IMPUTABILIDADE
PERICIA PSIQUIÁTRICA REQUERIDA PELO ARGUIDO
Sumário

1.–A perícia à personalidade destina-se a avaliar a personalidade do arguido e a sua perigosidade, com a finalidade de apurar a sua culpa e tomar posição sobre a medida de coação ou a sanção a aplicar.

2.–A perícia psiquiátrica destina-se a saber se o agente é ou não imputável ou se sofre de uma patologia do foro psiquiátrico, a fim de avaliar as características psíquicas do agente e as eventuais causas patológicas do seu comportamento criminoso.

3.–A avaliação da oportunidade e da necessidade de realização da perícia compete ao juiz, que a ordena oficiosamente ou mediante requerimento.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


1– Relatório


Nos autos de processo comum singular nº 1539/21.0PBLSB, que correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 11, por despacho datado de 29/03/2023, foi indeferida a realização de perícia à personalidade do arguido AA….. , pelo mesmo requerida.

Inconformado com aquela decisão, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
1.– O recorrente vem acusado de um crime de ofensas á integridade fisica qualificada, por agressão a gente de autoridade.
2.– O recorrente padece de doença do foro psiquiatrico tendo sido já internado por duas vezes em unidade hospitalar.
3.– Ao recorrente foi diagnosticado esquizofrenia e faz actualmente tratamento ambulatório.
4.– Na contestação, foi requerida a realização de pericia à personalidade e que mereceu indeferimento.
5.– A Defesa não pode estar em maior desacordo e recorre agora de tal despacho judicial.
6.– O Despacho judicial recorrido indefere o único meio probatório possível para determinar a existência ou não de culpa e o seu grau nos factos ocorridos em Dezembro de 2022, porque entende que não resulta dos autos qualquer elemento que possa determinar a existência ou não de inimputabilidade à data dos factos.
7.– Ora, com todo o devido respeito e invocando o célebre adágio popular, estamos perante uma situação de “pescadinha de rabo na boca”, porquanto a única possibilidade de aferir da existência ou não de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, À DATA DOS FACTOS, é através da perícia à sua personalidade, por especialistas do foro psiquiátrico, e que por esse mesmo motivo, é negada a sua realização.
8.– Aliás, o despacho judicial recorrido vai mais longe, dizemos nós, substituindo-se a declaração médica, quando refere que a “existência de doença de foro psiquiátrico não constitui por si só causa de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída”. Tal conclusão, dizemos nós, apenas pode ser declarada por perito médico.
9.– Ora, se o recorrente sofre de doença do foro psiquiátrico, esquizofrenia, estando em tratamentos contínuos e ininterruptos desde o seu ultimo internamento, que foi compulsivo, e ainda assim se entende não existirem elementos suficientes para determinar a realização da perícia médica, perguntar-se-á com toda a legitimidade, em que circunstancias estará o tribunal “a quo” pronto para deferir tal pretensão legitima, actual, e consentânea com a descoberta da verdade material.
10.– Existem efectivamente elementos à data dos factos que possam corroborar a pretensão da defesa na realização da perícia à personalidade.
11.– Tais factos estão plasmados no libelo acusatório, nomeadamente nos três primeiros parágrafos, onde consta a actuação do recorrente.
12.– Destarte, não se retira qualquer móbil do crime, qualquer circunstância que justificasse a actuação do recorrente contra qualquer cidadão, muito menos contra uma autoridade policial.
13.– No libelo acusatório se dá apenas conta que o arguido, sem qualquer conversação anterior, gestos ou actuação por parte da entidade policial, partiu para a agressão.
14.– Parece evidente que alguém, actuando como o recorrente actuou, aliado ao historial clinico e aos tratamentos ambulatórios que se mantêm, que só alguém com doença psicológica é que actua como o recorrente actuou.
15.– Pelo que é mister a realização da perícia medica à sua personalidade, de forma a que o Tribunal possa julgar o cidadão agressor, ou como um cidadão sóbrio e capaz de julgar os seus actos ou como um doente que carece de tratamento.
16.– Nestes termos deverá ser ordenada a realização da perícia médica a que aludem os artigos 154º e 160º do CPP, de forma a apurar o seu grau de culpa, e a existência ou não de uma inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída.
Violaram-se as disposições legais:
Artigo 151º do CPP, porquanto a aferição do grau de culpa, a sua existência ou não, apenas pode ser alcançado pela realização de perícia à sua personalidade, face à doença de foro psiquiátrico que lhe fora diagnosticada.
Artigo 160º do CPP, porquanto, o indeferimento da realização de tal perícia inviabiliza o conhecimento do grau de culpa, da sua existência ou não, dos factos por que vem acusado.”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
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O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
