NULIDADE DE ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
EFEITO RETROACTIVO DA USUCAPIÃO
FRACIONAMENTO DA PROPRIEDADE
CADUCIDADE DA ACÇÃO
Sumário

I - Os efeitos da usucapião retrotraem à data do início da posse daquele que se quer dela prevalecer.
II - Na versão original do Código Civil de 1966 e até à Lei 111/2015, o vício cominado pelo artigo 1379º para o fracionamento de propriedade em contrário ao disposto no artigo 1376º, era a anulabilidade, caducando a acção no prazo de três anos.

Texto Integral

Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório[1]
O Ministério Público, em representação do Estado Português, propôs, em 09 de outubro de 2020, acção declarativa de condenação com processo comum contra M… e cônjuge, I…, nos autos m.id., peticionando a declaração da nulidade da escritura de justificação notarial celebrada em 12.4.2016, da qual constam como outorgantes os RR. – que nela declararam «Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte bem imóvel: PRÉDIO MISTO com a área de quatro mil oitocentos e vinte e três vírgula cinquenta metros quadrados, composto quando à parte rústica de vinha, árvores de fruto e oliveiras, inscrito na matriz rústica da freguesia da União de freguesias de … sob parte do artigo 7 da Secção 1F, em nome de A…, com o valor patrimonial de €298,62, a que atribuem o valor de quinhentos euros (…) sito na RUA DA … nº …, C…, freguesia da União de freguesias de …, concelho do … (…). A DESANEXAR do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número MIL e TRÊS, da extinta freguesia de …» – e consequentes registos, ou seja, o cancelamento da inscrição de aquisição do prédio por usucapião a favor dos réus, bem como da menção à desanexação no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o nº ….
Alegou em síntese que a “escritura de justificação notarial foi celebrada sem que o concreto prédio justificado tivesse uma inscrição própria/autónoma na matriz, como exige o art.º 92º, nº 1 do C. do Notariado e sem qualquer menção ao número do alvará de loteamento ou comunicação prévia e sem o parecer da Câmara Municipal do …” e que a “área do prédio objeto de justificação notarial (4823,50 m2) com fundamento na usucapião é inferior à área mínima de cultura fixada nas Portarias 202/70, de 21/4, 219/16, de 9/8 e 19/2019, de 15/1”.
*
Os Réus deduziram contestação, invocando terem posse, em nome próprio, da parcela de terreno e edificações desde 1975, sendo que o pai do R. nela exerceu posse desde 1958, estando, pois, em condições de regular e legalmente usucapirem. Mais invocam, relativamente ao artigo 92º do Código do Notariado, que é suficiente a existência de inscrição na matriz em nome do anterior possuidor – sendo que quer a parte rústica quer as partes urbanas do prédio se encontravam inscritas na matriz – não sendo exigível a inscrição própria/autónoma na matriz.
Por outro lado, “exigência do “alvará de loteamento ou comunicação prévia e … parecer da Câmara Municipal”, prevista no DL 289/73 de 06/06 só se aplica ao fraccionamento de terrenos para construção urbana, como é jurisprudência dominante (Ac. do STJ de 24/10/2019 – Proc. nº 317/15.0T8TVD.L1.S2 e Ac. do STJ de 08/11/2018 – Proc. nº 6000/16.1T8STB.E1.S1). não existindo no presente caso qualquer questão de natureza urbanística, nada obsta à divisão material do prédio rústico.
Quanto à invocação da área inferior à área mínima de cultura permitida para a região, que representaria violação do art.º 1376º do C.C. e levaria à aplicação do art.º 1379º do mesmo diploma, sustentam os RR. que “a usucapião prevalece sobre o fracionamento ilegal de terreno apto para cultura”, como é entendimento quase unânime da jurisprudência – Acórdãos do STJ de 19/10/2004; de 27/06/2006; de 04/0272014; de 06/04/2017; de 01/03/2018; de 03/05/2018; de 12/07/2018; de 08/11/2018 e de 30/05/2019 e da maioria da doutrina, citando “Manuel de Andrade – “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II – ao referir que “o princípio de que a nulidade absoluta pode, por via de acção, ser invocada a todo o tempo, não prevalece sobre a doutrina da prescrição aquisitiva” e “Mota Pinto – “Teoria Geral do Direito Civil” – nos diz que “a possibilidade da invocação perpétua da nulidade, pode ser precludida pela verificação da prescrição aquisitiva (usucapião).”
