1 - O erro na forma de processo não é tipificado na nossa lei processual civil como uma exceção dilatória. Tendo um regime próprio multiforme, que apela ao aproveitamento dos atos processuais, sem perda de garantias da defesa. Podendo constituir uma mera irregularidade, sanável.
2 - O credor pode lançar mão do procedimento injuntivo se pretender exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato e de valor não superior a € 15.000,00 ou emergente de transação comercial que dê origem ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços mediante remuneração.
3 - Inexiste norma que limite o recurso à injunção aos casos simples ou céleres.
4 - Assim, o empreiteiro pode recorrer ao procedimento injuntivo.
(Sumário da Relatora)
Acordam no Tribunal da Relação de Évora:
Alegou, em síntese que, no âmbito de um contrato de empreitada celebrado com a ré, realizou para esta a construção de um telhado que orçamentou pelo valor de € 25.000,00, como tendo 155 m2, por indicação da ré.
Como condições de pagamento, acordaram metade do valor com a adjudicação, mais 25% com a conclusão do assentamento das vigas e os restantes 25% com a conclusão dos trabalhos.
A ré com a adjudicação pagou metade daquele valor.
Durante a execução dos trabalhos, a autora verificou e a ré confirmou que o telhado tinha afinal 280 m2.
A ré aceitou pagar o preço devido pela área não prevista inicialmente conforme fatura que lhe fosse apresentada.
Em 08-10-2021, a autora apresentou a fatura referente à finalização do assentamento das vigas e esta não foi paga.
Dívida que se mantém.
A ré deduziu oposição, onde, em síntese, reconhece a existência de um contrato de empreitada com a autora, mas invocou o seu incumprimento por parte desta.
Alegou em suma, que a responsabilidade pela medição dos trabalhos era da autora, que estava na posse das plantas e se deslocou diversas vezes ao local. Não obstante, aceitou pagar pela diferença de áreas o valor de € 3.500,00, mas foi-lhe exigido o dobro. O que não aceita. A obra não foi concluída, estando a autora em incumprimento contratual. Pelo que pede a sua absolvição do pedido.
Por despacho de 08/05/29023 foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem sobre o eventual uso indevido do procedimento de injunção, porque o montante pedido é “relativo a trabalhos de construção de um telhado de uma moradia”.
A ré, em síntese, pugnou pela verificação da exceção dilatória de uso indevido do processo, ao passo que a autora pugnou pela sua não verificação.
Em 16/05/2023, foi proferida decisão, lendo-se na parte dispositiva:
“Em face do exposto, julga-se verificada a exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção e, em consequência, absolve-se a ré da instância.”
Inconformada com tal decisão veio a autora recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:
1 - Normas jurídicas violadas:
- Princípio do dispositivo, artigo 5.º, n.º 1, do C.P.C.;
- Artigo 1.º do diploma preambular do DL n.º 269/98, de 1 de Setembro;
- Artigo 7.º e seguintes do DL 269/98, de 1 de setembro;
- Artigos 3.º, alínea b), 10.º, n.º 1 e n.º 4, todos do DL n.º 62/2013, de 10 de maio.
2 - O presente recurso tem por objeto a sentença do Tribunal a quo que julgou verificada a exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção e em consequência disso absolveu a Apelada da instância. Por conseguinte, o presente recurso apenas diz respeito a matéria de direito.
3 - Os presentes autos iniciaram-se com um requerimento de injunção que a Apelante deduziu contra a Apelada, para pagamento de uma fatura que se encontrava vencida, resultante de um contrato de empreitada para a construção de um telhado numa moradia da segunda, em ..., com 155 m2 de áreas, cujo pagamento era faseado de acordo com o estado dos trabalhos.
4 - Realizados os trabalhos correspondentes à fatura em dívida, a Apelante apresentou-a à Apelada e esta não pagou.
5 - Na sua defesa, a Apelada não impugnou a falta de pagamento da fatura nem os trabalhos a ela respeitantes.
6 - O que a Apelada, em suma, alegou na sua defesa até foi uma questão suscitada posteriormente pelo gerente da Apelante, que afinal o telhado não tinha os 155 m2 contratados, mas 280 m2 e que teriam que rever o preço em função da área real do trabalho.
