INVENTÁRIO
BENS PRÓPRIOS
ADJUDICAÇÃO
CÔNJUGE
LEGITIMIDADE
Sumário

Em inventário judicial, a adjudicação de bens por acordo não exige o consentimento do cônjuge do herdeiro casado segundo o regime de comunhão de adquiridos.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B.......... instaurou acção declarativa, com processo ordinário, contra C.......... e D.......... e mulher E.........., alegando, em síntese, que:
- Correu termos no Tribunal Judicial de .......... um processo de inventário, sob n.º ../1998, para partilha dos bens da herança de F.......... e G.........., pais do primeiro e do segundo Réu marido, sendo a Autora casada com o 1º Réu sob o regime de comunhão de adquiridos.
- Em Outubro de 2003, a Autora teve conhecimento, através do 1º Réu, do mapa de partilha que foi elaborado no referido processo.
- Só nessa altura a Autora teve conhecimento de que a partilha da herança dos pais do seu marido tinha sido feita sem ela «ser ouvida, nem achada».
- A adjudicação dos bens foi feita por acordo entre o seu marido e o R. D.......... celebrado na conferência de interessados.
- A Autora não esteve presente nem representada na conferência de interessados, nem deu o seu consentimento a tal acordo.
- Ora, dado que a alienação de imóveis e estabelecimentos comerciais, próprios ou comuns, carece do consentimento de ambos os cônjuges, por força do preceituado no art. 1682º-A do Cód. Civil, tal acordo é anulável.
- A partilha foi homologada por sentença de 7.11.2003, transitada em julgado em 25.11.2003.
Concluiu pedindo que essa sentença seja anulada, “em virtude de a mesma ter homologado um acordo ao qual a Autora não deu o seu consentimento, exigido pelo n.º 1 do art. 1682º-A do Cód. Civil”.

Os Réus D.......... e mulher contestaram, invocando, além do mais, a excepção dilatória da ilegitimidade activa da Autora, alegando que esta, sendo casada no regime de comunhão de adquiridos com um dos herdeiros, não tem legitimidade para propor a presente acção, uma vez que apenas o co-herdeiro tem legitimidade activa para interpor uma acção de anulação da partilha judicial. Alegaram, ainda, que tudo o que foi acordado entre os co-herdeiros C.......... e D.......... foi com o consentimento dos respectivos cônjuges.

A Autora replicou, pugnando pela improcedência da arguida excepção.

No despacho saneador, a M.ma Juíza julgou procedente a excepção dilatória da ilegitimidade deduzida pelos Réus e nulo o processo, por ineptidão da petição inicial e, em consequência, absolveu os RR. da instância.

Inconformada, interpôs a Autora o presente recurso de agravo, tendo rematado a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
1- Carece de consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens, a alienação de imóveis e de estabelecimento comercial próprios ou comuns.
2- A transacção ou acordo sobre a partilha de bens imóveis e de estabelecimento comercial, próprios ou comuns, carece do consentimento de ambos os cônjuges casados sob o regime da comunhão de bens adquiridos.
3- A transacção ou acordo sobre a partilha de tais bens são anuláveis a requerimento do cônjuge casado na comunhão de bens adquiridos que não deu o seu consentimento para tal acto.
4- O cônjuge casado na comunhão de adquiridos que não deu o seu consentimento à transacção ou acordo sobre a partilha desses bens imóveis pode requerer a anulação da sentença que homologou tal a transacção, sendo, para tal acção de anulação, parte legítima.

Pede que a decisão recorrida seja substituída por uma outra que considere a Recorrente parte legítima.

Contra-alegaram os RR. contestantes, defendendo a confirmação daquela decisão.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II.
A situação de facto a ter em consideração é a que se deixou descrita no antecedente relatório, sendo apenas de acrescentar que a Autora foi citada, para os termos do inventário, em 23.9.1999 (fls. 26 dos autos de inventário a que estes estão apensos) e que, de acordo com a respectiva acta, na conferência de interessados que teve lugar em 9.5.2003, e na qual se procedeu à adjudicação dos bens por acordo, a Autora não se encontrava presente.

III.
Mérito do recurso:

Diremos, desde já, que estamos inteiramente de acordo com o despacho recorrido e respectivos fundamentos, pelo que nos poderíamos limitar a negar provimento ao agravo e a remeter para os termos daquela decisão, ao abrigo do disposto no nº 5 do art. 713º do CPC.

Acrescentaremos, ou realçaremos, no entanto, apenas o seguinte:
A questão que essencialmente se coloca é a de saber se, em inventário judicial, a adjudicação dos bens por acordo exige o consentimento do cônjuge do herdeiro, casados segundo o regime de comunhão de adquiridos.
Ora, a resposta a tal questão deverá ser, quanto a nós, negativa.

