REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
REGULAMENTO (CE) 44/2001
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
REQUISITOS
FALTA DE CITAÇÃO
PROCESSO EQUITATIVO
EXEQUATUR
TRIBUNAL ESTRANGEIRO
DIREITO AO RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
Sumário


I - Na interpretação do art. 34.º do Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22-12-2000, o TJUE tem decidido que a violação dos direitos de defesa durante o processo levado a cabo no Estado Membro de origem implica uma violação da ordem pública internacional.
II - O que releva para o conceito de ordem pública internacional não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.
III - Não constitui fundamento de recusa de exequatur a alegação de violação de normas ou princípios processuais que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, ou em via de recurso, de forma que pudesse ter sido corrigida.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO



1.1.- Os requerentes - AA, casado, NIF ...43, residente em ..., e BB, casado, NIF ...20, residente em ... – instauraram processo especial para declaração de executoriedade de sentença estrangeira contra o requerido - CC, que também usa o nome de CC e ainda CC, residente na Rua ..., concelho de....

Alegou, em resumo:

Requerentes e requerido foram partes numa acção judicial instaurada no ano de 2014, que correu termos no Tribunal de Grande Instância de ... – RG nº 14/08245, França.

O requerido foi citado para o acto que determinou o início da instância.

Por sentença de 3 de Dezembro de 2018, proferida pelo Tribunal de Grande Instância de ..., no âmbito da mencionada acção judicial RG nº 14/08245, o requerido foi condenado a pagar a cada um dos requerentes a quantia de € 75.000,00.

A referida sentença foi notificada às partes, tendo sido objecto de recurso interposto pelo requerido para o Cour d’Appel de ..., França.

Por acórdão de 1 de Junho de 2021 (acórdão nº 153/2021), o Cour d’Appel de ..., Polo ... – Secção 8 manteve a condenação do requerido no pagamento a cada um dos requerentes da quantia de € 75.000,00.

Sucede que, apesar de condenado no pagamento de tal quantia, o requerido nada pagou.

Pediu, ao abrigo do artigo 38º do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, que seja decretada a executoriedade do Acórdão nº 153/2021, da Cour d’Appel de ..., França, - Polo ... – Secção 8, proferido em 1 de Junho de 2021, no processo RG 19/06670.

1.2. – Por sentença de 26/10/2022 decidiu-se:

“Pelo exposto, declaro a executoriedade do Acórdão nº 153/2021 da Cour d’Appel de ..., França, - Polo ...– Secção 8, proferido em 1 de Junho de 2021, no processo RG 19/06670.

Custas pelo requerido (artigo 527º do C.P.C.).

Valor da causa: € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).”

1.3. O requerido recorreu de apelação e a Relação de Coimbra, por acórdão de 2/5/2023, confirmou a decisão.

1.4. O requerido recorreu de revista, com as seguintes conclusões:

1)A jurisprudência dominante tem entendido que, aos processos de declaração de executoriedade de sentença estrangeira, não se aplicam os limites previstos no artigo 671.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, sendo admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apesar da coincidência das decisões das instâncias, pelo que, o presente recurso de revista é admissível.

2)Entendeu o Tribunal a quo julgar improcedente o recurso interposto, da declaração de executoriedade do Acórdão nº 153/2021 da Cour d’Appel de..., França, - Polo ... – Secção 8, proferido em 1 de Junho de 2021, no processo RG 19/06670, em virtude de, bastando-se com as informações constantes da certidão redigida nos termos do Regulamento n.º 44/2021, ter decidido que o aqui Recorrente foi devidamente citado, não tendo existido qualquer ofensa à ordem pública portuguesa.

3)o Tribunal a quo que é «…indiferente nesta sede o conhecimento dos termos rigorosos como foi efetuada a citação, tanto mais que “não é possível, no procedimento tendente à concessão do exequatur, proceder à apreciação do mérito da sentença estrangeira, pelo que não pode a 1ª Instância, nem pode o Tribunal da Relação, apreciar se esta decidiu bem, ou seja se decidiu de harmonia com as regras processuais que era mister observar e em função de uma correcta apreciação crítica dos elementos disponíveis». Assim, o Tribunal a quo entendeu que o invocado, pelo Recorrente, “desrespeito pela ordem pública portuguesa, assente na aludida falta de citação, está totalmente arredado porquanto não se demonstrou que o Requerido não tenha sido citado na aludida ação”, tendo apenas apreciado as informações, meramente formais, constantes da referida certidão emitida pelo Tribunal francês, não tendo apreciado as provas trazidas aos autos pelo Recorrente.

