MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU/MDE
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO DO MDE
REVISÃO E RECONHECIMENTO DA SENTENÇA DE CONDENAÇÃO
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL OU DA PENA
Sumário


I – Nos termos do artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, o MDE é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro da União Europeia com vista à detenção e entrega, por outro Estado-Membro, de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas da liberdade, cuja execução está sujeita ao princípio do reconhecimento mútuo.
II – O princípio do reconhecimento mútuo, com expressão normativa no artigo 82.º, n.º 1, do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia, radica num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros, de acordo com o qual “uma decisão validamente proferida por uma autoridade judiciária competente do Estado de emissão (autoridade judiciária de emissão), de acordo com a lei nacional aplicável, produz efeitos no território do Estado em que deva ser executada (Estado de execução), sujeita ao controlo da autoridade judiciária de execução, como se de uma decisão de uma autoridade judiciária deste Estado se tratasse”.
III – O MDE está, porém, sujeito a uma reserva de soberania, pois que as causas de recusa obrigatória e facultativa de execução do MDE previstas, respectivamente, nos artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, impõem ou permitem ao Estado Português a recusa da execução do mandado na decorrência da salvaguarda de interesses ligados à soberania penal do Estado da execução, à efectividade da sua jurisdição, ao respeito por princípios relevantes da natureza do seu sistema penal e a um campo (ainda) de resguardo e protecção dos seus nacionais ou de pessoas que relevem da sua jurisdição.
IV – Os critérios a utilizar para recusar a execução do MDE com base na alínea g), do n.º 1, do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, não estão directamente fixados e devem “ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena … a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais”.
V – A ligação do requerido a Portugal, demonstrativa das vantagens no cumprimento da pena no nosso país, não equivale à existência de um direito de residência permanente, ou outro, no território do Estado de acolhimento, pois ali o que releva é a análise da situação concreta e não um critério que atenda apenas ao número de anos de residência.
VI – A Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, substituiu a revisão e confirmação de sentença estrangeira por um regime de reconhecimento de sentenças penais nas relações entre os Estados-membros da EU e, nos termos do n.º 4 do artigo 12.º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, o procedimento de reconhecimento da sentença condenatória deve ser enxertado no procedimento de execução do MDE, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.
VII – Apenas quando os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivaram a emissão do MDE é que é possível a recusa da sua execução por terem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena estabelecidos na lei portuguesa, conforme estabelece o artigo 12.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.
VIII – Quando se trate de reconhecer a sentença no processo de execução do MDE deve aplicar-se o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia mas com as devidas adaptações, que devem atender e respeitar o disposto na Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, tal como resulta dos artigos 26.º da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, e 12.º, n.º 4, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.

Texto Integral



Acordam os juízes de turno da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.



A – Relatório

1. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação apresentou requerimento para execução de Mandado de Detenção Europeu (MDE), emitido pela Autoridade Judiciária ..., relativo ao cidadão

… de nacionalidade ..., …, com residência em Portugal …

2. O referido mandado foi emitido a .../.../2021, para efeitos de cumprimento da pena de 1 ano de prisão, na sequência do requerido ter sido condenado, no Processo II K 772/15, por sentença de 19.1.2018 do Tribunal ..., transitada em julgado, por duas infracções qualificadas como crime de burla continuado, nos termos dos artigos 286º, nº 1, e 91º, nº 1, ambos do Código Penal ....

3. Procedeu-se à audição do requerido, nos termos e para os efeitos do artigo 18º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, com a sua comparência neste Tribunal da Relação, o qual, após ser esclarecido sobre a existência e o conteúdo do mandado de detenção europeu, sobre o direito que lhe assiste de se opor à execução do mesmo, os termos em que o pode fazer e as consequências de um eventual consentimento, bem como sobre a faculdade de renunciar ao princípio da especialidade, declarou não renunciar a este princípio e não consentir na sua entrega às autoridades de emissão.

4. O requerido solicitou prazo para apresentar, por escrito, a sua oposição, …

5. …, o requerido apresentou oposição ao presente mandado, alegando em síntese que:

