CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO RAPTO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS - CONVENÇÃO DE HAIA
ASSINADA EM 25 DE OUTUBRO DE 1980
RAPTO INTERNACIONAL DE MENORES
ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
Sumário


I. À luz da Convenção da Haia de 1980 e do Regulamento (CE) 2021/2003, a deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando se verifique a violação de um direito de custódia atribuído pelo Direito do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção e haja o exercício efectivo desse direito no momento da transferência ou da retenção.
II. O Regulamento (CE) 2021/2003, à semelhança da Convenção, pretende desencorajar a subtracção (ou rapto) de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, não obstante, se tal suceder, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estrado-Membro de origem.
III. O regresso imediato da criança em situação de deslocação ou retenção ilícitas, preconizado pela Convenção, sofre, no entanto, desvios sempre que se mostrem verificadas as circunstâncias previstas nos seus artigos 12º, 13º e 20º.
IV. Não se apurando nenhuma daquelas circunstâncias, nomeadamente a existência de uma situação de risco grave para o regresso da criança ao local da sua residência habitual, não pode ser recusado o regresso.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral


Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório
1. O Ministério Público, ao abrigo do disposto na Convenção sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, concluída em Haia em 25 de Outubro de 1980, intentou acção tutelar comum com vista ao regresso aos Países Baixos da criança AA, alegando, em síntese, que a criança, nascida a …/02/2019, filha de BB e de CC, vivia com os progenitores em Amesterdão, Países Baixos, quando a mãe a trouxe pra Portugal, sem autorização do progenitor, que não autoriza a sua permanência em Portugal e que formulou o pedido de regresso da criança junto da Autoridade Central dos Países Baixos.
Juntou o expediente recebido das Autoridades Centrais, do qual consta, além do mais, o pedido de regresso imediato da criança ao Estado da sua residência habitual formulado pelo progenitor à Autoridade Central dos Países Baixos, resposta da progenitora à Autoridade Central Portuguesa, na qual informa que foi instaurado processo de regulação das responsabilidades parentais que corre termos no Tribunal de Família e Menores de Faro – Juiz 1, com o n.º 1240/23.8TBFAR, e que “… não irá entregar a sua filha menor, de nacionalidade portuguesa, quando existem os processos adequados e a tramitar no Tribunais competentes”, cópia do assento de nascimento da criança, e do atestado de residência em Amesterdão.

2. Foi realizada uma conferência com audição dos progenitores, não tendo sido possível obter o acordo dos mesmos, e foi ouvida a criança na presença de Técnica e em espaço reservado ao efeito, como se consignou em acta de 13/06/2023.
O Ministério Público promoveu que se solicitasse ao processo crime com o n.º 760/23.0PBFAR, “cópia do auto de denúncia bem como o estado dos autos, se houve despacho final e se houve constituição de arguido” e que, através da Autoridade Central, se solicitasse “informação acerca da situação profissional, económica e eventual consumo de estupefacientes por parte do progenitor”.
Consta da referida acta que “… a Mm.ª Juíza deu a palavra aos ilustres mandatários dos progenitores e ao ilustre patrono da criança para requererem o que tivessem por conveniente, nada tendo sido requerido por nenhum dos mandatários, tendo apenas o ilustre mandatário do progenitor dito que iria diligenciar pela junção aos autos do CRC do progenitor”.
Por despacho proferido na mesma acta, foram solicitadas informações ao processo-crime que deu entrada em Portugal e à Autoridade Central dos Países Baixos, em virtude de a mãe alegar circunstâncias enquadráveis no artigo 13.º da Convenção de Haia.

3. Juntas as informações requeridas, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do regresso da criança aos Países Baixos.

4. Após foi proferida sentença, na qual se decidiu:
«- Considerar ilícita a deslocação, e retenção em Portugal, da criança AA, e, consequentemente, ordenar o seu regresso imediato aos Países Baixos (Estado da sua residência habitual).
Comunique a presente decisão à autoridade central (DGRS), que deverá encetar todas as diligências necessárias para o regresso da criança aos Países Baixos, devendo nomeadamente articular com o progenitor a vinda do mesmo a Portugal para receber a criança.»

