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EXCEÇÃO DE LITISPENDÊNCIA
FALTA DE DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS
Sumário
Padece de invalidade insuprível, determinante da anulação do art.662º/2-c) do CPC, a decisão que conhece a exceção de litispendência, na fase do saneador, sem discriminação de qualquer facto provado (que permita apurar o objeto concreto de cada processo e o seu estado) e sem que os autos disponham de certidões do processo prévio à decisão, que permitam ao Tribunal da Relação considerar factos provados plenamente e suprir a invalidade (art.607º/4- 2ª parte e 663º/2 CPC).
Texto Integral
I. Relatório:
No presente processo declarativo, sob a forma de processo comum, instaurado por AA contra BB, a 03.01.2023:
1. O autor: 1.1. Pediu:
a) Que se declarasse «o autor único e exclusivo titular do direito de propriedade sobre as frações autónomas designadas pelas letras ..." e “...”, sito no gaveto formado pelas Ruas ... e Rua ..., da freguesia e concelho ..., inscrito na matriz urbana sob os artigos ...76... e ...76..., respetivamente, e descritas na Conservatória do Registo predial ... sob os nºs ...90... e ...90... /...20 e conforme ali descritas, por se tratar de bem próprio deste, nos termos e com os fundamentos sobreditos;».
b) Que se condenasse a ré a «reconhecer esse direito de propriedade, a abster-se da prática de quaisquer actos que atentem contra o mesmo;».
c) Que se ordenasse «o cancelamento o registo da aquisição a favor também da Ré, descrições com os números ... e ...- ... /...20 da Conservatória de Registo Predial ...;».
Subsidiariamente,
d) E caso não procedessem os pedidos formulados em a) a c) do petitório, que se condenasse a Ré «a pagar ao A., ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, a quantia de 130.000,00€, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento;». 1.2. Alegou, como fundamento da ação, que as frações objeto do pedido correspondem a seus bens próprios, face aos factos fundamenta que alega e conforme declaração feita na ata da audiência prévia do processo de inventário para partilha de bens de divórcio. 1.3. Juntou documentos (nomeadamente, a cópia simples da ata de audiência prévia de 14.02.2022). 2. Na sua contestação, a Ré BB: invocou a exceção de litispendência, pugnando pela sua absolvição da instância, por entender que existe identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre o objeto desta ação e o objeto da reclamação da relação de bens apresentada no processo de inventário (de que junta cópia simples); impugnou por falsidade os factos alegados na petição inicial desde o art.8º (nomeadamente o trecho transcrito da ata de 14.02.2022) e os documentos juntos com a petição inicial. 3. O autor respondeu, pugnando pela improcedência da exceção deduzida, por entender: não existir identidade de pedido e de efeito pretendido entre os pedidos declarativos desta ação e aqueles de um inventário para partilha; ser esta a única via passível de acautelar o seu direito, uma vez que a ré não reconheceu no processo de inventário que os bens eram próprios; não haver prova suficiente no processo de inventário, caso em que o mesmo ser suspenso para que se decida a presente ação. 4. Foi solicitada a informação sobre a data de citação do réu em inventário, informação esta prestada. 5. A 22.02.2023 foi proferida decisão, na qual o Tribunal a quo decidiu, na fase do saneamento:
«Apreciando e decidindo:
Nos termos do art. 580.º, n.º 1, do CPC, a litispendência pressupõe a repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso. A litispendência deve ser deduzida na ação proposta em segundo lugar, considerando-se proposta em segundo lugar a ação para a qual o réu foi citado posteriormente (art.º 582.º, n.ºs 1 e 2). O artigo 581.º prevê os requisitos da litispendência (como também do caso julgado).
Assim, refere o nº 1 que “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”. “Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” – nº 2.
“Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico – nº 3.
“Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” – nº 4.
A exceção dilatória da litispendência visa obstar a que a mesma questão jurídica, materializada na formulação da mesma pretensão, com base na mesma factualidade, seja objeto de duas ou mais ações que tenham as mesmas partes, e a sua verificação conduz à absolvição da instância. (Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1980, pág. 306). Estes princípios estão consagrados no n.º 2 do mesmo artigo, quando refere “Tanto a exceção da litispendência como a de caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”, como é reconhecido tanto pela doutrina como pela jurisprudência.
