INTERESSE EM AGIR
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
Sumário


1. O interesse processual ou o interesse em agir, cuja falta preenche a exceção dilatória determinante da absolvição da instância, afere-se pela utilidade da ação, face à alegação do autor no momento da sua propositura.
2. A aferição referida em 1 distingue-se: da apreciação do mérito da causa, a realizar face aos factos provados e não provados (entre os alegados pelo autor como fundamentos do pedido e do réu como fundamentos de exceções) e/ou à interpretação de declarações provadas, nos termos dos arts.236º a 238º do CPC), passível de gerar a procedência ou improcedência total ou parcial dos pedidos; da apreciação da utilidade atual do pedido da petição inicial, face à prova de causa superveniente à propositura, cuja falta pode gerar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.287º/e) do CPC.

Texto Integral


Os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte

ACÓRDÃO

I. Relatório:

Na presente ação declarativa de processo comum, instaurada por Sociedade EMP01... Lda.  contra EMP02... - Cooperativa dos Lavradores do ..., C.R.L., ambos com os demais sinais dos autos:
1. A autora:
1.1. Pediu que fosse declarada nula a decisão da sua exclusão como cooperadora da ré, que lhe fora comunicada em 6 de maio de 2022.
1.2. Alegou e defendeu, para o efeito, na sua fundamentação:
a) Que é cooperadora da ré desde 2017, face a uma candidatura a uma plantação de castanheiros, que preparou e executou até 2020, dos quais prevê colher produtos apenas depois de decorridos 3 a 4 anos, nos termos que explica (arts.1º a 6º da petição inicial).   
b) Que recebeu no dia 6 de maio de 2022 uma mensagem de correio eletrónico, na qual a ré a informou da sua exclusão de sócia da cooperativa, por falta de entrega de produtos da sua exploração  (art.7º da petição inicial), decisão esta de aplicação de sanção que é nula de forma insuprível: por inobservância do procedimento escrito com as formalidades e audiência da cooperadora previstas no art.25º/2 a 4 do Código Cooperativo; por falta de competência da direção/conselho de administração para lhe aplicar a sanção, por a mesma ser de competência da assembleia geral, nos termos do art.25º/6 do Código Cooperativo (arts.8º a 14º da petição inicial).
c) Que, apesar de no final da comunicação referida em b) a ré ter referido «caso queira pronunciar-se sobre a sanção em causa, solicitamos, caso tenha, o envio do termo de aceitação do projecto, número da candidatura e o anúncio em que foi submetido no prazo de oito dias a contar da data de recepção desta comunicação. A mesma irá ser analisada em assembleia de modo a rectificar a sanção» e presuma que a ré tenha querido dizer «ratificação», a comunicação da exclusão não deixa de ser nula pelas circunstâncias referidas em b) (arts.15º a 21º da petição inicial), não fazendo qualquer sentido o mencionado art.16º/3 dos Estatutos uma vez que o recurso para a assembleia apenas tem lugar nas decisões disciplinares de competência da direção da cooperativa (arts.21º a 24º da petição inicial).
2. Regularmente citada, a ré apresentou contestação, na qual:
2.1. Arguiu a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial (arts.186º/1, 2-a) e 278º/1-b) CPC), por considerar que o objeto dos autos (a nulidade da decisão de exclusão) é impossível, em virtude de nunca ter existido uma decisão da exclusão da autora como cooperante, assinada pelo Presidente da ré AA, por ter havido apenas um convite ao contraditório, ao qual a mesma não respondeu, convite esse que foi compreendido pela autora (como denota o art.15º da petição inicial), sendo que esta também nunca pediu à ré certidão da deliberação da assembleia ou da direção da ré (arts.1º a 11º da contestação).
2.2. Impugnou factos alegados, defendendo: não ter existido qualquer deliberação de exclusão da autora da direção ou da assembleia (a quem compete exclusivamente a decisão), sendo que a assembleia reuniu a 31.05.2022; ter sido enviada nova carta para cumprimento do contraditório, uma vez que o email de 6.5.2022 não foi respondido (art.12º a 25º da petição inicial).
3. Notificada para o exercício do contraditório da contestação, a autora:
3.1. Reiterou os factos alegados na sua petição inicial, alegando que o email de 6.5.2022: afirmou expressamente vir «por este meio informar que foi excluído de sócio da cooperativa»; indicou como entidade emissora «a direcção», apesar de não ter assinatura (arts.1º a 3º da resposta).