5. Inconformada, recorreu a progenitora, sustentando a alteração da decisão nos fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:
1.ª Importa atalhar desde logo às consequências práticas da imediata execução da decisão recorrida. A decisão de que se recorre é uma decisão que não acautela de todo, o superior interesse da criança, critério orientador de todo o edifício jurídico do Direito dos Menores, para cuja protecção e salvaguarda foi criado. É uma decisão viciada pela forma superficial e ligeira com que analisou as questões.
2.ª Neste recurso está fundamentalmente em causa o facto de a Recorrente ter sido indevidamente e ilegalmente impedida de provar a matéria que integra a excepção contida na alínea b) do art.º 13 da Convenção de Viena (aspectos civis do rapto internacional de crianças), que permite recusar o regresso da criança, a qual nem sequer foi transferida ilicitamente para Portugal. Veio com sua mãe, embora sem consentimento do progenitor, mas com a justificação de se eximir aos maus tratos e à violência a que ambas estavam expostas por parte do progenitor. Se ilicitude houvesse, sempre a mesma estaria justificada.
3.ª Sendo esta forma de processo, um processo de jurisdição voluntária, a Mma Juíza a quo, poderia e deveria ter investigado livremente os factos, coligindo provas — sobretudo deveria ter admitido provas que recusou indevidamente, impedindo ilegalmente a Recorrente de provar o que imperativamente tinha de provar no superior interesse da menor — ordenando inquéritos e recolhendo as informações convenientes, enfim admitindo as provas necessárias;
4.ª Ao invés disso, a Mma Juíza a quo não admitiu as provas minimamente necessárias à matéria que a Recorrente necessitava provar, para integrar a previsão da al. b) do art. g 13 da Convenção da Haia, cerceando-lhe esse direito, sob a justificação de se tratar de um processo urgente. Os meios de prova que a Recorrente se propunha usar não são impertinentes; trata-se dos avós da menor, conhecedores absolutos da factualidade subjacente aos autos, os quais se tivessem sido ouvidos teriam ditado seguramente uma diferente decisão.
5.ª A preocupação com a celeridade, não pode justificar de forma alguma o atropelo dos mais elementares cuidados na garantia de segurança e protecção, como superiores interesses da criança. A decisão recorrida, não garante nem uma coisa nem outra.
6.ª Não se pode considerar ter sido feita justiça, uma vez que, a Mma Juíza a quo ao obviar à produção de prova dos fundamentos essenciais para a posição da Recorrente que como mãe apenas visa prosseguir os interesses da filha menor, ou seja, a prova de que ao regressar, a criança ficará sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou numa situação intolerável (matéria de objecção prevista na al. b) do art. g 13 da Convenção de Haia), apresentados pela aqui Recorrente, recusou no fundo a defesa do superior interesse da criança;
7.ª A Mma Juíza a quo poderia e deveria igualmente, ter determinado a suspensão dos presentes autos — apesar de serem urgentes — com vista ao apuramento da factualidade vertida nos autos de Inquérito n e 760/23.0PBFAR, que contêm matéria essencial para a consideração de diversas circunstâncias essenciais, a serem tidas em conta na decisão a proferir, como o facto de a menor ser entregue a um progenitor que exerce violência doméstica, conforme exposto na Motivação deste recurso e/ou permitir a disponibilização pela Recorrente de gravações áudio, em que o progenitor verbaliza uma série de ofensas e ameaças contra a pessoa da aqui Recorrente. Todos esses meios de prova a Mma Juíza recusou, desvalorizou, fez tábua rasa.
8.ª A Mma Juíza a quo não pode basear-se na não produção de prova pela Recorrente, sobre os factos que considerou não provados, quando é a própria Mma Juíza que impede essa produção de prova ao não aceitar os respectivos meios. Não se pode imputar à Recorrente uma insuficiência probatória, um défice probatório, quando é o próprio Tribunal que tal determina. E ao fazê-lo, cometeu um erro, uma ilegalidade totalmente inaceitável, porque ofensiva do superior interesse da criança.
9.ª A Mma Juíza a quo baseia-se em factos — 12, 13 e 14 — constantes da fundamentação de facto que, como fundamentado na Motivação, não têm a virtualidade de fundamentar a decisão proferida.
10.ª Ordenar o imediato regresso da criança aos País Baixos, colocando-a sob os cuidados de um pai violento, consumidor de estupefacientes e sem condições ou qualquer vocação para cuidar da criança, não se nos afigura prosseguir as finalidades e os valores mais elevados prosseguidos pelo Direito dos Menores, quer na Legislação nacional, quer mesmo na Convenção da Haia de 1980.
11.ª Ao determinar o imediato regresso da criança, a decisão recorrida expõe manifestamente a criança ao perigo para a sua Segurança, Paz, Tranquilidade e Equilíbrio. A decisão recorrida ao invés de optar pela concretização e realização desses valores, opta pela incerteza, pela insegurança, pela susceptibilidade de exposição à violência, à falta de paciência e a um sem número de contingências próprias da vida instável do cidadão neerlandês que é pai da menor.
12.ª Pelo que, deverá este Douto Tribunal decidir pela entrega imediata da criança á progenitora, que é quem detém mais capacidade e condições para deter a guarda da mesma, em virtude de poder contar com a família alargada, elemento fundamental para o são crescimento da criança, protegendo-a de um progenitor instável (no mínimo) e sem capacidade de cuidar da filha, cumprindo-se assim o vertido do art. Q 13 alínea b) da Convenção de Haia.
13.ª Se não é o Estado Português a proteger uma criança portuguesa, que só residiu um ano e pouco em Amesterdão, não é o Estado Holandês que vai protegê-la!
14.ª Que se criem dúvidas sérias (facto que não aconteceu no Tribunal a quo), pelo menos quanto á integridade do progenitor, na medida que existe um processo-crime em curso, em fase de inquérito, cujos factos estão na essência da tomada de decisão da mãe da criança, para regressar ao seu país que é Portugal.
15.ª A progenitora tomou a decisão de proteger a filha e proteger-se a si própria, por isso regressou ao seu País e ao seu núcleo familiar.
16.ª A progenitora instaurou acção de regulação das responsabilidades parentais, que deverá ser decidido, após a entrega da criança á mãe.
17.ª Ao decidir como decidiu, a Mma Juíza a quo violou as disposições constantes dos artigos 7. 2 da Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela Resolução da Assembleia Geral da ONU, de 20/11/1959, nos artigos 9.º, n.º 1, e 18.º, n.º 1, da Convenção Sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova lorque, a 26/01/1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n. 2 20/90, de 12/09, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n. 2 49/90, de 12-09, e no artigo 6. 2 , alínea a), da Convenção Europeia Sobre o Exercício dos Direitos da Criança, adoptada em Estrasburgo, a 25/01/1996, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n. 2 7/2014, de 1312-2013 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27-01-98, 6º do CPC, art.º 20º n.º 1 do CPC.
18.ª Por último e por todas as razões expostas, para salvaguarda de todos os valores que enformam o Direito dos Menores, deve ser atribuído efeito suspensivo ao recurso.