Finalmente, defendem os RR. que o entendimento do A. de que “ as disposições relativas ao fracionamento de prédios rústicos, constituem normas imperativas, cuja violação, no caso em apreço, determina a nulidade da escritura de justificação notarial”, implica a aplicação da versão do artigo 1379º do Código Civil resultante do artigo 59º do DL 111/2015 de 27/08, versão que não é aplicável, pois que retrotraindo os efeitos da usucapião à data do início da posse, a versão aplicável é a resultante do DL nº 561/76, de 17/07, em que o nº 1 do art.º 1379º comina a anulabilidade dos actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, e em que o seu nº 3 determina que  “A acção de anulação caduca ao fim de três anos (…).”, prazo que se mostra largamente ultrapassado. No mesmo sentido da anulabilidade, invocam Pires de Lima e Antunes Varela, no comentário ao art.º 1379º, na redacção que anterior à introduzida pela Lei nº 111/2015, de 27/08: ““Embora as regras sobre fraccionamento e troca de terrenos aptos para cultura sejam determinados por razões de interesse público, os negócios que as infrinjam só são impugnáveis dentro de um prazo bastante curto (o prazo indicado no nº 3). Decorrido este prazo, a violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for não podendo, por conseguinte, impedir a aquisição de direitos por usucapião.” – Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora”.
O Autor respondeu, impugnando a factualidade vertida na contestação, concluindo pela improcedência da exceção invocada pelos Réus.
Foi exarado despacho saneador, onde se fixou o valor da causa em €23.500,00, se relegou o conhecimento para sentença da exceção de caducidade invocada, se consignou o objeto do litígio e exararam os temas da prova a discutir no presente pleito e se admitiram os elementos probatórios pertinentes.
*
Realizou-se audiência de julgamento, vindo seguidamente a ser proferida sentença que julgou a acção improcedente por não provada e absolveu os Réus do pedido.
*
Inconformado, o Autor interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões:
“I. O Ministério Público não se conforma com a sentença proferida nestes autos (…). 
III. O prédio objecto de justificação notarial não tinha uma inscrição própria/autónoma na matriz no dia 12-04-2016, não decorrendo o oposto da escritura de justificação notarial ora em causa.
 III. Assim, deverá nesta sede dar-se como provado o facto descrito no ponto II) dos factos que o Mmº. Juiz a quo considerou não provados e, concomitantemente, por aplicação das normas legais referidas até ao momento nestas alegações, declarar nula a escritura de justificação notarial aqui em questão e consequentes registos.
IV. Sem prejuízo do que se veio de dizer, caso assim não se entenda, o que não se espera, por um lado, à data da outorga da escritura de justificação notarial aqui em causa (12-04-2016) já vigorava a redacção do n.º 1 do art.º 1379.º do Código Civil na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que sanciona com nulidade, no que ora importa, todos os atos de fracionamento ao disposto no art.º 1376.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, o fracionamento de terrenos aptos para cultura “em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País” – as previstas “nas Portarias n.º 202/70, de 21 de abril, n.º 219/16, de 09 de agosto, e n.º 19/2019, de 15 de janeiro”.
V. Doutra parte, se, como defende o Mmº. Juiz a quo, “o momento relevante para aferir da infração das normas que podem levar ao vício da escritura de justificação notarial devem ser aquelas vigentes à data do início da posse, no caso, 1958 (nos termos do disposto no artigo 1255.º do Código Civil), conforme resultou como provado em K) dos factos provados”, a proibição de fracionamento de prédios rústicos constante do referido art.º 107.º fulminava com nulidade a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que proviessem novos prédios de menos de 1/2 hectare (5.000 m2).