3.2. Impugnou que não tivesse respondido ao email de 06.05.2022, alegando que respondeu imediatamente por email de 09.05.2022, assinalando as irregularidades daquele e explicando que não foi entregue o produto por o mesmo não existir, com indicação de fundamentos jurídicos que transcreveu; acrescentou que este email não foi respondido pela ré como deveria ter sido, caso o e-mail de 06.05.2023 tivesse decorrido de uma iniciativa isolada de um funcionário (arts.4º a 8º da resposta).
3.3. Reconheceu que recebeu da ré a carta indicada na contestação (com a proposta de exclusão e na qual indicava que o email de 06.05.2022 correspondia uma proposta de eventual exclusão), carta esta que, todavia, a ré apenas remeteu por email de 07.07.2022, após ter sido citada em 14.06.2022 para esta ação instaurada a 08.06.2022, e com vista a poder alegar os referidos factos na sua contestação de 14.07.2022, o que configura um procedimento indigno para fugir às suas responsabilidades (arts.9º a 14º da resposta).
3.4. Considerou que, mesmo que se considere, «por mera hipótese de raciocínio, que a comunicação de 6 de Maio não consubstancia uma exclusão», resulta da carta de 07.07.2022, respondida pela autora a 12.07.2022, a intenção da ré «apresentar na próxima assembleia geral uma proposta de exclusão da Autora», proposta que não foi precedida de processo disciplinar nos termos do Código Cooperativo, razão pela qual mantém interesse no prosseguimento da ação (arts.15º, 17º a 19º da resposta).
4. O Tribunal a quo, na fase do saneamento:
4.1. Julgou improcedente a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, nos seguintes termos:
«Pugna a Ré pela ineptidão da petição inicial por entender que a presente acção é destituída de fundamento, em virtude de nunca ter existido uma decisão formal da exclusão do Autor enquanto cooperante.
Porém, salvo o devido respeito, tal não constitui causa de ineptidão da petição inicial. Na verdade, as causas de ineptidão da petição encontram-se descritas no n.º 2 do artigo 186.º do Código de Processo Civil sendo, a nosso ver, manifesto, que o alegado não se subsume a qualquer das suas alíneas.
Pelo exposto, julga-se improcedente a invocada excepção de nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial.».
4.2. Absolveu da instância a ré por falta de interesse em agir da autora, nos seguintes termos:
«Vista a acção, tal qual ela foi proposta pela Autora, suscita-se, tal como apontou a Ré, ainda que de modo imperfeito, ao referir-se à ineptidão da petição inicial, a questão de saber se assiste ao Autor um verdadeiro interesse em agir.
Vejamos, então.
O Código de Processo Civil não contempla o interesse em agir como excepção dilatória típica, mas a doutrina e a jurisprudência conceptualizam-no, de forma pacífica, como excepção dilatória inominada de conhecimento oficioso (Anselmo de Castro, in “Direito Processual Civil Declaratório”, volume II, p. 253, Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, p. 310, Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma de Processo Civil”, volume I, p. 262/264; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.12.1985, in BMJ 352; Tribunal da Relação de Guimarães, de 23.01.2013, processo n.º 3632/11.8TBBCL.G1, Tribunal da Relação do Porto, de 04.05.2022, processo n.º 5005/21.5T8PRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os demais acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte).
Manuel de Andrade, cujo ensino mantém total acuidade, explana (in “Noções Elementares do Processo Civil”, 1979, p. 78-82), que o interesse em agir “consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial; é o interesse de utilizar arma judiciária – em recorrer ao processo”.
É consabido que toda a demanda judicial tem por base um conflito de interesses que o Tribunal é chamado a resolver (artigo 3.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), devendo a necessidade de tutela judicial ser aferida no momento da propositura da acção, tendo por referência o objecto processual definido pelo autor na sua petição inicial (Miguel Teixeira de Sousa, in “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lisboa, Lex, 1995, p. 99).
No caso dos autos, a Autora, conforme se viu, pretende com a presente acção que seja declarada “nula a decisão de exclusão da Autora como cooperador da Ré, comunicada ao Autor em 6 de Maio de 2022”.