1.– Compulsados os autos considera o M. P. que o despacho proferido não merece qualquer reparo dado que da análise efectuada pelo MP de todo o processo não se vislumbra, até à apresentação da contestação pelo arguido, qualquer notícia ou sequer indício de que o arguido sofresse de doença do foro mental e, muito menos, que tenha sido devido a essa doença e em momento que estivesse dominado pela mesma tenha praticado os factos que lhe foram imputados na acusação pública.
2.–Não é verdade que da própria acusação decorra sequer indícios dessa doença do arguido.
3.–Face ao exposto e tendo em conta que interessa apurar se à data da prática dos factos o arguido estaria dominado pela anomalia psíquica e, por via disso, não se poderia determinar de forma voluntária, livre e consciente e adequar-se a essa vontade, entendemos que deve ser e manter o indeferimento proferido, aguardando-se os autos a data já designada para a realização da audiência de julgamento.
4.– Entendemos que deve ser de manter, nos seus exactos termos, a decisão recorrida, considerando o M. P. inexistir a violação de qualquer norma legal.”
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso, nos seguintes termos:
“O arguido AA….., acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, sobre um agente policial, p. e p., combinadamente, pelos arts 143º, 1 e 2, 145º, 1, a), e 2, e 132º, 2, l), CP, veio, com a apresentação da Contestação, e na sequência de relatório clínico de 14.12.22, então junto, suscitar a realização de perícia médica, nos termos dos arts 151º, 154º e 160º, CPP, tendente ao apuramento da sua culpa e do respectivo grau, aquando do cometimento do ilícito imputado (pretensamente levado a cabo em 20.12.21), atendendo ao seu histórico pessoal e clínico, com diversos internamentos psiquiátricos, compulsivos, reveladores de situação patológica do foro mental, concretamente saber se à data dos factos tinha a capacidade de avaliar a ilicitude do seu comportamento e de se determinar de acordo com essa avaliação (art 20º, CP).
Dito doutra forma, pretende o recorrente que se afira se o elemento subjectivo vertido na Acusação, nos seus antepenúltimo e último parágrafos (“…Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu livre, deliberada, e conscientemente, com o propósito, concretizado, de atentar contra a integridade física do agente …., bem sabendo que este se encontrava no exercício das suas funções.
O arguido sabia que a sua actuação não era permitida e, que era proibida e punida por lei penal….”) correspondem à realidade, questionando o efectivo preenchimento dos elementos volitivo, intelectual e emocional da tipicidade subjectiva.
A Exmª PR, afecta ao JLCriminal recorrido, sustenta a improcedência recursória, secundando, “grosso modo”, a linha de raciocínio em que se fundeou o douto Despacho recorrido, proferido a 29.03.23, isto é, reiterando (como oportunamente havia promovido nos autos) que não há elementos, mesmo que indiciários, que atestem essa incapacidade avaliativa no momento delituoso, ou que legitimem/projectem tamanha dúvida.
Salvaguardando o máximo respeito por posição diversa, afigura-se-nos que, estando demonstrado que o agente do crime experimentou já diversos internamentos compulsivos/involuntários, por padecer de esquizofrenia, doença do foro psiquiátrico, configurando uma anomalia psíquica grave (cfr Leis de Saúde Mental 36/98, 24.07 e 35/23, 21.07), é mister que se defina, tanto quanto possível, a condição cognitiva e volitiva do recorrente na ocasião dos factos, necessidade/imprescindibilidade acrescidas pela circunstância de já em 2014 ter sofrido um episódio psicótico que lhe gerou internamento hospitalar, de cariz psiquiátrico, conforme informação do “Relatório Geral” elaborado pelo Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, junto com a Contestação, datado de 14.12.22
A não ser deferida a pretendida diligência pericial, forçosamente o Tribunal confrontar-se-á, em Julgamento, com essa lacuna investigatória, com evidente repercussão na Decisão final (art 160º, 1, 2º período, CPP), com óbvio prejuízo para a descoberta da verdade e bondade da Decisão, impondo-se, então, com alta probabilidade, a realização da perícia em momento ulterior (art 340º, CPP), justamente o que se pretende evitar ou antecipar com a imediata efectivação da avaliação psiquiátrica, reportada à data de 20.12.21, com inegáveis ganhos na agilização e celeridade da administração da Justiça, até porque se trata de temática (clínica) que transcende o conhecimento jurídico (art 163º,1, CPP), recomendando, outrossim, a intervenção complementar doutra área do saber (arts 151º, CPP).
Mais: estando agendada Audiência para Outubro próximo, antevê-se que o seu protelamento seria curial, apetrechando, previamente, o Tribunal de Julgamento da informação necessária à boa Decisão final, dispondo dos elementos aptos a esse desiderato.
Pelo que, em síntese, acompanhamos a tese recursória, pela justeza da pretensão.”
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2– Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