7 - Mas apesar disso os trabalhos referentes à segunda fase do pagamento da empreitada estavam realizados e tinham que ser pagos.
8 - O Tribunal a quo entendeu, atentas as posições das partes, que o processo não revestia a simplicidade exigida para um processo de injunção e seguindo a jurisprudência do Ac. de TRL de 24-4-2019, Proc. n.º 73674/18.4YIPRT.L1-2, in www.dgsi.pt e conheceu oficiosamente da exceção dilatória de uso indevido do processo de injunção e absolveu a Apelada da instância.
9 - Conforme há pouco referimos na delimitação do objeto do processo, a Apelante usou o requerimento de injunção para a cobrança de uma dívida, que na sua opinião é simples, pois, os trabalhos foram realizados, faturados, a fatura encontra-se vencida e a Apelada não pagou.
10 - O artigo 1.º do diploma preambular do DL n.º 269/98, de 1 de setembro, refere que o processo de injunção destina-se a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de até € 15.000,00.
11 - O artigo 7.º e seguintes do DL 269/98, de 1 de setembro regula o processo de injunção e que ao mesmo também se aplica às obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17 de fevereiro, sendo atualmente o Decreto-Lei n.º 62/2023, de 10 de maio.
11 - O artigo 3.º, alínea b), do DL n.º 62/2013, de 10 de maio, define transação comercial por uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens, ou à prestação de serviços contra remuneração.
12 - O artigo 10.º, n.º 1, do DL n.º 62/2013, de 10 de maio refere que o credor tem o direito de recorrer ao processo de injunção caso se verifique atraso no pagamento de uma transação comercial, independentemente do valor da dívida.
13 - Nos termos do n.º 4 daquele dispositivo legal, quando o valor do pedido é inferior a € 15.000,00, segue os termos da ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.
14 - A decisão em recurso e o acórdão por ela seguido é referido que para aplicação do processo de injunção tem que se tratar de um litígio simples, de um pagamento de uma obrigação pecuniária e que não haja outro litígio subjacente.
15 - Refere o Mm.º Juiz a quo na sua douta sentença que as partes estão de acordo sobre a existência de um contrato de empreitada, mas verifica-se conflito quanto ao seu cumprimento e por essa razão a questão em litígio não é tão simples para que possa ser utilizada a forma processual do processo de injunção.
16 - A Apelante continuar a entender que o processo de injunção é aplicável no caso em apreço, pois que, na delimitação do litígio, alegou que as partes celebraram o contrato de empreitada que tinha por objeto a construção de um telhado, no valor de € 25.000,00 mais IVA e cujo pagamento era faseado.
17 - Chegada a segunda fase do pagamento, a Apelante apresentou a fatura e a Apelada não pagou, pretendendo a primeira que a fatura seja paga. Tendo em conta que a delimitação do litígio é feita pela Apelante, trata-se de um processo simples de cobrança de uma dívida.
18 - O procedimento de injunção não é exceção e encontra-se sujeito ao contraditório e admite oposição. Nesta a Apelada não contesta o contrato de empreitada em causa, não contesta que a Apelante realizou os trabalhos correspondentes à segunda fase para a emissão da fatura, como também confessa que não pagou a fatura em que é pedido o pagamento.
19 - Pela posição assumida pela Apelada na sua oposição, tal permitiria a condenação no pedido, conforme já referimos, contudo não foi isso que aconteceu.
20 - O que a Apelada refere na sua oposição é que a Apelante não cumpriu o contrato de construção de um telhado com 280 m² de área, contudo o que foi contratado foi a construção de um telhado com 155 m2 de área.
21 - O que a apelada refere na oposição não tem nada a ver com o pedido deduzido pela Apelante, pagamento de uma fatura referente a trabalhos que se encontram executados, sendo esta a delimitação do litígio e que para aquela trata-se de uma questão simples e que se encontra abrangida pela “simplicidade” do processo de injunção.