VI. Acresce ainda que “[p]erante as (…) divergências relativas à questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode ou não incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C.C, torna-se manifesta a natureza interpretativa do art.º 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio – art.º 161º, al. c) da CRP -, como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre aquela temática”.
VII. Destarte, tendo em conta que, como afirmado na sentença recorrida, está provado que o prédio justificado tem uma superfície às supramencionadas “áreas mínimas para fracionamento” nada resta se não, tendo ficado igualmente demonstrado o vertido nos pontos C), D) e F) dos factos provados, também assim declarar nula a dita escritura e consequentes registos.
VIII. A decisão recorrida violou os art.ºs 92.º, n.º 1, do Código do Notariado e 294.º e 295.º do Código Civil, em primeira linha, e, em segunda linha, os art.ºs 54.º, n.ºs 1 e 4, da Lei 91/95, de 2 de Setembro, 4.º, n.º 1, da Lei 64/2003, de 23 de Agosto (norma interpretativa), 49.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com referência ao seu art.º 2.º, als. a) e i), 280.º, 286.º e 294.º do Código Civil.  
Termos em que, de qualquer forma, deve ser concedido provimento ao presente recurso.
*
Não consta dos autos a apresentação de contra-alegações.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir:
*
II. Direito
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC - as questões a decidir são a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e saber se a escritura de usucapião deve ser declarada nula.
*
III. Matéria de facto
A decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de primeiro grau é a seguinte:
“Mostram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
A) No sítio de …, concelho do …, freguesia de … existe um prédio rústico (cultura arvense, figueiras, vinha, oliveiras e eucaliptos) com a área de 32.500 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do … sob o n.º … e inscrito na matriz sob o artigo 7.º - 1 F, da união das freguesias de …, titulado como propriedade de herança de A…, e registo a favor, por sucessão, de AC, FC, FJC, GC, JFC, MRC e VMC.
B) De acordo com o PDM do …, a área onde está implantado o prédio está classificada como «Espaço Agrícola, como área Agrícola da Reserva Agrícola Nacional (RAN) e como área Agrícola não incluída na RAN».
C) O imóvel sito em A) não foi objeto de processo de licenciamento de operações de loteamento e de obras de urbanização.
D) À Câmara Municipal do … não foi solicitado qualquer parecer relativo ao parcelamento deste prédio.
E) No dia 12 de abril de 2016, no Cartório Notarial de …, foi celebrada escritura de justificação notarial onde constam como primeiros outorgantes os ora Réus, que declararam «Que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte bem imóvel: prédio misto com a área de quatro mil oitocentos e vinte e três vírgula cinquenta metros quadrados, composto quando à parte rústica de vinha, árvores de fruto e oliveiras, inscrito na matriz rústica da freguesia da União de freguesias de …. sob parte do artigo 7 da Secção 1F, em nome de AC…, com o valor patrimonial de €298,62, a que atribuem o valor de quinhentos euros (…) sito na Rua da …, n.º …, C…, freguesia da União de freguesias de …, concelho do …. (…) a desanexar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número mil e três, da extinta freguesia de …».
F) A escritura de justificação notarial foi celebrada sem qualquer menção ao número do alvará de loteamento ou comunicação prévia e sem o parecer da Câmara Municipal do ….
G) Em 15 de junho de 2016, os Réus pediram o destaque da parcela de 4.823,50 m2 do prédio descrito em A).
H) Em 22 de junho de 2016 foi efetuado o registo predial da parcela justificada de 4.823,50 m2 na Conservatória do Registo Predial do … sob o n.º … qualificando o imóvel como misto, com as matrizes com os números 7 (rústica), 2066 e 752, da freguesia de …, adquirido pelos Réus por usucapião.
I) No imóvel descrito em E) encontram-se implantados vedações em tijolo e rede, portões, casas / anexos e poço.