Em princípio, o âmbito da litispendência é o mesmo que o do caso julgado. Todavia é-o apenas em princípio, pois há que atender à função de cada um dos elementos que concorrem para a solução dentro de um e outro instituto. O que interessa, essencialmente, é o que constitui o objeto da ação e não questões de natureza prejudicial ou de defesa. Haverá litispendência e caso julgado para os pedidos que venham a formular-se na ação e em qualquer momento. Ter-se-á de analisar causa de pedir e pedidos em função da litispendência e caso julgado, que podem não ser coincidentes. (Anselmo de Castro, Direito Processo Civil, Vol. II, pag. 245 e segts).
Segundo Alberto do Reis, CPC. Anotado, Vol. III, 1950, pág. 95, quando haja dúvidas sobre a identidade das ações, deve presidir o critério, deve lançar-se mão do princípio segundo o qual o tribunal pode correr o risco de contradizer ou reproduzir decisão proferida na primeira ação. Se isso acontecer, então estaremos perante duas ações idênticas. Por sua vez, Antunes Varela, em Manual de Direito Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pag. 302, põe em destaque, para efeitos de sabermos se estamos perante repetição de ações, o elemento formal (identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido) e a diretriz substancial consignada no artigo 580.º n.º 2 do CPC., traduzida no perigo de o tribunal ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. E, foca não só a ação no plano do pedido, mas também nos fundamentos da defesa, como sejam exceções perentórias que interfiram com a prossecução ou não do pedido. E, se porventura os fundamentos de defesa vierem a ser causa de pedir noutra ação em que aquele que era réu na primeira ação passou a ser autor na segunda, apesar de não haver identidade de pedidos, a questão central de o tribunal ser colocado em contradizer ou reproduzir uma decisão anterior é patente, segundo este autor. E, sendo assim, justificam-se a litispendência e o caso julgado para evitar este perigo.
E neste sentido, é dominante a jurisprudência do STJ. em que destaca, como fundamentos da litispendência e do caso julgado, para além do elemento formal (identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido), o elemento material consignado no artigo 580.º n.º 2 do CPC. E dá-lhe ênfase de molde a que prevaleça, em certos casos, sobre o elemento formal. O que interessa para esta jurisprudência é saber se exista ou não perigo de o tribunal se contradizer ou reproduzir decisão anterior. Basta essa possibilidade, para que se justifiquem as exceções dilatória de litispendência e caso julgado. O essencial é a relação jurídica fundamental, o direito que se discute nas duas ações para se aquilatar da identidade das ações (conferir, entre outros, Ac. STJ, 8/04/1997, www.dgsi.pt, relator – Torres Paulo; Ac.STJ. 6/06/2000, www.dgsi.pt, relator – Garcia Marques; Ac. STJ. 13/05/2003, www.dgsi.pt, relator - Pinto Monteiro; Ac. STJ. 29/04/1999, www.dgsi.pt, relator - Noronha Nascimento; Ac. STJ. 2/11/2006, www.dgsi.pt, relator - Pereira da Silva).
Depois de expostos os pontos de vista na doutrina e jurisprudência, ressalta que é indispensável, para a determinação da identidade das ações, para efeitos da litispendência, que se conjugue o elemento formal com o material de molde a que sobressaia, em cada caso, a relação jurídica fundamental, em discussão em cada processo.
No caso em apreço, existe identidade de sujeitos em ambas as ações, porquanto os aqui autor e ré atuam na mesma qualidade jurídica; ocupem a mesma posição jurídica quanto à relação substantiva, sendo que a aqui ré apresentou a relação de bens no inventário figurando como contraparte e reclamante o aqui autor. São nas duas ações, os titulares da relação jurídica material controvertida e portadores do mesmo interesse substancial. Existe identidade de pedido (ou objetiva) porquanto numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico, sendo idêntica a providência jurisdicional solicitada pelo autor em ambas as ações; na presente ação pede que se declare o seu direito de propriedade exclusiva sobre as frações ... e ... (correspondentes às verbas 10º e 11º); no inventário, pretende se exclua da partilha essas verbas que considera bens próprio, ou seja, que se partilhe o património comum do casal dissolvido por divórcio; cabendo aí determinar qual o acervo patrimonial conjugal a partilhar, tal pressupõe necessariamente a determinação de todos os bens propriedade dos cônjuges e se são bens próprios ou comuns do casal, pois que só os comuns são para partilhar; o êxito de cada uma das pretensões passa, em ambas as ações, pelo reconhecimento de quais os bens que são próprios do Autor.