22 - Ainda a fundamentar a douta decisão em recurso, o Mm.º Juiz a quo na penúltima página da douta sentença refere, que a Apelante ao ter usado o processo de injunção limitou de forma significativa a defesa da Apelada porque aquela viu reduzido o prazo de contestação para metade e encontra-se sujeito a limitações probatórias que não se verificam na ação comum e por essa razão limitou o direito de defesa daquela.
23 - A Apelante também não concorda com aquele douto entendimento do Mm.º Juiz a quo.
24 - A questão é simples e o prazo de oposição de 15 dias é mais que suficiente para responder se foi feito o pagamento da fatura em dívida e porque não o fez.
25 - E tanto o prazo é suficiente que a Apelada não só respondeu, como teve tempo para levantar outras questões para se eximir ao pagamento.
26 - Como também eventuais limitações à capacidade probatória não é motivo para tirar simplicidade aos presentes autos.
27 - Desde logo o Mm.º Juiz a quo não identifica as limitações probatórias. Como ainda as eventuais limitações probatórias que a Apelada poderá ter, também a Apelante pode ter, inclusivamente o ónus de prova para demonstrar que a fatura corresponde a trabalhos contratados, realizados e não pagos cabe à Apelante e não à Apelada.
28 - E cabendo o ónus de prova à Apelante, não se vislumbra para a Apelada quaisquer limitações probatórias.
29 - A prova que a Apelada indicou na oposição é praticamente a mesma que a Apelante iria indicar. E dessa forma não impede que os presentes autos possam prosseguir como uma ação especial de cumprimento de obrigações pecuniárias.
Requerendo, a final a revogação da sentença do Tribunal a quo e ordenado o prosseguimento dos autos.
Em contra-alegações, concluiu a Ré apelada:
A. Veio a autora/recorrente interpor recurso da mui douta sentença de 16/05/2023 a qual julgou verificada a exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção e em consequência disso absolveu a ré da instância;
B. Segundo o seu entendimento os presentes autos revestem a simplicidade exigida para um processo de injunção;
C. Assim, defende que mal esteve o tribunal a quo ao julgar verificada a exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção;
D. Salvo melhor entendimento, a decisão do tribunal a quo não merece qualquer reparo;
E. A sua fundamentação sufragada por jurisprudência atual e pertinente não padece de qualquer vício;
F. A recorrente apresentou requerimento de injunção contra a recorrida pedindo a condenação desta no pagamento da quantia € 8.078,19, alegando, em síntese, ter prestado trabalhos de construção de um telhado numa moradia da recorrida;
G. A recorrida em sede de oposição, em suma, invocou o incumprimento da empreitada por parte da recorrente;
H. Conforme bem refere o tribunal a quo, embora as partes estejam de acordo quanto a existência de um contrato de empreitada, “(…) verifica-se conflito quanto ao seu cumprimento, imputando-se mutuamente um incumprimento das respetivas obrigações. Concretamente, o réu invoca o cumprimento defeituoso pela autora da sua obrigação, traduzido na incompletude dos trabalhos e na desconformidade com o que fora solicitado, e a autora invoca o cumprimento em conformidade com o que foi acordado e orçamentado”;
I. O processo simplificado que o legislador criou com regime especial da injunção teve como desígnio fundamental facultar ao credor, em ações que normalmente se revestem de grande simplicidade, procedimento tendente à célere obtenção de título executivo;
J. A lógica adjacente ao procedimento de injunção é, pois, a da cobrança rápida e simples de dívidas pecuniárias, acompanhada das consequências indemnizatórias mais imediatas e necessárias dessa cobrança (juros e despesas de cobrança);
K. Dívidas que, como tal, pela sua própria natureza, implicam uma tendencial certeza da existência do direito de crédito;
L. Não sendo, pelo contrário, o procedimento injuntivo adequado a decidir litígios decorrentes da interpretação ou execução de contratos que revestem de alguma complexidade;
M. No caso em apreço, não estamos perante um simples incumprimento de obrigação pecuniária, implicando, outrossim, a questão decidenda uma apreciação de fundo sobre os termos em que a empreitada em apreço foi contratada e executada;