J) A Delegação Regional da Direção-Geral do Território emitiu parecer em 30 de outubro de 2019 concluindo que «a desanexação de 0,4824 ha, proposta na escritura de justificação outorgada a 12 de abril de 2016, sendo inferior à área mínima estipulada na Portaria n.º 202/70, de 21 de abril, não respeita a unidade de cultura aplicável, violando o disposto no artigo 1376.º do Código Civil».
K) AC… procedeu, em 1958, à divisão do prédio descrito em A) em sete partes, do prédio de sua propriedade, para as doar a cada um dos seus sete filhos.
L) (…) Tendo nesse momento temporal doado a parcela descrita em E) a ACB...
M) (…) Desde esse momento, ACB… demarcou a parcela, de forma a separá-la do resto do terreno, cultivando-a e colhendo os seus frutos.
N) (…) Habitando numa das habitações aí existente, procedendo à sua manutenção e conservação.
O) (…) Construindo na parcela em questão uma nova edificação, no ano de 1975.
P) No ano de 1986 procedeu ACB…, assim como os seus irmãos, ao registo predial em comum e sem determinação de parte, da aquisição das parcelas de terreno divididas e doadas pelo seu pai.
Q) No ano de 1976, ACB… doou, verbalmente, o prédio descrito em E) aos Réus.
R) (…) Tendo os Réus de imediato tomado conta do mesmo, limpando-o, gradando a terra, procedendo a melhoramentos diversos, sendo reconhecidos pela população local como donos, desde então.
S) A Câmara Municipal do … autorizou a substituição do telhado de um dos edifícios implantados no imóvel referido em E), requerida pelos Réus, no ano de 2010.
T) A Câmara Municipal do … concedeu número de polícia ao imóvel citado em E) no ano de 2015.
Factos não provados:
Não se logrou provar que:
I) A Câmara Municipal do … só constatou a existência das construções identificadas em I) dos factos provados em agosto de 2020.
II) A escritura de justificação notarial foi celebrada sem que o concreto prédio justificado tivesse uma inscrição própria / autónoma na matriz.
*
Motivação de facto: (…).
Relativamente aos factos tidos por não provados, assim foram consignados porquanto, repete-se, demonstrou-se nos autos que a Câmara Municipal do …. já tinha conhecimento da existência da divisão do imóvel e construção do edifício existente na parcela em questão anos antes (pelo menos desde 2010), pelo menos desde quando recebeu pedido do Réu para realização de obras no telhado, no que concerne a factualidade ilustrada em I).
No que tange os factos desenhados em II), a consignação como não provados resulta da confrontação (em termos de análise probatória) das alíneas A) e H) dos factos provados, conquanto resulta da análise das cadernetas prediais juntas aos autos que existe identificação de matriz diversa e autónoma, relativamente ao imóvel descrito em E) (conferir documentos 2 e 3 juntos com a contestação, em confronto com o documento 7 junto com a petição inicial)”[2].
*
IV. Apreciação
1ª questão:
Pretende o recorrente que se dê como provado o nº II dos factos não provados, a saber “A escritura de justificação notarial foi celebrada sem que o concreto prédio justificado tivesse uma inscrição própria / autónoma na matriz”, sustentando que “III. O prédio objecto de justificação notarial não tinha uma inscrição própria/autónoma na matriz no dia 12-04-2016, não decorrendo o oposto da escritura de justificação notarial ora em causa”.