- Os factos que justificaram a emissão do MDE e a inserção SIS, …, constituem também crimes tipificados na lei portuguesa, designadamente o crime de burla, p. e p. pelos artigos 217º e 218º do CPenal.
- … o requerido, … declarou que não consente na sua entrega às autoridades polacas.
- …
- Sem prejuízo do consagrado na Lei Portuguesa, nomeadamente no artigo 5º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, e salvo posição contrária, entende-se que o presente caso constitui, nos termos do artigo 12º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, motivo para a não execução facultativa do MDE.
- …, o requerido encontra-se a residir em Portugal, país onde tem habitação própria.
- … está a diligenciar no sentido de obter trabalho, estando habilitado para a categoria de técnico especialista. Reside em Portugal com familiares.
- Não manifesta intenção de abandonar Portugal, e eventualmente poder vir a cumprir em Portugal, a pena aplicada pelos Tribunais da ... naquela sentença.
- Encontram-se reunidas as condições para que o presente MDE possa vir a ser recusado pelas razões e de acordo com o artigo 12º da presente lei.
- Caso assim não se entenda, …, o período de detenção relativo ao MDE deve ser deduzido do período total da pena de privação de liberdade eventualmente aplicada – artigo 10º, nº 1, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.
- Pelo que se requer que seja comunicado à autoridade judiciária de emissão o período temporal de detenção do requerido, para efeitos de desconto na pena privativa da liberdade aplicada no estado de emissão – nº 2 do artigo 10º da Lei nº 65/2003, de 23.8.
- Nestes termos deve a execução do MDE ser recusada com fundamento na existência de causa de recusa, mais concretamente do artigo 12º, alínea g), da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, …;
- Caso assim não se entenda, deverá ser ordenada a notificação à autoridade judiciária de emissão do período de tempo da detenção a que foi sujeito o requerido em território nacional, nos termos do artigo 10º da supra citada Lei.

6. Os autos foram com vista, tendo a Ilustre Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal da Relação respondido à oposição deduzida pelo requerido, pugnando pela sua improcedência, alegando, em síntese, que:

- …, sequer poderá ser dada por assegurada uma efectiva e consolidada residência do requerido em Portugal, pois que apenas se sabe (e só pelo que declarou) que veio para Portugal em Novembro de 2020, ….
- Ora, para efeitos do disposto no artigo 12º, nº 1, al g), não sendo o requerido cidadão português, só poderia ser recusada a entrega se fosse residente em Portugal e, cumulativamente, o Estado Português se comprometesse a executar de imediato a pena de prisão constante do mandado de detenção dos autos.
- … o residente, à semelhança do nacional de um determinado país, deve residir no país em causa há um tempo suficientemente longo que permita criar laços sociais, laborais, familiares ou outros que confiram uma certa estabilidade e que fiquem seriamente prejudicados com a mudança que venha a ser imposta.
- Sobre a questão, que naturalmente tem como destinatários os cidadãos naturais e residentes no espaço europeu, foi publicada Directiva 38/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho de 29/03/2004 relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União Europeia nos territórios dos Estados respectivos.
- E de acordo com essa Directiva Comunitária, que foi transposta para Portugal através da Lei nº 37/2006 de 9/08, concretamente no artigo 10º do diploma legal nacional, um cidadão estrangeiro adquire um direito de residência permanente no território do Estado de acolhimento quanto tenha residido neste Estado por um período ininterrupto de 5 anos.
- Este é o critério legal, no âmbito das decisões comunitárias para a qualificação do conceito de residente, usado nos mais diversos diplomas que o exigem.
- …, não existem razões para se excepcionar o apontado critério legal …
- Estamos perante um pedido de detenção com vista ao cumprimento de uma pena de prisão em que o requerido foi condenado, tendo estado presente em julgamento, conforme atesta o mandado emitido.
- De resto, não estão verificadas, nem foram invocadas, outras causas de recusa.

7. Foi solicitado à DGRSP a elaboração de relatório sobre a integração do requerido em Portugal.

8. …, procedeu-se à apreciação e decisão, com a prolação do acórdão de 12.7.2022, concedendo-se provimento à oposição deduzida pelo requerido AA, julgando procedente a causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista na alínea g), do nº 1, do artigo 12º da Lei nº 65/2003 de 23 de Agosto, …

9. …, veio o Ministério Público interpor recurso do mesmo, na sequência do qual, a 1.8.2022, o STJ proferiu acórdão em que julgou parcialmente procedente o recurso, anulando o acórdão recorrido e ordenando que o mesmo fosse substituído por outro que procedesse ao reconhecimento da sentença estrangeira, uma vez cumpridas as pertinentes formalidades, assim se suprindo a nulidade detectada.

10. Após baixa dos autos a esta Relação, foram solicitados à entidade judiciária ... os elementos necessários ao reconhecimento da sentença; em concreto, cópia autenticada da sentença condenatória e da decisão que revogou a suspensão da execução da pena, bem como a certidão a que se refere o Anexo I da Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro.
11. Juntos tais documentos, deu-se cumprimento ao disposto no artigo 16º-A, nº 1, da Lei nº 158/2015, de 17.9, tendo vindo o requerido reafirmar a sua pretensão de cumprir a pena em Portugal. Frisou que também o Estado ... aceitou e admitiu a existência de condições para que tal pena se cumpra no nosso país.