6. Contra-alegou o Ministério Público e o progenitor, concluindo pela improcedência do recurso e consequente confirmação da decisão recorrida.

7. Entretanto, foi junta aos autos informação de que a Autoridade Central Neerlandesa comunicou à Autoridade Central Portuguesa que a entrega da criança ao progenitor foi executada no dia 28/07/2023 (cf. ofício de fls. 81).

8. O recurso foi admitido como de apelação, com efeito devolutivo, atendo ao disposto no artigo 32º, n.º 3 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, e ao facto de a decisão já ter sido executada, o que foi mantido por despacho do relator.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se estão verificados os pressupostos que presidiram à decisão de entrega da criança ao progenitor, havendo, a este respeito que indagar se a progenitora foi impedida de produzir as provas por si oferecidas, se o tribunal exerceu os seus poderes inquisitórios, no sentido da investigação e obtenção oficiosa da prova, tendo em conta a natureza do processo como de jurisdição voluntária, tudo à luz do superior interesse da criança.
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III – Fundamentação
A) - Os Factos
A.1. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
1. A criança AA nasceu em Portugal no dia … de Fevereiro de 2019 e está registada como filha de CC e de BB;
2. Os progenitores conheceram-se em Portugal no ano de 2016;
3. Iniciaram uma relação de namoro e viveram como se de marido e mulher se tratassem, desde o ano de 2017, residindo na Rua …, em Faro;
4. Nesse ano de 2017, decidiram ambos ir residir para os Países Baixos;
5. A progenitora arranjou trabalho como massagista, e o progenitor beneficiava de subsídio de desemprego pago pelo Estado holandês;
6. Em 2018, a relação entre ambos deteriorou-se e a progenitora veio para Portugal, permanecendo na Holanda o progenitor;
7. Passado pouco tempo, o progenitor veio para Portugal e retomaram ambos a relação de marido e mulher, tendo nascido a AA em 2019;
8. Em Outubro/Novembro de 2021 os progenitores decidem ambos, novamente, ir residir para os Países Baixos e fixaram residência em …;
9. Ambos os progenitores trabalhavam e a criança frequentou um infantário e, à data da deslocação, frequentava uma escola pública;
10. A relação do casal deteriorou-se e após uma discussão, presenciada pela AA, a progenitora no dia 30 de Março de 2023, veio para Portugal e trouxe consigo a sua filha;
11. O progenitor não prestou consentimento à deslocação da criança e opõe-se a que esta fixe residência em Portugal, pretendendo o regresso da criança aos Países Baixos.
12. A mãe, em 4 de Abril de 2023, apresentou queixa-crime contra o pai, que corre termos no processo sob o n.º 760/23.0PBFAR, no DIAP de Faro.
13. A mãe alega que o pai é consumidor de marijuana, o que o pai nega na actualidade, declarando já ter consumido juntamente com a mãe;
14. A mãe não apresentou queixa nos Países Baixos, nem procurou ajuda junto de qualquer associação de apoio às vitimas;
15. A criança já frequenta em Portugal infantário no “Externato Menino Jesus”;
16. A mãe declarou trabalhar na área da estética canina, por conta própria e reside com a criança na casa dos seus pais;
17. Ambos os progenitores demostram vínculo afectivo com a criança;
18. A criança não apresenta imagem negativa do pai, expressando vontade em estar com o pai;
19. Em Portugal, a mãe não permitiu que o pai convivesse com a criança, sem ser com a sua supervisão e junto da PSP;
20. O pai reside num apartamento T3, arrendado, em Amesterdão, exerce a actividade laboral de designer gráfico na “DGP Media “e aufere mensalmente a quantia líquida de € 3.000,00 (três mil euros);
21. Do Certificado de Registo Criminal de BB constam averbados os seguintes antecedentes criminais:
- Por sentença, datada de 07.05.2007, proferida no âmbito do processo n.º 2118/05.4PBFAR, do Tribunal Judicial de Faro, foi condenado, por factos cometidos em 02.02.2005, pela prática de um crime de injúria agravada, na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de € 300,00;
- Por sentença, datada de 21.07.2010, proferida no âmbito do processo n.º 33/02.GBORQ, do Tribunal Judicial de Odemira, foi condenado, por factos cometidos em 05.08.2002, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de 1 ano de prisão, suspensa pelo período de 1 ano;
- Por sentença, datada de 25.03.2009, proferida no âmbito do processo n.º 736/06.2GCFAR, do Tribunal Judicial de Faro, foi condenado, por factos cometidos em 18.12.2006, pela prática de um crime de furto simples, na pena de 1 ano de prisão, suspensa pelo período de 1 ano.
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A.2. E consideraram-se como não provados os seguintes factos:
1. O pai agride verbal e fisicamente a mãe.
2. O pai é consumidor de estupefacientes.
3. O pai é agressivo com a criança.
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B) – O Direito
1. O presente procedimento foi iniciado pelo Ministério Público, na sequência da recusa da progenitora em aceitar o pedido de regresso da criança transmitido pela Autoridade Central dos Países Baixos, a pedido do progenitor, que invocou que a mãe trouxe a criança para Portugal, sem a sua autorização, e que não autoriza a sua permanência em Portugal, pretendendo o regresso da criança a Amsterdão, onde residia com ambos os progenitores.
A recorrente discorda da decisão recorrida e, embora se vislumbre nas alegações/conclusões da recorrente alguns laivos de inconformismo quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto, o certo é que a recorrente não cumpriu minimamente os ónus que a lei adjectiva coloca a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, os quais se encontram plasmados no artigo 640º do CPC, pelo que se tem por intocada a factualidade dada como assente pelo tribunal recorrido.
Na verdade, embora a recorrente denote inconformismo quanto à matéria de facto não provada, relacionada com a factualidade alegadamente impeditiva da decisão de regresso da criança ao país da sua residência habitual, de onde foi retirada pela progenitora, as questões que coloca a este respeito têm a ver com a alegada recusa da prova que pretendia apresentar e com a falta de averiguação oficiosa do tribunal, questões que a seu tempo serão analisadas.