No corpo da alegação sustenta: “os documentos 2 e 3 juntos com a contestação referem-se, sucessivamente e pela ordem agora indicada, ao prédio urbano inscrito na respectiva matriz da união das freguesias de … sob o artigo 2066, sendo a área total desse terreno 64,8 m2, e ao prédio urbano inscrito na mesma matriz sob o artigo 752, sendo a área total de tal terreno 60 m2 (sendo que o somatório das duas áreas é muito inferior a 4.823,5 m2, área do prédio objecto de justificação). Já o documento 7 junto com a petição inicial mais não é que uma reportagem fotográfica onde é visível o prédio objecto de justificação notarial – o imóvel descrito no facto provado E). Com o devido respeito (…), o prédio objecto de justificação notarial – o “PRÉDIO MISTO com a área de quatro mil oitocentos e vinte e três vírgula cinquenta metros quadrados, composto quando à parte rústica de vinha, árvores de fruto e oliveiras, inscrito na matriz rústica da freguesia da União de freguesias de … sob parte do artigo 7 da Secção 1F” – não tinha uma inscrição própria/autónoma na matriz no dia 12-04-2016, não decorrendo o oposto da escritura de justificação notarial ora em causa. Os Réus nem sequer contradisseram em rigor este facto, já que no segmento da sua contestação em que pretenderam rebater tal observação, apenas acenaram com a inscrição matricial precedente das “partes urbanas” do prédio objecto de justificação notarial e do prédio de que este “fazia parte” (passe a expressão, o “prédio-mãe”). Assim, deverá nesta sede dar-se como provado o facto descrito no ponto II) dos factos que o Mmo. Juiz a quo considerou não provados e, concomitantemente, por aplicação das normas legais referidas até ao momento nestas alegações, declarar nula a escritura de justificação notarial aqui em questão e consequentes registos”.
Com o devido respeito, estamos em presença não de um facto, mas de uma conclusão. É a partir da redacção dos factos provados A, E e H parte final – enquanto ali temos como descrita a prévia inscrição matricial do prédio mãe, a inscrição das partes urbanas e a descrição da parte rústica a desanexar, que podemos pronunciar-nos sobre a violação do artigo 92º do Código do Notariado. 
Improcede esta questão.
2ª questão:
Invoca o recorrente a nulidade da escritura de usucapião mencionada no facto provado E por quatro ordens de razões:
a) foi celebrada em contravenção ao artigo 92º do Código do Notariado;
b) “à data da outorga da escritura de justificação notarial aqui em causa (12-04-2016) já vigorava a redacção do n.º 1 do art.º 1379.º do Código Civil na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que sanciona com nulidade, (…) todos os atos de fracionamento ao disposto no art.º 1376.º, n.º 1, do Código Civil”;
c) mesmo que se considere que “o momento relevante para aferir da infração das normas que podem levar ao vício da escritura de justificação notarial devem ser aquelas vigentes à data do início da posse, no caso, 1958 (nos termos do disposto no artigo 1255.º do Código Civil), conforme resultou como provado em K) dos factos provados”, a proibição de fracionamento de prédios rústicos constante do referido art.º 107.º fulminava com nulidade a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que proviessem novos prédios de menos de 1/2 hectare (5.000 m2)”;
d) “[p]erante as (…) divergências relativas à questão de saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode ou não incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do C.C, torna-se manifesta a natureza interpretativa do art.º 48º, nº2 da Lei 89/2019, de 03.09, da iniciativa, aliás, do órgão legislativo nacional próprio – art.º 161º, al. c) da CRP -, como meio de pôr termo à patente diversidade de decisões sobre aquela temática”.
Duas notas prévias:
O recorrente não põe em causa a sentença recorrida na parte em que considerou que se provou a usucapião.
O recorrente não oferece como argumento para a procedência do recurso a argumentação contida na petição inicial sobre a falta, na escritura de justificação de “menção ao número do alvará de loteamento ou comunicação prévia e sem o parecer da Câmara Municipal do …”.
Prosseguindo:
Primeiro argumento derivado do artigo 92º do Código do Notariado, gerando a sua inobservância, estima o recorrente, a nulidade da justificação.  
Estabelece o preceito, inserido na sub-secção II “Justificações Notariais” para estabelecimento de trato sucessivo ou de novo trato sucessivo ou para reatamento de trato sucessivo no registo predial, e sob a epígrafe restrições à admissibilidade da justificação, que “1 - A justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, só é admissível em relação aos direitos nela inscritos”.
Em consonância, o artigo 98º do mesmo diploma prevê no seu nº 1 e al. b) que: “1 - A escritura de justificação para fins do registo predial é instruída com os seguintes documentos:
(…) b) Certidão de teor da correspondente inscrição matricial
”.