12. Após os vistos legais, procedeu-se à presente apreciação e decisão.

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B - Fundamentação

Factos relevantes para a decisão:

1. O mandado de detenção europeu que nestes autos se pretende executar foi emitido a .../.../2021, pela Autoridade Judiciária ..., em concreto, pelo Tribunal da Comarca ..., ... Vara Criminal, tendo por base uma sentença proferida por este Tribunal, datada de 19.1.2018 e transitada a 20.2.2018, que condenou o requerido na pena de 1 ano de prisão, por duas infracções qualificadas como crime de burla continuado, nos termos dos artigos 286º, nº 1, e 91º, nº 1, ambos do Código Penal ....

2. O mandado de detenção europeu foi emitido, como dele consta, para efeitos de cumprimento da referida pena de 1 ano de prisão.
3. O mandado em causa contém:
a) - a identidade e nacionalidade do requerido;
b) - os elementos identificativos da entidade emissora, …
c) - os elementos relativos à decisão em que se baseia a ordem de detenção, decisão com força executiva;
d) - a descrição das circunstâncias em que as infrações foram cometidas. Em concreto:

e) a natureza e qualificação jurídica das infracções, como sendo crime de burla continuado, nos termos do artigo 286º, parágrafo 1 do Código Penal, relativamente ao artigo 91º, parágrafo 1, do mesmo diploma legal.
f) - o requerido esteve presente no julgamento que conduziu à decisão.

4. Do relatório da DGRSP junto aos autos … constam os seguintes factos com relevância para a presente decisão:
- AA reside na Rua ..., ..., ..., ... (atualmente encontra-se detido no Estabelecimento Prisional ...), desde novembro de 2020, onde vive com a esposa BB, de 47 anos, de nacionalidade ..., e CC, sua sogra, a qual integrou este agregado familiar em 22.04.2022, na situação de refugiada da guerra na .... Da avaliação efetuada, verifica-se uma relação de proximidade entre os elementos integrantes do agregado familiar, com sentimentos recíprocos de preocupação pela presente situação e uma relação de proximidade e de entreajuda, apesar do atual afastamento físico, decorrente da detenção do arguido.
- O requerido apresenta habilitações literárias ao nível do 12º ano de escolaridade, tendo, segundo informou, frequência universitária na ..., …
- … antes da detenção não se encontrava a trabalhar, referindo ter dedicado todo o seu tempo livre na recuperação da habitação onde reside e em tarefas agrícolas em regime de autossubsistência, com criação de animais para consumo próprio, cultura de cereais e arvenses.
- O requerido sobrevivia dos proventos relativos à venda de uma habitação que tinha na ..., onde o casal residiu. Estes proventos, segundo refere, foram canalizados para a aquisição da habitação na morada dos autos e para o início das obras de beneficiação da mesma, que têm sido realizados pelo requerido e que ainda não se encontram concluídas, …
- … começou a necessitar de iniciar uma atividade laboral em Portugal, tendo-se dirigido aos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras para regularizar a sua situação em território nacional e iniciar procura ativa de emprego, tendo sido, entretanto, detido.
- … segundo foi informado, CC sogra do requerido, candidatou-se a subsídio para refugiados, candidatura já aceite, pelo que irá beneficiar futuramente de uma prestação no valor de 189.00€/mês.
- A habitação onde reside é própria, de tipologia T1, constituída atualmente por 1 (um) quarto, sala e cozinha comum e uma garagem, divisão onde o requerido tem todas as ferramentas inerentes a sua atividade/formação laboral e a sua autocaravana, seu único meio de transporte.
- … Perspetiva-se num futuro próximo, a realização de mais alguns quartos no sótão da habitação, …
- … não se verifica relacionamento próximo com a generalidade da população devido à barreira linguística, privilegiando-se as relações com os vizinhos mais próximos, especialmente com DD, por ter formação superior, conhecimentos linguísticos e com quem têm uma relação de grande proximidade e apoio desta.
- …, existe conhecimento da reclusão … não se verificam quaisquer sintomas de alarme social relativamente ao requerido e ao seu agregado familiar.
- Em contexto de entrevista, manifestou ansiedade e preocupação pessoal, desde logo, quanto às eventuais consequências, nomeadamente quanto ao eventual cumprimento da pena na ..., …
- Do contacto com os Serviços de Tratamento Prisional do Estabelecimento Prisional ..., não se verificam quaisquer registos anómalos relativamente ao seu comportamento, nem quaisquer dificuldades de adaptação ao meio prisional. Ainda não beneficiou de visitas, por dificuldades de transporte da esposa.
- … o requerido efetuou pedido de contacto com os Serviços Consulares da ..., no sentido de ser apoiado na resolução da sua situação jurídica junto dos Tribunais daquele país.
- Dos contactos com a GNR ..., não se verifica a existência de situações de registo em seu desfavor, no que concerne ao cometimento de novos ilícitos criminais.
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5. A sentença mencionada no ponto 1, proferida a 19.1.2018 e transitada a 20.2.2018, condenou o requerido na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com a condição do arguido reparar parcialmente o dano, pagando ... à vítima EE e ... à vítima FF.