2. Como se explicitou no acórdão desta Relação de Évora, de 30/06/2022 (proc. n.º 20/22.4T8VVC-A.E1), que neste breve enquadramento jurídico seguimos de perto, a Convenção da Haia, à luz do seu Preâmbulo e do seu artigo 1º, é um instrumento de cooperação judiciária internacional que tem um duplo objectivo: - por um lado, assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente; - por outro, fazer respeitar de modo efectivo nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante.
O “direito de custódia” reporta-se à responsabilidade pelos cuidados devidos à criança, incluindo o direito de decidir sobre o lugar da sua residência [art. 5º, al. a)].
Quanto ao “direito de visita”, releva para a Convenção fundamentalmente o direito de visita transfronteiriço, que inclui a faculdade de levar a criança para um país diferente do da sua residência habitual por um período limitado de tempo (artigo 5º, alínea b)).
A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita e são abrangidas as crianças com idade inferior a 16 anos (artigo 4º).
Como refere Luís de Lima Pinheiro, «[a] expressão “rapto internacional” - utilizada para designar a Convenção –, não traduz bem a realidade social subjacente, que é normalmente o desenlace dramático de um casamento ou união transnacional. A criança é vítima deste drama, como o são os seus pais. Nos casos mais paradigmáticos, os pais separam-se e um deles, as mais das vezes a mãe, regressa ao seu país de origem levando consigo a criança sem autorização do pai. As razões da deslocação da mãe para outro país são variáveis: frequentemente razões compreensíveis de natureza económica e afectiva, mas por vezes também o desígnio de privar o pai da convivência com a criança.
Perante este drama, o regime da Convenção exprime a seguinte valoração: a criança deve regressar o mais rapidamente possível ao país onde tinha a residência habitual antes da deslocação ou retenção, uma vez que a autoridade competente deste país é a mais bem colocada para decidir sobre a custódia e a residência, e que a permanência da criança noutro país tende a dificultar a adopção das soluções mais adequadas (…)». [Comunicação proferida na Conferência “Direito da Família e Direito dos Menores: que direitos no século XXI?”, que teve lugar na Universidade Lusíada, em Outubro de 2014, acessível in https://portal.oa.pt/upl/%7B40b76efc-8042-4aa6-92d6-5aa473019980%7D.pdf.]
A deslocação ou a retenção de uma criança é considerada ilícita quando se verifiquem dois pressupostos (artigo 3º, 1º §, alíneas a) e b)).
Primeiro, a violação de um direito de custódia atribuído pelo Direito do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção.
Segundo, o exercício efectivo desse direito no momento da transferência ou da retenção.
O direito de custódia em causa pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o Direito deste Estado (artigo 3º, 2º §).
Com esclarece Luís de Lima Pinheiro, «[o] preceito deve ser interpretado no sentido de abranger qualquer título de atribuição do direito de custódia vigente na ordem jurídica da residência habitual. Razão por que a referência ao Direito do Estado da residência habitual abrange necessariamente o Direito Internacional Privado deste Estado» [Ibidem].
Por sua vez, como também se diz no referido aresto, o Regulamento (CE) 2021/2003, à semelhança da Convenção, pretende desencorajar a subtracção (ou rapto) de crianças pelos progenitores entre Estados-Membros e, não obstante, se tal suceder, garantir um regresso rápido da criança ao seu Estrado-Membro de origem.
Assim, o citado artigo 3º da Convenção da Haia encontra correspondência no artigo 2º, n.º 11 do Regulamento, que entende como “deslocação ou retenção ilícitas de uma criança”, a deslocação ou a retenção de uma criança, quando:
«a) Viole o direito de guarda conferido por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor por força da legislação do Estado-Membro onde a criança tinha a sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção; e
b) No momento da deslocação ou retenção, o direito de guarda estivesse a ser efectivamente exercido, quer conjunta, quer separadamente, ou devesse estar a sê-lo, caso não tivesse ocorrido a deslocação ou retenção. Considera-se que a guarda é exercida conjuntamente quando um dos titulares da responsabilidade parental não pode, por força de uma decisão ou por atribuição de pleno direito, decidir sobre local de residência da criança sem o consentimento do outro titular da responsabilidade parental.»