Resulta dos factos provados que o concreto prédio justificando, através da escritura de usucapião, é um prédio misto, composto de uma parte rústica e de duas partes urbanas, sendo que estas estão inscritas na matriz e sendo que aquela parte rústica é a desanexar de um prédio previamente inscrito na matriz.
O recorrente sustenta que o concreto prédio – este que é misto – não está, isto é, ele mesmo, assim misto, assim na sua globalidade, previamente inscrito na matriz. Se das próprias declarações na escritura resulta que a parte rústica é a desanexar de outro prédio, é evidente que esse prédio misto, não está inscrito como tal na matriz.
Os RR. sustentaram que é suficiente a inscrição na matriz do prédio do qual a parcela em causa será desanexada.
A escritura de usucapião é um acto notarial e as nulidades dos actos notariais estão descritas no artigo 70º do Código do Notariado. Entre elas não consta a falta de inscrição matricial prévia do prédio concretamente justificando. Compatibilizando as exigências descritivas dos artigos 57º e 58º (menções relativas à matriz e harmonização da matriz com o registo predial) com o artigo 92º, todos do Código do Notariado, não chegamos à exigência duma inscrição matricial prévia e autónoma – isto é, algo que impeça a declaração de usucapião sobre parcela de prédio já inscrito e a dele desanexar – a sancionar com o vício da nulidade do acto notarial.
Coisa diversa é o que vamos dizer em seguida.
O recorrente cita a seu favor – da defesa da natureza imperativa do artigo 92º do Código do Notariado e consequentemente da nulidade da escritura por aplicação do artigo 294º do Código Civil, segundo o qual “Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei” – os acórdãos desta Relação de 3.10.2000 proferido no processo 0026021 e da Relação de Coimbra de 26.3.2019 proferido no processo 3223/17.0T8LRA.C1.
No primeiro, cujo texto integral não está disponível, sumariou-se: “I - O artigo 92º, nº1, do Código do Notariado, ao estabelecer que "(…)", constitui norma com disposição de carácter imperativo, pelo que a sua violação importa a nulidade do acto, salvo se outra solução resultar da lei. II - Para o prédio objecto da justificação notarial poder ser registado na Conservatória a favor do justificante, tem ele de ter uma inscrição própria, autónoma na matriz, e não de fazer parte de outro artigo matricial, pois neste caso a escritura de justificação notarial é nula”.
No segundo sumariou-se que “(…) III – Para o prédio objecto da justificação notarial poder ser registado na Conservatória a favor do justificante, tem de ter uma inscrição própria, autónoma na matriz, e não de fazer parte de outro artigo matricial, pois neste caso a escritura de justificação notarial é nula (art.ºs 294º e 295º do C.Civil). IV – Em acréscimo, é nula a escritura de justificação notarial instruída apenas com documento comprovativo do pedido de inscrição na matriz”.
É muito útil o caso deste acórdão. Ele vem-nos dizer sobre a razão pela qual a exigência de inscrição prévia – e não está no texto do artigo 92º do Código do Notariado a exigência expressa duma inscrição autónoma – existe. É que, ao referir no ponto II do sumário a necessidade, não do comprovativo do pedido de inscrição, mas da consequência do deferimento desse pedido – a inscrição – está a vislumbrar-se a competência das autoridades fiscais para (como o caso que é abordado, em que o pedido de inscrição vinha a ser recusado) fiscalizar a legalidade do fracionamento de prédio inscrito.
Quer isto dizer que, na aplicação a este nosso caso, não estamos perante um argumento autónomo – a escritura é nula porque afronta o interesse público da legalidade dos actos notariais – mas sim perante uma invocação da violação do interesse público que determina área mínima de exploração agrícola, vício que a autoridade fiscal teria conseguido impedir perante um pedido de inscrição matricial de parcela a desanexar que violasse a área mínima correspondente.
Donde, a resolução a dar à questão – a escritura é nula – deve ser obtida na análise da restante argumentação que o recorrente nos impetra.