6. Por despacho de 21.1.2019, transitado a 1.3.2019, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão, em virtude do arguido não ter cumprido a condição, …

7. As decisões referidas nos pontos 5. e 6., acompanhadas da certidão cujo modelo consta do anexo I à Lei nº 158/2015, foram transmitidas a este Tribunal pela entidade judiciária ..., para reconhecimento e execução em conformidade com o disposto na Decisão-Quadro 2008/909/JAI de 27 de Novembro de 2008, transposta para o direito interno pela Lei n.º 158/2015, de 17 de Novembro.

8. …

9. O requerido esteve detido à ordem dos presentes autos de 2.6.2022 a 30.8.2022. Após esta data o arguido ficou sujeito às seguintes medidas de coação, que se mantêm actualmente:

“-Termo de identidade e residência;
-Obrigação de apresentação em posto policial da área da residência, três vezes por semana;
-Proibição de se ausentar da área da sua residência e, por conseguinte, também para o estrangeiro, sem prévia autorização deste tribunal.
…”.

10. O requerido esteve presente na audiência em que a sentença foi proferida.

11. A transmissão da sentença a este tribunal para o seu reconhecimento foi efetuada na sequência da oposição deduzida pelo requerido ao MDE, subsequente acórdão desta Relação e Ac. do STJ de 1.8.2022.

12. A entidade judiciária ..., na sequência do pedido dos elementos indispensáveis à revisão da sentença, por decisão de 23.6.2023, deferindo esse pedido, entendeu que “a execução da pena de 1 ano de prisão no território português permitirá alcançar os objectivos educativos e preventivos da pena em grau maior do que se esta fosse executada na .... Tendo um contacto permanente com a sua família, a pessoa condenada suportará muito melhor o período de isolamento e, além disso, poderá manter correctamente as relações familiares e controlar os seus assuntos pessoais” – cfr. referência citius 224586 de 5.7.2023.

13. Nos termos da legislação nacional do Estado de emissão, o requerido tem direito a libertação antecipada ou a liberdade condicional, tendo cumprido metade da pena.

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Motivação

O Tribunal formou a sua convicção com base nos documentos juntos aos presentes autos; em concreto, atendeu-se ao teor do mandado de detenção europeu, ao relatório elaborado pela DGRSP e ainda aos documentos enviados pela entidade judiciária ... a 5.7.2023 (…).

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Cumpre apreciar e decidir

Nos termos do artigo 1º, nºs 1 e 2, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, o mandado de detenção europeu (MDE) é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro da União Europeia (UE), com vista à detenção e entrega, por outro Estado-Membro, de uma pessoa procurada, para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas da liberdade, cuja execução está sujeita ao princípio do reconhecimento mútuo.
Este princípio “actualmente encontra expressão normativa no artigo 82º, nº 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), fundado “num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros”. O regime do MDE “aboliu” o processo formal de extradição entre os Estados-Membros da UE, baseado na Convenção Europeia de Extradição de 1957, o qual foi “substituído” por um “novo regime simplificado de entrega de pessoas condenadas ou suspeitas para efeitos de execução de sentenças ou de procedimento penal”, que permitiu “suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição” - cfr. Ac. do STJ de 26.6.2019, in www.dgsi.pt.
De acordo com o princípio do reconhecimento mútuo, “uma decisão validamente proferida por uma autoridade judiciária competente do Estado de emissão (autoridade judiciária de emissão), de acordo com a lei nacional aplicável, produz efeitos no território do Estado em que deva ser executada (Estado de execução), sujeita ao controlo da autoridade judiciária de execução, como se de uma decisão de uma autoridade judiciária deste Estado se tratasse” – cfr. aresto supra referido.
“Como tem sido afirmado na jurisprudência constante do TJUE, o princípio do reconhecimento mútuo assenta em noções de equivalência e de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da UE; nesta base, o Estado de execução encontra-se obrigado a executar o MDE que preencha os requisitos legais, estando limitado e reservado à autoridade judiciária de execução um papel de controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, a qual só pode ser negada em caso de procedência de qualquer dos motivos de não execução, que são apenas os que constam dos artigos 3.º, 4.º e 4.º-A da Decisão-Quadro 2002/584/JAI alterada pela Decisão-Quadro 2009/299/JAI (a que correspondem os artigos 11º, 12º e 12º-A da Lei n.º 65/2003, com a alteração da Lei n.º 35/2015, de 4 de Maio)… As noções de “confiança mútua” e “equivalência”, em que se funda o princípio do reconhecimento mútuo, extraem-se de princípios e regras comuns em resultado da transposição de instrumentos jurídicos da UE [decisões-quadro e directivas, que visam este resultado – cfr. artigo 31.º do Tratado da União Europeia (TUE), na redacção do Tratado de Amesterdão, e artigos 82.º, n.º 1, e 288.º TFUE] e de vinculação ao sistema de direitos fundamentais incorporados nos sistemas processuais penais nacionais dos Estados-Membros da UE [Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), do Conselho da Europa, e Carta dos Direitos Fundamentais da UE], que devem ser respeitados na execução do MDE” – cfr. o recente Ac. do STJ supra citado.
Ainda de acordo com o mesmo aresto, a disposição fundamental encontra-se no artigo 6.º TUE (redacção do Tratado de Lisboa): “1. A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (…) que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. Os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do Título VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições. (…) 3. Do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros”.
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…, a questão colocada pelo requerido na sua oposição é a de saber se a circunstância dele residir em Portugal justifica a recusa facultativa do Mandado de Detenção Europeu para cumprimento da referida pena de prisão, nos termos do artigo 12º, nº 1, alínea g), da Lei nº 65/2003, de 23.8.