4)Recorre o Requerido – e com o devido respeito – por não se poder conformar com o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, no que alude à decisão aí proferida, quanto à aplicação do direito ao caso concreto, por não poder concordar com a interpretação por aquela feita, quando refere que o Tribunal da Relação não pode apreciar se o Tribunal francês (Polo... – Secção 8 do Cour d’Appel de ... -acórdão nº 153/2021) decidiu de harmonia com as regras processuais que era mister observar e em função de uma correcta apreciação crítica dos elementos disponíveis.

5)Estatui o artigo 34º: do Regulamento que uma decisão não será reconhecida, se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido, sendo que o recurso à cláusula de ordem pública, no âmbito do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho de 22 de dezembro de 2000, como fundamento de recusa da declaração de executoriedade de sentença estrangeira, visa obstar à violação inaceitável da ordem jurídica do Estado-Membro requerido, nomeadamente por afronta a um seu princípio fundamental.

6)Não restam dúvidas de que a ordem jurídica portuguesa consagra, como direito fundamental, a exigência de um processo equitativo, como decorre do art. 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que faz parte integrante do direito português, sendo certo que o princípio da igualdade de armas constitui um elemento incindível do processo equitativo.

7)Assim, uma decisão em que não foi dada a possibilidade de o Réu tomar conhecimento de que um processo corre contra si, bem como o prazo e a forma de reacção – ou em que, pelo menos, não se apreciou se todos os esforços foram levados a cabo para efectivar a citação daquele – é uma decisão que afronta um princípio fundamental do estado de direito que é Portugal.

8) Num processo de reconhecimento e execução duma sentença estrangeira proferida à revelia, quando o demandado interpõe recurso da declaração de executoriedade com o fundamento de não ter sido notificado do “ato que deu início à instância” ou da sentença proferida, o Tribunal da Relação é competente para verificar a concordância entre as informações que figuram na certidão de declaração de executoriedade e as provas trazidas aos autos em sede de recurso.

9)Assim, não podia o Tribunal a quo deixar de apreciar os termos em que foi feita a citação, quando o aqui recorrente interpõe recurso da declaração de executoriedade com o fundamento de que não foi notificado do acto que deu início à instância (citação), juntando a devida prova do alegado, prova essa que o Tribunal a quo não valorou, devendo tê-lo feito.

10)Pelo exposto, a declaração de executoriedade concedida pelo Tribunal de primeira instância e confirmada pelo Tribunal a quo é manifestamente contrária à ordem pública portuguesa, pelo facto de tal declaração de executoriedade ter sido concedida em violação das garantias processuais, não tendo o caso sido objecto de um “processo equitativo”, uma vez que foram violados os princípios do contraditório e da igualdade das partes, pelo que, com o devido respeito, o Tribunal a quo não decidiu da melhor forma.

11)Ao nosso sistema processual civil repugnam as decisões judiciais tomadas à revelia de um dos interessados, por isso se consagrou nos artigos 3.º e 4.º do Código de Processo Civil português os princípios do contraditório e da igualdade das partes, os quais foram desenvolvidos noutras disposições, e tão grande relevo se quis imprimir ao primeiro que se determinou a excepcionalidade dos casos em que se “podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida”.

12)E, mesmo que assim não fosse, isto é, mesmo que o motivo da recusa da declaração de executoriedade não fosse contrário à ordem pública portuguesa, o que por mera hipótese académica se coloca, sempre valeria a tomada de posição do TJUE, obrigatória para os Estados-Membros, no sentido de ser fundamental, para a verificação do cumprimento dos direitos de defesa do réu, o conhecimento das modalidades de citação ou notificação ou o endereço deste último, menções que não constam da certidão de executoriedade e que devem ser apreciadas pelo Tribunal do Estado Membro requerido.

13)Assim, o Tribunal a quo deveria ter apreciado as provas apresentadas pelo Recorrente, que, indubitavelmente, demostram que o mesmo já residia em Portugal aquando da necessidade da sua citação para o processo que correu termos em França, nunca tendo sido citado no seu país de residência (Portugal), análise que não fez, mantendo a apreciação meramente formal que se exige na primeira instância.