Segunda linha argumentativa:
“b) “à data da outorga da escritura de justificação notarial … (12-04-2016) já vigorava a redacção do n.º 1 do art.º 1379.º do Código Civil na versão dada pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que sanciona com nulidade, (…) todos os atos de fracionamento ao disposto no art.º 1376.º, n.º 1, do Código Civil”; c) mesmo que se considere que “o momento relevante para aferir da infração das normas que podem levar ao vício da escritura de justificação notarial devem ser aquelas vigentes à data do início da posse, no caso, 1958 (nos termos do disposto no artigo 1255.º do Código Civil), conforme resultou como provado em K) dos factos provados”, a proibição de fracionamento de prédios rústicos constante do referido art.º 107.º fulminava com nulidade a divisão de prédios rústicos de superfície inferior a 1 hectare ou de que proviessem novos prédios de menos de 1/2 hectare (5.000 m2)”.  
O recorrente não nos indica a razão pela qual se deve entender que a data relevante para apreciação da questão da nulidade do acto de fracionamento é a da escritura. Seria preciso fazê-lo, para o tribunal de recurso apreciar a questão – é o que resulta do artigo 639º do CPC: - as decisões impugnam-se com recursos, não em bloco, mas em função da discordância dos argumentos usados na decisão e em função da contraposição a esses argumentos, de outros. Em todo o caso, o recorrente não tem razão, pois a escritura de justificação não é constitutiva do fracionamento, ela é justificativa da posse prolongada que leva à aquisição por usucapião, posse que opera necessariamente sobre fração já constituída. O fracionamento, sobretudo num caso, como o presente, em que há efectiva demarcação física, concreta, da parcela (conforme al. M dos factos provados), ocorre com essa demarcação.
Mas à data de 1958 a área mínima era superior à da fracção demarcada e o vício deste fracionamento inferior à área mínima era também a nulidade, sustenta o recorrente: - a escritura de usucapião é a favor dos RR., que se sustentam na sua posse desde 1976. Eles, RR., não justificam a posse a favor do pai do Réu, ainda que a refiram. A escritura não visa o reconhecimento da usucapião a favor do pai do Réu, para que de seguida os RR. possam registar a seu favor, com base em processo sucessório, o seu direito de propriedade sobre a fracção. Quer isto dizer que, apesar da aquisição retrotrair à data do início da posse, essa data não é a de 1958, mas a de 1976. E, em 1976, a versão do artigo 1379º do Código Civil era a originária (DL 47344/66, de 25 de novembro) – “1. São anuláveis os actos de fraccionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, bem como o fraccionamento efectuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos. 2. Têm legitimidade para a acção de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte. 3. A acção de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do acto ou do termo do prazo referido no n.º 1” relativamente ao fracionamento em contravenção ao artigo 1376º nº 1 do mesmo Código (1. Os terrenos aptos para cultura não podem fraccionar-se em parcelas de área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País (...)”.
Entendemos assim que a sanção aplicável a um fracionamento em área inferior – e no caso não há dúvida que a parcela rústica justificanda tinha área inferior a meio hectare – não era, à data, a nulidade mas a anulabilidade.
Terceiro argumento, já pertinente ao (a atacar o) entendimento maioritário da jurisprudência no sentido de que a usucapião é uma forma de aquisição originária que não é comprometida por nenhum vício anterior, sendo por isso possível usucapir sobre fracções menores do que o limite mínimo normativamente estabelecido para a área de cultura (entendimento maioritário expresso nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2023, proc. 681/20.9T8TMR.E1.S1, de 24.10.2019, proc. 317/15.0T8TVD.L1.S2, de 30.5.2019, proc. 916/18.8T8STB.E1.S2, de 18.6.2019, proc. 1786/17.9T8STB.E1.S1, de 28.3.2019, proc. 7604/16.8T8STB.E1.S1, de 21.2.2019, proc. 7651/16.0T8STB.E1.S3, de 8.11.2018, proc. 6000/16.1T8STB.E1.S1, de 12.7.2018, proc. 7601/16.3T8STB.E1.S1, de 3.5.2018, proc. 7859/15.5T8STB.E1, e de 1.3.2018, proc. 1011/16.0T8STB.E1.S2, entendimento com o qual nos alinhamos e para o qual e para cujas razões remetemos): - da natureza interpretativa da alteração ao artigo 48º da Lei 111/2015 de 27/08 que estabelece o regime jurídico da estruturação fundiária pela Lei 89/2019 de 3/09.