No seu entender, estas circunstâncias constituem motivo para a não execução facultativa do MDE.

Vejamos se lhe assiste razão.

Para além das causas de recusa obrigatória de execução do mandado de detenção europeu, previstas no artigo 11º da Lei nº 65/2003, de 23.8, existem também as de recusa facultativa previstas no artigo 12º do mesmo diploma legal.
É o corolário de que o MDE está sujeito a uma reserva de soberania, que em alguns casos impõe ao Estado Português a recusa da execução do mandado (artigo 11º) e noutros lhe permite que o faça (artigo 12º).
Aos Estados é deixada a possibilidade de salvaguarda de alguns interesses ligados à soberania penal do Estado da execução, à efectividade da sua jurisdição, ao respeito por princípios relevantes da natureza do seu sistema penal e a um campo (ainda) de resguardo e protecção dos seus nacionais ou de pessoas que relevem da sua jurisdição.

“A lei não define, no entanto, no que respeita a algumas das causas, os fundamentos e os critérios para o exercício da faculdade, que é faculdade do Estado português como Estado da execução, como resulta da expressão da lei – a execução «pode» ser recusada.
Não são, porém, causas cuja aplicação releve da vontade ou do arbítrio. Poder recusar é, no contexto, faculdade vinculada se o tribunal considerar que se verificam as circunstâncias que fundamentam a recusa de execução; a faculdade não significa exercício discricionário, nem arbítrio, mas obrigação de decisão segundo critérios e vinculações normativos” – cfr. Ac. do STJ de 10.1.2013, in www.dgsi.pt.

Estipula o artigo 12º (com a epígrafe Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu), nº 1, alínea g), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, …

Como se afirma no aresto acabado de citar, “a disposição [da al. g) do nº 1 do art. 12º] tem de ser interpretada teleologicamente, e específica de um determinado modelo operativo de cooperação, deve ser sistematicamente compreendida nos limites do regime do mandado de detenção europeu. A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução. …
A decisão é, assim, deixada inteiramente ao critério do Estado da execução, que satisfará as suas vinculações europeias executando a pena aplicada a um seu nacional ou a pessoa que tenha residência nesse Estado, em lugar de dar execução ao mandado entregando a pessoa procurada ao Estado da emissão para execução da pena nesse Estado”.

Esclarecendo, a competência para decidir se está verificada uma causa de recusa de execução pertence ao tribunal, uma vez que o regime do mandado de detenção europeu está inteiramente jurisdicionalizado, não estando prevista qualquer intervenção ou competência prévia, condicionante ou acessória de qualquer outra entidade.
Assim, o Tribunal da Relação deverá verificar se, perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades da execução da pena, se justifica a recusa de execução do mandado, por haver vantagens no cumprimento das penas em Portugal segundo a legislação interna, na sequência do pedido formulado pela pessoa procurada.

O que nos encaminha para os critérios que devem ser utilizados para, fundamentadamente, recusar ou não a execução do MDE com base na alínea g), do nº1, do artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 23.8.

Não estando directamente fixados, tais critérios internos hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena. Uma primeira projecção sistemática poderá encontrar-se no artigo 40º, nº 1 do Código Penal e na afirmação da reintegração do agente na sociedade como uma das finalidades das penas. Nesta perspectiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais” – cfr. Ac. do STJ de 10.1.2013, in www.dgsi.pt.

Também no Ac. do STJ de 27.5.2010, in www.dgsi.pt, se afirma que “a reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade de compromisso que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado Português, encontrando-se o seu fundamento nos princípios de política criminal que comandam a aplicação das penas e, sobretudo, as finalidades da execução da pena. Fundamento que logo se poderá encontrar no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal e na afirmação da reintegração do agente na sociedade como uma das finalidades das penas. Nesta perspectiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais.

No mesmo sentido encontra-se o Ac. da RL de 20.5.2010, in www.dgsi.pt, onde se afirma que “a autoridade judicial competente, in casu este Tribunal da Relação de Lisboa, deverá verificar se, perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades da execução da pena, se justifica a recusa de execução do mandado, por haver vantagens no cumprimento da pena em Portugal segundo a legislação interna, na sequência do pedido formulado pela pessoa procurada”.