14)Alegando o Recorrente que o processo declarativo, pelo menos na primeira instância, tramitou à sua revelia, por completa falta de citação ou nulidade desta, deveria o Tribunal a quo ter verificado, perante as provas trazidas aos autos pelo Recorrente, no que respeita à desconformidade da citação com a lei portuguesa, se se observou o previsto no art. 235º do CPC, designadamente, se a citação existiu ou não, se se indicou ao destinatário o prazo dentro do qual pode apresentar a defesa, a necessidade de patrocínio judiciário e as cominações em que incorria no caso de revelia.

15)Segundo o TJUE (decisão proferida no processo n.º C-292/10), o direito da União deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que seja proferida uma decisão à revelia contra um demandado que, na impossibilidade de ser localizado, foi citado para o acto que determinou o início da instância por via edital nos termos do direito nacional, desde que o órgão jurisdicional ao qual foi submetido o processo se assegure previamente de que foram efectuadas todas as averiguações exigidas pelos princípios da diligência e da boa fé para encontrar esse demandado, apreciação que o Tribunal a quo não fez, mas devia ter feito.

16)A notificação da decisão (sentença) ao Recorrente não sana, de todo, a completa falta de citação para a acção declarativa – isto é – não afasta a obrigatoriedade da notificação do acto que determinou o início da instância. Qualquer outro entendimento fere, de sobremaneira, a ordem pública portuguesa, pois que coloca em causa o “processo equitativo” e as mais elementares garantias de defesa do réu, nomeadamente o princípio da igualdade de armas e o direito a um processo justo.

17)Desta forma, o acórdão proferido contra o ora Recorrente (Acórdão nº 153/2021 da Cour d’Appel de ..., França, - Polo ... – Secção 8, proferido em 1 de Junho de 2021, no processo RG 19/06670) não pode ser declarado executório, por manifesta violação do direito de defesa, do contraditório e do acesso ao direito e à justiça (ínsitos no artigo 20º da C.R.P e nos artigos 3.º e 4.º do Código de Processo Civil) e, bem assim, por manifesta contrariedade com a ordem pública, o que configura fundamento de revogação da sentença de declaração de executoriedade ora proferida, em virtude do que dispõe o artigo 45.º n.º 1 e o artigo 34.º n.º 1 do Regulamento (CE) n.º44/2001.

18)Pelo que o Tribunal a quo violou os artigos 34.º, n. º 1 e 2, 35.º, n. º 1, 53.º e 54.º do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22/12/2000, o artigo 20.º, n. º 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa e os artigos 3.º, 4.º, 191.º, n.º 1 e 628.º do Código de Processo Civil.

1.5. - Os requerentes contra-alegaram, em resumo:

1) O Recurso de Revista não é legalmente admissível, uma vez que a verificação das condições das quais depende a atribuição ou a recusa de executoriedade à decisão estrangeira foi apreciada tanto na 1ª como na 2ª instância, não deve ser admitido em virtude da dupla conforme (art.671 nº3 CPC).

2)O Recorrente entende que o Tribunal a quo decidiu de forma errada ao considerar que não houve lugar à falta de citação do ora requerido na ação que correu termos no tribunal estrangeiro. No entanto, resulta do Acórdão proferido pela Cour d’Appel de ..., e cuja executoriedade foi declarada nos presentes autos, que “Por meio de atos com a data de 18 de setembro, 26 de setembro e 14 de outubro de 2014, a Sra. DD citou o Sr. EE, a Sociedade C... e o Sr. FF perante o Tribunal de Primeira Instância de....”

3)Resulta, ainda, da certidão emitida pela Cour d’Appel de ..., segundo o formulário constante do Anexo I do Regulamento (CE) nº 1215/2012 do Conselho, conforme artigo 53º deste Regulamento, que a decisão RG nº 19/06670 pole ... – chambre 8 não foi proferida à revelia, precisamente pelos actos de citação e de notificação do requerido e demais réus, levados a efeito no âmbito desse processo. O Acórdão mencionado refere expressamente que o Sr. FF – aqui recorrente - foi citado perante o Tribunal de Primeira Instância de ....

4) Além do mais, nem podia o Tribunal a quo apreciar a regularidade de citação efectuada em França, cominá-la de nulidade e extrair daí consequências legais.Nem o Recorrente invocou a falta de citação no âmbito da acção judicial que correu termo no Tribunal de Primeira Instância de ..., tendo sido notificado da sentença proferida em 3 de dezembro de 2018, da qual interpôs recurso para a Cour d’Appel de ....

5) Também não foi suscitada a questão de falta do exercício do contraditório, o qual foi sempre assegurado. O ora recorrente foi regularmente citado para a acção judicial que correu termos no Tribunal de Primeira Instância de Evry, RG nº 14/08245, e exerceu o contraditório, tendo sido notificado da decisão final e interposto recurso para a Cour d’Appel de ....