O artigo 48º da Lei 111/2015, na sua versão original, lia: “1 - Ao fracionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei. 2 - Quando todos os interessados estiverem de acordo, as situações de indivisão podem ser alteradas no âmbito do emparcelamento rural ou da valorização fundiária, pela junção da área correspondente de alguma ou de todas as partes alíquotas, a prédios rústicos que sejam propriedade de um ou de alguns comproprietários. (…)”.
O artigo 2º da Lei 89/2019 alterou a redacção do citado artigo 48º introduzindo dois novos números, assim: “1 - Ao fracionamento e à troca de parcelas aplicam-se, além das regras dos artigos 1376.º a 1381.º do Código Civil, as disposições da presente lei.
2 - A posse de terrenos aptos para cultura não faculta ao seu possuidor a justificação do direito a que esta diz respeito, ao abrigo do regime da usucapião, sempre que a sua aquisição resulte de atos contrários ao disposto no artigo 1376.º do Código Civil.
3 - São nulos os atos de justificação de direitos a que se refere o número anterior. 4 - Quando todos os interessados estiverem de acordo, as situações de indivisão podem ser alteradas no âmbito do emparcelamento rural ou da valorização fundiária, pela junção da área correspondente de alguma ou de todas as partes alíquotas, a prédios rústicos que sejam propriedade de um ou de alguns comproprietários. (…)”.

Quer isto dizer que com a Lei 89/2019 se terá tornado clara a proibição da aquisição por usucapião, simplesmente, a natureza interpretativa que o recorrente sustenta, só pode estabelecer-se relativamente à lei interpretada – Lei 111/2015 – e não ao próprio Código Civil na sua versão original. Não pondo o recorrente validamente em causa, como vimos, que a data relevante não é a da escritura de usucapião (2016) mas a do início da posse, o argumento não tem qualquer procedência. Repare-se que, nem mesmo que a data relevante fosse 1958 (e sendo então o vício cominado para o fracionamento de que resultasse área inferior à mínima, a nulidade) e não 1976, não vamos conceber que o legislador de 2019 possa interpretar autenticamente um preceito legislado em 1929 (Decreto n.º 16.731, de 13 de abril de 1929) e que vigorou até 1967, nem que da legislação de 2019 se retira algum contributo interpretativo, apenas porque, como é manifesto, as condições técnicas, geográficas, económicas, sociais e políticas do legislador de 1929 não são transponíveis para praticamente um século depois.
Nestes termos, e em suma, considerando que a lei aplicável à data de 1976 cominava a anulabilidade como vício para o fracionamento de terreno rústico em área inferior a de cultura, que o prazo de caducidade da acção de anulação se mostra transcorrido, e considerando outrossim que mesmo que não estivéssemos perante a anulabilidade mas perante a nulidade, não há razões para contrariar o entendimento maioritário da jurisprudência que acima referimos, no sentido de que a aquisição por usucapião é originária e por isso não afectada por vícios originados anteriormente, improcede o recurso.
Sem custas, dada a isenção do Ministério Público.
V. Decisão
Nos termos supra expostos, acordam provimento negar provimento ao recurso e em consequência confirmam a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.

Lisboa, 26.10.2023
Eduardo Petersen Silva
Vera Antunes
Gabriela de Fátima Marques
_______________________________________________________
[1] Com aproveitamento do relatório da decisão recorrida.
[2] Não reproduzimos a motivação da convicção do tribunal relativamente aos factos provados, por não terem sido impugnados.