À luz destes considerandos, a questão a decidir neste recurso consiste em apurar se deve o despacho judicial recorrido ser substituído por outro que ordene a realização de perícia ao arguido, a fim de apurar o seu grau de culpa e a existência ou não de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída. 
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3- Fundamentação:
É a seguinte a decisão recorrida, datada de 29/03/2023:
Da prova pericial requerida com a contestação
Vem o arguido requerer a sua sujeição a perícia médica por forma a se aquilatar do grau e da existência de culpa à data dos factos.
Foram juntas aos autos as pesquisas quanto a processos pendentes, cfr. referência Citius n.º 34923157.
O Ministério Público pronunciou-se nos termos constantes da referência Citius n.º 423925328.
Cumpre apreciar e decidir.
Dos elementos constantes dos autos, resulta ter o arguido já sido objecto de internamentos compulsivos, bem como que o mesmo padece de doença do foro psiquiátrico atento o relatório junto com a contestação.
Com efeito, a mera existência de internamentos compulsivos e de acompanhamento em psiquiatria não suficiente para considerar que o arguido à data dos factos, se encontrava incapacitado de aferir da natureza da sua conduta.
Aliás, diga-se, a existência de doença do foro psiquiátrico, não constitui por si só causa de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, porquanto tal situação se tem de aferir à data dos factos e só a esta.
Deste modo, inexistindo nos autos elementos que permitam indiciar que o arguido à data de 20 de Dezembro de 2021, se encontrava impossibilitado de avaliar a sua conduta, indefere-se o requerido.
Notifique.”
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Esta decisão reporta-se ao seguinte requerimento do arguido, datado de 22/12/2022:
“AA…….., arguido nos autos em epígrafe, vem, nos termos do artigo 311- B do CPP, apresentar a sua Contestação e rol de testemunhas, que faz no seguintes termos:
1.–O arguido padece de doença do foro psiquiátrico há vários anos.
2.–O arguido já esteve internado em unidade hospitalar por duas vezes, sendo que da ultima vez esteve internado compulsivamente durante um mês. (doc.1)
3.–O arguido sofre de esquizofrenia, o que justifica os seus comportamentos violentos.
4.–O arguido faz actualmente tratamento ambulatório, deslocando-se uma vez por mês à unidade hospitalar de forma a obter o tratamento que controla o surto esquizofrénico.
5.–No dia 20 de Dezembro de 2021, data e hora dos factos pelo quais se encontra acusado, o arguido sofria novamente de surto esquizofrénico, o que motivou o seu comportamento violento para com o agente de autoridade.
6.–O arguido na data e hora acima, fruto do surto psicótico, não actuou livre e conscientemente, com o propósito de atentar contra a integridade física do agente …...
7.–O arguido não actuou com consciência do bem e do mal, não sabendo naquele momento distinguir tais comportamentos.
8.–O passado clinico e actual estado de saúde do arguido não é conhecido dos autos porquanto o mesmo nunca foi ouvido em sede declarações durante a conclusão da investigação.
9.–Pelo que não pode ser julgado como um cidadão sóbrio e de saúde mental plena, consciente dos seus actos.
10.–Face ao exposto requer-se a elaboração de perícia à sua personalidade por forma a apurar a sua inimputabilidade, de acordo com os artigos 154º nº1 e 160º, ambos do CPP, sem a qual não será possível aferir do grau ou existência da sua culpa em sede de julgamento, nos actos porque vem acusado.”
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O arguido juntou aos autos relatório médico, datado de 14/12/22, no qual se atesta que está diagnosticado como padecendo de Esquizofrenia, é acompanhado em consultas de psiquiatria desde Julho de 2022, após internamento por episódio psicótico em Maio de 2022, tendo tido um primeiro internamento em 2014, por quadro esquizomorfo. Mais se informa que o arguido tem antecedentes de consumo de várias substâncias psicoactivas (haxixe, heroína e cocaína), mantendo, à data do relatório, apenas consumos esporádicos de álcool e canabinoides. Informa-se ainda que o doente se encontra estabilizado do ponto de vista psiquiátrico, não se apurando sintomatologia psicótica positiva ou do humor significativa, apresenta quadro caracterizado por identificação psicomotora, abulia, avolia e embotamento afectivo, com compromisso marcado do seu funcionamento socio-ocupacional. Conclui-se que, apesar do cumprimento de medicação psicofarmacológica, a perturbação de que padece condiciona a capacidade de iniciar e manter ocupação laboral, estando financeiramente dependente de terceiros.