6)O Acórdão nº 153/2021 da Cour d’Appel de ... proferido contra o ora recorrente, em 01.06.2021, não violou o princípio do acesso ao direito e à justiça e não é contrário à ordem pública portuguesa, porquanto o Recorrente foi regularmente citado para a acção judicial que correu termos em França e exerceu o contraditório quando e como entendeu, tendo decorrido um processo equitativo entre as partes.

7)A declaração de executoriedade proferida pelo tribunal e 1ª instância e posteriormente confirmada pelo Tribunal a quo não ofende a ordem pública portuguesa.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1 – A questão prévia da (in)admissibilidade da revista

Os recorridos suscitaram a questão prévia da inadmissibilidade da revista com fundamento no art.671 nº3 CPC, alegando verificar-se a “dupla conforme”.

Considerando que o pedido de executoriedade incide sobre o Acórdão nº 153/2021, da Cour d’Appel de ..., França, - Polo ... – Secção 8, proferido em 1 de Junho de 2021, tem aplicação o Regulamento (CE) nº 44/2001 de 22 de Dezembro de 2000.

O Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (publicado no Jornal Oficial n.° L 351 de 20/12/2012 p. 0001 - 0032), veio revogar o Regulamento (CE) n.º 44/2001. Embora tenha entrado em vigor no dia 10 de Janeiro de 2013, só se tornou aplicável a partir de 10 de Janeiro de 2015, com excepção dos seus artigos 75.º e 76.º.

A disposição transitória do art. 66.º, n.º 2, do Regulamento n.º 1215/2012, ao mandar aplicar o Regulamento n.º 44/2001 às decisões proferidas (pelos tribunais dos Estados-Membros) em acções judiciais intentadas antes de 10-01-2015, quer dizer que, independentemente da data da prolação de tais decisões e da data em que venham a ser executadas, precisam tais decisões, para poder ser executadas, da prévia obtenção da declaração de executoriedade constante do art. 38.º, n.º 1, do Regulamento n.º 44/2001 (não lhes sendo aplicável a supressão do exequátur do art. 39.º do Regulamento n.º 1215/2012 ( cf Ac STJ de 22/6/2021 ( proc nº 78/17), em www dgsi ).

O Regulamento (CE) n.° 44/2001 – conhecido por Regulamento Bruxelas I – manteve a distinção já existente na Convenção de Bruxelas entre as condições em que se produzem os efeitos de caso julgado e os efeitos executivos da decisão proferida noutro Estado-Membro.

O processo especial do pedido de reconhecimento a título principal ou para obter a declaração de exequibilidade (o chamado exequatur) da decisão estrangeira é idêntico e está regulado nos arts 38.º e seguintes do Regulamento.

Este processo comporta duas fases: a primeira, necessária e unilateral, desenvolve-se sem audição da parte contrária, que não pode «apresentar observações nesta fase do processo» (artigo 41.º do Regulamento); a segunda, é uma fase eventual, em que se concretiza o contraditório.

Daqui resulta que jamais ocorre a dupla conforme, pois as fases são distintas, e a contraditoriedade (com a alegação da violação da ordem pública por falta de citação) apenas se deu com o recurso para a Relação.

Neste sentido, decidiu-se no Ac STJ de 14/3/2017 ( proc nº 736/17) , em www dgsi.- “No processo de declaração de executoriedade de sentença estrangeira, apesar da coincidência das decisões das instâncias – que a declararam executória – é admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação, em virtude de ter sido nesta 2.ª instância que, pela primeira vez, se apreciou da verificação das condições das quais depende ou a atribuição ou a recusa de executoriedade à decisão estrangeira, não sendo, em consequência, aplicável a restrição decorrente da dupla conforme prevista no n.º 3 do atual art. 671.º do CPC.”

Improcede a questão prévia.