Existe identidade de causa de pedir: a causa de pedir de ambas as ações é precisamente a mesma - o divórcio das partes e seu efeito relativamente ao património dos cônjuges.
O raciocínio do autor exposto na réplica não se mostra de acolher. Em sede de processo de inventário, e da relação de bens nos termos do art.º 25.º da Lei 23/2013, quaisquer bens pertencentes aos cônjuges interessados são potencialmente suscetíveis de serem relacionados como bens que integram o património comum do casal e, por maioria de razão, os adquiridos na constância do vínculo matrimonial, como aqueles que o recorrente reivindica na presente ação. Se, de acordo com o direito substantivo aplicável, tais bens devem considerar-se próprios de um dos cônjuges e, como tal, excluídos do acervo a partilhar, é questão a resolver no âmbito do processo inventário, conforme o disposto no art.º 32.º, n.º 1, al. b), 35.º e 36.º, todos da Lei 23/2013. Só quando o notário se abstém de decidir e remete os interessados para os meios judiciais comuns (n.º 1 do art.º 36.º) ou, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às ações competentes (n.º ... do mesmo artigo), se permite às partes discutir em ação com processo comum a propriedade daqueles bens cuja relacionação não foi objeto de acordo. Se assim não fosse, sempre persistiria o risco de, em sede de inventário os bens em crise poderem vir a ser declarados comuns, e próprios na ação comum, ou vice-versa.
Nem fará sentido argumentar que a presente ação tem como causa de pedir o reconhecimento dos bens próprios, que advieram ao seu património próprio, porque esse é precisamente o quod demonstrandum est, quer na presente ação, quer no processo de inventário, verificando-se todos os pressupostos da litispendência entre ambas as ações.
No entanto, sabido que no processo do processo de inventário nº ...7..., que corre termos atualmente no Juízo de Família do Tribunal Judicial ..., foi aquele em que o ali réu foi citado primeiramente (14/09/2016), dúvidas não subsistem que a exceção de litispendência deve ser julgada procedente.
Em face do exposto julgo procedente a exceção de litispendência invocada pela ré na sua contestação e absolvo a mesma da instancia.
Custas pelo autor, fixando em 2 UCS a taxa de justiça.
Registe e Notifique.
G., d.s.». 6. O autor interpôs recurso da decisão de I-3 supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«I. Do recurso da matéria de direito:
1- A finalidade da litispendência é a de obviar a que o afirmado pelo tribunal numa ação seja reproduzido ou contrariado pelo que se venha a afirmar pelo mesmo ou por outro tribunal noutra ação, sendo este um critério a utilizar para efeitos de aferir de uma situação de litispendência, para lá mesmo do critério formal da tríplice identidade enunciada no art. 581º/1 do NCPC.
2- A litispendência pode ocorrer em situações em que se registe uma identidade material de objeto entre a questão fundamental de uma e outra de outra, apesar de inexistir uma rigorosa identidade formal do pedido feito nas duas ações.
3- Ainda assim, do que a exceção de litispendência não prescinde é que em duas ações distintas tenham sido deduzidos pedidos de que resulte a identidade material de objeto supra referida.
4- O Autor/recorrente discorda da douta sentença recorrida, pois no seu entender não se verifica a exceção de litispendência, porquanto nas duas ações, o pedido e a causa de pedir, não são idênticos, requisito que constitui verdadeiramente o pomo da discórdia.
5- A causa de pedir no processo de inventário é a divisão dos bens comuns do casal dissolvido, e corre termos no Tribunal Judicial ..., com o processo nº 448/17...., regulando-se pelas disposições legais da Lei nº 117/2019, de 13 de Setembro, e as disposições gerais e comuns do CPC.
