexo causal entre o comportamento do trabalhador e a ocorrência do acidente.
Assim, no que respeita à descaracterização do acidente prevista na alínea b) do nº1 do artigo 14º, tem-se entendido que se impõe que se verifique, cumulativamente, a existência de uma situação de culpa grave e indesculpável da vítima e a exclusividade dessa culpa na eclosão do acidente (causa adequada e exclusiva do sinistro). No que respeita a este último aspecto, para excluir o direito à reparação é indispensável que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado.
Citando o Ac TRP de 7/7/2016 já atrás citado, a culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto – cfr. Vaz Serra, RLJ, 11º – 151, podendo nela distinguirem-se três graus: culpa levíssima, que é aquela que só as pessoas extremamente diligentes podem evitar; o de culpa leve, que é aquela em que não cairia uma pessoa de vigilância ou diligência média; o de culpa grave, que é aquela em que o agente usa de uma diligência abaixo do mínimo habitual, procedendo como pessoa extremamente desleixada Por outro lado, e para Galvão Teles, Direito das Obrigações 274, 4ª edição, quer a culpa grave quer a leve correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater - se absteria, consistindo a diferença entre elas em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida, apresentando-se por isso como uma culpa grosseira, correspondente à “magna negligentia” dos romanos.
Assim, tem-se entendido que para que se verifique uma situação de culpa grave e indesculpável da vítima necessário se torna a existência de um comportamento temerário, inútil, indesculpável da vítima, reprovado por um elementar sentido de prudência (Cfr. Acórdãos. S.T.J. 29/10/2003, C.J./STJ, t. 3º, pág. 272 e 04/03/2004, C.J./STJ., t. 2º, pág. 52). Ou seja, está em causa uma falta do dever objectivo de cuidado traduzida num comportamento temerário, em alto e elevado grau. A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares. Ao exigir a negligência grosseira, ou culpa grave, no sentido atrás referido, «o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias.» – cfr. Carlos Alegre loc cit, pág. 63.
No que concerne à culpa é pacífico que a mesma não deve apreciar-se em abstracto, mas, sim, caso por caso, ponderando-se as circunstâncias do caso concreto. Como melhor escreve Cruz de Carvalho, “a existência de culpa grave e indesculpável não deve ser apreciada a um tipo abstracto de comportamento, mas sim em concreto, isto é, casuisticamente em relação a cada caso particular (In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, pág. 43; veja-se neste mesmo sentido Acórdão STJ 27/03/2003, in C.J./S.T.J. t. 1º, pág. 283 e Carlos Alegre, loc cit, págs. 62 e 63).
Como se pode ler no Ac STJ de 11/2/2015, relator Exmo Senhor Juiz Conselheiro Melo Lima, “trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta.» (Ac. STJ de 22.09.2011, Proc. Nº896/07.5TTVIS.C1.S1; consultável em http://www.dgsi.pt/jstj. ). A negligência grosseira que a lei exige para descaracterizar o acidente de trabalho corresponde a culpa grave, pressupondo, para a sua verificação, que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.» (Ac. S.T.J. de 14.02.2007, Processo nº 06S3545; consultável em http://www.dgsi.pt/jstj.). Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum. A “negligência grosseira” deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta.» (Ac. S.T.J. de 09.06.2010, Proc. Nº 579/09.1YFLSB; consultável em http://www.dgsi.pt/jstj.)
Quanto ao ónus da prova dos factos que importam a descaracterização, é pacífico que o mesmo incumbe à entidade responsável pela reparação (v.g. à seguradora, por ter a responsabilidade da entidade patronal transferida para si; à entidade patronal, nas situações em que não exista seguro; a ambas, nas situações em que não foi transferida toda a responsabilidade da entidade patronal para a seguradora), porque impeditivo do direito do sinistrado/beneficiário – artigo 342º, nº 2, do Código Civil (Vd. Luís Manuel Teles Meneses Leitão, “A Reparação de Danos Emergentes de Acidentes de Trabalho”, in “Estudos do Instituto do Direito de Trabalho”, Vol. I, Almedina, pág. 559, em nota, e Ac STJ de 19/11/2014, relator Exmo Senhor Juiz Conselheiro Fernandes da Silva, publicado no mesmo local).
Revertendo ao caso dos autos, analisada a matéria de facto apurada, forçoso é concluir que a ré não logrou provar, como era seu ónus fazer – cfr. artigo 342º, n.º 2 do Código Civil –, a factualidade que permitiria concluir pela descaracterização do acidente dos autos por referência a qualquer uma das situações previstas no citado artigo 7º e especificamente à invocada situação prevista na alínea c) do nº 1 desse normativo – veja-se a factualidade não provada das als a ) a d)) – não se tendo provado que a A tenha colocado a mão no funil da máquina propositadamente, nem que tenha aí introduzido os dedos fazendo força.