N. A questão sub judice assume, como tal, natureza complexa, dado às questões relativas a contratação e execução da empreitada;
O. Por isso, bem esteve o tribunal a quo ao considerar que “cumprirá efetivamente, indagar da existência ou não do cumprimento defeituoso alegado, quais as áreas acordadas, orçamentadas, sem houve erro nas medições facultadas, de quem, se os mesmo foram reclamados tempestivamente, consequências sobre a relação contratual e o pedido da autora”;
P. Apenas após as questões atinentes a contratação e execução da empreitada ficarem decididas se poderá aferir do eventual direito da recorrente ao crédito;
Q. Nesta medida, a recorrente ao socorrer-se do procedimento injuntivo para resolver todas as questões atinentes ao referido contrato de empreitada extravasou manifestamente o âmbito do procedimento de injunção;
R. Não lhe assistindo, assim, qualquer razão;
S. Resulta, pois, de tudo o quanto se expôs nesta sede, que o tribunal a quo fundamentou juridicamente bem a sentença recorrida;
T. Analisando e aplicando o direito aos factos em concreto;
U. A sentença recorrida é, pois, a fiel depositária dessa análise jurídica feita pelo tribunal a quo;
V. Pelo que, aqui e uma vez mais, se refira que deve, também a este propósito, improceder, na sua totalidade, o petitório formulado pela ré, ora recorrente, no seu recurso de apelação;
W. Mantendo-se, assim, na íntegra, a decisão proferida pelo tribunal a quo, nesta sede;
X. Deste modo, e finalizando as presentes contra-alegações de recurso de apelação, importa que se refira, uma vez mais, que bem andou o tribunal a quo julgas verificada a exceção dilatória de uso indevido do procedimento de injunção e em consequência disso absolver a ré da instância;
Y. Na verdade, o tribunal a quo não podia, atento o que supra se expôs, ter tomado uma decisão diferente daquela que tomou, em moldes e com fundamentos absolutamente inexpugnáveis;
Z. Pelo que a sentença recorrida não merece qualquer censura!;
AA. Já que a mesma faz um fiel enquadramento, interpretação e aplicação correta da legislação em vigor;
BB. A sentença recorrida está, pois, factual e juridicamente, bem fundamentada;
CC. Nesses termos, deverá, pois, improceder, o recurso de apelação apresentado pela ré, ora, recorrente, mantendo-se, na íntegra, a decisão proferida pelo tribunal a quo;
DD. É o que a autora, ora, recorrida, peticiona, pede e requer a V. Excelências, Exmos. Senhores Juízes Desembargadores, e a esse Venerando Tribunal Da Relação de Évora!
Pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Considerando a delimitação que decorre das conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), são as seguintes as questões do recurso:
- Se ocorre erro na forma do processo quando uma sociedade lança mão do requerimento injuntivo contra uma outra sociedade, alegando a falta de pagamento de valores devidos por trabalhos que realizou no âmbito duma empreitada e a ré invoca a exceção de não cumprimento do contrato?
- Se sim, qual a consequência?
III
Os factos e as incidências processuais relevantes para a apreciação do recurso constam do Relatório que antecede.
A sentença recorrida concluiu pela existência de erro na forma do processo, porquanto e, em síntese, considerou que o regime processual previsto no Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, não é aplicável na situação retratada nestes autos, atenta a complexidade das questões suscitadas.
Lê-se na mesma a seguinte fundamentação:
«Cumpre, pois, decidir da exceção dilatória oficiosamente invocada de uso indevido do procedimento de injunção.
E para enfrentar a questão seguiremos de perto o Ac. do TRL de 30-05-2019, proc. n.º 72782/18.6YIPRT.L1-8, disponível em www.dgsi.pt, ao qual se referirão as citações infra quando não se indique o contrário, pela similitude que apresenta com o caso presente.
Com o Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de setembro, pretendeu o legislador criar um processo simplificado para a litigância de massa empresarial, onde não havendo litígio sobre o conteúdo central da obrigação, haveria apenas litígio sobre o pagamento.
Nos dizeres do indicado aresto, a «injunção traduz-se num mecanismo marcado pela simplicidade e celeridade, vocacionado para a cobrança simples de dívidas, de molde a aliviar os Tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívidas».