Como resulta do artigo 40º, nº 1, do Código Penal, uma das finalidades das penas é a de reintegração do agente na sociedade.

Resultou provado que:
- o requerido reside no nosso país, …, desde Novembro de 2020.
- Vive com a esposa, BB, de 47 anos, de nacionalidade ..., e com CC, sua sogra, a qual integrou o agregado familiar do requerido em 22.04.2022, …
- Verifica-se uma relação de proximidade entre os elementos integrantes do agregado familiar, com sentimentos recíprocos de preocupação pela presente situação e uma relação de proximidade e de entreajuda.
- O requerido apresenta habilitações literárias ao nível do 12º ano de escolaridade, tendo, segundo informou, frequentado a universitária na ..., …
- O requerido tem dedicado o seu tempo na recuperação da habitação onde reside e em tarefas agrícolas em regime de autossubsistência, …
- Tem sobrevivido dos proventos relativos à venda de uma habitação que tinha na ..., onde o casal residiu. …
- Começou a necessitar de iniciar uma atividade laboral em Portugal, tendo-se dirigido aos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras para regularizar a sua situação em território nacional e iniciar procura ativa de emprego, tendo sido, entretanto, detido.
- A habitação onde reside é própria, …
- A habitação encontra-se em fase de reconstrução, …, já apresenta boas condições de habitabilidade. …
- …, não se verifica relacionamento próximo com a generalidade da população devido à barreira linguística, privilegiando-se as relações com os vizinhos mais próximos, especialmente com DD, por ter formação superior, conhecimentos linguísticos e com quem têm uma relação de grande proximidade e apoio desta.
- O requerido manifestou ansiedade e preocupação pessoal, desde logo, quanto às eventuais consequências, nomeadamente quanto ao eventual cumprimento da pena na ..., …
- Dos contactos com a GNR ..., não se verifica a existência de situações de registo em seu desfavor, no que concerne ao cometimento de novos ilícitos criminais.


Da factualidade supra referida, pode concluir-se que, presentemente, o requerido não tem qualquer ligação à .... Apesar de aí ter familiares, não tem qualquer contacto com os mesmos ou o seu apoio, devido ao divórcio ocorrido aquando do seu primeiro casamento.
Assim, é em Portugal que o requerido tem o seu agregado familiar, que o apoia. É igualmente neste país que possui casa própria, que tem reconstruído. Tem-se dedicado a uma agricultura de subsistência e, antes da detenção, encontrava-se a diligenciar no sentido de conseguir um trabalho remunerado.
Na comunidade tem o apoio de, pelo menos, uma vizinha, que possui conhecimentos linguísticos e com a qual tem uma relação de grande proximidade.
Em Portugal, não lhe são conhecidos comportamentos desviantes, ou a prática de ilícitos criminais.
Ora, perante tal factualidade, dúvidas inexistem de que é no nosso país que o requerido será mais facilmente reintegrado na sociedade e, por isso, onde a finalidade da pena atinge uma maior eficácia.
O facto de não ter qualquer apoio na ..., sem dúvida que irá dificultar a sua reintegração social nesse país.
O cumprimento da pena de prisão próximo da esposa e da sogra permite a manutenção dos laços afectivos e familiares, com evidente vantagem para a reinserção na sociedade e para a atenuação dos riscos de reincidência.
Assim, a ligação do requerido ao nosso país, apesar de não ter muitos anos, permite, desde já, concluir que é nesta sociedade que deve e pode ser reintegrado.
Há, de facto, vantagens para o requerido que cumpra a pena em Portugal, justificando-se plenamente que o Estado Português se comprometa a executá-la.
Não está em causa a existência ou inexistência de um direito de residência permanente, ou outro, no território do Estado de acolhimento, como defende a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, mas sim, como se disse, a efectiva ligação do requerido ao nosso país, as suas condições concretas de vida, de forma a ajuizar onde será mais facilmente reintegrado na sociedade.
De facto, pode acontecer que um residente há 5 ou mais anos, no momento, não se encontre integrado na sociedade. Como também pode acontecer que um residente há 1 ou 2 anos se encontre completamente integrado. O relevante é a análise da situação concreta e não um critério que atenda apenas ao número de anos de residência.

Do que fica dito, resulta que existe fundamento bastante para recusar o cumprimento do mandado de detenção europeu emitido pela Autoridade Judiciária ... e execução da pena no nosso país.

*

Aqui chegados, cumpre, então, proceder à revisão e reconhecimento da sentença que condenou o requerido; mais precisamente a sentença que o condenou a 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução, e a decisão que revogou a suspensão da execução da pena de prisão.