3. No caso em apreço, resultou apurado que, que a criança, actualmente com 4 anos de idade, nascida em Portugal, tinha a sua residência habitual nos Países Baixos desde Outubro/Novembro de 2021, data em que os pais se deslocaram de Portugal e ali fixaram residência em Johan Hofmanstraat 133, 1069KD, onde trabalhavam, e a criança frequentava a escola pública.
E está demonstrado que a progenitora veio para Portugal em Março de 2023, trazendo consigo a criança, sem o consentimento do pai, que se opõe a que a criança aqui fique a residir, razão pela qual accionou o mecanismo da Convenção da Haia.
Por outro lado, não estão reguladas as responsabilidades parentais da criança.
Em face desta factualidade, não subsistem dúvidas de que a criança tinha a sua residência habitual em Amesterdão à data em que ocorreu a sua deslocação para Portugal, sendo aquela que releva nos termos do artigo 3º alínea a) da Convenção.
É, no entanto, certo que não existe (segundo deflui dos autos) qualquer decisão (judicial ou outra) a regular o exercício das responsabilidades parentais.
Face à Lei Portuguesa, o exercício das responsabilidades parentais pertence a ambos os progenitores, tendo ambos igual capacidade de exercício desse poder, no qual se inclui o direito e a obrigação de determinar a educação, a guarda e a residência da criança (cfr. disposições conjugadas dos artigos 1878.º e ss., 1912.º e 1901.º, todos do Código Civil).
Decorre de tais preceitos que o exercício das responsabilidades parentais compete a ambos os progenitores, o que necessariamente abarca as decisões relativas à fixação da residência da criança.
Nos termos do Direito dos Países Baixos, como se diz na sentença, neste caso as responsabilidades sobre questões de particular importância pertencem a ambos os pais.
Assim, conclui-se na sentença que: “… considerando que a residência habitual da criança é nos Países Baixos e que o exercício das responsabilidades parentais é conjunto, a criança só poderá permanecer a residir fora do país da sua residência habitual, desde que os pais nisso acordem (cfr. artigo 1:247 do Livro 1.º, do Código Civil Holandês Dutch Civil Code), o que não se verifica in casu e, por isso, a deslocação da criança para Portugal deve ser considerada ilícita.”
E esta conclusão mostra-se correcta.
Efectivamente, a deslocação ilícita ocorre sempre que haja uma mudança da criança do país onde tem o seu centro de vida para outro, em desrespeito do direito de guarda existente, que foi o que efectivamente sucedeu in casu, pois ficou demonstrado que a criança tinha residência habitual em Amsterdão, nos Países Baixos, desde Outubro/Novembro de 2021, onde residia com ambos os progenitores, quando, em Março de 2023, foi deslocada pela mãe para Portugal, sem autorização do pai, aqui permanecendo sem o consentimento deste, em violação do direito de custódia legalmente exercido pelo progenitor.

4. Aqui chegados, importa averiguar se ocorre fundamento para a recusa do regresso da criança, como é invocada pela progenitora.
O regresso imediato da criança em situação de deslocação ou retenção ilícitas, preconizado pela Convenção pode ser recusado quando se mostrem verificadas as circunstâncias previstas nos seus artigos 12º, 13º e 20º, ou seja, quando:
- A criança já se encontrar integrada no seu novo ambiente familiar, desde que tenha decorrido mais de um ano entre a data da deslocação ou retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado em que a criança se encontrar (artigo 12º);
- O direito de guarda não se encontrar, efectivamente, a ser exercido por quem tinha legitimidade para tal (artigo 13º, alínea a));
- Ter havido, por parte de quem exerça o direito de guarda, consentimento prévio ou concordância posterior à deslocação ou à retenção da criança (artigo 13º, alínea a));
- Existir risco grave de a criança, com o seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica ou a uma qualquer outra situação intolerável (artigo 13º, alínea b));
- Quando a criança se oponha ao regresso desde que tenha idade e grau de maturidade suficientes para serem tomadas em consideração as suas opiniões (artigo 13º);
- Quando o regresso da criança importar uma violação dos princípios fundamentais do Estado relativos aos direitos do homem e às liberdades fundamentais.
O tribunal não pode, no entanto, recusar o regresso da criança quando, tratando-se de Estados Membros da União Europeia, se mostre verificada a circunstância enunciada no artigo 11º, n.º 4 do Regulamento [O tribunal não pode recusar o regresso da criança ao abrigo da alínea b) do artigo 13.º da Convenção da Haia de 1980, se se provar que foram tomadas medidas adequadas para garantir a sua protecção após o regresso].

