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AÇÃO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
ILEGITIMIDADE ACTIVA
SUPRIMENTO DA AUTORIZAÇÃO DO BENEFICIÁRIO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
Sumário
I - Não se justifica o suprimento do consentimento da beneficiária, ao abrigo do art. 141º CC, quando os factos provados e as concretas circunstâncias não revelam que a beneficiária se encontre impedida de livre e conscientemente dar o consentimento para a ação e os argumentos apresentados não constituem um fundamento atendível, por não terem sustentação nos factos provados. II - Pedido o suprimento da autorização da Requerida na própria ação e faltando a prova do respetivo fundamento, a instância deve ser julgada extinta por ilegitimidade do requerente (art.º 141º, nº 2, do Código Civil), não se conhecendo do mérito da causa.
Texto Integral
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- Relatório ( que se transcreve):
“AA, contribuinte fiscal n.º ..., com residência na Rua ..., ...;---
BB, contribuinte fiscal n.º ..., com residência na Rua ..., ...;---
Vêm intentar Acção Especial de Acompanhamento de Maior a favor de:---
CC, divorciada, contribuinte fiscal n.º ..., nascida a .../.../1953, filha de DD e de EE, natural da freguesia ... (...), concelho ..., e com residência na Rua ..., ...;---
Alegando, em síntese, que a requerida é portadora de défice cognitivo, com manifesta ausência de capacidade crítica, que lhe determinam total incapacidade para prover à defesa dos seus interesses, nomeadamente, patrimoniais; que pelo comportamento que vem adoptando, revela necessidade de um especial cuidado de proteção, no que tange, essencialmente, à defesa e gestão do seu património; que demonstra, total desconhecimento alheamento, pela defesa do respetivo património que detém, nomeadamente, imobiliário e participações sociais, sendo certo que, não obstante, não depender de terceiros, para as atividades básicas da vida diária, o seu estado atual, impede-a, de compreender o alcance e o sentido dos seus atos, bem como das respetivas consequências; e que apresenta de igual modo, comportamentos obsessivos e ritualistas, tudo direcionando, para a religião, ficando permeável à influência de quem quer que seja, no sentido dos desígnios, da sua vida pessoal e patrimonial; que face às suas capacidades psíquicas diminuídas, a requerida mostra-se pessoal e objetivamente impossibilitada de exercer os seus direitos, cumprir os seus deveres, situação atual, com tendência a agravar-se, com o decurso do tempo, atenta a doença de que padece.---
Pede, em conformidade, que a presente ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência, seja decretado o acompanhamento de CC, e que oportunamente, sejam nomeados os três filhos da requerida como seus acompanhantes, no regime da administração de bens, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 143º, n.º 2 e), 145.º, n.º 2. c), ambos do Código Civil (CC).---
Mais requerem o suprimento do consentimento da requerida, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.º 2 e 3 do art. 141º do CC.---
Regularmente citada, a requerida apresentou contestação, suscitando a ilegitimidade dos requerentes para interposição da presente acção, uma vez que a requerida não lhes concedeu qualquer autorização para o efeito, nem se encontra impossibilitada de o fazer; que da leitura do atestado de doença emitido pela médica de família da requerida consta que esta nunca apresentou “qualquer queixa ou motivo de suspeição de défice cognitivo”; que da avaliação feita à requerida consta resultaram as seguintes conclusões: “manutenção dos domínios cognitivos, nomeadamente ao nível do raciocínio analógico,da atenção, memória, linguagem, capacidade visuo-espacial e das funções executivas”; e ainda que a requerida gere a sua pessoa e bens sem necessidade de ajuda, vive sozinha na sua casa, é uma pessoa autónoma que toma as sua decisões sem necessidade do apoio de ninguém, sabe gerir o seu dinheiro, tem uma conta bancária da qual é a única titular, que usa sem necessidade de ajuda de ninguém, a qual movimenta essa conta a crédito e a débito, faz depósitos e levantamentos deslocando-se ao banco onde trata de tudo que diz respeito à sua conta, usa o cartão de débito associado a essa conta, fazendo levantamentos e pagamentos; quando tem necessidade de se deslocar, usa o seu automóvel, sendo ela quem o conduz, marca as suas consultas médicas e vai sozinha a essas consultas, toma os seus medicamentos conforme a prescrição médica; sabe ler e escrever; tem noção do espaço e do tempo; é capaz de realizar autonomamente todas as tarefas, sendo certo que até vive sozinha, confecciona as suas refeições, trata da roupa e cuida da casa; em suma, possui juízo crítico e não tem nem nunca teve qualquer doença do foro psíquico.---
Pede, em conformidade, que deve ser julgada procedente a excepção dilatória de ilegitimidade dos requerentes, por falta de autorização para intentarem a presente acção, absolvendo-se a requerida da instância; ou caso assim não se entenda, deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada, absolvendo-se a requerida do pedido.---
Relegada para final o conhecimento da eventual excepção de ilegitimidade, foi ordenada a realização do exame pericial, foi apresentado o competente relatório médico, o qual concluiu, em síntese, que “inexiste fundamentação psicopatológica para medida de acompanhamento”.---
Seguidamente, procedeu-se à audição pessoal e directa da requerida, no sentido de se ter um vislumbre do seu estado mental, como decorre da respectiva acta.---
Dispensadas as demais diligências de prova requeridas, o Ministério Público emitiu parecer nos seguintes termos: “Assim, afigura-se que, neste momento, e para a situação pessoal da requerida, esta apresenta-se capaz de gerir a sua pessoa e o seu património, pelo que se pugna pela improcedência da presente acção e, em consequência, o respectivo arquivamento dos autos sem que seja aplicada qualquer medida de acompanhamento à requerida”.---
Regularmente notificados, requerentes e requerida nada vieram alegar ou requerer”.
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Foi depois proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
“ Em face de tudo o exposto, decide-se:---
i. Julgar procedente a excepção de ilegitimidade activa suscitada pela requerida CC na contestação (art. 141.º do CC);---
ii. Em obediência ao disposto no art. 278.º, n.º 3 do CPC, julga-se a presente acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se a requerida CC do pedido;---
Sem custas, por isenção objectiva – art. 4.º, n.º 1, al. l) do Regulamento das Custas Processuais.---
Valor da Causa: €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).---
Registe.---
Notifique.— “
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É desta sentença que veio recorrer AA, Autor / Recorrente com as seguintes conclusões ( que se transcrevem):
“1 Vem este recurso interposto da douta sentença de fls., que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa, assim como, julgou a acção totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se a requerida CC, do pedido, abordando-se nestas alegações, matéria de facto e de Direito.
2 Nos presentes autos, veio o A, no requerimento inicial, de acompanhamento de maior, a favor de sua mãe, alegar e peticionar o seguinte, relativamente à sua progenitora, CC:
“…A R., é portadora de défice cognitivo, com manifesta ausência de capacidade crítica, que lhe determinam total incapacidade para prover à defesa dos seus interesses, nomeadamente, patrimoniais.
Além disso, a R., pelo comportamento que vem adotando, revela necessidade de um especial cuidado de proteção, no que tange, essencialmente, à defesa e gestão do seu património.