Na verdade, apesar de se ter apurado que a A aproximou os dedos do funil da máquina e acabou por ver três dedos serem atingidos por partes móveis cortantes da máquina, o que não basta para lhe ser assacada culpa, nem na forma de dolo nem de negligência grosseira.
Assim, não poderemos concluir que a A tenha adoptado uma conduta gratuita e de todo infundada, altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
O ónus dessa prova impendia sobre a R (art.º 342º, n.º 2 CC), pelo que não se verifica, desde logo, o primeiro requisito para que possa proceder a descaracterização do acidente de trabalho dos autos por violação de regras de segurança pelo sinistrado (art.º 14º, n.º 1, al a) NLAT).”
Face à citada fundamentação, que temos no essencial como convincente, não obstante a alteração a que procedemos em sede de recurso sobre a matéria de facto, mas que não contende com a questão que aqui se reanalisa, não encontramos razões para divergir do sentido da decisão recorrida, ao ter concluído que não ocorre descaraterização do acidente como de trabalho, assim por não se poder ter como demonstrada a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, a que alude a Apelante.
Vejamos o porquê do nosso entendimento:
O regime de reparação dos acidentes de trabalho que resulta da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, aplicável ao caso, no que agora importa, não comete, sem mais, ao empregador a responsabilidade pela reparação dos danos de todo e qualquer acidente de trabalho, assim, no que ao caso importa, não atribui tal responsabilidade, como resulta do artigo 14.º, n.ºs 1, alínea b) e n.º 3, quanto a acidente que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, como tal se entendendo o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
A propósito da densificação do conceito, há muito que a Doutrina e a Jurisprudência se vêm pronunciando, como aliás dá nota o Tribunal a quo, podendo ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2014[5], a esse propósito, que tal densificação, “resultante da progressiva elaboração doutrinal e jurisprudencial, conduziu – … também por indução da reconhecida dificuldade na delimitação da ténue fronteira entre os comportamentos causais dolosos[6] /intencionais e a falta grave e indesculpável da vítima[7], esta no plano da negligência consciente – à estabilização do entendimento vigente segundo o qual apenas relevam para a descaracterização do acidente os comportamentos ostensivamente inúteis, indesculpáveis, gratuitos, reprovados por um elementar sentido de prudência, casuisticamente aferíveis pelo padrão do cidadão médio[8], diligente e honesto, simbolizado no clássico paradigma do ‘bonus pater-familias’”. Mais se acrescenta, com relevância, que “a conduta, assim delineada, terá necessariamente de ser causal do acidente e, além disso, há-de ser a sua condição/causa única, ou seja, a eclosão do acidente tem na sua génese a exclusiva actuação do trabalhador/sinistrado”, sendo que “o nexo, no processo causal, estabelece-se entre o facto praticado pelo agente e o dano, em termos de poder afirmar-se que este, numa natural relação de causa-efeito, é resultante daquele. (…)”.
Mais se esclarece no Acórdão do mesmo Tribunal de 7 de Maio de 2014[9]– aí a propósito da redação que constava do artigo 7.º, n.º 1, b), da Lei n.º 100/97 mas que se mantém com atualidade (ao estipular que a descaracterização do acidente exige que o comportamento do sinistrado seja a sua causa exclusiva) –, que “ (…) será (ainda assim) de concluir no mesmo sentido, sempre que, proporcionando os factos uma compreensão da dinâmica do acidente, nada sugira, a par da conduta culposa do sinistrado, a concorrência de qualquer outra causa na produção do acidente (v.g., facto praticado por outro interveniente no acidente ou por terceiro, caso fortuito ou de força maior), ou seja, quando – à luz de critérios de credibilidade racional, razoabilidade e experiência comum – nada permita conjeturar no sentido de tal eventualidade (i.e., quando nenhum motivo concreto/objetivo a torne verosímil). Com efeito, à semelhança do que se verifica no plano da prova, o tratamento jurídico do quadro factual apurado não pressupõe uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodítica [10] relativamente à sua completude, sendo irrelevante a mera probabilidade de verificação de dimensões factuais que não tenham sido apuradas (maxime, quando as mesmas não são sequer suscitadas no processo).[11] Sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função essência de instrumento de paz social e de realização da justiça, a prova assenta na certeza relativa ou histórico-empírica dos factos [12], ou seja, noutras palavras, mas com o mesmo alcance: no alto grau de probabilidade de verificação dos factos, suficiente para as necessidades práticas da vida; [13] no grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o determinado facto; [14] na consciência de um elevado grau de probabilidade (convicção), assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões.[15]
Na consideração, pois, de tudo o que se disse anteriormente, importando agora decidir o caso que se aprecia, não encontram as premissas de que parte a Apelante suficiente sustentação na factualidade provada, como bem o salientou o Tribunal recorrido, quando fez constar, o que acompanhamos, que, apesar de se ter apurado que a A aproximou os dedos do funil da máquina e acabou por ver três dedos serem atingidos por partes móveis cortantes da máquina, tal não basta para lhe ser assacada culpa, nem na forma de dolo nem de negligência grosseira, não se podendo concluir, assim, que estejamos perante uma conduta gratuita e de todo infundada, altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum – prova que impendia sobre a Ré –, na consideração, como antes se referiu, o que importa relembrar, como consta do Aresto citado, que “apenas relevam para a descaracterização do acidente os comportamentos ostensivamente inúteis, indesculpáveis, gratuitos, reprovados por um elementar sentido de prudência, casuisticamente aferíveis pelo padrão do cidadão médio[[16]], diligente e honesto, simbolizado no clássico paradigma do ‘bonus pater-familias’”.