5. A este respeito, entendeu-se na sentença o seguinte:
«Tendo havido, como foi descrito, uma deslocação ilícita do lugar onde a criança residia habitualmente (nos Países Baixos), há agora que apurar se o regresso da criança possa comprometer a sua saúde ou se é contrário aos seus interesses.
A progenitora alega que foi vítima de violência por parte do pai da criança, que este a agredia verbal e fisicamente, assim como que era violento com a criança.
Questionada sobre a alegada violência disse ter apresentado queixa-crime quando regressou a Portugal, o que nos deixou sérias reservas, considerando que os factos foram praticados na Holanda e que o seu discurso apresentou generalidades, com muita dificuldade em concretizar, e no que concerne à criança, apenas falou do episódio que despoletou a sua vinda para Portugal, relacionado com a questão do almoço que a criança se recusou a comer e o pai não permitiu que comesse a sobremesa, o que gerou uma discussão entre ambos presenciada pela criança, que chorou.
Ora, o processo-crime em Portugal está em fase de investigação, tendo o pai sido constituído arguido, e nada mais, o que, quanto a nós, se revela, por ora, insuficiente para o Tribunal não determinar o regresso da criança ao Estado dos Países Baixos, até porque o pai, enquanto arguido, goza da presunção de inocência e o mesmo negou quaisquer agressões nos presentes autos.
Nestes autos, o que está em causa é tão só o regresso da criança AA aos Países Baixos, sem se descurar a forte ligação da criança com a mãe.
E embora, sendo certo que ambos os pais admitam ter existido a discussão prévia ao dia da vinda para Portugal, na presença da criança, que chorou, em face da audição da criança, a nossa convicção é que a criança não terá percepcionado aquilo como um conflito, até porque então pai não gostaste da tarte demonstrou ter ligação afectiva com o pai, tendo incluído o pai nas brincadeiras com a Técnica e quando desenhou a família, fez o desenho do pai, denotando ter uma imagem positiva do pai.
O regresso aos Países Baixos, seu local de residência, que foi escolhido pela mãe e pelo pai, não lhe trará perigo de ordem física ou psíquica qualificável como intolerável, mesmo que a progenitora não regresse aquele país, considerando a capacidade de adaptação das crianças e bem assim que a própria revelou gostar mais da escola da Holanda do que a escola em Portugal.
Foi para os Países Baixos que os pais decidiram levar a AA e ali criar a sua filha, pelo que não poderá a criança sem mais ser afastada do seu pai, simplesmente porque o casamento e o relacionamento entre a mãe e o pai chegou ao fim.
A progenitora referiu que nos Países Baixos relatou que era vítima de abusos à médica de família, que lhe disse ir reportar a situação a uma associação de apoio às vitimas, porém, a mãe optou por vir para Portugal, quando naquele país poderia ter tido apoio das diversas instituições.
Como se refere no Ac. TRC de 13.09.2022, disponível in www.dgsi.pt: “(…) o progenitor não deve através da deslocação ou retenção indevidas da criança criar uma situação potencialmente prejudicial para a criança e, em seguida, basear-se nela para estabelecer a existência de um risco grave para a criança. Não se pode permitir que o mecanismo de regresso se desactive automaticamente, em virtude da recusa de regressar da progenitora, pois estaria a sujeitar o sistema concebido pela comunidade internacional à vontade unilateral de uma das partes.”
A conclusão que se impõe é que a mãe agiu ilicitamente ao deslocar e reter a criança em Portugal, privando o pai do convívio com a criança, sendo que a criança AA reside habitualmente nos Países Baixos, cabendo aos pais, em conjunto, o exercício das responsabilidades parentais, ainda que após a separação, pois tratou-se de uma decisão unilateral da mãe, sem o consentimento e contra a vontade do pai.
Outrossim, no que respeita à questão da regulação do exercício das responsabilidades parentais, é do superior interesse da criança que seja efectuado no Tribunal competente do seu local de residência habitual (Países Baixos), devendo a criança aí regressar para esse efeito, até porque não se provaram factos que indiciem um risco grave para a criança com o seu regresso, nem, ainda, que ali regressando fique sujeita a uma situação intolerável, nos termos do disposto no artigo 13.º, da Convenção de Haia de 1980.
Aliás, como se refere no aresto vindo de citar “A situação de conflito entre os progenitores é habitual em situações de separação (ou divórcio) não assumindo a presente contornos que permitam concluir haver algum risco grave ou situação intolerável para o menino devido ao seu regresso”.
Efectivamente, a mãe poderá no Tribunal competente da área de residência da criança ali apresentar os seus argumentos para que a criança possa residir consigo em Portugal, competindo ao Estado da residência habitual da criança regular as responsabilidades parentais.
Também a este propósito destaca-se o Ac. STJ de 20.4.2022, disponível in www.dgsi.pt: “Centrando-se essa situação de deslocação ou retenção ilícitas no âmbito do exercício das responsabilidade parentais, entre os objectivos que estão subjacentes à promoção do imediato regresso da criança, deslocada e/ou retida ilicitamente, ao país da sua residência habitual destaca-se o de evitar o recurso aos meios de autotutela por um dos progenitores para resolver divergências relacionadas com o exercício dessas responsabilidades, especialmente quanto á guarda da criança, dissuadindo-o de tentar criar situações de facto que lhe sejam favoráveis, numa posterior discussão sobre a guarda e residência da criança”.
Assim, o alegado pela mãe não pode obstar ao regresso da criança, pois não logrou provar a matéria da excepção prevista no artigo 13.º, da Convenção de Haia de 1980, sendo que lhe competia a ela tal demonstração.
Sobre a ilicitude da deslocação, o ónus recai sobre o requerente, a matéria da excepção teria de ser provada pela mãe, que se opõe ao regresso, e que aqui soçobrou.
Em face do exposto, não se verifica a excepção a que alude o artigo 13.º alínea b), da Convenção (impeditiva do regresso da criança ao país da sua residência habitual).
Note-se que não podem aqui tecer-se considerações sobre a questão de saber qual dos progenitores dispõe de melhores condições para acautelar a criança, pois essa discussão apenas pode, e deve, caber no âmbito do competente processo de regulação das responsabilidades parentais.
A única questão a apreciar e decidir nos presentes autos consiste, como se referiu, em saber se com o regresso da criança, esta poderá ficar exposta a perigos de ordem física ou psíquica ou numa situação intolerável.
E, saliente-se, a existência de tais perigos não resultou minimamente provada.
Concluímos que estão reunidos os pressupostos legais para ser ordenado o imediato regresso da criança aos Países Baixos (Estado da sua residência habitual).»