Todavia, de acordo com a situação fáctica alegada na petição inicial, verifica-se que não estamos perante uma lesão actual e concreta de um qualquer direito da Autora que justifique a necessidade de lançar mão do presente pleito, uma vez que, como o próprio afirma, a dita decisão remetida por correio electrónico não consubstancia o competente procedimento legal para efeitos de exclusão enquanto cooperadora da Ré, o que, de resto, a Ré aceita e não coloca em causa. Por outras palavras, a mensagem de correio electrónico remetida pela Ré à Autora em 6 de Maio de 2022 não reúne as condições que lhe permitam ser perspectivada pela ordem jurídica como uma realidade concreta susceptível de produzir efeitos jurídicos e, por conseguinte, de ser objecto de impugnação.
Ademais, é a própria Autora que, no seu requerimento datado de 05.12.2022, reconhece a inexistência de uma necessidade imediata e real de tutela jurisdicional, quando refere que é intenção da Ré “apresentar na próxima assembleia geral uma proposta de exclusão da Autora”.
Posto isto, não existindo uma violação efectiva, actual e concreta de um direito da Autora no momento da propositura da acção, forçoso se torna concluir que este não é titular de um efectivo interesse em agir, posto que, como bem salienta Daniel Bessa de Melo (in “O interesse em agir no processo cível. Em especial, nas ações de simples apreciação, Revista Julgar On-line, Dezembro de 2021”, p. 23) “a questão submetida à apreciação dos tribunais terá de ser, necessariamente, séria e atual; o próprio thema decidendum haverá de espelhar um litígio contemporâneo, real e tangível entre demandante e demandando, não uma mera querela de opiniões e sensibilidades pessoais nem muito menos ancorar-se numa simples previsão de uma altercação, à qual se vise antecipadamente dar solução”.
Pelo exposto, nos termos dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, todos do Código de Processo Civil, julga-se verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir, absolvendo-se, em consequência, a Ré da instância.
As custas são a cargo da Autora, porque deu causa à acção, nos termos do artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.».
5. A autora interpôs recurso da decisão de I-4 supra, apresentando as seguintes conclusões:
«1ª – O art.º 25º do Código Cooperativo (doravante CP) determina que a aplicação de qualquer sanção a um cooperador é sempre precedida de processo escrito, devendo dele constar a indicação das infracções, a sua qualificação, a prova produzida, a defesa do arguido e a proposta de aplicação da sanção.
2ª – Em consonância com este regime, o nº 4 do preceito em causa estabelece que a falta de audiência do arguido constitui uma nulidade insuprível.
3ª – Por último, o nº 6 do mesmo preceito determina que a aplicação da sanção de exclusão é da competência da assembleia geral, devendo a proposta de exclusão fundamentada ser notificada por escrito ao arguido, com uma antecedência de, pelo menos, sete dias, em relação à data da assembleia geral que sobre ela delibera.
4ª – A Autora foi notificada, com indicação do assunto “comunicação de exclusão de sócio”, que havia sido excluída de sócia desta cooperativa, terminando tal comunicação com a menção “A direcção”.
5ª – Na dita comunicação transcrevia-se e o nº 3 do art.º 14º nos termos do qual “as sanções aplicadas pela direcção são passíveis de recurso para a Assembleia Geral, mas omitia-se o teor do nº 2 que estabelece que “a aplicação das sanções é da competência da direcção, salvo a aplicação da sanção de exclusão que é da competência da assembleia geral”, procurando-se assim induzir a Autora a interpor recurso para a assembleia.
6ª - Resulta do teor da comunicação da Ré que aquilo que foi transmitido à Autora foi a decisão da sua exclusão, sem audiência prévia e por iniciativa da direcção, estando-se, como tal, perante uma decisão nula por razões de natureza formal e de incompetência do órgão decisor.
7ª - A sentença recorrida entende que inexistiria interesse em agir pelo facto de “não estamos perante uma lesão actual e concreta de um qualquer direito da Autora que justifique a necessidade de lançar mão do presente pleito, uma vez que, como a própria afirma, a dita decisão não consubstancia o competente procedimento legal para efeitos de exclusão enquanto cooperadora da Ré”.