6- Em contrapartida, a causa de pedir no presente processo (ação comum), é o reconhecimento dos bens próprios do Autor, que advieram ao seu património próprio, na constância do casamento, o qual, foi realizado sob o regime de comunhão de adquiridos, mas que lhe pertencem por direito próprio, são bens próprios, sendo que, os bens próprios não podem ser relacionados em sede de inventário, nos termos do art. 1098º do CPC.
7- Portanto, não há identidade de pedido e muito menos se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
8- No âmbito do processo de inventário a causa de pedir são os direitos qualificados como comuns, enquanto, que na ação comum, a causa de pedir é a condenação da Ré, a reconhecer a propriedade dos bens próprios, que entraram no património próprio do Autor, na constância do casamento, mas, já existiam antes do casamento, sendo que os bens imóveis foram adquiridos com dinheiro próprio de solteiro, e não conjunto ao casal dissolvido, nos termos do art° 944° do Código Civil, pelo que, a causa de pedir tem a sua essência no direito nos termos do art. 1722°, do Código Cível.
9- Não ocorre a mesma causa de pedir em ambas as ações, isto porque, a causa do pedido nos presentes autos é a condenação da Ré ao reconhecimento do direito de propriedade de bens próprios, muito diferente no âmbito do processo de inventário, que não é uma ação de condenação, em que o objeto do processo visa a partilha dos bens comuns entre os ex-cônjuges, e apenas são relacionados os bens cuja titularidade pertença a ambos os cônjuges à data em que foi proferida a sentença de dissolução do casamento por divórcio e não a condenação, não se relacionando os bens próprios de cada dos cônjuges.
10- No inventário somente se dirime a necessidade ou não de tais bens serem incluídos na relação de bens, por terem sido adquiridos já na pendência do extinto casamento, havido entre Autor e Ré, por força de tal aquisição, os bens têm, sem outras considerações, de ser mencionados na relação de bens, mas este não decidiu da sua propriedade.
11- Tanto mais que, na ata de conferência de interessados datada de 14.02.2022, vemos que o Tribunal de Família e Menores acaba por não decidir se os bens imóveis vão efetivamente ser partilhados, ponderando que os aludidos bens imóveis foram adquiridos com dinheiro próprio do Autor.
12- Como tal, a ação declarativa comum era a única forma que o Autor/recorrente tinha de acautelar o seu direito, antes mesmo de ver o inventário decidido e os bens partilhados, já que a Ré, os relacionou como bens comuns, e rejeita que os mesmos foram adquiridos com dinheiro próprio do Autor.
13- Assim, não há dúvidas que esta questão terá de ser provada em juízo, o que nos permite chegar à conclusão que, apesar de o Tribunal de Família e Menores apesar de não remeter expressamente para os meios comuns, salvaguarda a possibilidade de essa questão ser mais alargadamente apreciada num tribunal em juízo.
14- Sendo estes autos, o local próprio para dirimir de tal matéria, até porque aquela complexa questão (fixação da propriedade do património) só pode ser aferida em sede de julgamento judicial, onde tudo é muito mais pormenorizado e no qual os meios probatórios são sujeitos a efetivo contraditório.
Contudo e sem prescindir,
15- Mas ainda que pudesse estar em causa uma situação de litispendência entre o inventário e a presente ação, essa situação não pode existir pois ao concluir-se pela prejudicialidade de uma ação, tem que se ter como pressuposto que a outra ação não versa sobre a mesma a mesma questão mas antes sobre outra que necessita daquela outra para poder ser decidida. (Ac. da R. L. de 20/12/2017, www.dgsi.pt)
16- Ou seja, a possibilidade legal de se intentar uma ação declarativa enquanto não está definitivamente decidida a questão no inventário determina que não ocorre a alegada litispendência.
17- Face ao exposto, não ocorre litispendência de causa de pedir, nos termos dos n.°s 1 e e 3, do artº 581° do NCPC, e, muito menos, ocorre exceção dilatória, nos termos da al. i) do artº 577° do NCPC, devendo a ação prosseguir os seus trâmites.
18- A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, os artigos 577º, al. i) e 581º, n.°s 1 e 3, e 1098º do NCPC.