6. A discordância fundamental da progenitora/recorrente para com o decidido, como enuncia na conclusão 2ª, reside no facto de “… ter sido indevidamente e ilegalmente impedida de provar a matéria que integra a excepção contida na alínea b) do art.º 13 da Convenção de Viena (aspectos civis do rapto internacional de crianças), que permite recusar o regresso da criança, a qual nem sequer foi transferida ilicitamente para Portugal. Veio com sua mãe, embora sem consentimento do progenitor, mas com a justificação de se eximir aos maus tratos e à violência a que ambas estavam expostas por parte do progenitor.”
Ou seja, a recorrente invoca agora, nas alegações que lhe foi recusada a produção de prova quando à por si alegada existência de maus tratos e violência, que nos termos da alínea b) do artigo 13º da Convenção levariam à recusa do regresso da criança, ou seja, por existir um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável.
Porém, a ter ocorrido tal recusa, a mesma consubstanciaria uma situação de recusa de meio de prova, relativamente à qual a recorrente devia ter interposto o competente recurso interlocutório nos termos da alínea d) do n.º 2 do artigo 644º do Código de Processo Civil, o que não há notícia que haja sucedido, não podendo, por conseguinte, suscitar tal questão no recurso da decisão final.
Acresce que, a recorrente nem sequer identifica o despacho que lhe recusou a produção da prova testemunhal que refere, nem tão pouco identifica o requerimento que terá apresentado, nem os localizamos nos autos.
De facto, compulsados os autos, verificamos que consta da acta de 13/06/2023, que foram ouvidos os progenitores, cujas declarações ali se consignaram, e a criança, nos termos já referidos, tendo sido pedidas pelo Tribunal as informações com vista a apurar os factos alegados pela progenitora com relevo para a recusa do regresso da criança, nos termos do artigo 13º da Convenção, não constando da acta a apresentação de qualquer requerimento ou despacho respeitante à produção de prova pela ora recorrente.
Aliás, consta expressamente da referida acta que os Ilustres Mandatários das partes nada requereram, com excepção do mandatário do progenitor que disse que ia diligenciar pela junção do CRC do progenitor.
Deste modo, é manifesto que não se pode conhecer da alegada recusa de produção de prova.