Estipula o artigo 12º, nºs 3 e 4, da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto (Mandado de Detenção Europeu) que:

3 - A recusa de execução nos termos da alínea g) do n.º 1 depende de decisão do tribunal da relação, no processo de execução do mandado de detenção europeu, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada.
4 - A decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.
Por sua vez, com a epígrafe Execução de condenações na sequência de um mandado de detenção europeu, dispõe o artigo 26º da Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro (Regime Jurídico da Transmissão e Execução de Sentenças em Matéria Penal) que:
“Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, alterada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, o disposto na presente lei aplica-se, na medida em que seja compatível com as disposições dessa lei, à execução de condenações, se:
a) O mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena de prisão ou medida de segurança privativa de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional; ou …”.

Como se pode ler no Acórdão do STJ, de 1.8.2022, proferido nos presentes autos, “a decisão sobre o reconhecimento da sentença estrangeira é enxertada no acórdão que decide sobre o mandado de detenção europeu. Não pode haver execução da sentença sem o reconhecimento, e sem execução da sentença inexiste a possibilidade de recusa da entrega do condenado.
Como se decidiu no acórdão do STJ de 22-06-2022 (relator Lopes da Mota), I - A recusa facultativa de entrega da pessoa condenada ao Estado de emissão no processo de execução de um MDE emitido para cumprimento de pena de prisão aplicada no Estado de emissão, prevista na al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, requer dois requisitos cumulativos: a nacionalidade portuguesa da pessoa procurada e o compromisso do Estado Português em executar a pena em Portugal. II - Sendo o processo de execução do MDE inteiramente jurisdicionalizado, o compromisso de execução da pena de prisão em Portugal satisfaz-se mediante decisão do tribunal da relação competente para a execução do MDE que, no processo de execução do MDE, reconheça a sentença condenatória proferida no Estado de emissão, confirmando a pena aplicada, assim lhe conferindo força executiva (art. 12.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, de 23-08, na redação da Lei n.º 35/2015, de 04-05, e n.º 4, na redação da Lei n.º 115/2019, de 12-09).
No caso analisado pelo Supremo no acórdão acabado de citar, o requerido tinha a nacionalidade portuguesa, mas esse primeiro requisito surge aqui na modalidade de “residente no país da execução”, diferença que não releva para a resolução do problema em análise.
Importante, sim, é a afirmação da exigência dos dois requisitos cumulativos e os critérios para a densificação de tais requisitos”.

Assim, por um lado, a Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro, substituiu a revisão e confirmação de sentença estrangeira por um regime de reconhecimento de sentenças penais nas relações entre os Estados-membros da EU.
Por outro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 115/2019, de 12 de Setembro, o nº 4 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, deixou bem claro que o procedimento de reconhecimento da sentença condenatória deve ser enxertado no procedimento de execução do MDE, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença.

A ser assim, vejamos as normas da Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro, relevantes para a presente decisão.

Estipula o artigo 13º, nºs 1 e 2, do referido diploma legal que:


No caso concreto, face à residência do arguido, é este Tribunal da Relação o competente para reconhecer a sentença, sendo o respectivo juízo da Comarca ... o competente para a executar.

Dispõe o artigo 16º, nºs 1, 3, 4 e 5, do mesmo diploma, que:



No caso concreto, pela natureza do procedimento de reconhecimento (subsequente ao deferimento da oposição deduzida pelo requerido no âmbito do procedimento do MDE), o M.P. inicialmente não o requereu. Porém, após a prolação do acórdão do STJ e junção aos autos dos elementos necessários ao reconhecimento, o M.P. acabou por promover que se procedesse à revisão da sentença e que se determinasse a execução da pena, com desconto do tempo de detenção sofrido à ordem deste processo.
Nem a natureza nem a duração da condenação são incompatíveis com a lei interna, não havendo que efectuar qualquer adaptação (relembra-se que o crime em causa é o de burla).

Como se disse supra, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 16º-A do mesmo diploma, reafirmando o arguido a sua pretensão de cumprir a pena em Portugal.

Com a epígrafe Motivos de recusa de reconhecimento e de execução, estipula o artigo 17º, nº 1, da mesma Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro, que:

1 - A autoridade competente recusa o reconhecimento e a execução da sentença quando:



Como se disse, a certidão encontra-se em conformidade, devidamente preenchida e traduzida. Os factos por que o arguido foi condenado já tinham sido transmitidos no âmbito do MDE.
O requerido encontra-se a residir em Portugal e deu o seu consentimento para o reconhecimento.
Não existem quaisquer factos que indiquem existir uma violação do princípio ne bis in idem.
Os factos em causa, constituem igualmente infracção criminal à luz da nossa lei (crime de burla).

Nos termos da alínea e) da norma em análise, “a autoridade competente recusa o reconhecimento e a execução da sentença quando a pena a executar tiver prescrito, nos termos da lei portuguesa”.