Com efeito, o «objetivo subjacente à introdução daquela legislação foi a de obter simplificação e desburocratização, imprimindo celeridade e prontidão na cobrança de débitos, consistindo estes em “pretensões pecuniárias, em princípio de pequeno montante, e em que prima facie não haja litígio efetivo e atual entre as partes”», de modo que este «processo simplificado (…) não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade» (Ac. do TRL de 24-04-2019, proc. n.º 73674/18.4YIPRT.L1-2, www.dgsi.pt).
Cabe, então, determinar se a forma deste processo é ou não apropriada ao litígio dos autos e para tanto será necessário atentar não apenas ao requerimento inicial, mas também à oposição apresentada, pois «se a finalidade da política legislativa traduzida nos diversos diplomas (…) é instituir um mecanismo processual agilizado, simplificado, atender-se ao requerimento inicial, de forma exclusiva, apenas permitirá “sabotar” aquela; lembre-se que a oposição tem um papel crucial para se perceber os contornos do litígio». E, nesse sentido, «não basta olhar e ponderar, apenas, se estamos ou não perante o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a € 15.000,00, antes urgindo, igualmente, para além da verificação e preenchimento de tais pressupostos, indagar se o pedido formulado está em consonância com o fim para qual foi estabelecida ou criada a forma processual a que o autor recorreu, bem como ter em atenção e ponderação se o litígio subjacente e natureza do contrato/relação obrigacional em causa implica o conhecimento de questões complexas e carecidas de um desenvolvimento e trato mais exigente, de forma a acautelar os direitos das partes em litígio» (Ac. do TRL de 24-04-2019, proc. n.º 73674/18.4YIPRT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt).
No caso dos autos, as partes estão de acordo sobre a existência de um contrato que as vincula e que será de qualificar como de empreitada, mas verifica-se conflito quanto ao seu cumprimento, imputando-se mutuamente um incumprimento das respetivas obrigações.
Concretamente, o réu invoca o cumprimento defeituoso pela autora da sua obrigação, traduzido na incompletude dos trabalhos e na desconformidade com o que fora solicitado, e a autora invoca o cumprimento em conformidade com o que foi acordado e orçamentado.
Ora, apresentando-se nestes termos a controvérsia, «resulta claro não estarmos, sem mais, perante o mero ou simples (in)cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de empreitada descrito. Efectivamente, o litígio reporta-se à discussão do invocado contrato de empreitada quer no se refere ao seu não cumprimento ou conclusão por parte da empreiteira, não eliminação de desconformidades; urge ponderar e apreciar acerca da relação contratual existente, donde emana um complexo de direitos e deveres para ambas as partes, divergindo estas quanto à existência e amplitude do imputado mútuo (in)cumprimento».
Cumprirá efetivamente, indagar da existência ou não do cumprimento defeituoso alegado, quais as áreas acordadas, orçamentadas, se houve erro nas medições facultadas, de quem, se os mesmo foram reclamados tempestivamente, consequências sobre a relação contratual e o pedido da autora.
Repete-se, «não estamos apenas perante a simples cobrança de uma dívida de fácil balizamento ou delimitação, nem está apenas em equação o mero (in)cumprimento de obrigações pecuniárias» (Ac. do TRL de 24-04-2019, proc. n.º 73674/18.4YIPRT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt).
Significa isto que «a controvérsia em equação nos presentes autos está longe do processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção».
É que a autora recorreu a uma forma processual que limitou de forma significativa a defesa do réu, sem o contraponto da simplicidade dessa defesa, desde logo porque aquele viu reduzido o seu prazo de contestação a metade e encontra-se sujeito a limitações probatórias que não se verificam na ação comum.
Destarte, considera-se existir uso de forma indevida do procedimento de injunção, o que, nos termos da jurisprudência que se vem citando, configura exceção dilatória inominada, obstativa do conhecimento do mérito da causa e determinante de decisão de absolvição da instância, nos quadros dos artigos 278.º, n.º 1, alínea e), 279.º, 576.º, n.º 1 e 2, e 577.º, todos do Código de Processo Civil».
Tal entendimento não tem a nossa concordância, como passaremos a expor.