Deste modo, concluindo, face aos elementos dos autos, por aplicação dos critérios antes enunciados a esse respeito, consideramos que não ocorre descaraterização do acidente como de trabalho, como considerado na sentença recorrida, improcedendo assim o recurso quanto a esta questão.

2.2. Do valor da retribuição a considerar
Sustenta a Recorrente que, quanto ao valor de €4,50x22x11 utilizado no cálculo da retribuição anual da Sinistrada, esse não pode ser considerado, por não resultar provado o facto 16.º e não lhe ser exigível o pagamento de subsídio de alimentação na medida em que não existe IRCT aplicável, pelo que o valor da remuneração anual deverá ser apenas €9310 resultante do salário de €665 x 14.
Consta da sentença recorrida, no que a esta questão diz respeito, o seguinte:
“(…) A incapacidade permanente parcial que afecta a A, nos termos do disposto nos artigos 48º, nºs 2 e 3, al. c), da Lei n.º 98/2000, de 04/09, confere-lhe o direito a receber uma pensão anual e vitalícia correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho ou de capital de remição da pensão nos termos previstos no art. 75º, onde se declara, por sua vez, serem obrigatoriamente remíveis todas as pensões anuais e vitalícias devidas à sinistrada com incapacidade permanente parcial inferior a 30%, como é o caso.
Acresce que nos termos do n.º 2 do art. 50º daquele diploma legal, a pensão por incapacidade permanente é fixada em montante anual e começa a vencer-se no dia seguinte ao da alta do sinistrado, ou seja, no caso, em 11/1/ 2018.
Da factualidade provada resulta que, aquando do acidente, a sinistrada auferia uma retribuição de € 665,00 e que a R lhe fornecia almoço.
O conceito especial de retribuição que resulta das normas relativas aos acidentes de trabalho é o seguinte: tudo o que a lei considere seu elemento integrante e ainda todas as prestações que revistam caráter de regularidade e não se destinem meramente a compensar custos aleatórios (cfr. art.º 71 da LAT, Lei dos Acidentes de Trabalho, Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro). Ou seja, em regra todas as prestações que o sinistrado habitualmente receba (conceito amplíssimo).
(…)
Releva aqui especialmente o n.º 2: para efeito de ressarcimento de acidentes de trabalho fazem parte da retribuição “todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o sinistrado por custos aleatórios”.
Constituem retribuição, as quantias, valores ou bens percebidos com regularidade e que não se destinem a compensar meros custos aleatórios do trabalhador.
Portanto, está fora de dúvidas que o subsídio de refeição, que no conceito comum do Código do Trabalho não constitui retribuição, mas uma simples compensação destinada a prover o trabalhador dos meios necessários a suportar encargos suplementares que não teria se não trabalhasse – já que em casa confecionaria, previsivelmente, os seus alimentos, apenas fazendo frente aos gastos com a sua aquisição e confeção (vg. gás) -, para efeitos de ressarcimento dos prejuízos decorrentes do acidente de trabalho já se enquadra na noção de retribuição. (…)
E se for pago em espécie?
A retribuição pode ser paga em dinheiro ou (dentro dos parâmetros legais) em espécie (art.º 259 e 261, Código do Trabalho). Se o for em espécie – e prestações há que são, por natureza, satisfeitas em espécie, como o uso de determinados bens do empregador, vg. computador, telemóvel ou veículo, quando disponibilizados pela entidade patronal em circunstâncias que permitem o uso pessoal de quem os recebe – pelo trabalhador, importa encontrar o seu valor em dinheiro, que é o modo de medir o benefício patrimonial daí decorrente (neste sentido cfr. o ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2016: “3 -
Destinando-se a viatura fornecida pela entidade empregadora ao uso profissional e pessoal do trabalhador, o valor decorrente da utilização da viatura a considerar para efeitos de retribuição é o correspondente ao efetivo benefício patrimonial obtido pelo trabalhador com o uso pessoal e não o correspondente ao custo mensal suportado pelo empregador com o uso profissional e pessoal.)
Face ao exposto, necessariamente se tem de concluir que o valor de €4,50 por dia indicado pela A como sendo o da refeição que lhe era fornecida pela R se afigura justo e equitativo.
Assim, entende-se que a A auferia a retribuição de €6.65,00 x 14 + €4,50 x 22 x 11 (€10.399,00) (…).”
Cumprindo-nos apreciar importa ter presente que, tal como resultou da reapreciação da matéria de facto que antes realizámos, foi excluído da factualidade provada o seu ponto 16.º, assim que “a ré confecionava o almoço para as demais trabalhadoras ao seu serviço, incluindo a autora, que ali a tomava”, ou seja, precisamente o facto em que o Tribunal recorrido se baseou na sentença para fundar a consideração do valor de €4,50 x 22 x 11, razão pela qual, sem necessidade de outras considerações, não se invocando regime convencional que preveja o pagamento de subsídio de refeição, o recurso terá de proceder nesta parte, devendo, pois, atender-se, excluído aquele, por decorrência, como defendido pela Recorrente, a uma retribuição anual de €9.310,00 (€665,00 x 14).
Deste modo, refazendo-se os cálculos, na consideração dos normativos aplicáveis e que constam da sentença, não havendo necessidade de aqui os repetir, é devido o seguinte:
- a título de pensão anual, o valor de €2.175, 05 (€9.310 x 0,7 x 33,375%)
-a título incapacidade temporária absoluta: €3.258,50 – (€9.310:12 30 x70%) x 180 dias de ITA.
Por decorrência do exposto, mantendo-se no mais, a sentença recorrida será alterada, em conformidade, no presente acórdão.

As custas do recurso impendem sobre Recorrente e Recorrida, na proporção do decaimento (artigo 527.º do CPC).

Sumário, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:
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IV. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, mantendo a sentença recorrida no mais, em alterar o decidido nos pontos 1.1. e 1.2 do seu dispositivo, mas apenas no que se refere, respetivamente, ao valor da pensão anual devida, constante do primeiro, que passará a ser de €2.175,05, e a título de indemnização por incapacidades temporárias, constante do último, que passará a ser de €3.258,50.

Custas do presente recurso em proporção de vencimento/decaimento.


Porto, 30 de outubro de 2023
(acórdão assinado digitalmente)
Nélson Fernandes
Germana Ferreira Lopes
Eugénia Pedro
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[1] em “Introdução ao Processo Civil, 3.ª edição, p. 196
[2] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt
[3] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt
[4] Relatora Conselheira Maria Paula Sá Fernandes, in www.dgsi.pt.
[5] Disponível em www.dgsi.pt, Relator Conselheiro Fernandes da Silva
[6] [2] - Prevenidos na 1.ª parte da alínea a) do n.º 1 da predita norma.
[7] [3] - Usando as palavras antes constantes da Base VI, n.º 1, b, da Lei n.º 2127, de 3.8.1965.
[8] [4] - Na sua perspectiva ética ou deontológica, que não propriamente estatística, como se refere, com precisão, na nota ao art. 487.º do Cód. Civil Anotado, Pires de Lima e A. Varela, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1897.
[9] In www.dgsi.pt, Relator Conselheiro Mário Belo Morgado
[10] [30] Entendendo-se por certeza apodítica, segundo Fernando Gil, Tratado da Evidência, p. 15. a que exclui o “ser de outro modo”, as “possibilidades abertas”, a “certeza presuntiva”, o “não-ser”, “o ser duvidoso”, pois apodítico é o que não pode ser senão o que é.
[11] [31] No âmbito do processo civil (e laboral), a prova (e a abordagem dos factos provados) baseia-se sempre no aproveitamento ou na rejeição, para efeitos de decisão, de uma afirmação (ou negação) sobre a realidade (Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, p. 101), reportando-se o juiz, no julgamento de facto, às hipóteses de solução (“projetos de sentença”) que neste âmbito lhe são apresentados pelas partes (ibidem, p. 286)
[12] [32] Cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 420
[13] [33] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 191/192, Vaz Serra, Provas, 115, e Antunes Varela, ob. cit., 421
[14] [34] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, 345
[15] [35] Castro Mendes, ob. cit., pp. 306 e 325
[16] [4] - Na sua perspectiva ética ou deontológica, que não propriamente estatística, como se refere, com precisão, na nota ao art. 487.º o Cód. Civil Anotado, Pires de Lima e A. Varela, Vol. I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 1897.