7. Invoca ainda a recorrente que o tribunal não lançou mão dos poderes inquisitórios que lhe estão adstritos no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, como são os processos tutelares cíveis, tendo cerceado a produção de prova ao admitir apenas a audição dos progenitores e que devia ter suspendido o processo para a guardar a evolução do processo crime que corre contra o progenitor.
Ora, como se sabe, os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária (cf. artigos 3º e 12º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – RGPTC – aprovado pela Lei nº 141/2015 de 8 de Setembro, e artigos 986º e seguintes do Código de Processo Civil), não estando o Tribunal, nas providências a tomar, sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo como princípios orientadores, os estabelecidos na lei de protecção de crianças e jovens, e da simplificação, oralidade, consensualização e audição e participação da criança (cf. artigos 4.º e 5.º do RGPTC, e artigo 4.º da Lei 147/99 de 1 de Setembro) devendo ser adoptada em cada caso a solução que se julgue mais conveniente e oportuna em defesa do superior interesse da criança, já que este, se assume, como o valor fulcral ou fundamental do processo, sendo esse interesse que deve presidir a qualquer decisão no âmbito destes processos.
Porém, estes princípios orientadores não podem deixar de ser conjugados e ponderados no âmbito do que especificamente se prevê na Convenção da Haia, de 25 de Outubro de 1980, sobre os aspectos civis do rapto internacional de crianças, que, tem por objectivo assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado-Membro, sendo que, nos termos do artigo 11º da Convenção e do artigo 11º, n.º 3, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, o tribunal deve adoptar procedimentos de urgência com vista ao regresso da criança, tendo em vista os superiores interesses da criança.
É verdade que a urgência da decisão não se deve sobrepor ao superior interesse da criança, mas não é menos verdade que se sobrepõe aos interesses dos progenitores desde que aquele se mostre salvaguardado.
No caso em apreço, na sequência da audição da progenitora o tribunal decidiu indagar do estado do processo criminal pendente em Portugal contra o progenitor e solicitou, através das Autoridades Centrais, relatório sobre a situação social e económica do progenitor e da criança nos Países Baixos (onde residia com os progenitores antes da deslocação para Portugal), quanto à ocupação do progenitor, modo de vida e estado de saúde, nomeadamente se existem alguns comportamentos aditivos que o mesmo possa ter e que sejam ali do conhecimento das autoridades. Assim, como solicitou informação quanto à eventual existência de participação feita pela requerida junto das entidades policiais e de associações à vítima, tendo ainda determinado a junção do CRC do progenitor.
Ou seja, em face do apurado na conferência de pais, concretamente o invocado pela progenitora, o tribunal realizou uma indagação suficiente e expedita, não tendo descurado a análise do risco a que a criança poderia ficar exposta, caso viesse a determinar o seu regresso ao país da residência habitual, tendo diligenciado pela obtenção dos referidos elementos/informações, que foram juntos aos autos.
E, como se diz na motivação da matéria de facto, da informação social resulta que inexistem quaisquer preocupações relativamente ao pai, que não houve qualquer informação da polícia ou do emprego do pai que indicasse qualquer preocupação, sendo que, enquanto a criança esteve nos Países Baixos, o pai tinha o papel de cuidador principal da criança e, durante esse período, nenhuma preocupação sobre a família foi transmitida a nenhum serviço neerlandês.
Acresce que, do relatório social resulta que, em Portugal, o pai via a criança AA semanalmente, sempre sob a supervisão da mãe, no posto policial.
Resulta ainda do relatório social que o pai reside há cerca de um ano e meio num apartamento T3 arrendado, em Amesterdão, no qual vivia também com a mãe da AA e com a criança, filha de ambos, e que exerce actividade laboral de designer gráfico na “DGP Media”, auferindo o rendimento líquido de € 3.000,00 mensais.
Do CRC do progenitor resulta apenas a referência a delitos sentenciados entre 2007 e 2010, por injúrias, tráfico de menor gravidade e furto simples (cf. ponto 21 dos factos provados), não havendo qualquer informação relativa a condutas actuais do progenitor susceptíveis de colocar em causa o bem-estar, segurança e saúde da criança.
E quanto ao processo crime, iniciado na sequência da queixa da progenitora contra o pai, que corre termos sob o n.º 760/23.0PBFAR, no DIAP de Faro, o mesmo encontrava-se em fase de investigação, sem despacho final no inquérito.
Neste contexto, e sem outros elementos, designadamente notícia no país da residência habitual de condutas relativas ao progenitor reveladoras das circunstâncias impeditivas ao regresso da criança, e tendo em conta que o pai assumia o papel de cuidador principal da criança, como informam as autoridades dos Países Baixos, não se nos afigura que, atenta a natureza urgente do presente processo, apenas com base na palavra da mãe, que apenas apresentou queixa do companheiro em Portugal, após a deslocação ilícita da criança, se pudesse/devesse suspender os presentes autos a aguardar o desfecho do processo criminal agora instaurado.
Quanto às diligências probatórias alegadamente requeridas pela mãe já nos pronunciamos.

8. Por conseguinte, entende-se que não ocorreu violação dos poderes oficiosos de investigação cometidos ao tribunal, não ocorrendo fundamento para a recusa do regresso da criança, como pretendia a recorrente, sendo certo que, desde 28/07/2023, a criança já se encontra com o progenitor.
Em face dos factos apurados e das normas vigentes aplicáveis, a decisão de regresso da criança, era, pois, a que afigurava mais adequada à defesa do superior interesse da criança, pois permite-lhe regressar ao meio natural de havia sido retirada, unilateralmente por vontade da mãe.
Reposta a legalidade, resta esperar que os progenitores, em conjugação de esforços, pondo de lado as suas desavenças pessoais, consigam alcançar a melhor solução, estabelecendo um projecto de vida para a sua filha, de modo a proporcionar-lhe o bem-estar físico e mental a que tem direito e que os seus superiores interesses impõem.

9. Deste modo, improcede a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
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Évora, 12 de Outubro de 2023
Francisco Xavier
Elisabete Valente
Maria João Sousa e Faro
(documento com assinatura electrónica)