2.2. – As instâncias deram como provados os seguintes elementos:

1. Requerentes e requerido foram partes numa acção judicial instaurada no ano de 2014 que correu termos no Tribunal de Grande Instância de ... – RG nº 14/08245;

2. O requerido foi citado para o acto que determinou o início da instância;

3. Por sentença de 3 de Dezembro de 2018, proferida pelo Tribunal de Grande Instância de ..., no âmbito da acção judicial RG nº 14/08245, o requerido foi condenado a pagar a cada um dos requerentes a quantia de € 75.000,00;

4. A referida sentença de 3 de Dezembro de 2018 foi notificada às partes, tendo sido objecto de recurso interposto pelo requerido para o Cour d’Appel de ..., França;

5. Por Acórdão de 1 de Junho de 2021 (acórdão nº 153/2021), o Cour d’Appel de ..., Polo ... – Secção 8 manteve a condenação do requerido no pagamento, a cada um dos requerentes, da quantia de € 75.000,00;

6. No prazo legalmente conferido para a apresentação de Recurso de Cassação para o Tribunal Superior, as partes não usaram dessa faculdade;

7. O requerido nada pagou aos requerentes.

2.3. – Problematiza-se na revista a questão de saber se há fundamento para a recusa do exequatur do Acórdão nº 153/2021 da Cour d’Appel de ..., França, - Polo ... – Secção 8, proferido em 1 de Junho de 2021, no processo RG 19/06670.

O Regulamento (CE) nº44/2001, de 22/12/2000, relativo à competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial, que entrou em vigor em 1/3/2002, e veio substituir entre os Estados Membros (com excepção da Dinamarca) a Convenção de Bruxelas de 1968.

O recorrente alega que a sentença não pode ser reconhecida em Portugal porque viola a ordem pública internacional, visto que não foi citado no processo.

Dispõe o art. 34.º do Regulamento (CE) nº44/2001, de 22/12/2000

“Uma decisão não será reconhecida:

1. Se o reconhecimento for manifestamente contrário à ordem pública do Estado-Membro requerido;

2. Se o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, não tiver sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer”.

Tanto no domínio da Convenção de Bruxelas relativa à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, de 27 Setembro de 1969, como no domínio do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, a jurisprudência do TJUE tem afirmado, de forma uniforme, que a excepção de contrariedade à ordem pública, como fundamento de recusa de concessão do exequatur, tem de ser interpretada restritivamente, só procedendo em circunstâncias excepcionais de violação manifesta de um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido ( cf Ac STJ de 20/11/2024, (proc. n.º 7614/12.), em www dgsi ).

O que releva para o conceito de ordem pública internacional não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.

Por conseguinte, o juízo de compatibilidade com a ordem pública internacional do Estado Português terá de ser necessariamente aferido, não pelo conteúdo da decisão e o direito nela aplicado, mas pelo resultado do reconhecimento, o que implica um “exame global”. Não basta, por isso, que a solução dada ao caso pelo direito estrangeiro seja divergente da do direito interno português, exigindo-se que o resultado seja “manifestamente incompatível” com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (cf. Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, vol.I, pág. 584 e segs., vol.III, pág.368 e segs), Marques dos Santos, Aspectos do novo Código de Processo Civil, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras”, pág. 140 ).

O Tribunal de Justiça tem decidido que a violação dos direitos de defesa durante o processo levado a cabo no Estado Membro de origem implica uma violação da ordem pública internacional (cf. o Acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Março de 2000 (caso Dieter Krombach contra André Bamberski. – Processo C7/98. (publicado in Colectânea da jurisprudência 2000 I-01935); o Acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 2009 (caso Marco Gambazzi contra DaimlerChrysler Canada Inc. e CIBC Mellon Trust Company. – Processo C-394/07(publicado in Colectânea da jurisprudência 2009 I-02563)

Isto significa que a violação, durante o processo perante os tribunais do Estado de origem, dum direito de defesa que o Estado Membro requerido considera como direito integrante da sua ordem pública internacional, pode implicar uma violação da ordem pública internacional do referido Estado requerido

Consideram-se direitos processuais tutelados pela ordem pública internacional o direito a ser ouvido durante o processo judicial (cf. Acórdão do Tribunal de 28 de Março de 2000 (caso Dieter Krombach contra André Bamberski. – Processo C-7/98. [publicado in Colectânea da jurisprudência 2000 I-01935]); o Acórdão do Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 2009 (caso Marco Gambazzi contra DaimlerChrysler Canada Inc. e CIBC Mellon Trust Company. – Processo C-394/07 (publicado in Colectânea da jurisprudência 2009 I-02563).

Muito embora a violação grave do princípio do processo equitativo, integrante da ordem pública processual, consubstancie fundamento de recusa, deve entender-se, no entanto, que “não é causa de recusa de exequatur a alegação de violação de normas ou princípios processuais que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, ou em via de recurso, de forma a que pudesse ter sido corrigida” ( cf Ac STJ de 20/11/2014 (proc. n.º 7614/12), em www dgsi ), “não é fundamento de recusa de exequatur a infracção que, a ter ocorrido, poderia ter sido corrigida pelo próprio tribunal ou em via de recurso” ( cf.Ac STJ de 26/03/2015 (proc. n.º 7614/12), em www dgsi ).