Começando por esclarecer, à semelhança do Acórdão desta Relação de 15/12/2022, Proc. 90114/21.4YIPRT.E1 (Adelaide Domingos) in www.dgsi.pt, que contemplou caso idêntico, que «(…) o erro na forma de processo não é tipificado na nossa lei processual civil como uma exceção dilatória».
Tendo este um regime próprio multiforme, que apela ao aproveitamento dos atos processuais, sem perda de garantias da defesa. Podendo constituir uma mera irregularidade, sanável.
Invocando a doutrina do Ac. RP de 08/03/2019, Proc. n.º 7829/17.9T8PRT.P1 (Aristides Rodrigues de Almeida), lê-se naquele acórdão:
“«A forma de processo é o modo específico como o legislador definiu o modelo e os termos dos atos a praticar e dos trâmites a observar pelas partes e pelo tribunal com vista à aquisição adequada dos elementos de facto e de direito que permitem decidir uma determinada pretensão, podendo assim definir-se como a configuração da estrutura de atos e procedimentos a que deve obedecer a preparação e julgamento de determinado litígio.
Na nossa legislação processual civil o autor não tem liberdade para escolher a forma de processo que julgue melhor servir os seus interesses, pelo contrário, se a sua pretensão couber dentro do âmbito de aplicação de determinada forma de processo é essa e apenas essa a que pode seguir a sua ação.»
O erro na forma do processo, abrangendo desde o CPC de 2013 todo o «meio processual», encontra-se previsto no artigo 193.º do CPC, na Secção VI, do Título I, Livro II, dedicada à nulidade dos atos processuais.
O artigo 193.º determina «unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível da forma estabelecida na lei» (n.º 1); não devendo ser aproveitados «os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição das garantias do réu» (n.º 2); sendo que o «erro na qualificação utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados» (n.º 3).
Deste modo, o erro na forma do processo apenas gera a nulidade de todo o processado quando não for possível aproveitar qualquer ato praticado que tenha sido praticado na forma inadequada. Só nesse caso gera a nulidade de todo o processo e esta, sim, constituiu uma exceção dilatória de conhecimento oficioso determinante da absolvição do Réu da instância, por aplicação dos artigos 193.º, n.º 1, 576.º. n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 578.º do CPC.
Ao invés, se for possível o aproveitamento dos atos processuais praticados, de todos ou de parte deles, ocorre uma convolação do processado para a forma adequada, pelo que se verifica tão só uma mera irregularidade, sanável, como estipula o artigo 193.º, n.ºs 2 e 3, do CPC.
Basicamente, pode dizer-se que a nulidade decorrente do erro na forma de processo, só determina a extinção da instância nos casos em que os autos não possam ser aproveitados, sobretudo quando daí resultar uma diminuição das garantias do Réu, não suscetível de ser colmatada pelo recurso ao princípio da adequação e da gestão processual, nos termos previstos nos artigos 547.º e 6.º do CPC, levando-se sempre em conta um critério de equidade e de proporcionalidade na adoção dos procedimentos, em ordem a garantir o princípio do acesso ao direito à efetividade da tutela jurisdicional, consagrado constitucionalmente (artigo 20.º da CRP).»”
Vejamos então se ocorre uma situação de erro na forma de processo, no caso dos autos, só depois, fazendo sentido apurar a consequência.
O autor, então requerente, apresentou um requerimento injuntivo tendo como causa de pedir um contrato de empreitada.
Importa atender ao Dec.-Lei n.º 269/98, de 01-09, que aprovou o “Regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos e injunção”. E, ao Dec.-Lei nº 62/2013, de 10-05, que aprovou “Medidas contra os atrasos no pagamento de transações comerciais”.
Assim, o artigo 1.º Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, define:
«É aprovado o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a (euro) 15.000,00, publicado em anexo, que faz parte integrante do presente diploma.»
E o artigo 10.º do DL n.º 62/2013, de 10-05 determina:
«1 - O atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida.
2 - Para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.
3 - Recebidos os autos, o juiz pode convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais.
4 - As ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação.»
A aplicação do procedimento de injunção aplica-se, assim, a duas situações:
1- Quando estão em causa obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15.000,00;
2- Quando estão em causa obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10-05.