Começar-se-á por dizer que, no que concerne às citações que devem ser feitas em processo de inventário, enquanto que o nº 1 do art. 1329º do CPC prescrevia que deviam ser citadas “(...) as pessoas com interesse directo na partilha e os seus cônjuges (...)”, o art. 1341º, nº 1 do mesmo Código (na redacção dada pelo Dec.Lei nº 227/94, de 8.9), preceito que corresponde ao anterior 1329º, nº 1, estatui que “são citados para os seus termos os interessados directos na partilha, o Ministério Público, quando a sucessão seja deferida a incapazes, ausentes em parte incerta ou pessoas colectivas, os legatários, os credores da herança e, havendo herdeiros legitimários, os donatários”.
Desapareceu, portanto, a obrigação de citação dos cônjuges das pessoas com interesse directo na partilha.

“Interessados directos na partilha” são, no dizer de Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, 3ª ed., p. 367, “os herdeiros, o meeiro do inventariado e a pessoa contemplada com o usufruto de parte da herança, sem determinação de valor ou objecto”. E deve também considerar-se como tendo interesse directo na partilha o cônjuge do herdeiro “no caso de o casamento se ter realizado segundo o regime de comunhão geral de bens” (Domingos Carvalho de Sá, Do Inventário, descrever, avaliar e partir, ed. 1996, p. 30 e 74/75).

Ou seja, o cônjuge de um herdeiro, casado com este segundo o regime de comunhão de adquiridos, não só não tem legitimidade para requerer o inventário, porque não é “interessado directo na partilha” (cf., ainda, Abílio Neto, CPC anotado, 15ª ed., p. 1321 e Ac. da RP, de 9.2.1999, CJ, 1999, I, 219), como nem sequer deve ser citado para os respectivos termos.
Assim sendo, obviamente que não tem ele de ser notificado para conferência de interessados, nem de nela estar presente ou dar o seu consentimento para que os bens possam ser adjudicados por acordo.

Como a propósito escreve Domingos Carvalho de Sá, ob. cit., p. 120, “Os interessados que deliberam quanto à composição dos quinhões são naturalmente todos os herdeiros e respectivos cônjuges, desde que tenham comunhão nos bens a partilhar”.

E não se argumente, como faz a recorrente, com o disposto no art. 1682º-A do Cód. Civil.
É que tal normativo reporta-se à alienação ou oneração de imóveis ou estabelecimento comercial, próprios ou comuns, sendo certo que, aquando da adjudicação dos bens em processo de inventário, não existe qualquer acto de alienação de bens próprios do herdeiro. Como bem se escreveu no despacho posto em crise, “quando na conferência de interessados os co-herdeiros acordam quanto à composição dos quinhões hereditários e à adjudicação de determinados bens a determinados herdeiros, não estão a «abrir mão» de bens que já integravam os seus patrimónios, mas sim da quota indivisa que possuíam sobre esses bens”.

Só após a partilha a respectiva sentença homologatória é que certos e determinados bens ingressam no património próprio do herdeiro. Por isso, só a partir de então a sua alienação ou oneração (tratando-se de imóveis ou de estabelecimento comercial) necessitará do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens.

Em favor da sua tese, transcreve parcialmente a A. o que, a pág. 117 do vol. II de Partilhas Judiciais, escreveu Lopes Cardoso: “...a falta de representação de qualquer dos herdeiros ... assim como os vícios do consentimento, constituem fundamento legítimo para a anulação da composição...”.
É de salientar, porém, que, no caso em apreço, não se pode sequer falar de consentimento ferido de um qualquer vício, pois que não houve (nem tinha de haver) consentimento.
E será interessante reproduzir uma parte da frase que aquele autor escreveu, a propósito da composição de quinhões, e que a agravante deixou sob reticências: “a falta de representação de qualquer dos herdeiros ou consortes deles directamente interessados na partilha..., assim como os vícios do consentimento, constituem fundamento legítimo para a anulação da composição em si mesma (...)”.
Ora, já vimos que o cônjuge de um herdeiro, com este casado segundo o regime de comunhão de adquiridos, não é pessoa directamente interessada na partilha.

Conclui-se, assim, que a A./recorrente carece de todo de legitimidade para pôr em causa o acordo de adjudicação de bens e composição dos quinhões e, consequentemente, para pedir a anulação da sentença homologatória da partilha.

O despacho recorrido não merece, pois, qualquer censura.

IV.
Nestes termos, e sem necessidade de mais considerações, nega-se provimento ao agravo, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pela agravante.

Porto, 9 de Dezembro de 2004
Estevão Vaz Saleiro de Abreu
Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos
José Viriato Rodrigues Bernardo