19- Pelo que, deve ser proferido douto acórdão que revogando a sentença recorrida, substituindo-a por outra que, julgue a inexistência da exceção de litispendência, e em consequência ordene que a ação prossiga os seus trâmites, com as consequências legais.
Termos em que, deve o presente recurso ser
julgado procedente, revogando-se em consequência a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra
que, julgue a inexistência da exceção de litispendência, e em consequência ordene que a ação prossiga os seus trâmites, com as consequências legais.
Assim se decidindo farão V.as Ex.as Venerandos Desembargadores, a habitual
JUSTIÇA!».
7. A ré/recorrida respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
«A – A Douta Sentença, não nos merece qualquer reparo, pelo que a Apelação deverá ser julgada improcedente;
B – O artigo 581º do CPC, no nº 1, diz o seguinte: “Repete-se a causa, quando se propõe uma acção idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
C – Na verdade, correm termos pelo Juízo de Família e Menores ..., os autos de inventário nº ...7...;
D – Em que são partes o Apelante e a Apelada.
E – No âmbito dos referidos autos de inventário, foi relacionado o Activo e o Passivo do extinto matrimónio;
F – Os bens que o Apelante identifica no artigo 7º da p.i., corresponde às verbas 10 e 11º, verbas relacionadas como bens comuns, nos autos de inventário;
G – Os referidos autos de inventário foram propostos no ano de 2017.
H – Nos referidos autos de inventário, o Apelante reclamou da relação de bens, designadamente, quanto à comunicabilidade dos referidos bens identificados no artº 7º da p.i.;
I – Na reclamação oportunamente efectuada, o Apelante alegou que os referidos bens eram bens próprios;
J – Nos presentes autos, o Apelante pretende que o direito de propriedade dos imóveis, seja reconhecido como sendo bens com natureza própria;
L – Ora, existe identidade de causa de pedir e de pedido;
M – A causa de pedir tem por base o divorcio existente entre Apelante e Apelada e consequente efeito sobre o património do extinto matrimónio;
N – Os bens referidos no artº 7º da p.i., são bens adquiridos na constância do matrimónio e como tal vigora a presunção da comunicabilidade, prevista no artº 1725 do CC;
O – É no processo de inventário que as questões resultantes da natureza dos bens, devem ser dirimidas.
P – Nos presentes autos, o Apelante pretende que os bens relacionados como comuns, sejam declarados e reconhecidos como bens próprios.
Q – Nos autos de inventário, o Apelante também reclamou, com a mesma fundamentação;
R – O ónus de prova pertence ao Apelante, sendo certo que não juntou qualquer prova, relativa à alegada natureza própria dos referidos bens;
S – O Apelante tece considerações infundadas, quando alega “salvaguarda a possibilidade de esta questão ser mais alargadamente apreciada num tribunal em Juízo”,
T – Pois, nos autos de inventário e designadamente no âmbito da Audiência Prévia, ainda em curso, nunca foi emitido qualquer juízo e/ou declaração pelo Tribunal nesse sentido.
U – O Apelante tenta de forma ardilosa induzir a convicção do Julgador, quando alega “..que o Tribunal de Família e Menores acaba por não decidir se os bens imóveis vão efectivamente ser partilhados, ponderando que os aludidos imóveis foram adquiridos com dinheiro próprio do Autor…”
V – NADA MAIS FALSO!!!
X – A Audiência Prévia efectuada no âmbito dos autos de inventário, que teve o seu início em 14.02.2022, foi designada para serem pedidos elementos bancários, citação de credores referente ao passivo que o Apelante alegou e ainda para a realização da perícia colegial para apuramento do valor da casa de morada de família;
Z – Ora, o Relatório da perícia colegial só foi apresentado em 09.09.2022 e a designação de data para a continuação da Audiência Prévia, agendada para 05.01.2023;
Y – No âmbito da Audiência Prévia, realizada em Janeiro de 2023, chegou-se a uma proposta de acordo de resolução de todas as questões pendentes;
AA – No entanto, quanto aos bens comuns, nos quais estão incluídos os identificados no artº7 da p.i.;
BB – Continuam arrolados como bens comuns, não tendo sido efectuada qualquer prova em sentido contrário, pois o ónus de prova é do Apelante e também ainda não houve qualquer decisão quanto à reclamação efectuada pelo Apelante;
CC – O Apelante com a propositura de acções judiciais, com identidades de partes, causas de pedir e de pedidos, tenta obter decisões judiciais que possam contrariar o objecto dos autos de inventário;
DD – A listispendência como excepção dilatória que é, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, cfr. o disposto nos artº 576º nº 2 e 577 i) do CPC;
EE – A consagração da litispendência obsta à inutilidade da repetição da decisão judicial, em processos diferentes, para a mesma acção e salvaguarda-se, também o prestígio da administração da justiça, contra o risco do grave dano que podia resultar do tribunal contradizer ou reproduzir outra decisão judicial, nesse sentido Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição 1985, pag. 301.