No caso em apreço, o procedimento de injunção tem na sua base uma obrigação emergente de transação comercial celebrada 2021 ficando, assim, sob a alçada do citado Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de maio (artigos 1.º do DL 269/98 e 7.º do Anexo a este diploma legal).
Conforme estatui o artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, «Considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1.º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n.º 32/2003, de 17/02.» 1
1 (devendo a remissão para este diploma ser substituída pela remissão para o Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10-05; cfr. artigo 13.º, n.º 2, deste último).
A «transação comercial» encontra-se definida no artigo 3.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 62/2013, como correspondendo a “uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinadas ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração».
Por sua vez, o artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2013, estipula, citando de novo, que «O atraso no pagamento de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito de recorrer à injunção, independentemente do valor em dívida», seguindo, após a dedução de oposição ou a tramitação do processo comum ou a ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, conforme se verifiquem os requisitos do n.º 2 ou do n.º 4 do mesmo artigo 10.º.
Assim, para o que ora releva, por força do artigo 10.º, n.ºs 1, 2 e 4, conjugado com o artigo 2.º, n.º 1 e 2, ambos do Decreto-Lei n.º 62/2013, atento o valor do pedido, a natureza comercial da transação em causa, o facto da mesma não envolver consumidores, tendo sido deduzida oposição, o requerimento injuntivo passou a seguir a tramitação da ação comum.
Entendeu a decisão recorrida que existe erro na forma de processo, porquanto:
- A injunção traduz-se num mecanismo marcado pela simplicidade e celeridade, vocacionado para a cobrança simples de dívidas, de molde a aliviar os Tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívidas;
- No caso, está-se, perante o incumprimento de uma obrigação pecuniária emergente do contrato de empreitada, mas o litígio estendeu-se à discussão das razões do não cumprimento ou conclusão por parte da empreiteira, que imputa o incumprimento à autora, divergindo as partes quanto à existência e amplitude do imputado mútuo (in)cumprimento.
Como bem se expôs no Acórdão desta Relação de 15/12/2022 Proc. n.º 90114/21.4YIPRT.E1 acima citado:
«É certo que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 269/98 menciona que a preocupação do legislador foi a criação de um regime que desse resposta rápida e célere a litígios de «baixa densidade» para «reconhecimento e cobrança de dívidas por parte dos grandes utilizadores», em relação a obrigações pecuniárias emergentes de contratos que não excedam o valor da alçada dos tribunais de 1.ª instância, que muitas vezes não veem as ações contestadas.
Mas a verdade é que o articulado do diploma não restringiu, para além da limitação do valor, a sua aplicação a esse tipo de litígios, os chamados litígios de massa.
Pelo contrário, o diploma é abrangente na sua previsão, desde que estejam preenchidos os pressupostos da sua aplicação que se encontram plasmados no artigo 1.º do diploma e no artigo 7.º do anexo do diploma, permitindo, assim, que o credor lance mão do procedimento injuntivo independentemente de estarmos perante ditos litígios de massa.
Sendo certo que após a oposição, o procedimento transmuta-se e segue as formas assinaladas nos n.º 2 e 4 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 62/2013, permitindo, inclusivamente, que o juiz convide as partes a aperfeiçoar os articulados, dando aqui espaço ao funcionamento do princípio da adequação previsto no artigo 547.º do CPC, de modo a eliminar algumas restrições que possam decorrer do formulário injuntivo quanto à alegação da causa de pedir.
Razão pela qual, se pode equacionar como vem sendo amplamente acolhido pela jurisprudência, sendo disso exemplo o citado Acórdão da Relação do Porto de 15-12-2021, que transformada a injunção em processo comum, não se verifica, no âmbito deste o alegado erro na forma do processo.
Por outro lado, não sendo de descurar que estamos perante um procedimento célere e simplificado sobretudo na forma de introdução em juízo e no campo dedicada à identificação das partes e termos do litígio (artigos 9.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 269/98), havendo oposição, já não lhe é aposta a fórmula executória (desvanecendo-se, assim, o argumento da celeridade na obtenção de um título executivo), e a tramitação do processo é regulada pelos artigos 3.º e 4.º do mesmo diploma, preceitos que regulam a tramitação da ação comum, destacando-se a realização de audiência de julgamento onde são apresentadas as provas e, sendo indispensável para a boa decisão da causa, o juiz pode determinar a realização de diligências, incluindo a pericial, suspendendo o julgamento.»