Acontece que, nos termos do artigo 12º, nº 1, alínea e), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, “a execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando tiverem decorrido os prazos de prescrição do procedimento criminal ou da pena, de acordo com a lei portuguesa, desde que os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção europeu”.

O que nos remete para o disposto nos artigos 4º a 6º do Código Penal, de onde se conclui que o caso sub judice não se enquadra em nenhuma das referidas normas. Isto é, os tribunais portugueses não são competentes para o conhecimento dos factos que motivaram a emissão do mandado de detenção europeu em causa nestes autos.

Assim, como se refere no Ac. do STJ de 9.1.2013, in www.dgsi.pt, “somente quando os tribunais portugueses sejam competentes para o conhecimento dos factos que motivam a emissão do MDE é que se aplicam os prazos de prescrição do procedimento criminal (ou da pena), de acordo com a lei portuguesa”.
No mesmo sentido pode ler-se no AC. do STJ de 9.1.2008, in www.dgsi.pt, que “a causa de recusa facultativa de execução do MDE prevista na al. e) do n.º 1 do art. 12.º da Lei 65/03, atinente à prescrição do procedimento criminal e da pena, tem por pressuposto que os tribunais portugueses sejam competentes para conhecimento dos factos que motivam a emissão do mandado de detenção”.

Deve, então, ponderar-se qual das normas deve ser aplicada ao caso concreto. Se a do artigo 12º, nº 1, alínea e), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, ou a da alínea e), do nº 1 do artigo 17º, da Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro, já que têm redacções distintas.

Adiantando uma resposta, dúvidas inexistem de que a norma a aplicar é a do artigo 12º, nº 1, alínea e), da Lei nº 65/2003, de 23.8.
De facto, como se refere expressamente no já citado artigo 26º da Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro, o disposto nesta lei aplica-se sem prejuízo do disposto na Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.
Melhor dizendo, e citando o mencionado artigo 26º, “sem prejuízo do disposto na Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, alterada pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, o disposto na presente lei aplica-se, na medida em que seja compatível com as disposições dessa lei, à execução de condenações, se …”.
No mesmo sentido se encontra o nº 4 do artigo 12º da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, quando refere que “a decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença”.
De facto, quando se trata de reconhecer a sentença no processo de execução do mandado de detenção europeu, deve aplicar-se o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, é certo, mas com as devidas adaptações. Adaptações essas que devem atender e respeitar o disposto na Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto.

É o que resulta da análise conjunta das normas acabadas de mencionar. Sendo assim, é irrelevante averiguar da prescrição da pena.

No mais, não se verifica, igualmente, qualquer outra causa de recusa prevista no artigo 17º da Lei nº 158/2015, de 17 de Setembro.
Estão, assim, verificados todos os pressupostos para o reconhecimento e execução da sentença e despacho sub judice, em território português.

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Pelo exposto, encontrando-se preenchidos todos os pressupostos para a recusa da execução do presente MDE, nos termos do artigo 12º, nº 1, alínea g), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, deve ser julgada procedente a oposição do requerido.

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C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em:

- reconhecer a sentença proferida pelo Tribunal da Comarca ..., ... Vara Criminal, proferida a 19.1.2018 e transitada a 20.2.2018, que condenou o requerido na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos, com a condição do arguido reparar parcialmente o dano, pagando ... à vítima EE e ... à vítima FF, bem como o despacho de 21.1.2019, transitado a 1.3.2019, que revogou a suspensão da execução da pena de prisão, em virtude do arguido não ter cumprido a condição, e que ordenou o cumprimento da referida pena de 1 ano de prisão;

- conceder provimento à oposição deduzida pelo requerido AA, julgando procedente a causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista na alínea g), do nº 1, do artigo 12º da Lei nº 65/2003 de 23 de Agosto;

- recusar a entrega do requerido à Autoridade Judiciária ..., por força do Mandado de Detenção Europeu sub judice, emitido a .../.../2021, pelo Tribunal da Comarca ..., ... Vara Criminal, para cumprimento da pena de 1 (um) ano de prisão;

- ordenar que a execução dessa pena decorra em Portugal de acordo com a lei portuguesa.

A execução da pena será acompanhada pelo Tribunal da Comarca da residência do requerido, devendo para o efeito, após trânsito, remeter a esse tribunal certidão integral dos presentes autos, de forma a permitir que estes permaneçam nesta Relação.

No cumprimento da pena deve ser descontado o tempo de detenção sofrido à ordem dos presentes autos (2.6.2022 a 30.8.2022).

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Sem custas, por não serem devidas.

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Notifique, incluindo o M.P., a autoridade judiciária de emissão, o requerido e respectivo mandatário.
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Informe ainda a autoridade judiciária de emissão, face ao por si requerido, do teor do artigo 61º do Código Penal.
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Coimbra, 8 de Agosto de 2023.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

Rosa Pinto – Relatora

João Novais – 1º Adjunto

Cristina Neves – 2ª Adjunta