Pelo que, negando-se provimento, ao presente recurso, assim se fazendo uma correcta aplicação da Lei e a mais elementar JUSTIÇA».
8. O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo da decisão. 9. Subido o recurso a esta Relação e determinada a sua baixa para a fixação do valor processual da ação, o Tribunal a quo fixou o valor em € 130 000, 00. 10. Recebido o recurso nesta Relação, nos mesmos termos admitidos na 1ª instância, colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do C. P. Civil.
Definem-se, como questões a decidir: 1. Oficiosamente: se a decisão recorrida dispõe de matéria de facto provada ou passível de se julgar provada que permita reapreciá-la na perspetiva do objeto do recurso e, em caso negativo, qual a consequência jurídica. 2. Suscitada no recurso: se a decisão recorrida incorreu em erro de direito na decretação da existência de litispendência entre a presente ação comum e a ação de inventário.
III. Fundamentação:
1. Apreciação da existência ou não de fundamentação de facto da decisão recorrida e os seus efeitos: 1.1. Enquadramento jurídico:
As decisões judiciais devem ser fundamentadas, de acordo com o regime geral do art.154º do CPC e o regime especifico do art.607º do CPC.
De facto, de acordo com norma geral do art.154º do C. P. Civil, define-se, sob a epígrafe «Dever de fundamentar a decisão», que «1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.». Por sua vez, de acordo com a norma especial da sentença prevista no art.607º/3 a 4 do C. P. Civil, define-se que, após o relatório e a definição das questões a decidir, «3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.».
A violação dos deveres de fundamentação, nomeadamente de facto, gera a nulidade do art.615º/1-b) do C. P. Civil (que prescreve que a sentença ou o despacho é nulo quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.»), se a mesma for arguida pelo interessado, em reclamação se a ação não comportar recurso ordinário ou em recurso se a ação comportar recurso ordinário (arts.615º/2-a), a contrario, e 617º do CPC).
A Doutrina e a Jurisprudência têm entendido, para este efeito, de forma consensual: que esta falta de fundamentação que conduz à nulidade deve ser absoluta e não apenas deficiente ou medíocre[i], sendo que, quando a insuficiência de fundamentação corresponde à decisão da matéria de facto, esta pode ser suprida nos termos do regime legal expresso do art.662º/1-d) do C. P. Civil; que esta falta de fundamentação não se confunde com um erro de julgamento- erro de facto, invocável nos termos do art.640º do C. P. Civil ou nos termos do art.663º/2 do C. P. Civil em referência ao art.607º/4 do C. P. Civil, ou erro de direito, invocável nos termos do art.639º do C. P. Civil, erros esses a apreciar no mérito dos recursos.
Todavia, a violação dos deveres de fundamentação de facto pode ainda gerar a possibilidade de anulação oficiosa da decisão, por maioria de razão com o disposto no art.662º/1 e 2-c) do CPC (que prevê: «1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta»).
Esta anulação deverá ocorrer, assim: se a falta de julgamento de matéria de facto controvertida que seja relevante for absoluta (adere-se ao referido no Ac. RG de 07.06.2023, proferido no processo nº3096/17.2T8VNF-J.G1, relatado por Maria João Matos, que sumaria «II. A possibilidade de alteração oficiosa da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no art. 662.º, n.º 2, do CPC, não pode ser feita de forma tão ampla que pretira a garantia, legal e constitucional, do duplo grau de jurisdição na apreciação, julgamento e decisão da matéria de facto; e, assim, será inaplicável quando tenha ocorrido omissão absoluta de fundamentação de facto.»); se a falta da matéria de facto, ainda que seja passível de suprimento por aditamento nos termos do art.607º/4-2ª parte do CPC, ex vi do art.663º/2 do CPC, por ser objeto de prova plena, não puder ser suprida por os autos não disporem dos elementos probatórios para esse efeito.