A R., CC, demonstra, total desconhecimento alheamento, pela defesa do respetivo património que detém, nomeadamente, imobiliário e participações sociais, sendo certo que, não obstante, não depender de terceiros, para as atividades básicas da vida diária, o seu estado atual, impede-a, de compreender o alcance e o sentido dos seus atos, bem como das respetivas consequências.
Nesta matéria, apresenta momentos de confusão e desorientação.
Apesar de, aparentemente, conhecer o valor real do dinheiro, não possui discernimento suficiente para tomar posição, na defesa e gestão do seu património.
A R., CC é, assim, incapaz de prover, sem a ajuda e apoio de terceiros, no que tange à defesa, proteção e administração dos seus bens, pelo que, precisa de quem cuide, guarde, vigie e zele pelos seus interesses, devendo-lhe ser nomeada pessoa a quem incumbam tais tarefas.”
3 Em face do exame pericial, realizado à Requerida, adveio respectivo relatório, que, no entendimento do Recorrente, nele se destacam afirmações e posições da examinada, no sentido de confirmar tudo aquilo que o A., alega na petição inicial, ou seja, de que a Requerida, necessita de cooperação e assistência de terceiros, para as tarefas de gestão financeira mais complexas, no que diz respeito ao seu património.
Do aludido relatório, é bem evidente, que a examinada, não foi confrontada, como o que quer que seja, atinente, às questões fundamentais, no que tange à sua capacidade de gestão do respectivo património, nomeadamente, imobiliário e societário, pois cremos que a mesma, não tem qualquer noção dos bens que possui, limitando-se, a este propósito, a afirmar:
- que “tem uma casa na ilha ... que aluga a turismo”
- “sou eu que faço a gestão dos bens”, ao invés daquilo que sucede, pois a Requerida, nem sequer, faz referência, por mínima que seja, daquilo que é o seu património, muito menos, tem noção, sequer que consta como figura decorativa, com o cargo de gerente, de uma empresa, denominada, EMP01..., Ldª”, controlada, sim, pela filha FF.
- “os problemas têm sido com os meus filhos…o meu filho que me disseque eu tinha que ir para um lar”, “a única que me visita é a minha filha FF”, tratam-se de afirmações bem demonstrativas de que é completamente permeável, à influência de terceiros, nomeadamente, da filha FF, com o inerente risco de realizar actos lesivos para a sua pessoa e património.
4 Atentas as incongruências do discurso da Requerida, o Recorrente, requereu, também, a realização de exame complementar, no sentido de despistagem de deficiência intelectual, nomeadamente, junto do Serviço de Psicologia do Hospital de ..., EPE, a realização de teste de inteligência, na pessoa da Requerida, para avaliação do quociente de inteligência, na Escala de Wechsler, para Adultos (WAIS), validado para a população portuguesa.
5 A este propósito, o Tribunal de primeira instância, por douto despacho, refª citius ...30, indeferiu as diligências de prova requeridas pelo A. (exame complementar e apresentação de documentos), sendo certo que, ante a discordância do A., este interpôs Recurso, que corre termos no Tribunal da Relação de Guimarães.
6 Na verdade já aí se alegou que a prova documental e pericial, em apreciação, é pertinente, para a boa decisão do pleito, pois, aquilo que está em causa, como se refere na petição inicial, não são as questões, mais básicas do quotidiano da requerida, mas sim aquilo que se alega, relativamente, às questões mais complexas, relacionadas com a gestão do património da CC, desde logo, porque se crê que a mesma, nem conhece o património que possui, muito menos, porque motivo figura, por exemplo, como gerente da empresa EMP01..., Ldª, sem sequer ter noção, daquilo que é o referido cargo, ou de que se trata a aludida entidade, sempre permeável à influência de terceiros, nomeadamente, da filha FF.
7 A sentença, ora em crise, atento o supra referido, ao contrário daquilo na decisão se aduz “Não existem nem foram arguidas quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias de que importe conhecer”, o certo é que, desde logo, se encontra pendente o Recurso interposto pelo ora Recorrente, contra o indeferimento da produção de determinados meios de prova, requeridos pelo A.
(Proc. nº 949/21.... – 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães).
8 Quanto à questão da excepção da ilegitimidade a que se refere a douta sentença, é entendimento do Recorrente que a mesma, não se verifica, tendo em conta que, de acordo com o estatuído, no artigo 30.º, n.º 1 do CPC, “o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”.
9 O Requerente, por certo, é parte legítima porque a eventual procedência desta acção lhe poderá dar ganho de causa, no sentido de ver acautelado, aquilo que peticiona, ou seja, a legitimidade, traduz-se na posição concreta do Requerente, neste litigio, tudo sem prejuízo do estatuído no artigo, 141º, nº 2, do Código Civil, ou seja, não obstante a Requerida alegar que, não deu qualquer consentimento para o acompanhamento, o certo é que, “O Tribunal pode suprir autorização do beneficiário, quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar…”
10 No sentido da determinação da legitimidade das partes, o nº 3, do artigo 30º do CPC, também esclarece que, a legitimidade se estabelece, através da relação controvertida, tal como ela é configurada pelo autor.
11 E, neste caso, o A., alega que a Requerida “… é portadora de défice cognitivo, com manifesta ausência de capacidade crítica, que lhe determinam total incapacidade para prover à defesa dos seus interesses, nomeadamente, patrimoniais. A R., pelo comportamento que vem adotando, revela necessidade de um especial cuidado de proteção, no que tange, essencialmente, à defesa e gestão do seu património.”
12 Por seu turno, constata-se, também que a Requerida, tem interesse em contestar, tendo em conta que, a possível procedência desta acção, redunda numa desvantagem, nomeadamente, pelos constrangimentos do acompanhamento nos moldes peticionados.
13 Apreciar a relação material controvertida, já se trata de diferente questão, ou seja, saber se, de facto a Requerida, necessita de acompanhamento ou não, nos termos peticionados, é uma questão de procedência ou improcedência desta acção, não de legitimidade, pelo que, salvo o devido respeito, deve improceder a referenciada excepção dilatória de ilegitimidade activa a que se refere a douta sentença.
14 Quanto à apreciação crítica, da douta sentença, no que concerne, à alegada improcedência do pedido, ao contrário daquilo que se despende na respectiva motivação, cumpre referir, que da audição da Requerida, é notório que esta não é capaz de gerir o seu património de forma autónoma, desde logo porque não tem a mínima noção daquilo que o constitui, revelando-se também evidente que é permeável à influência de terceiros, factos que justificam medida de acompanhamento adequada.
15 É que, relativamente aos factos dados como provados, elencados na douta sentença, fica a ideia que a audição da Requerida, apenas contemplou os aspectos básicos do quotidiano daquela, que como é óbvio, o ora Recorrente, nunca pôs em causa.