8ª – Aparentemente entende a sentença recorrida que tendo a Autora sido excluída com base num procedimento inválido não se justifica que tome uma iniciativa judicial.
9ª – Nesta ordem de ideias, a Autora deveria “ficar quieta”, fiando-se na nulidade do acto e na sua insusceptibilidade de produção de efeitos, o que equivale a dizer que, por definição, nunca haverá interesse em agir nas acções de declaração de nulidade.
10ª – Esta situação acarretaria enormes riscos e insegurança para a Autora uma vez que, quando pretendesse exercer os seus direitos cooperativos, poderia ser confrontada com a decisão de exclusão e com o facto de não ter reagido contra ela.
11ª – A afirmação da sentença recorrida segundo a qual a Ré aceita e não coloca em causa a nulidade da decisão de exclusão não corresponde à realidade.
12ª – Com efeito, a Autora, três dias após receber a decisão de exclusão, através de comunicação à Ré, pôs em causa a respectiva validade, sem que esta última tomasse qualquer posição.
13ª – A Ré só reverteu parcialmente a sua decisão em 7 de Julho, depois de ter sido citada, e 7 dias antes de terminar o prazo da contestação, o que ilustra que só com a propositura da presente acção se “estimulou” a mudança de posição.
14ª – No entanto, mesmo esta mudança de posição foi ilegal uma vez que a Ré comunicou à Autora a sua proposta de exclusão, concedendo-lhe um prazo de 15 dias para que apresentasse a sua defesa, invertendo o regime processual previsto em qualquer domínio disciplinar nomeadamente o do Código Cooperativo.
15ª – O interesse em agir existe quando ocorra uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo, ou um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão.
16ª – É o que se verifica no caso em apreço, uma vez que caso a Autora não recorresse à via judicial, ficaria numa situação indefinida sem saber qual o seu estatuto de cooperadora e se poderia exercer os seus direitos.
Ao decidir em desconformidade com as presentes conclusões, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 25º e 26º do Código Cooperativo, pelo que deve ser revogada.».
6. A ré respondeu ao recurso, defendendo:
«14. Vem agora a autora em sede de recurso resumidamente alegar que a decisão do tribunal a quo violou o Código Cooperativo, nomeadamente os artigos 25 e 26.
15. Ora, é manifesto que a recorrente não entendeu, com o devido respeito que o problema é processual, não existe interesse em agir porque essencialmente não existe qualquer deliberação ou decisão formal da direção da Ré que afaste ou exclua a cooperante autora.
16. Relembremos que o pedido, fio condutor da ação, é “Face ao exposto, deve a presente acção ser julgada procedente e, em consequência, deve declarar-se nula a decisão de exclusão da Autora como cooperadora da Ré, comunicada à Autora em 6 de Maio de 2022.”
17. Se a autora nunca foi excluída e como esta reconhece quando vem afirmar que requer o prosseguimento da lide pois reconhece a inexistência de uma necessidade imediata e real de tutela jurisdicional, quando refere que é intenção da Ré “apresentar na próxima assembleia geral uma proposta de exclusão da Autora”.
18. E como bem diz a Douta decisão aqui em crise “Posto isto, não existindo uma violação efetiva, atual e concreta de um direito da Autora/Recorrente no momento da propositura da ação, forçoso se torna concluir que este não é titular de um efetivo interesse em agir (...)”
19. Em breves palavras e com pouco esforço é possível concluir que a decisão do tribunal a quo é manifestamente processual e nunca pode violar qualquer disposição do código cooperativo por na aceção do aqui recorrido não haver objeto face ao pedido.
Nestes termos, deve o recurso ser liminarmente indeferido por
extemporâneo, e caso assim não se entenda o que só por mera hipótese se admite, deve ser improcedente a tout court, mantendo-se a decisão de 1º instância por esta realizar e concretizar a justiça aplicável ao caso em concreto.».
7. O Tribunal a quo admitiu o recurso, a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito devolutivo.
8. Subido o recurso a esta Relação de Guimarães: foi o mesmo recebido nos mesmos termos admitidos na 1ª instância; inscreveu-se o processo em tabela; colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do Código de Processo Civil, doravante CPC.
Define-se como questão a decidir, se a decisão recorrida incorreu em erro de direito ao ter julgado verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir da autora e ter absolvido a ré da instância.