1.2. Situação em análise: 1.2.1. Na decisão recorrida transcrita em I-5 supra, conforme se verifica pelo exame da mesma e pelo seu confronto com a jurisprudência disponível na dgsi.pt, o Tribunal a quo absolveu a ré da instância por considerar existir litispendência entre a presente ação declarativa com o objeto processual referido em I-1 supra e a ação de inventário nº...7..., mediante uma fundamentação na qual não discriminou quaisquer factos provados (salvo a indicação, na parte final da fundamentação de direito, da data de citação do réu na ação de inventário).
Assim, em particular, em relação aos dois processos em confronto, não se encontra provado, para além da falta de identificação das partes e interessados:
a) O conteúdo dos pedidos concretos e das causas de pedir das peças processuais relevantes de cada uma das ações (nomeadamente: a petição inicial da ação declarativa; a petição inicial do inventário, o requerimento de reclamação contra a relação de bens).
b) Os atos subsequentes relevantes do processo de inventário, que permitissem aferir, nomeadamente: a lei aplicável ao processo de inventário (qual a data da remessa do processo notarial para tribunal após 1 de janeiro de 2020); o estado do processo de inventário e a repercussão ou não nos presentes autos, nomeadamente, em relação à reclamação de bens (qual a resposta da interessada cabeça de casal à reclamação das verbas 10 e 11? O tribunal admitiu apreciar a reclamação de bens? Qual o conteúdo da audiência prévia e qual a posição do Tribunal perante as declarações da mesma, nomeadamente, em relação aos imóveis? Foi proferida decisão final ou de remessa para os meios comuns em relação às verbas nºs 10 e 11, caso a reclamação de bens tenha sido admitida?)
Desta forma, estamos perante uma absoluta falta de fundamentação de facto, com discriminação dos factos provados relevantes, que não deveria ter permitido ao Tribunal a quo conhecer a litispendência (nem permite a este Tribunal da Relação reapreciar de direito a referida decisão, conforme se reiterará em 2 infra). 1.2.2. A total omissão de matéria de facto provada referida em I- 1.2.1. supra, apesar de ser abstratamente suprível por documentos com força probatória plena que se encontrassem nos autos e tivessem sido contraditados (arts.371º do CC, art.607º/4-2ª parte ex vi do art.663º/2 do CPC), não poderá ser suprida, em concreto, por falta dos referidos documentos do processo de inventário.
De facto, os autos dispõem apenas, em relação aos atos processuais do inventário (à exceção da informação da citação do ex-cônjuge), de cópias simples:
a) De um requerimento de 08.07.2020 da notária a pedir ao tribunal a remessa do processo de inventário notarial para o Tribunal, ao abrigo do art.12º/2-b) da Lei nº17/2019, de 13 de setembro (fls.13 e 14) e da capa de inventário judicial (fls.35/v).
b) De um requerimento de reclamação à relação de bens de data não conhecida, na qual não consta a formulação de pedido em relação aos bens imóveis em relação aos quais foi invocada a qualidade de bens próprios no ponto 3) (fls.36 a 38) e de uma ata de audiência prévia de 14.02.2022 (fls.18 a 22), na qual consta que ambos os interessados do processo inventário declararam em relação a cada um dos bens imóveis relacionados em 10 e 11 (frações ... e ..., objeto destes autos) que «Existe é bem próprio do interessado», sem qualquer despacho do Tribunal em relação a estas declarações, documento e declarações aquelas que, por sua vez, foram impugnados neste processo (art.27º da contestação).
Estes documentos, para além de não integrarem uma certidão, não seriam suficientes para apurar os elementos relevantes referidos em III-1.2.1. supra.