Argumentação que corroboramos, pelo que o argumento de exclusividade do procedimento para ações simplificadas, perde razão de ser.
Quanto ao argumento da complexidade da causa de pedir pressupondo um probatório mais completo, a jurisprudência tem vindo a considerar que a complexidade da causa não corresponde a um requisito legal que permita a invocação do mencionado erro na forma do processo, sobretudo quando por via da oposição a injunção se transmuta em processo comum. Nomeadamente em situações em que a causa de pedir se consubstancia num contrato de empreitada.
Nesse sentido o Ac. RL, de 09-09-2021, Proc. n.º 86941/19.0YIPRT.L1-2.
Ou, o Ac. de 28-04-2022 deste TRE, Proc. n.º 70186/21.2YIPRT.E1, in www.dgsi.pt, subscrito como adjunta pela ora relatora, em cujo sumário se lê:
«I - O credor pode lançar mão do procedimento injuntivo se pretender exigir o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente (i) de contrato e de valor não superior a € 15.000,00 ou (ii) de transação comercial que dê origem ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços mediante remuneração.
II - Nada mais exige a lei. Nomeadamente, inexiste norma que limite o recurso à injunção aos casos simples e/ou céleres.
III – Quando o empreiteiro pede que o dono da obra lhe pague os “valores retidos”, em cada fatura que lhe foi apresentada, a “título de caução”, está a pedir o pagamento das parcelas do preço da empreitada que não foram liquidadas aquando das faturas.
IV – E, assim, o empreiteiro pode recorrer ao procedimento injuntivo.»
De fora do procedimento injuntivo ficam, apenas, as situações excluídas pelo artigo 2.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Decreto-Lei n.º 62/2013, ou seja, contratos celebrados com consumidores, os juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais e os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.
Consequentemente, a complexidade que advenha da causa de pedir ou, na maioria das vezes, da oposição, não é fundamento para se afirmar que existe erro na forma do processo.
Como bem sublinha o Ac. do Proc. n.º 90114/21.4YIPRT.E1:
«(…) a aceitar-se entendimento contrário sempre teria de se colocar a questão do que seria para este efeito complexidade do processo, já que se trata de um conceito indeterminado que carece de preenchimento em face ao caso concreto com as inerentes dificuldades e insegurança jurídica que decorrem de múltiplas situações tendencialmente idênticas.
Ademais, se a complexidade fosse aferida por via da oposição, o demandado poderia provocar o erro na forma do processo alegando matéria impertinente (ou pior), o que evidencia a irrazoabilidade deste tipo de solução».
No caso presente, a autora alegou a celebração com a ré de um contrato de empreitada, o não pagamento por esta, apesar de interpelado com a apresentação da fatura, estando em dívida o capital e correspondentes juros vencidos, pedindo também o pagamento de juros vincendos, tudo como resulta do requerimento injuntivo.
Está, pois, em causa a efetivação de direitos de crédito de natureza pecuniária emergentes de relações contratuais comerciais, bem como os correspondentes juros de mora, cujo enquadramento fáctico-jurídico decorre da natureza do contrato celebrado, do respetivo clausulado e da natureza comercial da atividade desenvolvida pelas partes (excluindo-se, assim, a natureza de consumidores), pelo que não vislumbramos, salvo o devido respeito, que causa de pedir e o pedido se não enquadrem juridicamente nos pressupostos do processo de injunção por via do que dispõe o artigo 7.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01-09, e artigos 2.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 62/2003, de 10-05.
Nestes termos, a decisão recorrida deve ser revogada, determinando-se o prosseguimento da normal tramitação dos autos.
Síntese conclusiva:
(…)
Custas pela apelada.
Évora, 12 de outubro de 2023
Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Ana Margarida Leite (1ª Adjunta)
Isabel Peixoto Imaginário (2ª Adjunta)