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto provada relevante para a apreciação do recurso:
Julgam-se provados os atos processuais relatados em I supra, face à força probatória plena dos mesmos (art.371º do Código Civil, doravante CC).

2. Apreciação do objeto do recurso:
2.1. Enquadramento dos fundamentos da decisão recorrida:
A decisão recorrida julgou absolveu a ré da instância por considerar verificada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir (com base nos artigos 278º/1- e), 576º/2, 577º e 578º do CPC) e condenou a autora em custas, por ter entendido que a mesma deu causa à ação (nos termos do artigo 527º/1 e 2 do CPC), por:
a) Ter entendido:
a1) Que a situação fática alegada na petição inicial não era apta a lesar qualquer direito da autora que justificasse a instauração da ação, uma vez que o e-mail de 06.05.2022 não era suscetível de produzir efeitos jurídicos e, nessa medida, de poder ser objeto de impugnação, face à posição da autora e da ré na petição e na contestação (« Todavia, de acordo com a situação fáctica alegada na petição inicial, verifica-se que não estamos perante uma lesão actual e concreta de um qualquer direito da Autora que justifique a necessidade de lançar mão do presente pleito, uma vez que, como o próprio afirma, a dita decisão remetida por correio electrónico não consubstancia o competente procedimento legal para efeitos de exclusão enquanto cooperadora da Ré, o que, de resto, a Ré aceita e não coloca em causa. Por outras palavras, a mensagem de correio electrónico remetida pela Ré à Autora em 6 de Maio de 2022 não reúne as condições que lhe permitam ser perspectivada pela ordem jurídica como uma realidade concreta susceptível de produzir efeitos jurídicos e, por conseguinte, de ser objecto de impugnação.»).
a2) Que não existia uma necessidade de tutela efetiva e atual por a ré pretender apresentar na próxima assembleia geral uma proposta de exclusão da autora («Ademais, é a própria Autora que, no seu requerimento datado de 05.12.2022, reconhece a inexistência de uma necessidade imediata e real de tutela jurisdicional, quando refere que é intenção da Ré “apresentar na próxima assembleia geral uma proposta de exclusão da Autora”.»).
b) Ter concluído, com referência à instauração da ação e à atualidade, «Posto isto, não existindo uma violação efectiva, actual e concreta de um direito da Autora no momento da propositura da acção, forçoso se torna concluir que este não é titular de um efectivo interesse em agir, posto que, como bem salienta Daniel Bessa de Melo (…)  “a questão submetida à apreciação dos tribunais terá de ser, necessariamente, séria e atual; o próprio thema decidendum haverá de espelhar um litígio contemporâneo, real e tangível entre demandante e demandando, não uma mera querela de opiniões e sensibilidades pessoais nem muito menos ancorar-se numa simples previsão de uma altercação, à qual se vise antecipadamente dar solução”.».

2.2. Apreciação do objeto do recurso:
Impõe-se reapreciar esta decisão recorrida, na perspetiva contestada no recurso, face ao regime legal aplicável.
2.2.1. Quanto ao primeiro fundamento da decisão, referido em III-2.1.-a)-a1) supra:
2.2.1.1. Enquadramento jurídico:
A petição inicial de uma ação deve observar pressupostos processuais subjetivos e objetivos, de que depende a sua apreciação de mérito, sendo que a falta de verificação dos mesmos impede o conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da instância antes do referido conhecimento (ou a remessa do processo para o tribunal relativamente competente no caso da incompetência relativa), nos termos dos arts.278º e 279º, 576º/2, 577º e 578º do CPC.
A aferição destes pressupostos processuais, nos quais se integra um interesse processual ou o interesse em agir (quer o mesmo se considere corresponder a uma exceção dilatória inominada nos termos do art. 278º/1-e) do CPC ou corpo do art.577º do CPC.[i], quer se considere fundar-se no disposto no art.30º/2 do CPC, desde que haja legitimidade das partes nos termos do art.30º/1 do CPC[ii]) afere-se face à relação e ao objeto processual configurados pelo autor na sua petição inicial.
A avaliação, em particular, do interesse processual, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, realiza-se face à utilidade da tutela jurisdicional («O interesse processual (…) avalia a utilidade da tutela jurisdicional, isto é, averigua se, pressupondo que ambas as partes são legítimas, aquela tutela implica alguma vantagem para o autor e alguma correlativa desvantagem para o réu; o interesse processual destina-se a evitar que, entre partes legítimas, existam acções inúteis»[iii]), apreciada mediante a mera alegação do(a) autor(a) («O interesse processual visa definir as condições nas quais a mera alegação de uma situação subjectiva não mostra a utilidade da tutela requerida pelo seu titular. (…) Portanto, o interesse processual visa assegurar a utilidade da acção nas hipóteses nas quais a mera alegação da situação subjectiva pelo demandante não é suficiente para mostrar a sua utilidade»[iv]), no momento da propositura da ação («A vantagem do autor e a desvantagem do réu são necessariamente apreciadas em relação à situação das partes no momento da propositura da acção. Só conhecendo esta situação se pode saber se o autor vai obter algum benefício com a atribuição da tutela requerida ou se o réu vai sofrer algum prejuízo com a concessão dessa tutela.»[v]).
Esta ponderação distingue-se da apreciação do mérito da causa. De facto, depois de ser ter configurado a utilidade de uma ação, face ao seu pedido e à sua causa de pedir, a mesma pode ser julgada total ou parcialmente procedente ou improcedente, face à prova ou à falta de prova dos seus factos constitutivos da e/ou à prova de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado (art.342º/1 e 2 do CC), e/ou face à interpretação realizada de declarações provadas (arts.236º a 238º do CPC).
Não obstante esta distinção, o art.278º/3 do CPC prevê, que, quando um pressuposto processual determinante da exceção dilatória se destina a proteger o réu, a improcedência de uma ação se possa sobrepor à absolvição da instância, ao definir que «não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão venha a ser integramente favorável a essa parte.».

2.2.1.2. Situação em análise:
A decisão recorrida considerou, num primeiro fundamento, não existir o pressuposto processual de interesse em agir na data da instauração da ação, por entender que o email de 6.5.2022 não tinha condições para produzir efeitos jurídicos (face à versão da autora de não consubstanciar um procedimento legal e face à versão da ré que não teria contestado essa versão).
Todavia, analisando esta decisão recorrida face aos demais atos provados e ao regime legal aplicável enunciado em III- 2.2.1.1. supra, não pode deixar de se entender que a mesma incorreu em erro.
De facto, e por um lado, analisando a petição inicial, verifica-se que a autora pediu a declaração de nulidade da decisão da sua exclusão como cooperadora, que lhe teria sido comunicada a 06.05.2022, por entender que lhe foi feita a comunicação da referida decisão, que a referida decisão foi proferida por órgão incompetente (a direção e não a assembleia geral) e sem a precedência do processo previsto para o efeito, nos termos dos arts.25º/6, 2 a 4 do Código Cooperativo, o que causaria a sua nulidade.
Ora, este objeto processual, assim delimitado, preenche claramente o pressuposto de processual de interesse em agir, uma vez que a autora pediu a nulidade de uma decisão de exclusão de cooperadora (e não de uma proposta de decisão), com base na alegação clara da existência: de uma decisão de exclusão de cooperadora, comunicada por email de 6.5.2022, decisão essa que, a existir, se compreende que seria passível de a prejudicar; de vícios da decisão (por falta de procedimento prévio e de competência do órgão decisor), vícios estes passíveis de gerar a sua nulidade de acordo com o regime legal aplicável dos arts.25º/6, 2 a 4 e 6 do Código Cooperativo, que careceria de ser declarada para sua tutela (evitar a exclusão que lhe foi comunicada).
Por outro lado, verifica-se que a ré na sua contestação impugnou que tivesse havido uma decisão de exclusão, por entender que o email de 6.5.2022 não correspondeu a uma decisão (ou comunicação de decisão) mas correspondeu apenas a uma proposta de exclusão e a um convite de cumprimento de contraditório.
Ora, estas duas posições confirmam a existência de um e-mail de 6.5.2022, que ambas as partes aceitam.
Tendo a autora interpretado que este email formaliza a comunicação de uma decisão, que se encontra viciada, encontra-se justificada a instauração da ação e a sua utilidade.
A interpretação do referido e-mail, de acordo com o disposto nos arts.236º a 238º do CC, corresponde a uma apreciação de mérito da causa, pelo qual caberia, então, ao Tribunal a quo, concluir: se o email comunicou efetivamente à autora uma decisão de exclusão da cooperadora, a partir da qual averiguaria então se a referida decisão padecia dos vícios que lhe foram imputados como causadores de nulidade; ou se o email apenas comunicou uma proposta de decisão, que, a interpretar-se desta forma, poderia implicar o demérito do pedido de nulidade formulado em relação a uma decisão efetiva.