16 Coisa diferente, são as questões da gestão patrimonial que colocam, a Requerida, em posição de fragilidade e perigo de dissipação do seu património, em detrimento de terceiros, nomeadamente, da filha FF, que sobre a progenitora assume relação de influência e, sobre esta matéria, considera a douta sentença que, não se provaram os seguintes factos “II – Factos não provados:”
“A. Que a requerida seja portadora de défice cognitivo, com manifesta ausência de capacidade crítica, que lhe determine uma total incapacidade para prover à defesa dos seus interesses, nomeadamente, patrimoniais;
B. Que pelo comportamento que vem adoptando, revela necessidade de um especial cuidado de proteção, no que tange, essencialmente, à defesa e gestão do seu património;
C. Que demonstre um total desconhecimento e alheamento pela defesa do respetivo património que detém;
D. Que o seu estado atual a impeça de compreender o alcance e o sentido dos seus actos, bem como das respetivas consequências;
E. Que apresente comportamentos obsessivos e ritualistas, ficando permeável à influência de terceiros;”
17 No entanto, da audição da Requerida, ficou bem patente, que esta, não tem noção, sequer do património que detém, muito menos, do cargo de gerente que ocupa, na empresa EMP01..., Ldª, ou das participações sociais que eventualmente lhe pertençam.
18 No âmbito do Relatório Médico Legal, afirma que é proprietária duma casa em ..., já no decurso da sua audição, vem afirmar que, afinal, nada tem a ver com a referida propriedade, assegurando, mesmo, perante o Tribunal que “foi o médico que confundiu, foi lá o forense que confundiu…não tenho lá nada, minha não é…é dos filhos, isso foi confusão de ...…”.
19 De igual modo, é abundante a referência da Requerida a expressões, no sentido de que “confio em quem está a gerir”, sendo certo que, no entanto, a questão se coloca, precisamente, no facto da requerida, neste plano, não possuir discernimento, para os actos de gestão patrimonial que, realce-se, assumem complexidade, ante o vasto património que detém, assim como os cargos de gestão que ocupa e que, no entanto, mais não passa do que mero joguete, ao serviço dos interesses patrimoniais de terceiros e, tudo isto, sem qualquer auxílio ou supervisão que, no âmbito desta acção, o Recorrente, vem pugnando.
20 É entendimento do Recorrente que o Tribunal “a quo”, atentas as circunstâncias, não fez uma correcta apreciação da prova produzida e que teve, como consequência, o errado julgamento da matéria de facto controvertida, nomeadamente, quanto à questão de se aferir fundamento que justifique a aplicação de medida de acompanhamento, repita-se, quanto à questão gestão e protecção do património da Requerida.
21 De toda a prova produzida, deviam resultar, provados, os factos referidos na fundamentação, em A, B, C e D, dados como não provados, da douta sentença.
22 A motivação da sentença, afigura-se, efectuada de forma genérica e, o certo é que, o Tribunal a quo, se olvidou, omitiu, toda a parte do depoimento da Requerida que recaiu sobre as questões relacionadas com a incapacidade desta na gestão do respectivo património, assim como a sua permeabilidade à influência de terceiros.
23 A sentença, é completamente omissa, carece de fundamentação, relativamente às justificações, ou falta delas, dadas para considerar que “não fosse capaz de gerir a sua pessoa e o/ou seu património de forma autónoma, em suma, que existisse uma qualquer fundamentação para aplicação de medida de acompanhamento” assim como, para considerar não provados os factos referidos em 1, 2, 3, 4.
24 Da audição da Requerida, ao contrário daquilo que refere a sentença, não resulta provada qualquer factualidade, no sentido de que a Requerida, “não fosse capaz de gerir a sua pessoa e o/ou seu património de forma autónoma, em suma, que existisse uma qualquer fundamentação para aplicação de medida de acompanhamento.”
25 Ao invés, do depoimento da Requerida, resulta que esta, não tem noção daquilo que é o seu património, desconhece, os cargos de gestão que ocupa, assim como o respectivo conteúdo, denotando-se que a gestão do respectivo acervo está entregue a terceiros, numa alegada dialéctica na base da confiança, mas que a Requerida, face à falta de capacidade crítica, nesta matéria, se encontra em perigo, à mercê de terceiros, caso não se decrete competente e adequada medida judicial de protecção ou acompanhamento.”
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O Digno Magistrado do MP e recorrida contra-alegaram e, em síntese, pugnaram pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, mas com efeito suspensivo, após ter sido indagado acerca do desfecho do recurso deduzido em separado da decisão interlocutória proferida nos presentes autos, mas que foi mantida por acórdão deste TRG, transitado em julgado.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.
II- FUNDAMENTAÇÃO
As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:
- reapreciação da decisão de facto;
- saber se estão reunidos os pressupostos para suprir o consentimento/autorização da Beneficiária para a propositura da ação.
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III- Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:
I. Factos provados
Em face do objecto da acção, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da causa:---
1) A requerida nasceu em .../.../1953, e encontra-se registada como filha de DD e de EE;---
2) É divorciada e tem três filhos:---
a. AA, aqui requerente;---
b. BB, aqui requerente;---
c. FF, casada, residente na Rua ..., ...;---
3) A requerida foi casada, em primeiras núpcias com, AA, sob o regime da comunhão geral de bens, de quem se divorciou por mútuo consentimento à data de 08/06/2010, por decisão proferida pela Conservatória do Registo Civil ... e já transitada em julgado;-
4) Encontra-se a correr processo de inventário por óbito do falecido AA, sob o n.º 743/20...., neste Juízo Local Cível ...;---
5) Nesse processo de inventário é cabeça-de-casal a viúva do falecido AA, GG;---
6) A requerida não deu autorização aos requerentes para instauração da presente Acção de Acompanhamento de Maior;---
7) A requerida recebeu a citação pessoal, conforme certidão de citação de 09.12.2021;--
8) A requerida constituiu mandatário e deduziu contestação, tendo declarado não dar autorização por não carecer de acompanhamento;---
9) Da leitura do atestado de doença junto à contestação (e que aqui se dá por inteiramente reproduzido), que aqui se dá por inteiramente reproduzido, consta que a requerida nunca apresentou “qualquer queixa ou motivo de suspeição de défice cognitivo”;---
10) Da leitura da informação que contém o resultado da avaliação psicológica da requerida (a qual se encontra junto à contestação, e aqui se dá por inteiramente reproduzido), constam as seguintes conclusões:---
a. “Compareceu à consulta de Avaliação psicológica sozinha, com aspeto cuidado e comportamento adequado”;---
b. “Ao longo da avaliação apresentou uma postura colaborante, um discurso coerente, de conteúdo lógico e estruturado, pensamento claro e organizado, não denotando alteração na forma do pensamento”;---
c. “Apresenta um humor eutímico e afeto adequado, sem revelar presença de sintomatologia depressiva e/ou ansiosa”;---
d. “Ausência de prejuízo cognitivo”;---
e. “Apresenta-se orientada no tempo e no espaço”;---
f. “Apresenta competências a nível de atenção e memória”;---
g. “Ao nível da linguagem possui competências na compreensão de instruções simples na fluência verbal semântica e de fonémica e na compreensão de questões complexas”;---
h. “Apresenta coordenação visuo-motora, bem como na capacidade de abstração, planeamento e execução de tarefas mais complexas”;---
11) A requerida vive sozinha;---
12) Sabe ler e escrever;---
13) Conhece o dinheiro, tem noção do seu valor simbólico, e demonstra capacidade de gerir o seu dinheiro;---
14) Demonstra capacidade de usar uma conta bancária, de fazer depósitos e levantamentos, e de se deslocar ao banco para tratar do que diga respeito à sua conta bancária;
15) É capaz de usar um cartão de débito, fazendo levantamentos e pagamentos;---
16) Tem noção do espaço e do tempo;---
17) Realiza autonomamente todas as tarefas domésticas sem necessidade de acompanhamento;---
18) Possui juízo crítico;---
19) Tem carta de condução e é capaz de conduzir um automóvel;---
20) É capaz de marcar as suas consultas médicas e ir sozinha a essas consultas;---
21) É capaz de tomar os seus medicamentos conforme a prescrição médica sem ajuda de terceiros;-
22) Não sofre nem foi diagnosticada de qualquer patologia do foro psiquiátrico ou neurológico que comprometa o seu discernimento ou a sua capacidade volitiva;---
23) Apresenta um discurso coerente, bem construído sintáctica e semanticamente, sem alteração da forma nem do curso do pensamento;---
24) As suas funções cognitivas, numa avaliação clínica, situam-se dentro de variações da normalidade para o grupo etário;---
25) Tem autonomia plena nas actividades de vida diária (diz morar sozinha, fazer as suas refeições na maioria das vezes em casa e revela conhecimentos adequados de culinária para uma alimentação equilibrada, e faz as compras para a sua diária no supermercado de proximidade);-
26) Sabe gerir as suas economias de forma correcta, equilibrada e ao serviço do seu bem-estar e da sua qualidade de vida;---
27) Identifica as principais figuras publicas nacionais;---
28) Sem sintomatologia ansiosa nem ideação depressiva;---
29) Não se detecta actividade alucinatória nem ideação delirante;---
30) Conhece a natureza do processo de Acompanhamento de Maior e compreendeu a finalidade e o alcance da sua audição;---
31) Conhece a marca e o modelo do carro que conduz;---
32) Sabe a sua idade e o ano em que nasceu;---
33) Sabe descrever as suas habilitações escolares e académicas (onde estudou e até que ano);---
34) A memória a curto e a longo prazo mantêm-se intactas (sabe o ano em que casou, sabe o local da sua residência, sabe identificar filhos e netos pelo nome, idade e data de nascimento);---
35) Acompanha a actualidade noticiosa do país e do mundo (identifica a guerra da Ucrânia como o principal conflito a nível internacional, e sabe dizer quando começou);---
II. Factos não provados
Não resultaram provados os seguintes factos:---
A. Que a requerida seja portadora de défice cognitivo, com manifesta ausência de capacidade crítica, que lhe determine uma total incapacidade para prover à defesa dos seus interesses, nomeadamente, patrimoniais;---
B. Que pelo comportamento que vem adoptando, revela necessidade de um especial cuidado de proteção, no que tange, essencialmente, à defesa e gestão do seu património;---
C. Que demonstre um total desconhecimento e alheamento pela defesa do respetivo património que detém;---
D. Que o seu estado atual a impeça de compreender o alcance e o sentido dos seus actos, bem como das respetivas consequências;---
E. Que apresente comportamentos obsessivos e ritualistas, ficando permeável à influência de terceiros;--- “
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IV- Antes de se proceder à apreciação da impugnação da matéria de facto, convém previamente realçar o seguinte: no requerimento inicial, o Requerente/recorrente manifestou pretender o suprimento do consentimento da Beneficiária, sua mãe, para legitimar a propositura da ação, face à então invocada impossibilidade desta o conceder de forma livre e consciente.
Citada, a beneficiária constituiu mandatário e contestou a ação, opondo-se ao suprimento do seu consentimento e à aplicação de qualquer medida de acompanhamento.
Por falta de elementos, o tribunal relegou o conhecimento do pedido de suprimento para momento ulterior ao da produção dessa prova.
Na sentença, neste particular, foi consignado o seguinte, após enumerar os factos que foram dados como provados:
“ Daqui resulta objectivamente que a requerida, por um lado, não concedeu nem concede qualquer autorização aos requerentes para instaurarem, em seu nome e representação, a presente Acção Especial de Acompanhamento de Maior; e que a mesma se encontra na plena posse das suas faculdades físicas, mentais e psicológicas para poder, livre e conscientemente, dar ou recusar essa autorização, na medida em que aquela recebeu a citação, constituiu mandatário e contestou a acção, foi submetida a exame médico e pericial que atestou que a própria tem o juízo crítico intacto e não sofre de qualquer patologia do foro psiquiátrico ou neurológico que comprometa o seu discernimento ou a sua capacidade volitiva, e, ouvida presencialmente em Tribunal, foi possível constatar-se de viva voz que a mesma está dotada de discernimento e da razão para compreender o alcance desta acção e auto-avaliar a sua própria necessidade (ou não) de vir a beneficiar de medidas de acompanhamento, que a requerida declina em absoluto, e, aliás, vai de encontro às principais conclusões vertidas na generalidade da documentação médica que instrui estes autos.---
Já relativamente a um qualquer outro interesse atendível, os aqui requerentes não lograram alegar e muito menos demonstrar, como era seu ónus, qualquer razão ou fundamento que pudesse justificar em abstracto a instauração da presente acção sem o consentimento e contra a vontade expressa da requerida, sendo certo que a eventual existência de antagonismos familiares ou a pendência de outros processos de inventário para partilha de bens comuns não explica, não justifica nem autoriza o recurso a esta via judicial (Acção Especial de Acompanhamento de Maior) para salvaguarda dos interesses patrimoniais do próprio ou de terceiro sem que haja pelo menos algum tipo de indício de como a pessoa visada carece de medidas de acompanhamento.---“.
Concluiu, assim, pela ilegitimidade dos requerentes sem a autorização da beneficiária (a qual por seu turno não a concedeu) e, consequente, extinção da instância pela absolvição da instância.
Ora, o recorrente apela ao conceito tradicional de legitimidade delineado pelo art.º 30º do Código de Processo Civil, assente na configuração da ação ou do incidente, conforme a alegação de factos.
Sem embargo, o art. 141º do Código Civil aplicável ao caso vertente evidencia um desvio significativo àquele conceito tradicional de legitimidade.
Com efeito, no que concerne à legitimidade, o n.º 1 do artigo 141.º do CC consigna que o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
O n.º 2 do artigo 141.º permite o suprimento da autorização do beneficiário quando, “em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”.
Por sua vez, o n.º 3 do mesmo artigo 141.º admite que o pedido de suprimento da autorização do beneficiário possa ser cumulado com o pedido de acompanhamento. Neste caso, o n.º 2 do artigo 892.º do CPC exige que o requerente alegue os factos que o fundamentam.
Assim sendo, cremos que o recorrente confunde a questão da legitimidade para deduzir o pedido de suprimento da vontade da beneficiária, da legitimidade para ação. Aquela resulta dos próprios termos da petição inicial, sendo o Requerente AA, filho da beneficiária (um parente sucessível) que, invocando essa qualidade, logo pressupôs a falta de consentimento da mesma para o respetivo e necessário acompanhamento, por invocação de défice cognitivo da visada e incapacidade para gerir o seu património. Já a legitimidade para a ação pressupõe o suprimento do consentimento da visada; sem este, o filho da beneficiária não pode despoletar o processo especial de acompanhamento previsto nos art.ºs 891º e seg.s do Código de Processo Civil. O Requerente só tem legitimidade para a ação de acompanhamento se o tribunal encontrar fundamento e deferir o suprimento da vontade da Beneficiária, enquanto facto legitimador da proteção da mesma.
Considerando que o Requerente não tem legitimidade para propor a ação e não tendo suprido o consentimento da Requerida, o tribunal fez culminar a sentença com a sua absolvição da instância, por ilegitimidade, ao abrigo dos art.ºs 576º, nº 2 e 577º, al. e), do Código de Processo Civil.
Entende o recorrente que a prova produzida ( pericial e audição da requerida) evidencia os factos que alegou e a requerida, nessa medida, “ é portadora de défice cognitivo, com manifesta ausência de capacidade crítica, que lhe determinam total incapacidade para prover à defesa dos seus interesses, nomeadamente, patrimoniais. A R., pelo comportamento que vem adotando, revela necessidade de um especial cuidado de proteção, no que tange, essencialmente, à defesa e gestão do seu património.”, para além de sofrer manipulação por parte de terceiros.”
Temos para nós que, tendo-se feito depender o suprimento do consentimento da beneficiária e, consequentemente, o apuramento da legitimidade do Requerente, da estabilização de factos relativos aos fundamentos da ação - com cumulação do pedido de suprimento da autorização com o pedido de acompanhamento (art.º 141º, nº 3, do Código de Processo Civil) - de tal modo que se conheceu dessa questão apenas na sentença, é necessário atender à matéria de facto provada, mais concretamente àquela que traduza um conjunto de circunstâncias que, por si, seja reveladora de que a beneficiária não pode livre e conscientemente dar autorização para o procedimento de acompanhamento ou quando, para tal seja de considerar existir um fundamento atendível (art.º 141º, nº 2, atrás citado).
Acontece que o recorrente impugnou a decisão proferida em matéria de facto respeitante a factos essenciais à verificação dos pressupostos do suprimento da autorização da Beneficiária, e quanto aos factos dados como não provados A) a D).
Para o efeito invocou o recorrente que, em face quer da audição da requerida, quer do resultado da perícia realizada no processo, devem ser dados como provados aqueles factos que o tribunal deu como não provados nas al.A) a D), argumentando, para o efeito, que “ … a requerida não tem noção daquilo que é o seu património, desconhece, os cargos de gestão que ocupa, assim como o respectivo conteúdo, denotando-se que a gestão do respectivo acervo está entregue a terceiros, numa alegada dialéctica na base da confiança, mas que a Requerida, face à falta de capacidade crítica, nesta matéria, se encontra em perigo, à mercê de terceiros, caso não se decrete competente e adequada medida judicial de protecção ou acompanhamento.”.
Mesmo que não seja de entender assim, defende o recorrente que a matéria de facto dada como provada é suficiente para, de forma manifesta, autorizar o suprimento e serem aplicadas medidas de acompanhamento à Beneficiária por entender que “ fica a ideia que a audição da Requerida, apenas contemplou os aspectos básicos do quotidiano daquela, que como é óbvio, o ora Recorrente, nunca pôs em causa; Coisa diferente, são as questões da gestão patrimonial que colocam, a Requerida, em posição de fragilidade e perigo de dissipação do seu património, em detrimento de terceiros, nomeadamente, da filha FF, que sobre a progenitora assume relação de influência”.
Decorre do exposto que só com a estabilização da matéria de facto provada e não provada poderemos, em segurança, decidir sobre a legitimidade ativa do Requerente, pelo que deverá ser analisada a impugnação de facto.
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Ora, aparentemente, o recorrente pretendia impugnar a decisão da matéria de facto de vária ordem.
Questão que se coloca é a de saber se, no entanto, o fez de forma processualmente válida.
A possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está, como é consabido, subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Desde logo, como deflui do nº 1 do art. 639º, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se quiser prosseguir com a impugnação de forma regular.
Assim, para além do cumprimento do ónus de alegação, o recorrente fica igualmente sujeito ao ónus de finalizar as alegações recursórias com a formulação sintética de conclusões, em que resuma os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão prolatada pelo tribunal a quo.
Além destes, vem-se igualmente autonomizando um ónus de especificação de cada uma das concretas razões de discórdia em relação à decisão sob censura, seja quanto às normas jurídicas (e sua interpretação) aí convocadas, seja a respeito dos concretos pontos de facto que o apelante considera que foram julgados de forma incorreta e dos concretos meios de prova que impunham uma diversa decisão relativamente a essa facticidade.
Isso mesmo determina a al. a) do nº 1 do art. 640º, na qual se preceitua que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”.
Por imposição do segmento normativo transcrito, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende ver reapreciados pelo tribunal ad quem.
Isto posto, procedendo à apreciação das conclusões apresentadas: o recorrente observa os requisitos do art. 640º do CPC em relação aos pontos concretos que indicou das alíneas A), B), C) e D) dos factos não provados ( conclusão 21º), mas já não quanto à matéria que refere genericamente nas conclusões quando se refere à questão da permeabilidade e influência de terceiros sem indicar concretamente o ponto de facto com referência a tal questão (e que seria precisamente a alínea E) dos factos não provados), pelo que em relação a tal questão o recurso será rejeitado por inobservância dos requisitos previstos no art. 640º do CPC.
Analisemos agora aqueles factos não provados nas alíneas A), B, C) e D) porquanto em relação aos mesmos nos termos do art. 640º, nº1 e nº2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto, quanto aos mesmos.
Nos termos do art. 662º, nº1 do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto: “[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como refere A. Abrantes Geraldes , “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Em suma, entende-se atualmente, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Com efeito, e porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados .
Atenta a posição expressa na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido.
Ponderando estes aspetos cumpre reapreciar a prova, face aos argumentos apresentados pela apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto.
Reapreciada a prova, concluímos que o recorrente não tem razão.
Vejamos.
Na sentença fundamentou-se a convicção do tribunal nos seguintes termos:
“ A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto provada resulta da conjugação e análise dos elementos documentais e periciais juntos aos autos, entre os quais assumiram particular relevância o assento de nascimento da requerida, e ainda o relatório pericial junto aos autos (o qual se mostrou completo, bem fundamentado, e logrou responder a todos os quesitos formulados).---
Tomou-se igualmente em consideração o teor da audição pessoal e directa da pessoa da requerida, a qual teve lugar no passado dia 28.03.2022, como decorre da respectiva acta, que serviu igualmente para que o Tribunal se pudesse inteirar acerca da sua situação. Nesta audição a requerida foi sujeita a um intenso contraditório, respondendo de forma serena, objectiva, assertiva e coerente a todas as questões formuladas, as quais abarcaram a globalidade dos factos carreados para os articulados. As declarações da requerida atestam não só a generalidade das conclusões que vieram a ser vertidas para o relatório médico elaborado pelo INML e junto as autos, mas também os documentos médicos (atestado médico e avaliação cognitiva) juntos com a contestação, que reforçam inteiramente a posição assumida pela requerida nos articulados.---
Do lado dos requerentes, e não obstante terem sido expressamente convidados para o efeito, constata-se que não lograram instruir os autos com nenhum documento médico ou afim susceptível de demonstrar o mais leve indício de como a requerida padecesse de algum tipo de défice cognitivo ou enfermasse de algum outro problema de saúde ou comportamental que a impedissem de estar por si em juízo, exercer plenamente os seus direitos ou de cumprir os seus deveres. Ao invés, todos os documentos carreados para os autos vieram desmentir categoricamente que a requerida necessitasse de algum tipo de assistência ou acompanhamento no seu dia-a-dia, que não fosse capaz de gerir a sua pessoa e o/ou seu património de forma autónoma, em suma, que existisse uma qualquer fundamentação para aplicação de medida de acompanhamento.---
Não se provaram outros factos por ausência de qualquer prova nesse sentido (excluindo-se qualquer referência a afirmações conclusivas, de direito e irrelevantes para a decisão a proferir, designadamente com base na sua natureza meramente instrumental, a considerar, apenas, em sede de motivação da matéria de facto).---“.
O recorrente entende que aqueles factos dados como não provados ( Al. A) a D)) deveriam ser dados como provados, atenta a audição da requerida, donde se retira que “esta, não tem noção, sequer do património que detém, muito menos, do cargo de gerente que ocupa, na empresa EMP01..., Ldª, ou das participações sociais que eventualmente lhe pertençam.
Mais, aduz, no âmbito do Relatório Médico Legal, afirma que é proprietária duma casa em ..., já no decurso da sua audição, vem afirmar que, afinal, nada tem a ver com a referida propriedade, assegurando, mesmo, perante o Tribunal que “foi o médico que confundiu, foi lá o forense que confundiu…não tenho lá nada, minha não é…é dos filhos, isso foi confusão de ...…”.
De igual modo, aduz o recorrente, é abundante a referência da Requerida a expressões, no sentido de que “confio em quem está a gerir”, sendo certo que, no entanto, a questão se coloca, precisamente, no facto da requerida, neste plano, não possuir discernimento, para os actos de gestão patrimonial que, realce-se, assumem complexidade, ante o vasto património que detém, assim como os cargos de gestão que ocupa e que, no entanto, mais não passa do que mero joguete, ao serviço dos interesses patrimoniais de terceiros e, tudo isto, sem qualquer auxílio ou supervisão que, no âmbito desta acção, o Recorrente, vem pugnando.”
Entende ainda que da análise do relatório pericial, nem sinais de que a examinada, fosse confrontada, com o que quer que fosse, quanto às questões relacionadas com a gestão do património da CC, “desde logo, porque se crê que a mesma, nem conhece o património que possui, muito menos, porque motivo figura, por exemplo, como gerente da empresa EMP01..., Ldª, sem sequer ter noção, daquilo que é o referido cargo, ou de que se trata a aludida entidade, sempre permeável à influência de terceiros, nomeadamente, da filha FF.”.
Ou seja, sugere que se altere, então, a matéria de facto dada como não provada para se provar que: “- A. Que a requerida seja portadora de défice cognitivo, com manifesta ausência de capacidade crítica, que lhe determine uma total incapacidade para prover à defesa dos seus interesses, nomeadamente, patrimoniais;---
B. Que pelo comportamento que vem adoptando, revela necessidade de um especial cuidado de proteção, no que tange, essencialmente, à defesa e gestão do seu património;---
C. Que demonstre um total desconhecimento e alheamento pela defesa do respetivo património que detém;---
D. Que o seu estado atual a impeça de compreender o alcance e o sentido dos seus actos, bem como das respetivas consequências”.
Desde logo, dir-se-á que não se concorda com o recorrente quando pretende fazer crer que o relatório pericial não responde às questões que entende serem cruciais para a decisão da causa: nomeadamente, saber se a requerida sabe gerir o seu património, nomeadamente se atendermos que ali se lê, além do mais, que a requerida apresenta “Ausência de prejuízo cognitivo”;---e. “Apresenta-se orientada no tempo e no espaço”;--- “Apresenta competências a nível de atenção e memória”;--- “Ao nível da linguagem possui competências na compreensão de instruções simples na fluência verbal semântica e de fonémica e na compreensão de questões complexas”;--- “Apresenta coordenação visuo-motora, bem como na capacidade de abstração, planeamento e execução de tarefas mais complexas” ( sublinhados nossos), aliás conforme facto nº 10 dado como provado e que nem sequer foi impugnado(!), sendo certo ainda que se provou que “ Sabe gerir as suas economias de forma correta, equilibrada e ao serviço do seu bem-estar e da sua qualidade de vida;---“ ( facto 26º), facto igualmente não impugnado, para além de todos os outros factos dados como provados e não impugnados.
Ou seja, tudo factos dados como provados e dos quais resulta inequivocamente a conclusão de que a beneficiária está capaz para resolver os assuntos correntes da sua vida, quer pessoais ( e aqui o recorrente também não tinha dúvidas), quer sejam patrimoniais.
Por tudo, ao tribunal a quo apenas restava concluir pela inexistência de qualquer défice cognitivo ou doença psiquiátrica ou anomalia permanente da personalidade da Beneficiária, revelando-se a mesma totalmente autónoma e capaz, para decidir e reger a sua pessoa e bens e prestar qualquer consentimento de modo voluntário.
O tribunal a quo ouviu a Beneficiária (cfr. ata de 28.03.2023).
Ouvidas e lidas as transcrições da mesma feitas nas alegações agora, resulta também para nós evidente a coerência do discurso e o relato de factos memorizados, antigos e recentes. Algumas falhas estão, ao menos aparentemente, dentro da normalidade, tendo esclarecido perfeitamente a questão da propriedade da casa de ....
Por outro lado, igualmente não concordamos com o recorrente quando pretende retirar conclusões de factos que nem sequer se deram como provados, como seja, quando alega que “ a requerida nem conhece o património que possui” e “porque motivo figura, por exemplo, como gerente da empresa EMP01..., Ldª”, nem sequer tem noção, daquilo que é o referido cargo, ou de que se trata a aludida entidade” e “ sempre permeável à influência de terceiros, nomeadamente, da filha FF.”.
Com efeito, para além de não se verificar prova que sustenta a pretendida alteração, nomeadamente da audição da requerida, por outro lado, a prova por presunção não constitui um meio de prova que justifique a alteração pretendida, por não assentar em factos provados.
A prova por presunções judiciais assenta em factos concretos e provados (art. 349º CC) e é precisamente esses factos concretos, que no caso presente cumpre apurar, face à prova produzida .
Como se observa, no Ac. STJ 30 de junho de 2011, Proc. 6450/05.9 TBSXL.L1.S.1 (www.dgsi.pt): “a utilização pelas Relações de presunções naturais ou judiciais é lícita, mas tem como limite a exigência de uma congruência com a matéria de facto fixada através da livre valoração da prova produzida, com imediação e oralidade, em audiência, não podendo conduzir, nem a uma alteração direta das respostas dadas aos pontos de facto que integravam a base instrutória, nem a um desenvolvimento, no próprio acórdão, da base factual do litígio, suscetível de criar contradições com o julgamento da matéria de facto que formalmente tenha permanecido como inalterado ou imodificado“.
Como se refere no Ac. STJ de 02 de dezembro 2010, Proc. 1/04.0TBCPV.P1.S1, www.dgsi.pt “as instâncias podem tirar, através das chamadas presunções judiciais, ilações lógicas da matéria de facto dada como provada, completando-a e esclarecendo-a. Os factos comprovados podem ser trabalhados com base em regras racionais e de conhecimentos decorrentes da experiência comum de modo a revelarem outras vivências desconhecidas. Mas essas deduções hão de ser o desenvolvimento lógico e racional dos factos assentes. Já não é possível extraí-las de factos não provados, nem de factos não alegados, ou seja, de uma realidade processualmente não adquirida. Quando tal aconteça a dedução factual extraída viola frontalmente o disposto no art. 349º C.Civil”.
A apelante enuncia um conjunto de factos que não estão provados para extrair uma ilação, o que não é consentido pelo art. 349º CC e por isso, tal meio de prova não pode sustentar a alteração pretendida.
Por tudo o exposto, não há erro de julgamento na 1ª instância quanto à matéria submetida no recurso. Os factos dados como não provados nas als. A), B), C) e D) na sentença merecem também agora confirmação segundo o nosso juízo crítico, pelo que improcede in totum a impugnação de facto deduzida.
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V- Assim estabilizada a decisão em matéria de facto, é tempo de continuarmos na análise da seguinte questão: -Do suprimento da autorização do beneficiário para a propositura da ação.
Estão verificados os pressupostos do suprimento do consentimento da beneficiária para a instauração da ação (art.º 141º, nº 2, do Código Civil)?
O tratamento da questão carece de uma nota prévia, e que seguirá de perto a análise já por nós efetuada acerca do instituto em causa num outro acórdão proferido pela relatora e não publicado ( datado de 13-07-2022, proc. Processo n.º 203/21....).
Desde já, esta questão contende com a questão da legitimidade ad causam atualmente neste tipo de ações designadas de “ acompanhamento de maior”.
Vejamos.
A lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, veio revogar os institutos da interdição e da inabilitação e consagrar o regime do acompanhamento de maiores.
Nos termos daqueles institutos, os interditos ou inabilitados eram considerados incapazes de exercício de direitos ou ver a sua capacidade limitada, em ambos os casos para proteção dos próprios. A regra, agora, é a da capacidade de exercício de todos os que sejam maiores de dezoito anos, não se admitindo situações genéricas de incapacidade a partir do momento em que o sujeito atinge a maioridade.
“Prevêem-se medidas de acompanhamento que visam garantir a salvaguarda dos interesses dos sujeitos em questão, quando se mostrem impossibilitados, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de cumprir os seus deveres… A ideia não é incapacitar o sujeito, mas auxiliá-lo, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica”
Porque as medidas de acompanhamento devem proporcionar ao acompanhado a possibilidade de ter uma vida independente, através do apoio às suas decisões e ações, neste novo modelo, deve ser dada absoluta prioridade à vontade e às preferências dos acompanhados, com respeito absoluto pelos seus direitos.
“ Daí se dizer que os acompanhados deixam de ser equiparados aos menores: não estamos perante os seus best interests, mas sim os seus best wishes.
O acompanhado é o principal decisor da sua vida e não o sujeito passivo, devendo ser apoiado e assistido por uma pessoa de confiança, de preferência por si escolhida”.
Espelho da importância que o legislador deu à vontade e autonomia do maior, é o mandato com vista ao acompanhamento previsto no art. 156º do CC e outros instrumentos voluntários previsto para a área da saúde ( procuração de cuidados de saúde e testamentos vitais).
Numa breve resenha sobre o processo do acompanhamento, dir-se-á que nos termos do n.º 1 do artigo 139.º do CC, o “acompanhamento é decidido pelo tribunal”, o que pressupõe necessariamente um processo judicial.
Por outro lado, de acordo com o n.º 1 do artigo 891.º do CPC, o processo de acompanhamento tem carácter urgente, com todas as consequências daí advenientes, nomeadamente quanto aos prazos processuais (artigo 138.º, n.º 1, do CPC).
Ao processo do maior acompanhado aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária, igualmente nos termos do artigo 891.º, n.º 1, do CPC, no que respeita aos poderes do juiz (artigo 986.º, n.º 2, do CPC), ao critério de julgamento (artigo 987.º do CPC) e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (artigo 988.º, n.º 1, do CPC).
Por outro lado, no que concerne aos poderes instrutórios do tribunal, o juiz, findos os articulados, analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes (artigo 897.º, n.º 1, do CPC), o que já resulta do n.º 2 do artigo 986.º do CPC, aplicável por via do n.º 1 do artigo 891.º do CPC.
Está sujeito ao regime do acompanhamento qualquer pessoa maior de idade (artigo 122.º, a contrario, do CC), mas o acompanhamento pode ser requerido e instaurado dentro do ano anterior à maioridade, para produzir efeitos a partir desta (artigo 142.º), de forma similar ao regime da interdição/inabilitação.
No que concerne à legitimidade, o n.º 1 do artigo 141.º do CC consigna que o acompanhamento é requerido pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
O n.º 2 do artigo 141.º permite o suprimento da autorização do beneficiário quando, “em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”.
Por sua vez, o n.º 3 do mesmo artigo 141.º admite que o pedido de suprimento da autorização do beneficiário possa ser cumulado com o pedido de acompanhamento. Neste caso, o n.º 2 do artigo 892.º do CPC exige que o requerente alegue os factos que o fundamentam.
Importa sublinhar que, quando propõe a ação de acompanhamento, o Ministério Público, tal como no processo de interdição/inabilitação, age em nome próprio na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, nomeadamente por via da legitimidade própria que lhe é conferida pelo n.º 1 do artigo 141.º do CC, e ainda dos artigos 3.º, n.º 1, alínea p), e 5.º,n.º 1, alínea g), do Estatuto do Ministério Público. Tal significa que o Ministério Público, quando instaura a ação, não atua em representação do acompanhado.
Assim, no que concerne à legitimidade passiva, há que distinguir consoante a ação seja instaurada pelo beneficiário ( ou com a sua autorização) ou pelo MP.
Sendo o acompanhamento requerido pelo MP, o requerido será naturalmente o beneficiário, porquanto não tendo o mesmo tido a iniciativa de requerer as medidas de acompanhamento terá interesse em contradizer ( art. 30º do CPC). Na situação em que seja o próprio beneficiário ou alguém com a sua autorização o requerente, terá o MP que intervir no processo como requerido “ como órgão a quem incumbe representar os incapazes”.
E em caso de suprimento da autorização do beneficiário, nos termos do n.º 2 do artigo 141.º do CC, tal como ocorreu nos presentes autos?
Pedro Callapez refere-se a esta situação- a seguir-se a posição de Teixeira de Sousa a propósito da legitimidade passiva - ações em que o requerente seja o cônjuge ou parente sucessível sem a autorização do beneficiário, isto é ações que compreendam um pedido de suprimento de autorização- o MP não intervém como parte principal mas “cabe-lhe intervir acessoriamente, nos termos da al. a) nº4 art. 5º do respetivo Estatuto.”
Sem embargo, entendemos que não olvidando que, em termos jurídico-processuais, estamos perante a figura da substituição processual, no entanto, parece-nos que ainda assim o beneficiário deve ser citado para, querendo, contestar, não só o suprimento da autorização como a própria ação, em caso de cumulação de pedidos (n.º 3 do artigo 141.º do CC). Esta é, de igual modo, a única forma de aplicar, na íntegra, a remissão para o artigo 21.º (agora o n.º 1), pois só neste caso o Ministério Público representa, a título principal, o acompanhado.
Idêntico raciocínio deve ser feito no que concerne à resposta do beneficiário, prevista no artigo 896.º do CPC.
Podendo o beneficiário responder ao requerimento inicial no prazo de 10 dias (n.º 1 do artigo 896.º), a falta de resposta gera a aplicação do estabelecido no artigo 21.º do CPC (n.º 2).
“A propósito da “supressão” da intervenção acessória do Ministério Público, expressamente prevista no n.º 2 do artigo 894.º da versão originária do CPC ainda dir-se-á que, porém, tal intervenção acessória resulta dos artigos 5.º, n.º 4, alínea a), e 6.º, n.os 1 e 2, ambos do Estatuto do Ministério Público, pelo que naturalmente se mantém, nos parâmetros fixados no artigo 325.º do CPC.” .
Revertendo para o caso sub judicio todas as considerações analisadas, temos o seguinte quadro: os requerentes do decretamento das medidas de acompanhamento são os parentes sucessíveis, ou seja, tendo sido possível à maior propor aquela ação não o fez, mas sim aqueles parentes sucessíveis.
No caso foi cumulado o pedido de suprimento judicial de autorização.
O n.º 2 do artigo 141º permite o suprimento da autorização do beneficiário quando, “em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”.
Existem situações em que, fruto da incapacidade do visado, este não disporá de capacidade e discernimento para prestar a sua autorização para a propositura da ação e para avaliar plenamente o significado e as consequências do seu ato de recusa e que, não obstante se conferir legitimidade ativa ao Ministério Público para propor a ação independentemente dessa autorização, esta válvula de segurança poderá ser insuficiente para salvaguardar cabalmente os interesses e direitos da pessoa com incapacidade.
Desta feita, se o visado não estiver em condições de dar a autorização para a propositura da ação, o cônjuge, unido de facto ou parente sucessível pode instaurar aquela, requerendo a medida de acompanhamento e solicitando, ao mesmo tempo ou previamente, o suprimento da autorização da pessoa visada.
Neste caso, o suprimento da autorização da pessoa visada deve ser concedido apenas quando aquela não a possa dar livre e conscientemente ou quando o tribunal considere que existe um fundamento atendível para o conceder (art.º 141º, n.º 2, do Código Civil).
Na jurisprudência e na doutrina sublinha-se que o tribunal deve ser rigoroso na análise dos pressupostos do suprimento da vontade do Beneficiário. Não é justificável partir do princípio nem de que a falta de autorização pelo eventual beneficiário não é justificada, nem de que este beneficiário não está sequer em condições de conceder a autorização. Esta medida de suprimento só é aceitável se, em face das circunstâncias, o Beneficiário não puder, livre e conscientemente, dar a sua autorização ou quando exista “um fundamento atendível”, não podendo este ser de inferior gravidade. É uma manifestação do primado da vontade do Beneficiado e uma manifestação do disposto nos nºs 2, 3 e 4 do art.º 12º da Convenção.
Volvendo aos factos provados, em matéria de comportamento, provou-se que a beneficiária apresenta “ um discurso coerente, de conteúdo lógico e estruturado, pensamento claro e organizado, não denotando alteração na forma do pensamento”;-- “Apresenta um humor eutímico e afeto adequado, sem revelar presença de sintomatologia depressiva e/ou ansiosa”;- “Ausência de prejuízo cognitivo”;---e. “Apresenta-se orientada no tempo e no espaço”;--- “Apresenta competências a nível de atenção e memória”;--- “Ao nível da linguagem possui competências na compreensão de instruções simples na fluência verbal semântica e de fonémica e na compreensão de questões complexas”;--- “Apresenta coordenação visuo-motora, bem como na capacidade de abstração, planeamento e execução de tarefas mais complexas”;---A requerida possui juízo crítico;--- Não sofre nem foi diagnosticada de qualquer patologia do foro psiquiátrico ou neurológico que comprometa o seu discernimento ou a sua capacidade volitiva;--- Apresenta um discurso coerente, bem construído sintáctica e semanticamente, sem alteração da forma nem do curso do pensamento;---Conhece a natureza do processo de Acompanhamento de Maior e compreendeu a finalidade e o alcance da sua audição;---
Está também provado que é completamente autónoma:
“- 25) Tem autonomia plena nas actividades de vida diária (diz morar sozinha, fazer as suas refeições na maioria das vezes em casa e revela conhecimentos adequados de culinária para uma alimentação equilibrada, e faz as compras para a sua diária no supermercado de proximidade);-
26) Sabe gerir as suas economias de forma correcta, equilibrada e ao serviço do seu bem-estar e da sua qualidade de vida;---
27) Identifica as principais figuras publicas nacionais;---
28) Sem sintomatologia ansiosa nem ideação depressiva;---
29) Não se detecta actividade alucinatória nem ideação delirante;---
30) Conhece a natureza do processo de Acompanhamento de Maior e compreendeu a finalidade e o alcance da sua audição;---
31) Conhece a marca e o modelo do carro que conduz;---
32) Sabe a sua idade e o ano em que nasceu;---
33) Sabe descrever as suas habilitações escolares e académicas (onde estudou e até que ano);---
34) A memória a curto e a longo prazo mantêm-se intactas (sabe o ano em que casou, sabe o local da sua residência, sabe identificar filhos e netos pelo nome, idade e data de nascimento);---
35) Acompanha a actualidade noticiosa do país e do mundo (identifica a guerra da Ucrânia como o principal conflito a nível internacional, e sabe dizer quando começou);--“
Ou seja, é autónoma para as atividades instrumentais e básicas da vida diária e está capaz de exprimir uma vontade própria, livre e esclarecida sobre assuntos correntes da sua vida, quer sejam patrimoniais, quer sejam pessoais.
Perante esta factualidade, não se nos oferecem dúvidas de que a Requerida podia e pode autorizar o cônjuge ( caso fosse casada) ou os filhos a deduzirem o pedido judicial de acompanhamento. Não tendo dado aquela autorização, o tribunal também não pode suprir essa falta, porquanto se evidencia que ela estava e está em condições de a dar livre e conscientemente.
Inexiste qualquer outro fundamento relevante que justifique o suprimento da sua vontade. A Requerida está em condições de gerir o seu património, sendo livre de o fazer segundo o critério da sua vontade esclarecida. Agora a questão de na opinião do recorrente não concordar com a forma como está a ser gerido o património, nomeadamente conforme as suas convicções, já não é fundamento para o tribunal suprir aquela autorização.
Por conseguinte, perante os factos provados nem sequer há fundamento para o suprimento da autorização da Requerida para a instauração da presente ação (art.º 141º, nº 2, do Código de Processo Civil); razão pela qual andou bem a 1ª instância ao julgar a instância extinta por ilegitimidade ativa do Requerente/recorrente, seu filho.
A sentença merece confirmação.
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Extinta a instância, fica prejudicado o conhecimento das questões do decretamento ou não de medidas de acompanhamento, designadamente ao abrigo do art.º 278º, nº 3, do Código de Processo Civil, por extravasar o âmbito da apelação, tudo apesar de terem sido apreciadas na sentença, a nosso ver, inutilmente.
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VI- Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente ( cfr. art. 527º CPC).
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Guimarães, 26 de outubro de 2023
Anizabel Sousa Pereira (relatora)
Maria Amália dos Santos e
Margarida Gomes Pinto