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Com data de 28/09/22, o Ministério Público deduziu acusação, imputando ao arguido a prática dos seguintes factos:
“No dia 20 de dezembro de 2021, pelas 21h00, o agente da Polícia Municipal ….., encontrava-se dentro de um veículo daquele corpo policial, devidamente uniformizado e no exercício das suas funções, no Largo ..... ....., em Lisboa, quando foi abordado pelo arguido, que se lhe dirigiu, dizendo: “Cota, vou-te bater”.
Então, o referido agente saiu do veículo, e disse ao arguido para seguir o seu destino.
De imediato, o arguido dirigiu-se ao agente …….., desferiu-lhe um murro nos lábios, e logo de seguida, vários pontapés na sua perna direita.
Após, o arguido encetou fuga, mas foi interceptado, logo de seguida, na Rua ....., pelo agente da Polícia Municipal ……., que lhe moveu perseguição, bem como a testemunha ……..
De seguida, foi dada voz de detenção ao arguido pelos agentes da PSP que acorreram ao local, na sequência do alerta dado pelo agente ofendido.
Como consequência directa e necessária da actuação do arguido, o agente ……. sofreu uma ferida incisa no lábio inferior à esquerda e traumatismos na face lateral da coxa direita, tendo tido necessidade de receber tratamento hospitalar.
Tais lesões determinaram-lhe 15 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral ou profissional.
Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu livre, deliberada, e conscientemente, com o propósito, concretizado, de atentar contra a integridade física do agente ………, bem sabendo que este se encontrava no exercício das suas funções.
O arguido sabia que a sua actuação não era permitida e, que era proibida e punida por lei penal. (…)”
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3.2.- Mérito do recurso
No presente recuso vem o arguido AA..... insurgir-se contra o despacho da Mmª Juíza a quo que indeferiu a realização de uma perícia à sua personalidade, ao abrigo do disposto nos arts.º 154º e 160º do Cód. Proc. Penal, porquanto considera ser aquele o único meio probatório possível para determinar a existência ou não de culpa e a existência ou não de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída à data dos factos ocorridos em Dezembro de 2022.
Alega, para tanto, que padece de doença do foro psiquiátrico há vários anos, com surtos psicóticos, tendo-lhe sido diagnosticado esquizofrenia, datando o seu último internamento compulsivo de Maio de 2022 e mantendo tratamento ambulatório, conforme relatório médico que juntou aos autos.
Mais alega que só alguém com doença psicológica é que actua como descrito na acusação pública.
Pelo contrário, o Ministério Público na primeira instância considerou que não existem nos autos, até à apresentação da contestação pelo arguido, qualquer notícia ou sequer indício de que o mesmo sofra de doença do foro mental e, muito menos, que tenha sido devido a essa doença que praticou os factos que lhe foram imputados na acusação pública.
Vejamos a quem assiste razão.
Relativamente ao despacho que ordena a perícia prevê-se no Cód. Proc. Penal que:
“Artigo 154.º - Despacho que ordena a perícia
1 - A perícia é ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho da autoridade judiciária, contendo o nome dos peritos e a indicação sumária do objecto da perícia, bem como, precedendo audição dos peritos, se possível, a indicação do dia, hora e local em que se efectivará.
2 - Quando se tratar de perícia sobre características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, o despacho previsto no número anterior é da competência do juiz, que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado.
3 - O despacho é notificado ao Ministério Público, quando este não for o seu autor, ao arguido, ao assistente e às partes civis, com a antecedência mínima de três dias sobre a data indicada para a realização da perícia.
4 - Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos:
a)- Em que a perícia tiver lugar no decurso do inquérito e a autoridade judiciária que a ordenar tiver razões para crer que o conhecimento dela ou dos seus resultados, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, poderia prejudicar as finalidades do inquérito;
b)- De urgência ou de perigo na demora.”

Já a perícia sobre a personalidade vem regulada no art.º 160º do mesmo diploma, nos seguintes termos:
1- Para efeito de avaliação da personalidade e da perigosidade do arguido pode haver lugar a perícia sobre as suas características psíquicas independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização. A perícia pode relevar, nomeadamente para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa do agente e a determinação da sanção.
2- A perícia deve ser deferida a serviços especializados, incluindo os serviços de reinserção social, ou, quando isso não for possível ou conveniente, a especialistas em criminologia, em psicologia, em sociologia ou em psiquiatria.
3- Os peritos podem requerer informações sobre os antecedentes criminais do arguido, se delas tiverem necessidade.”

Como refere Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, 2022, Almedina, pág. 311, esta é uma perícia que incide sobre os caracteres e o perfil humano e o seu grau de sociabilidade, independentemente de causas patológicas, visa sobretudo auxiliar na determinação e aplicação das medidas de coação e da sanção e não é de realização obrigatória.
Esta perícia destina-se a avaliar a personalidade do arguido e a sua perigosidade, com a finalidade de avaliar adequadamente a sua culpa e tomar posição sobre a medida de coação ou a sanção a aplicar.
Se o objectivo é saber se o agente é ou não imputável ou se sofre de uma patologia do foro psiquiátrico, o que há a fazer é uma perícia psiquiátrica, nos termos previstos no art.º 159º do Cód. Proc. Penal, pois só através desta se consegue avaliar as características psíquicas do agente e as eventuais causas patológicas do seu comportamento criminoso.
Verifica-se, assim, que o âmbito da perícia psiquiátrica é mais abrangente do que o da perícia à personalidade, pois, para além das características de personalidade do individuo e da sua capacidade de ressocialização, consegue despistar eventuais patologias mentais e determinar o seu grau de imputabilidade (cf. neste sentido, António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, in “Código de Processo Penal Comentado”, 4ª edição revista, 2022, Almedina, pág. 632 e 633).
A avaliação da oportunidade e da necessidade de realização da perícia compete, necessariamente, ao juiz, que a ordena oficiosamente ou mediante requerimento, como supra referido.

Quanto ao valor da prova pericial, prevê-se no art.º 163º do Cód. Proc. Penal, que:
1- O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2- Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”

Da análise deste preceito legal decorre que os juízos periciais concorrem de forma muito intensa para a formação da livre convicção do Tribunal, no segmento a que diz respeito a perícia, a ponto de qualquer divergência dever ser especialmente fundamentada pelos magistrados.
No entanto, é pacificamente aceite que a presunção a que se refere o nº 1 da norma diz respeito ao juízo técnico-científico e não aos factos em que o mesmo se apoia, como também decorre do disposto nos arts.º 388º e 389º do Cód. Civil (cf. neste sentido, Fernando Gama Lobo, in ob. cit., págs. 313 e 314 ).
Ou seja, conforme foi defendido no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 13/07/23, proferido no processo nº 808/21.3PCOER.L1, por nós relatado, a prova pericial não tem um valor absoluto, devendo ser articulada com os restantes meios de prova, nos termos previstos no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, mas quando o Tribunal decidir em sentido contrário da prova pericial, deve fundamentar a sua discordância.
Sucede, porém, que face aos elementos constantes dos autos, é forçoso concluir que, pelo menos, existe uma dúvida quanto à saúde mental do arguido, tendo em conta o seu historial médico documentado no processo.
Não sendo o juiz um perito médico, só de olhar para o arguido não consegue dizer se o mesmo é ou não total ou parcialmente imputável, coisa que o juiz de julgamento ao proferir a decisão recorrida nem sequer chegou a fazer.
Assim sendo, afigura-se-nos efectivamente necessária a realização de uma perícia com a finalidade de determinar o grau de imputabilidade do arguido nos presentes autos, o que se não for ordenado neste momento, poder-se-á ter que ordenar após o início do julgamento, nos termos previstos no art.º 351º do Cód. Proc. Penal, acarretando maiores delongas na conclusão do julgamento e maior prejuízo para a realização célere da justiça.

Neste sentido, veja-se, a título de exemplo o Acórdão do TRG datado de 13/07/2020, proferido no processo nº 818/18.8GCBRG-A.G1, em que foi relatora Ausenda Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: I.- A prova pericial prevista nos arts. 151º a 163º do CPP deve ser produzida quando o processo e a futura decisão se defrontam com um “plus” de conhecimentos especializados que, por estarem para além das possibilidades de constatação e/ou percepção, efectivas ou presumidas, do tribunal nos campos técnicos, científicos e artísticos, demandam a coadjuvação de quem reúna tais conhecimentos e credibilidade necessários para apreender, com neutralidade, em linguagem comum, a referida complexidade e emitir um juízo especializado.
II.- Porém, o perito apenas contribui para a decisão sobre os factos, não decide nem substitui o juiz no julgamento sobre os mesmos, em cujo âmbito este é o “perito dos peritos” e pode desvincular-se das conclusões periciais, apesar do seu valor reforçado – cujo juízo técnico, científico ou artístico às mesmas inerente se presume subtraído à livre apreciação do julgador –, desde que fundamente a sua divergência (cf. art. 163º do CPP).
III.- A possibilidade de o arguido, aquando do cometimento dos factos em causa, sofrer de incapacidade da avaliação da ilicitude da sua conduta ou de agir de acordo com o direito acarreta, em princípio, a necessidade de realização de uma perícia que, conforme o seu resultado, poderá servir para a determinação da sua culpa ou a determinação da sanção, a coberto do art. 351º do CPP.
IV.- Contudo, a questão da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída «não se basta com a simples suspeita ou sequer a mera probabilidade assente na sua aparência», devendo «perspectivar-se em razão de circunstâncias concretas que apontem para a forte possibilidade de o arguido, aquando do cometimento dos factos em causa, sofrer de anomalia psíquica incapacitante da avaliação da ilicitude da sua conduta ou da auto-determinação para poder agir de acordo com o direito»: não basta, pois, a mera alegação pelo arguido da sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída quanto a um dos crimes pelos quais se encontra acusado – neste caso, omissão de auxílio – para que o julgador se deva determinar de acordo com essa alegação.
V.- É ao tribunal que compete tomar posição sobre a matéria, em função do juízo global que faça sobre a prova produzida, formando-se a convicção, sempre a final, pelo escrutínio rigoroso e cuidado de cada um dos elementos probatórios individualmente considerados, mas também de todas eles no seu conjunto, directos e indirectos, lançando mão das regras da experiência, da lógica das coisas e do normal suceder.
VI.- E daí que a apreciação da necessidade da realização da mencionada perícia também deva ser enfrentada em função do apuramento de circunstâncias concretas que apontem para a forte possibilidade de o arguido ter sofrido de anomalia psíquica incapacitante da avaliação da ilicitude da sua conduta, aquando da sua verificação.”

Acerca do poder vinculativo da prova pericial, interessa também ter em consideração a posição do STJ, explanada, por exemplo, no Acórdão datado de 16/10/2013, proferido no processo nº 36/11.6PJOER.L1.S1, em que foi relator Santos Cabral, in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: ”Na verdade, dispõe o normativo do artigo 163 do CPP que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à apreciação do julgador. Porém, a presunção é elidível na medida em que pode ser afastada quando a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, desde que seja (devidamente) fundamentada essa divergência.
Este dispositivo converge com a lição de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol., pp. 209 e 210) que, já no domínio do CPP de 1929, sustentava que «se os dados de facto que servem de base ao parecer estão sujeitos à livre apreciação do juiz – que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer – já o juízo científico ou parecer propriamente dito só é susceptível de uma crítica igualmente material e científica. Quer dizer: perante um certo juízo cientificamente provado, de acordo com as exigências legais, o tribunal guarda a sua inteira liberdade no que toca à apreciação da base de facto pressuposta; quanto, porém, ao juízo científico, a apreciação há-de ser científica também e estará, por conseguinte, subtraída em princípio à competência do tribunal – salvo casos inequívocos de erro, mas nos quais o juiz terá então de motivar a sua divergência».
A nível da valoração da prova pericial no processo penal, ao permitir-se (apesar da presunção do nº 1 do artigo 163º do CPP) a divergência fundamentada, acaba por não se anular, de forma absoluta, a margem de apreciação livre do julgador. Pode-se afirmar que a pré-fixada valoração da prova pericial convive com o princípio da livre apreciação da prova, não obstante (só a nível da presunção contida no nº 1 do artigo 163º) ser configurada como uma sua “excepção”.
Porém, qualquer divergência relevante não se basta com uma apreciação genérica e pouco consistente, sob pena de se incorrer numa inadmissível valoração subjectiva ou na falta de fundamentação. Nos termos do artigo citado o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, dispondo o nº 2, do mesmo preceito legal que, sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.
A presunção que o artigo consagra não é, como refere Germano Marques da Silva (Ob. cit., vol. II, p. 198.), uma verdadeira presunção, no sentido de ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo na existência de fundamento em crítica material da mesma natureza, isto é, científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador.
Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial. Considera Marques Ferreira que se trata de uma presunção “natural” a qual, por conseguinte, cederá mediante contraprova. Efectivamente, não seria lógico que, pelo menos nas perícias em que houvesse votos de vencido (art. 157º, nº 5 do CPP), se pretendesse impor ao tribunal um juízo científico com valor probatório pleno, cedendo apenas perante a prova do contrário (Meios de prova In: Jornadas de Direito Processual Penal: o novo código de processo penal. – p. 219-270 Ob. cit., p. 259).”   

Ora, não obstante o arguido ter apelidado a perícia por si requerida de perícia à personalidade, decorre da análise das suas alegações de recurso, bem como da fundamentação da decisão recorrida, que o que está em causa e se pretende que seja efectuado é uma perícia psiquiátrica, com vista a apurar não só o seu grau de culpa, como a existência ou não de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída aquando da prática dos factos constantes da acusação pública.
Por tudo o exposto, conclui-se que não deveria a Mmª Juíza a quo ter indeferido o pedido de realização de perícia formulado pelo arguido, devendo o recurso ser julgado procedente.
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4.Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que defira o pedido de realização de uma perícia psiquiátrica ao arguido, a fim de apurar o seu grau de culpa e a existência ou não de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída, à data da prática dos factos descritos na acusação pública.
Sem custas.    

     
Lisboa, 14 de Novembro de 2023


(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)


Carla Francisco
(Relatora)
Alda Tomé Casimiro
Paulo Barreto
(Adjuntos)