2.2.2. Quanto ao segundo fundamento da decisão, referido em III-2.1.-a2) supra:
2.2.2.1. Enquadramento jurídico:
A aferição da existência do pressuposto processual de interesse processual ou interesse em agir, cuja falta corresponde a uma exceção dilatória geradora da absolvição da instância, afere-se de acordo com o critério da utilidade da ação à data da sua propositura, e de acordo com o objeto com o que o autor a delimitou, nos termos referidos em III- 2.2.1.1. supra.
Apesar da utilidade da ação continuar a dever aferir-se na pendência do processo, no caso de a mesma deixar de existir por ocorrência documentada de factos supervenientes que inutilizem o pedido inicial (nomeadamente por satisfação do mesmo), esta falta de utilidade do pedido já não corresponde a uma falta de interesse processual geradora de absolvição da instância mas a um fundamento de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do art.287º/e) do CPC.[vi]

2.2.2.2. Situação em análise:
A decisão recorrida considerou, ainda, como fundamento da absolvição da instância por falta de interesse em agir, a falta de utilidade atual do pedido por a ré pretender apresentar na próxima assembleia geral uma proposta de exclusão da autora (como entende que esta reconheceu a 05.12.2022).
Este fundamento da decisão refere-se a uma carta junta pela ré na sua contestação, carta esta: que foi apresentada pela ré no contexto da sua defesa, na qual defendeu que o e-mail de 06.05.2022 apenas se referiu a uma proposta de exclusão, proposta esta que, não lhe tendo sido respondida, foi-lhe reiterada pela carta por si remetida depois, em que lhe referiu os mesmos propósitos (carta cuja data não indicou e que juntou ao processo); que a autora, no seu contraditório, após ter impugnado a imputação que lhe foi feita de falta de resposta ao e-mail de 06.05.2022, alegou que a referida carta junta pela ré com a contestação lhe foi enviada apenas a 07.07.2022, depois de já ter instaurado a presente ação e da ré ter sido citada para a mesma a 14.06.2022, remessa de carta essa que foi conveniente à ré para a invocar na contestação de 14.07.2022, criando, assim, um expediente para se eximir, de forma indigna, das suas responsabilidades.
Ora, este quadro de factos permite verificar que o circunstancialismo que integrou o segundo fundamento da decisão recorrida não pode fundamentar a existência de uma exceção dilatória de falta de interesse processual na data da instauração da ação (independentemente da consequência que qualquer evento posterior possa ter na interpretação do email anterior de 06.05.2023, em apreciação do mérito da causa, ou na averiguação da utilidade posterior da ação), uma vez: que não correspondeu a matéria alegada pela autora na petição inicial (sendo imputado por esta, na resposta à contestação, a um evento ocorrido na pendência da ação, após a citação da ré, e para justificar a própria contestação apresentada na ação); foi qualificado pela própria decisão como revelando falta de utilidade “atual” da ação.

2.2.3. Em conclusão:
O erro dos dois fundamentos da decisão recorrida, de acordo com o concluído em III-2.2.1. e 2.2.2. supra, determina procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida.

IV. Decisão:

Pelo exposto, os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar procedente o recurso e em revogar a decisão recorrida.

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Custas pela recorrida (art.527º/1 do CPC).
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Guimarães, 9 de novembro de 2023
Assinado eletronicamente pelos Juízes Relatora, 1º Adjunto e 2ª Adjunta

Alexandra M. Viana P. Lopes
José Carlos Duarte
Maria João Marques Pinto de Matos



[i] Vide, nomeadamente: entre a Doutrina, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Lda., 2ª Edição Revista e Atualizada, 1985, págs.179 ss; entre a Jurisprudência: Ac. RL de 26.09.2019, proferido no processo nº1712/17.5T8BRR-B.L1-6, relatado por Ana de Azeredo Coelho; Ac. RP de 04.05.2022, proferido no processo nº5005/21.5T8PRT.P1, relatado por Eugénia Cunha; Ac. RG de 22.09.2022, proferido no processo nº65/21.1T8EPS.G1, relatado por Fernando Barroso Cabanelas.
[ii] Vide, neste sentido, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in Manual de Processo Civil, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, págs.366 ss, em particular in I Regime jurídico- positivo, págs.373 ss.
[iii] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in obra citada, pág.375 (do ponto V- 2.1. de pág.374).
[iv] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in obra citada, págs. 373 e 374 (ponto V-1).
[v] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in obra citada, pág. 368 (ponto II-1.2.).
[vi] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, in obra citada, pág.375 (ponto V-2.2.).