Na verdade, os direitos de defesa tutelados com o artigo 34.°, ponto 2, do Regulamento nº 44/2001 são protegidos se o requerido tiver efectivamente exercido o seu direito de recurso da decisão proferida à revelia e se esse recurso lhe tiver permitido alegar que o acto que iniciou a instância ou o acto equivalente não lhe foram comunicados ou notificados em tempo útil e de modo a permitir‑lhe a defesa ( cf Acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 2009 – caso Meletis Apostolides contra David Charles Orams e Linda Elizabeth Orams. – Processo C-420/07517 518). 517 Publicado em Colectânea da jurisprudência 2009 I-03571).

A sentença da 1ª instância deu como provado que - “2. O requerido foi citado para o acto que determinou o início da instância”

O Recorrente impugnou no recurso para a Relação o facto 2.

A Relação julgou improcedente a impugnação, manteve esse facto como provado, com a seguinte fundamentação:

“Com efeito, os requerentes juntaram com a petição inicial a certidão da decisão proferida pela Cour d’Appel de ... segundo o formulário constante do Anexo I do Regulamento (CE) nº 1215/2012 (o qual, como é sabido, revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001 de 22.12.2000), salvaguardando, no que ao caso dos autos interessa, as ações intentadas até 10 de janeiro de 2015, como sucede com a presente).

(…)

Os Requerentes juntaram também a certidão emitida ao abrigo do artigo 53º do Regulamento (CE) nº 1215/2012.

Assim, não restam quaisquer dúvidas quanto à autenticidade da decisão proferida pelo Polo 5 – Secção 8 do Cour d’Appel de ... (acórdão nº 153/2021).

Resulta desse acórdão certificado que “Por meio de atos com a data de 18 de setembro, 26 de setembro e 14 de outubro de 2014, a Sra. DD citou o Sr. EE, a Sociedade C... e o Sr. FF perante o Tribunal de Primeira Instância de ...” e ainda que “O requerido foi citado para o acto que determinou o início da instância”.

Também decorre da certidão emitida pela Cour d’Appel de ..., segundo o formulário constante do Anexo I do Regulamento (CE) nº 1215/2012 do Conselho, que a decisão não foi proferida à revelia.

Acresce que essa decisão do Cour d´Appel de ... é motivada por recurso interposto pelo aqui Requerido, sendo que na altura não invocou qualquer questão relacionada com a sua citação ou falta dela ou de preterição das regras atinentes ao direito à defesa e ao contraditório, sendo indiferente nesta sede o conhecimento dos termos rigorosos como foi efetuada a citação (…)”.

O recorrente o que verdadeiramente pretende é impugnar perante o Supremo Tribunal de Justiça o julgamento de facto. Mas o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o juízo de valoração feito pela Relação e o recorrente nem sequer alegou qualquer das excepções do art.674 nº3 (parte final) CPC.

Por outro lado, a alegada recusa do exequatur, com base na imputada falta de citação, jamais poderá proceder porque o recorrente tendo interposto recurso para o Cour d’Appel de ... não invocou em via de recuso qualquer violação dos seus direitos de defesa nomeadamente sobre a falta de citação.

2.4. Síntese conclusiva

1.Na interpretação do art. 34.º do Regulamento (CE) nº44/2001, de 22/12/2000, o Tribunal de Justiça tem decidido que a violação dos direitos de defesa durante o processo levado a cabo no Estado Membro de origem implica uma violação da ordem pública internacional.

2.O que releva para o conceito de ordem pública internacional não são os princípios consagrados na lei estrangeira que servem de base à decisão, mas o resultado da aplicação da lei estrangeira ao caso concreto, ou seja, a reserva de ordem pública internacional visa impedir que a aplicação de uma norma estrangeira, pela via indirecta da execução de sentença estrangeira, implique, na situação concreta, um resultado intolerável.

3. Não constitui fundamento de recusa de exequatur a alegação de violação de normas ou princípios processuais que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que proferiu a decisão, ou em via de recurso, de forma que pudesse ter sido corrigida.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar o recorrente nas custas.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Novembro de 2023.

Jorge Arcanjo (Relator)

António Magalhães

Jorge Leal