Desta forma, este Tribunal da Relação não pode suprir a invalidade da decisão, que omitiu na totalidade a fundamentação de facto (com discriminação de factos provados). Pelo exposto, deve a decisão da 1ª instância ser anulada, nos termos do art.662º/2-c) do CPC, de forma a que o Tribunal a quo, após recolher todos os elementos/certidões necessários do processo de inventário em curso, conheça da arguida exceção de litispendência (ou caso julgado), com fundamentação de facto, que deve discriminar:
1) Em relação a esta ação declarativa:
a) As partes, o pedido e a causa de pedir;
b) A data de citação da ré.
2) Em relação ao processo de inventário:
a) Os interessados e o cabeça de casal;
b) A data de citação do interessado para os efeitos do inventário notarial e a data de remessa do processo para Tribunal para tramitação posterior, nos termos dos arts.11º a 13º da Lei nº117/2019, de 13 de setembro.
c) Os atos relevantes relativos à relação de bens e à reclamação, no que se referir aos imóveis objeto da ação de 1) supra (frações ... e ...), que permita apurar, nomeadamente: c1) Se as frações ... e ... foram relacionadas no inventário como bens comuns. c2) Se foi apresentada reclamação à relação de bens quanto às frações ... e ... (em que termos- qual o pedido e os fundamentos) e, neste caso afirmativo: se o cabeça de casal aceitou ou rejeitou a reclamação ou a invocação da qualidade de bens próprios (na resposta ou em ato subsequente, nomeadamente no ato indicado de 14.02.2022); se o Tribunal já apreciou o mérito da reclamação e, em caso afirmativo, em que termos; se o Tribunal, no caso de não ter apreciado de mérito a reclamação, se a está a tramitar e vai apreciar o mérito quanto às frações ... e ... ou se rejeitou a sua apreciação, por falta de pedido ou por ter decidido a remessa dos interessados para os meios comuns. 2. Apreciação dos fundamentos de direito do recurso:
A decisão recorrida, na única fundamentação apresentada, transcreveu (sem citação), a fundamentação de direito do acórdão da Relação do Porto proferido no processo nº14535/15.7T8PRT.P1, relatado por João Proença[ii] (com data de 06.04.2017 ou de 04.06.2017, consoante, respetivamente, a data indicada no formulário da disponibilização na dgsi.pt ou aposta na assinatura).
Nesta fundamentação, verifica-se, nomeadamente, que o Tribunal a quo: defendeu ser o inventário o meio próprio para discutir a natureza dos bens, sem que daí se tenha extraído qualquer qualificação distinta da litispendência; justificou essa defesa (através da transcrição acrítica da fundamentação do referido acórdão), com base na aplicação do regime do processo de inventário da Lei nº23/2013, de 5 de março, regime este que, todavia, foi revogado pelo art.10º da Lei nº117/2019, de 13 de setembro, entrada em vigor a 1 de janeiro de 2020, e é inaplicável aos processos que tenham sido instaurados no notário antes de 1 de janeiro de 2020, quando os mesmos tenham sido remetidos ao tribunal, nos termos do art.11º a 13º do referido diploma (sem que os pressupostos em concreto da aplicação da lei no tempo tenham sido apreciados); conheceu a litispendência, com base na existência abstrata dos dois processos (declarativo e de inventário), sem apreciar factos concretos que permitissem conhecer a situação completa referida em III-1.2.1. e 12.2. supra.
Esta decisão, ainda que tenha já elementos que parcialmente pudessem ser conhecidos, não pode ser reapreciada de direito em face da falta de todos os elementos de facto relevantes, com a consequência já referida em III-1.2.2. supra. IV. Decisão:
Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em anular a decisão recorrida, devendo ser proferido novo despacho de saneamento que conheça a existência ou inexistência da exceção dilatória apenas após a recolha de todos os elementos necessários do processo de inventário e através de decisão que integre fundamentação de facto, nos termos referidos em III-1.2.2. supra.
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Não havendo vencimento, a taxa de justiça da iniciativa processual já foi suportada pelo recorrente e dispensa-se o recurso de encargos e custas de parte (arts.530º/1 e 527º/1 do CPC).
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Guimarães, 28 de setembro de 2023
Assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta
Alexandra M. Viana P. Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade