I - Quando, nas decisões proferidas pelas instâncias, se afigura possível delimitar diversos segmentos decisórios distintos e autónomos, tais segmentos decisórios devem ser analisados separadamente para o efeito da verificação da (in)existência de dupla conformidade decisória.
II - Segundo a jurisprudência consolidada do STJ, a dupla conformidade decisória das instâncias não se verifica quando se invoca a violação pelo tribunal da Relação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto.
III - O STJ tem entendido aplicar-se o prazo de prescrição quinquenal previsto no art. 310.º, al. e), do CC, às dívidas fracionadas, liquidáveis em prestações e, por isso, às obrigações híbridas ou mistas, normalmente acordadas no mútuo bancário.
IV - Vale o princípio da proibição da reformatio in pejus (segundo o qual, grosso modo, o recorrente não pode perder mais no tribunal ad quem do que perdeu no tribunal a quo em ordem a garantir o próprio direito ao recurso).
V - O sistema de recursos é decisivamente informado pelo princípio dispositivo, sendo nulo o acórdão que exceder o âmbito das questões de que lhe cabe conhecer (arts. 615.º, n.º 1, al. d), e 666.º, do CPC), salvo se forem de conhecimento oficioso.
VI - O aditamento oficioso pelo tribunal da Relação à factualidade considerada como provada de outra matéria, ao abrigo do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. b), do CPC, não tendo nenhuma das partes impugnado esta parte da decisão da matéria de facto nas alegações dos respetivos recursos de apelação, conformando-se com a mesma, configura o vício de nulidade da decisão por excesso de pronúncia. Ainda que assim se não entenda, mesmo que que se considere que o excesso de pronúncia se reporta unicamente a questões de direito e não a factos, estaria em causa um uso indevido ou deficiente, pelo tribunal da Relação, dos poderes que a lei lhe atribui.
1. AA, BB e CC deduziram contra a Exequente Ares Lusitani – STC, S.A., oposição à execução e à penhora.
2. Alegaram, em síntese, que a dívida exequenda se encontra prescrita, em virtude de ter já decorrido o prazo de cinco anos previsto no art. 310.º, als d), e) e g), do CC; que, no âmbito dos contratos de mútuo celebrados com a Caixa Económica Montepio Geral, foi acordado que o reembolso da quantia mutuada fosse efetuado em prestações mensais que integravam uma parcela de capital e outra de juros, motivo pelo qual é aplicável o prazo de cinco anos de prescrição estabelecido naquela norma; admitindo a própria Exequente que a Executada AA interrompeu o pagamento das prestações referentes ao empréstimo da quantia de € 30.000,00 a 1 de dezembro de 2014, e uma vez que os Executados foram citados para os termos da ação executiva, de que este incidente constitui apenso, somente em janeiro de 2021, dúvidas não restam de que já decorreu o mencionado prazo de cinco anos de prescrição; o mesmo sucede no que respeita ao empréstimo da quantia de € 80.000,00, já que a Executada AA não interrompeu o pagamento das prestações a 1 de março de 2016, como é referido no requerimento executivo, mas sim a 1 de dezembro de 2014; ainda que assim não se entendesse, e de acordo com o disposto no art. 310.º, al. d), do CC, estariam prescritos, pelo menos, os juros legais que se tivessem vencido para além dos cinco anos anteriores à data da citação dos Executados, que teve lugar em janeiro de 2021.
3. Pediram a extinção da instância executiva e, consequentemente, o levantamento da penhora da fração autónoma em causa, assim como a extinção das hipotecas que a oneram.
4. A Exequente Ares Lusitani – STC, S.A. contestou, dizendo que o prazo de prescrição aplicável ao crédito exequendo é aquele de vinte anos previsto no art. 309.º do CC, e não o prazo de cinco anos invocado pelos Executados; que os títulos dados à execução consubstanciam contratos de mútuo dos quais resulta para o mutuário uma única obrigação, traduzida na restituição do crédito mutuado, a qual é logo devida em consequência da celebração do contrato, ainda que o mutuante conceda ao mutuário “a facilidade de restituição do crédito mutuado através de prestações diferidas no tempo”; que, apesar de terem sido citados para os termos da ação executiva somente em janeiro de 2021, os Executados têm conhecimento de que foram interpelados, mais do que uma vez, para proceder ao pagamento do valor em dívida, tendo, inclusivamente, respondido às interpelações da Exequente e tentado a resolução extrajudicial do litígio; por essa razão, os Executados litigam de má fé em virtude de terem manifestado a sua disponibilidade para a resolução extrajudicial do litígio, assim protelando a instauração, pela Exequente, da correspondente ação executiva, com o propósito de poderem mais tarde invocar o prazo prescricional de cinco anos; que os Executados “ocultam a verdade de si conhecida e alegam factos que sabem não corresponder à verdade, com o manifesto propósito de entorpecer a ação da justiça e bem assim conseguir um benefício ilegal”, devendo, portanto, ser condenados, como litigantes de má fé, no pagamento de multa e de indemnização a favor da Exequente.
5. Os Executados AA, BB e CC responderam, impugnando os documentos juntos com a contestação e referindo que não litigam de má-fé.
6. O processo prosseguiu os seus termos e, a final, o Tribunal de 1.ª Instância decidiu o seguinte:
“(…) julgo a presente oposição à execução e à penhora parcialmente procedente e, em consequência, declaro a extinção da acção executiva instaurada pela exequente Ares Lusitani – STC, SA na parte relativa ao capital, no valor de € 26.345,90 (vinte e seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e noventa cêntimos), e aos juros de mora vencidos desde o dia 1 de Dezembro de 2014 peticionados por referência ao contrato de mútuo no valor de € 30.000,00 (trinta mil euros), determinando o prosseguimento da mesma na parte restante.
Mais decido declarar extinta a hipoteca constituída sobre a fracção autónoma designada pela letra F do prédio urbano situado em ..., da freguesia e concelho da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número...98 (... e noventa e oito), e, em consequência, determino o cancelamento do registo efectuado pela apresentação n.º 16 (dezasseis), de 19 de Maio de 2006, absolvendo a exequente dos restantes pedidos formulados pelos executados.
Por último, decido ainda absolver os executados do pedido de condenação a título de litigância de má fé formulado pela exequente. Custas a cargo da exequente e dos executados, na proporção do respectivo decaimento, que fixo em 26,19% e 73,81%, respectivamente (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).
As custas do incidente de litigância de má fé ficam a cargo da exequente, fixando-se a taxa de justiça devida em uma unidade de conta (…)”.
7. Não conformadas, ambas as partes interpuseram recurso de apelação.
8. Os Executados/Embargantes AA, BB e CC apresentaram contra-alegações, pugnando pelo indeferimento do recurso da Exequente/Embargada.
9. Por acórdão de 23 de novembro de 2021, o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu o seguinte:
“Termos em que se julga o recurso procedente, revoga-se a sentença e ordena-se o prosseguimento dos autos também quanto ao crédito declarado prescrito, com as legais consequências, vg. quanto à declaração de extinção da hipoteca.
Custas recursivas pelos embargantes”.
10. Não conformados, os Executados/Embargantes CC, BB e AA interpuseram recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:
“1ª - Por apenso ao Processo de Execução instaurada pela Ares Lusitani – STC. SA, os ora recorrentes deduziram oposição á execução e á penhora, invocando, além do mais, encontrar-se prescrita a divida , quer a titulo de capital quer a titulo de juros, que a exequente pretende fazer valer nessa execução, por aplicação ao mutuo bancário , reembolsável em prestações pagaveis com juros, o prazo prescricional de cinco anos previsto no artº 310,alíneas d) e) e g) do Código Civil.
2ª - O Tribunal de 1ª instancia , além do mais, decidiu julgar a oposição à execução e à penhora parcialmente procedente e, em consequência, declarar a extinção da acção executiva instaurada pela exequente Ares Lusitani – STC, SA na parte relativa ao capital, no valor de € 26.345,90 (vinte e seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e noventa cêntimos), e aos juros de mora vencidos desde o dia 1 de Dezembro de 2014 peticionados por referência ao contrato de mútuo no valor de € 30.000,00 (trinta mil euros), determinando o prosseguimento da mesma na parte restante.
3ª - Quer os embrargantes/excutados quer a embargada/exequente, interpuseram recurso dessa decisão, tendo sido proferido douto Acordão nos termos do qual foi decidido julgar o recurso procedente , revogando-se a sentença e ordenando-se o prosseguimento dos autos também quanto ao crédito declarado prescrito, com as legais consequências, vg. quanto à declaração de extinção da hipoteca.
4ª - No Acordão ora em recurso concordou-se -se com o decidido em 1ª instancia ,nos termos em que, nos contratos de mutuo, se houver amortização do capital em prestações com juros devidos, integra-se e consideram-se os dois tipos de prestação para efeitos de aplicação do prazo prescricional de curto prazo de cinco anos previsto na alínea e) do artº artº 310 do C. Civil, aplicando-se tal curto prazo prescricional no caso dos presentes autos.
5ª - Mas foi entendido no douto Acordão ora em recurso aditar aos factos a considerar, o seguinte:
16-A - Em 24.07.2019, a ilustre advogada da executada AA endereçou a L... um e mail para o email «...» no qual expendeu nos seguintes termos: «Na qualidade de advogada da Srª AA, na sequência da carta de VªsExªs lhe endereçaram informando da cessão de créditos do Banco CEMG…sou a expor e solicitar, em nome da minha constituinte, o seguinte:
Como sabem, tinha a minha constituinte um crédito à CEMG que entretanto vos foi cedido
…estava a minha constituinte a renegociar a dívida…que entretanto não foi concluída em virtude da cessão de créditos…
A minha constituinte pretende pagar a sua dívida, renegociando os montantes que sabe ter em atraso.
Em face do exposto muito agradecia que me informassem qual o valor acual da dívida e ainda a melhor forma de proceder ao seu pagamento em prestações mensais e sucessivas»
6ª - E , perante tal facto aditado , foi considerado que tal escrito foi um reconhecimento da divida por parte da devedora perante o credor e que importou a interrupção do prazo de prescrição, pelo que, aquando da instauração da execução a divida, mesmo atinente ao empréstimo de 30 mil euros, ainda não estava prescrita.
7ª - Os ora recorrentes discordam de tal entendimento, ou seja, que á data da instauração da execução a divida relativa ao empréstimo de 30 mil euros não estava prescrita, discordando ainda do entendimento de que não se encontrava prescrito a divida relativa ao empréstimo de 80 mil euros.
8ª - O documento a que a testemunha DD aludiu ( extracto de fls. 25 a 33) é um documento que não se encontra assinado e se desconhece qual a entidade que o emitiu pois não se encontra carimbado nem nele se faz referencia a qualquer entidade, tendo sido impugnado pelos ora recorrentes.
9ª - Era á embargada que cabia fazer prova de que AA interrompeu o pagamento das prestações relativas ao empréstimo de €80.000,00 no dia 1 de Março de 2016, nada mais tendo pago por conta do mesmo, o que esta não fez.
10ª – Entendeu o douto Tribunal a quo, que com base nos factos aditados no ponto 16-A, foi considerado que tal foi um reconhecimento da divida por parte da devedora perante o credor e que importou a interrupção do prazo de prescrição, pelo que, aquando da instauração da execução a divida, o empréstimo de 30 mil euros ainda não estava prescrita.
11ª – Tal documento foi impugnado pelos ora recorrentes.
12ª - Entendem os recorrentes que a Relação não podia, como o fez, ampliar /alterar a decisão sobre a matéria de facto, aditando o facto constante no ponto 16-A, pois os factos tidos como assentes, a prova produzida ou documento superveniente (que não existiu), não impunham tal alteração/ampliação.
13ª - Mas, mesmo que assim se não considere, o certo é que, tal escrito, não tem a virtualidade de interromper a aludida prescrição , pois, se por um lado não é um reconhecimento do direito daquele contra quem o direito pode ser exercido (a devedora) por outro não é efectuado perante o respectivo titular desse direito, no caso a Ares Lusitani- STC , SA.
14ª - O escrito em causa é dirigido pela advogada a uma entidade , L... , que não é nem nunca foi o titular do crédito, ou seja, tal escrito não foi remetido ao próprio titular do direito de crédito que, em face dos contratos de cessão de créditos nos autos é a exequente, não foi efectuado contra quem o direito podia ser exercido nesse escrito, nem é referido qual a divida ou o valor alegadamente reconhecido.
15ª - A alteração/decisão sobre a matéria de facto pelo tribunal a quo (TRC) , alterou ou afectou a decisão de mérito quanto á matéria de direito, ou seja, revogou a decisão anteriormente tomada de que declarou a extinção da acção executiva instaurada pela exequente Ares Lusitani – STC, SA na parte relativa ao capital, no valor de € 26.345,90 por prescrição.
16ª - O uso dos poderes da Relação conferidos pelo artº 662º 1 e 2 do CPC, não foi exercido dentro da imposição de reapreciar a decisão sobre a matéria de facto de acordo com o quadro e os limites configurados pela lei para o exercício de tais poderes, que resultam da remissão do artº 663º, nº 2 para o artº 607º, 4 e 5 do CPC.
17ª - E, a este Venerando Tribunal é permitido a reapreciação da matéria de facto , pois está em causa a ofensa de disposição legal que exige um determinado meio de prova e ainda por se ter conferido força probatória plena a um meio de prova que foi impugnado.
18ª - Na alteração/ decisão sobre a matéria de facto pelo tribunal a quo (TRC) existiu erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa , por ofensa de uma disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
19ª - O douto Acordão ora em recurso considerou que a consequência jurídica a extrair dos factos de aditou ( 16 – A) era que tal escrito constituía um reconhecimento do direito previsto no artº 325º do C. Civil, mal tendo andado o tribunal em aditar o facto 16-A da matéria de facto, assim como mal andou, ao extrair de tal facto que este constituía um reconhecimento do direito previsto no artº 325º do C. Civil.
20ª - Não analisou criticamente as provas que constam dos autos, violando com tal entendimento lei substantiva , violando, assim, o douto Acordão ora em recurso o disposto no artº 325º e 352º do C. Civil, consistindo tal violação tanto em erro de interpretação como no erro de determinação da norma aplicável, e violação ou errada aplicação da lei do processo, violando ainda o disposto no artº 662º do CPC.
21ª - Em face do exposto, deve ser declarado ter o Tribunal da Segunda Instancia ultrapassado os poderes que lhe são conferidos em sede de julgamento de matéria de facto, e, ter violado uma disposição expressa de lei que exige certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, e, ainda por se ter conferido força probatória plena a um meio de prova que foi impugnado.
22ª – Devendo ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal da Relação quer relativamente ao julgamento da matéria de facto, quer relativamente á decisão de mérito proferida em que ordenou o prosseguimento dos autos por entender não estar o crédito prescrito.
23ª - Devendo dar-se provimento ao presente recurso e ser este julgado procedente e em consequência revogando-se e /ou alterando-se a decisão de facto no que respeita ao Ponto 16 – A aditado e de direito nos termos expostos, ser o douto Acordão revogado ou alterado por forma a julgar-se totalmente procedente a oposição á execução e á penhora e, em consequência, declarar-se a extinção da acção executiva , com as legais consequências.
Termos em que e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vªs. Excias. que aqui se invoca, deve dar-se provimento ao presente recurso e ser este julgado procedente e em consequência revogando-se e /ou alterando-se a decisão de facto e de direito nos termos expostos, ser o douto Acordão ora em recurso ser revogado por forma a julgar-se totalmente procedente a oposição á execução e á penhora e, em consequência, declarar-se a extinção da acção executiva , por o crédito se encontrar prescrito, com todas as legais consequências, com o que se fará sã, serena e objectiva JUSTIÇA!”
11. A Exequente/Embargada/Recorrida Ares Lusitani – STC, S.A., apresentou contra-alegações com as seguintes Conclusões:
“1. O douto Acórdão recorrido, foi notificado em 24/11/2021, presumindo-se notificado à Ilustre mandatária em 29/11/2021 (artigo 248º do CPC).
2. Ora, o prazo para interposição de recurso do Acórdão em apreço é de 15 dias, nos termos do artigo 638º nº 1 e 644º nº 2 alínea f) do CPC (decisão “a quo” que ordenou o cancelamento do registo de hipoteca sobre o imóvel dos autos) e 677º do CPC, pelo que, à data da apresentação do requerimento de interposição de recurso de revista pelos Embargantes, o prazo de recurso, já se mostrava, há muito decorrido.
3. Assim, o requerimento de interposição de recurso apresentado pelos Embargantes em 07/01/2022 é claramente extemporâneo, devendo ser liminarmente indeferido, o que muito respeitosamente, se requer.
4. Por mera Cautela de Patrocínio, vem a Embargada apresentar as suas Contra-Alegações, o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
5. Esteve bem o Venerando Tribunal da Relação ao julgar o recurso apresentado pelo Embargada procedente, revogando a sentença do Tribunal “a quo” e ordenando o prosseguimento dos autos também quanto ao crédito declarado prescrito, com as legais consequências, vg. quanto à declaração de extinção da hipoteca.
6. “Sumariando- artº 663º nº7 do CPC.
I - A não indicação das concretas passagens das gravações dos depoimentos, nem sequer o início e o fim das mesmas, quer nas conclusões, quer no corpo das alegações, implica a imediata rejeição do recurso sobre a matéria de facto na parte afetada, ou seja, nos pontos de facto a que as testemunhas se reportam – artº 640º nº2 al. a) do CPC.
II-A alteração da decisão sobre a matéria de facto, exige que os meios probatórios esgrimidos pelo recorrente e a interpretação dele operada, não penas sugiram, mas antes imponham, tal censura; O que, por via de regra, e porque ao tribunal ad quem falham os benefícios da imediação e oralidade, não acontece quando a prova invocada é essencialmente pessoal, ademais, se parentes das partes e com possíveis interesses no desfecho da causa.
III –A Relação deve, mesmo oficiosamente, alterar a decisão sobre a matéria de facto, tida, vg.,por deficiente, quando, constando no processo todos os elementos probatórios produzidos, haja necessidade, para a boa decisão da causa, de consideração de factos alegados – artº 662º nº1 e nº2 al. c) do CPC.
IV - A impugnação, meramente tabelar e infundamentada, da genuinidade e força probatória de um documento, não impede que ele seja livremente apreciado e valorado, máxime se em concatenação e como adjuvante de outros elementos de prova.
V - No contrato de mútuo pago em prestações, e mesmo nos casos de incumprimento com vencimento antecipado, o mutuário continua a beneficiar do prazo curto de prescrição de cinco anos, previsto na al. e) do artº 310º do CC, pois que tal antecipação não desvirtua a natureza do contrato inicialmente assumida/o e continuam presentes as razões que subjazem à prescrição: certeza, segurança, paz social e proteção do devedor.
VI - Constituindo o reconhecimento de dívida passível de interromper a prescrição uma declaração unilateral recetícia, a data relevante a considerar não é a do envio da missiva em que tal reconhecimento consta, mas a data do seu recebimento pelo destinatário titular do direito, assim considerado pelo devedor – artºs 325º nº1 e 224º nº1 do CC.
VII – Porém, verificado este reconhecimento, em função da alteração aludida em II, e tendo este acontecido antes do dies ad quem do prazo prescricional, ele interrompe a prescrição, começando a correr novo e quantitativamente igual prazo de prescrição, com as legais consequências – artº 326º do CC.”
7. Resultou provada a não prescrição de ambos os contratos de mútuo conforme Acórdão recorrido:
“(…) Ora ainda que este documento tenha sido impugnado e, assim, só por si, possa não ter força probatória bastante para provar no sentido ora em análise, certo é que ele pode ser livremente apreciado pelo tribunal e, em concatenação com outra prova, pode relevar. Assim, e considerando os elementos constantes nos autos, máxime o depoimento da testemunha DD, nada impede que a convicção sobre desde quando o mútuo dos 80 mil euros deixou de ser pago, possa ser formada no sentido do ano de 2016, em vez do de 2014, como pretendem os recorrentes.(…)
“(…) perante o facto aditado neste Tribunal ad quem, tem de concluir-se que este reconhecimento já se tinha verificado anteriormente, ou seja, em 24.07.20219. Na verdade, e como dimana do teor do ponto 16-A, nesta data a Executada AA, através da sua advogada, manifestou estar ciente da cessão de créditos operada pelo Montepio para a L... que, assim, considerou sua atual credora. E, ademais, tendo-se mostrado disponível para a solver em prestações. Esta posição foi reiterada pessoalmente pela própria executada AA através da carta de 27.11.2019, a qual apesar de, só por si, e como se viu – e pelo minudente (ao menos na perspetiva meramente temporal) facto de por ter chegado atrasada à exequente um ou dois dias -, não ter tido a virtualidade e força para operar a interrupção da prescrição, não deixa de ser sintomática quanto à atitude, reiterada ao longo de vários meses que precederam o decurso do prazo de prescrição, da executada em assumir a dívida, bem como quanto ao seu propósito de a pagar.
Por conseguinte, reafirma-se, tem de concluir-se ter existido um válido, tempestivo e eficaz reconhecimento da dívida antes da superveniência do dies ad quem do prazo de prescrição.
Reconhecimento esse que, assim, importou a interrupção deste prazo, e começando a correr um novo prazo quinquenal a partir de 25.07.2019 – artº 326º do CC.
Nesta conformidade, e aquando da instauração da execução, a dívida, mesmo a atinente ao empréstimo de 30 mil euros, ainda não estava prescrita. “
8. No caso sub judice pela celebração dos contratos de crédito é devida uma única obrigação por cada um dos contratos – a restituição do crédito mutuado – ainda que o cumprimento dessa mesma obrigação possa ser diferido no tempo, por facilidade atribuída pelo mutuante, através de prestações instantâneas fracionadas.
9. Assim, à obrigação de restituição do crédito aplica-se o prazo de prescrição ordinária previsto no artigo 309.º do Código Civil,
10. Ou seja, vinte anos!
11. Por sua vez, o prazo de prescrição excecional previsto no artigo 310.º do Código Civil é aplicável apenas às obrigações de natureza duradoura onde se integram as obrigações periodicamente renováveis.
12. Vêm os Embargantes colocar em causa o valor probatório dos extratos bancários, alegando que não estão carimbados, nem assinados.
13. Ora, na atual era digital, comumente as instituições de crédito emitem extratos digitais, nem sequer o são em papel e muito menos carimbados e assinados.
14. Em momento algum os Embargantes provam ou alegam o pagamento da dívida, remetendo o ónus para a Embargada, mas em simultâneo colocam em causa os extratos bancários por falta de assinatura e carimbo, bem sabendo que o crédito em conta lhes foi disponibilizado mas não pago(cessação dos pagamentos), e por conseguinte tal pagamento não poderá resultar dos extratos de conta.
15. Face à prova produzida, esteve bem o Venerando Tribunal da Relação em julgar que ambos os contratos de mútuo não se encontram prescritos.
16. Antes de mais, reconhece a própria Recorrida AA que “em Dezembro de 2018 estavam a decorrer negociações entre mim e o Montepio Geral para regularização”.
17. Ou seja, muito antes data defendida pelo Tribunal, como sendo a data da prescrição deste crédito (1 de Dezembro de 2019).
18. Fixa o Tribunal a quo a data do reconhecimento de dívida como a data em que tal “reconhecimento terá chegado ao conhecimento do destinatário da carta remetida pela executada AA apenas no dia 2 de Dezembro de 2019”.
19. Entende a Recorrida que a data do reconhecimento da dívida sempre se deverá fixar na data da elaboração da declaração.
20. E não na data em que chega ao conhecimento (diferente de reconhecimento) seu destinatário.
21. Conforme douto Acórdão recorrido “O depoimento da testemunha EE não tem, ao menos necessária e inelutavelmente, como entendem os embargantes, de prevalecer.
Desde logo atendendo à sua qualidade e condições pessoais. Ele é marido da executada AA e, assim – e isto sem por em crise a sua honestidade ou probidade -tem, ou pode ter, interesse, direto ou indireto que seja, em que a causa seja favorável à esposa.
Decorrentemente, o seu depoimento apenas poderia relevar decisivamente, se fosse corroborado por outros meios de prova ou, ao menos, se se alcandorasse em razão de ciência inatacável.
Nada disto se verifica.”
“Na verdade, a outra testemunha é funcionária da empresa L..., ademais no âmbito da gestão de créditos, o que pressupõe que tenha competências técnicas para apreciação e dilucidação de questões e problemas – pagamentos, recebimentos, etc – que se levantem nesta área, vg. através da análise de documentos.
Destarte, inexiste qualidade pessoal mais confiante ou razão de ciência mais relevante do EE por reporte à DD que exija a atribuição de valoração acrescida ao seu depoimento em detrimento do depoimento desta.
Antes pelo contrário, tal valoração acrescida deve ser atribuída a esta testemunha, em função da sua qualidade e razão de ciência.
Ademais, o depoimento desta alcandora-se também na verificação e interpretação de documento junto aos autos a fls 25 a 33, e referente aos movimentos existentes na conta bancária da executada AA. “
22. Por todo o exposto, resultando provada a interrupção da prescrição, esteve bem o Venerando Tribunal da Relação ao julgar o recurso apresentado pelo Embargada procedente, revogando a sentença do Tribunal “a quo” e ordenando o prosseguimento dos autos também quanto ao crédito declarado prescrito, com as legais consequências, vg. quanto à declaração de extinção da hipoteca.
23. Pelo que deverá a apelação ser julgada improcedente e em consequência confirmado o acórdão recorrido, desde logo, por falta de fundamento legal e por extemporaneidade do recurso, conforme questão prévia supra.
Termos em que deve ser concedido deferimento às Presentes contra-alegações, julgando a revista improcedente e em consequência confirmado o Acórdão recorrido.”
12. Ponderando rejeitar parcialmente o recurso de revista interposto pelos Executados CC, BB e AA, a 14 de junho de 2023, a Relatora convidou as partes, nos termos do art. 655.º, n.º 1, do CPC, a dizer o que tivessem por conveniente dentro do prazo legalmente previsto.
13. A Exequente/Embargada/Recorrida Ares Lusitani – STC, S.A., respondeu, mantendo tudo o que havia referido em sede de recurso.
II – Questões a decidir
Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, estão em causa as seguintes questões (sem prejuízo de a apreciação da última questão ficar prejudicada por aquela da primeira):
:
- saber se o recurso é ou não apenas parcialmente admissível por (in)verificação de dupla conformidade decisória;
- saber se o Tribunal da Relação de Coimbra excedeu ou não os seus poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto, previstos no art. 662.º, n.os 1 e 2, do CPC, quanto ao aditamento dos factos dados como provados sob o n.º 6-A;
- subsidiariamente, no caso de se manterem os factos aditados sob o n.º 16-A, saber se estes permitem ou não concluir pela existência de um reconhecimento da dívida, pelos Executados, que se traduza num facto interruptivo da prescrição nos termos do art. 325.º do CC.
III - Fundamentação
A. De Facto
Foram dados como provados os seguintes factos, depois das alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação de Coimbra:
“1. A exequente Ares Lusitani – STC, SA instaurou, contra os executados AA, BB e CC, a acção executiva de que este incidente constitui apenso, tendo em vista o pagamento coercivo da quantia global de € 118.335,85, correspondente à soma das seguintes parcelas: capital em dívida no valor de € 75.747,69 (referente às prestações que os executados deixaram de pagar a partir do dia 1 de Março de 2016) e de € 26.345,90 (referente às prestações que os executados deixaram de pagar a partir do dia 1 de Dezembro de 2014); juros vencidos desde o dia 1 de Março de 2016 até ao dia 17 de Novembro de 2020, no valor de € 11.599,80; juros vencidos desde o dia 1 de Dezembro de 2014 até ao dia 17 de Novembro de 2020, no valor de € 4.642,46.
2. O primeiro título executivo dado à execução de que este incidente de oposição à execução e à penhora constitui apenso é o escrito intitulado Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca, datado de 3 de Maio de 2006, nos termos do qual a executada AA declarou, perante Notário, confessar-se devedora à Caixa Económica Montepio Geral da quantia de € 80.000,00, “que neste acto dela recebe a título de empréstimo, para aquisição da fracção autónoma” designada pela letra F do prédio urbano situado em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial da ... sob o número ...98.
3. Através do mesmo escrito, a executada AA declarou que, “para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato, a parte devedora constitui a favor da CEMG hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma ora adquirida e atrás identificada, à qual foi atribuído o valor de cento e vinte e três mil euros”.
4. Através do mesmo escrito, os executados CC e BB declararam confessar-se e constituir-se “fiadores e principais pagadores das dívidas contraídas pela segunda outorgante, no âmbito do presente contrato, renunciando expressamente ao benefício de excussão prévia”.
5. No documento complementar ao contrato mencionado em 2. foi acordado o seguinte: “Cláusula Quarta (Reembolso)
1. O presente empréstimo será reembolsado em quatrocentas e oitenta prestações mensais, de capital e juros, calculadas nos termos da cláusula 1ª da escritura.
2. A primeira das referidas prestações vence-se um mês após a data da escritura e as restantes em igual dia dos meses seguintes, ou no último dia do respectivo mês se neste não houver dia correspondente. 3. Sem prejuízo do disposto nas cláusulas relativas às alterações do presente contrato, na presente cláusula e à taxa de crescimento anual prevista, cada uma das prestações será do montante de € 245,49 (…).”.
6. O segundo título executivo dado à execução de que este incidente de oposição à execução e à penhora constitui apenso é o escrito intitulado Mútuo com Hipoteca e Fiança, datado de 3 de Maio de 2006, nos termos do qual a executada AA declarou, perante Notário, confessar-se devedora à Caixa Económica Montepio Geral da quantia de € 30.000,00, “que neste acto dela recebe a título de empréstimo e que se destina a ser utilizada em necessidades relacionadas com o lar”.
7. Através do mesmo escrito, a executada AA declarou que, “para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas no presente contrato, a parte devedora constitui a favor da CEMG hipoteca voluntária sobre o seu seguinte imóvel, ao qual foi atribuído o valor de cento e vinte e três mil euros: Fracção autónoma designada pela letra F (…) do prédio urbano sito em ..., da freguesia e concelho de ..., designado por lote cinco, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... e noventa e oito”.
8. Através do mesmo escrito, os executados CC e BB declararam confessar-se e constituir-se “fiadores e principais pagadores das dívidas contraídas pela segunda outorgante, no âmbito do presente contrato, renunciando expressamente ao benefício de excussão prévia”.
9. No documento complementar ao contrato mencionado em 6. foi acordado o seguinte: “Cláusula Terceira (Reembolso)
1. O presente empréstimo será reembolsado em quatrocentas e oitenta prestações mensais constantes e sucessivas de capital e juros.
2. A primeira das referidas prestações vence-se um mês após a data da escritura e as restantes em igual dia dos meses seguintes, ou no último dia do respectivo mês se neste não houver dia correspondente.
3. Sem prejuízo do disposto nas cláusulas relativas às alterações do presente contrato, cada uma das prestações será no montante de € 128,38 (…).”.
10. As prestações referentes aos contratos de mútuo mencionados em 2. e 6. venciam-se no mesmo dia e eram cobradas pela mutuante no mesmo dia.
11. Mediante escrito datado de 27 de Dezembro de 2018, os representantes da Caixa Económica Montepio Geral declararam, perante Notário, ceder à sociedade comercial denominada M... uma carteira de créditos, entre os quais se encontram os créditos exequendos.
12. Mediante escrito datado de 12 de Abril de 2019, o representante da sociedade comercial denominada M... declarou, perante Notário, ceder à exequente Ares Lusitani – STC, SA, entre outros, os créditos exequendos.
13. A executada AA interrompeu o pagamento das prestações relativas ao empréstimo a que se alude em 2. no dia 1 de Março de 2016, nada mais tendo pago por conta do mesmo.
14. A executada AA interrompeu o pagamento das prestações relativas ao empréstimo a que se alude em 6. no dia 1 de Dezembro de 2014, nada mais tendo pago por conta do mesmo. 15. Mediante cartas datadas de 27 de Fevereiro de 2018, o Banco Montepio comunicou aos três executados o seguinte:
“Assunto: Carta de Interpelação
Financiamento n.º ...4-2 – Crédito Habitação Própria
(…) Tendo como referência o financiamento em epígrafe, celebrado com V. Exa., (…), verificando-se que o mesmo se encontra em mora desde 03-06-2016, vimos interpelá-la para que, no prazo máximo de 10 (dez) dias, proceda ao pagamento do montante global de € 7.566,93 (…) referente a capital de € 2.470,19 a que acrescem juros remuneratórios e moratórios vencidos, imposto do selo, seguros e despesas vencidas no montante, respectivamente, de € 4.267,13, € 25.74 e € 803,87.
Caso as referidas quantias não sejam liquidadas no supra indicado prazo, consideraremos imediatamente vencidas todas as obrigações emergentes do financiamento em referência, e daremos de imediato entrada da competente acção judicial contra todos os devedores, com vista à cobrança integral do crédito, com todas as consequências legais e patrimoniais daí emergentes, sem mais qualquer aviso.”.
16. Mediante cartas datadas de 27 de Fevereiro de 2018, o Banco Montepio comunicou aos três executados o seguinte:
“Assunto: Carta de Interpelação
Financiamento n.º ...4-3 – Crédito Particular Outros Fins (…)
Tendo como referência o financiamento em epígrafe, (…), verificando-se que o mesmo se encontra em mora desde 03-08-2015, vimos interpelá-la para que, no prazo máximo de 10 (dez) dias, proceda ao pagamento do montante global de € 4.450,35 (…) referente a capital de € 1.259,98 a que acrescem juros remuneratórios e moratórios vencidos, imposto do selo, seguros e despesas vencidas no montante, respectivamente, de € 2.481,88, € 115,89 e € 592,60.
Caso as referidas quantias não sejam liquidadas no supra indicado prazo, consideraremos imediatamente vencidas todas as obrigações emergentes do financiamento em referência, e daremos de imediato entrada da competente acção judicial contra todos os devedores, com vista à cobrança integral do crédito, com todas as consequências legais e patrimoniais daí emergentes, sem mais qualquer aviso.”.
16-A - Em 24.07.2019, a ilustre advogada da executada AA endereçou a L... um e mail para o email «...» no qual expendeu nos seguintes termos:
«Na qualidade de advogada da Srª AA, na sequência da carta de VªsExªs lhe endereçaram informando da cessão de créditos do Banco CEMG…sou a expor e solicitar, em nome da minha constituinte, o seguinte:
Como sabem, tinha a minha constituinte um crédito à CEMG que entretanto vos foi cedido.
…estava a minha constituinte a renegociar a dívida…que entretanto não foi concluída em virtude da cessão de créditos… A minha constituinte pretende pagar a sua dívida, renegociando os montantes que sabe ter em atraso.
Em face do exposto muito agradecia que me informassem qual o valor acual da dívida e ainda a melhor forma de proceder ao seu pagamento em prestações mensais e sucessivas»
17. Mediante carta datada de 27 de Novembro de 2019, na qual foi aposto um carimbo com a denominação L... e a data 2 de Dezembro de 2019, a executada AA comunicou à Direcção de L... o seguinte:
“Operação n.º ...37/...85
Assunto: Pagamento de Dívida ao Montepio Geral (agora transmitido à Ares Lusitani) Ex.mos Srs.
Eu tinha um crédito à habitação com o Banco Montepio Geral e em Dezembro de 2018 estavam a decorrer negociações entre mim e o Montepio Geral para regularização da mesma e também para tentar baixar a prestação mensal, uma vez que era muitíssimo elevada em relação a empréstimos idênticos.
Nessa altura pediram-me inclusive mais garantias (que eu forneci) e posteriormente vieram fazer nova avaliação do imóvel e das novas garantias por mim fornecidas.
Em virtude da cedência do crédito pelo Montepio Geral, em 27 de Dezembro de 2018, inicialmente à M... e posteriormente à Ares Lusitani – STC, SA, venho por este meio manifestar a minha vontade de pagá-la de uma só vez, por este motivo solicito que me façam uma reestruturação da dívida, para que eu possa pagar mensalmente, nas mesmas condições que estavam com o Montepio Geral.”.
18. Mediante carta datada de 3 de Dezembro de 2019, da qual consta a denominação “L...”, foi comunicado à executada AA, para além do mais, o seguinte:
“Acusamos a recepção da carta que V. Exa. nos remeteu e que mereceu a n/maior atenção. Após uma leitura atenta lamentamos informar que a Ares Lusitani – STC, SA não pode efectuar uma reestruturação de crédito à habitação, como solicita. A Ares Lusitani – STC, SA mandatou a L... a solicitar o pagamento imediato da totalidade da dívida, podendo, em cada caso, analisar a hipótese de um perdão de juros de mora ou mesmo, do capital, desde que a entrega seja efectuada num curto prazo de tempo. Para tanto V. Exa. poderá tentar a venda do imóvel, aproveitando os valores de mercado ou um financiamento noutra Instituição de Crédito, para liquidação. (…).”.
19. Mediante cartas datadas de 2 de Julho de 2020, a exequente, por intermédio do seu Ilustre Mandatário, comunicou aos três executados, para além do mais, o seguinte:
“Na presente data e de acordo com os registos contabilísticos da Ares Lusitani – STC, SA, encontram-se em mora os seguintes valores”:
Contrato n.º 41249496 – início do incumprimento a 01/12/2014: € 30.761,28 Contrato n.º 41249488 – início do incumprimento a 01/03/2016: € 86.586,24
“No contexto supra exposto, solicitamos o pagamento do valor global (…) resultante da soma aritmética do total em mora indicado no quadro anterior. O valor indicado deve ser liquidado na íntegra no prazo máximo de 10 dias corridos, contados desde a data de emissão desta carta. (…).
Caso não se verifique a liquidação aqui indicada, até ao prazo referido, por instruções do nosso Clientes Ares Lusitani – STC, SA, promoveremos o accionamento judicial do crédito devido que será acrescido de todos os encargos judiciais e extrajudiciais que a Ares Lusitani – STC, SA venha a incorrer para obter o ressarcimento integral do crédito que lhe é, legitimamente, devido. Serão ainda cobrados juros moratórios à taxa máxima legalmente permitida até ao pagamento. (…).”.
20. A acção executiva de que este incidente constitui apenso foi instaurada no dia 2 de Dezembro de 2020.
21. Os executados CC e BB foram citados para os termos da referida acção executiva no dia 8 de Janeiro de 2021.
22. A executada AA foi citada para os termos da referida acção executiva no dia 29 de Janeiro de 2021.
23. No dia 30 de Dezembro de 2020 foi penhorada, no âmbito da referida acção executiva, a fracção autónoma designada pela letra F a que se alude em 3. e 7..
24. Pela apresentação n.º 15, de 19 de Maio de 2006, foi registada a hipoteca voluntária a que se alude em 3., figurando como montante máximo assegurado a quantia de € 109.989,65.
25. Pela apresentação n.º 16, de 19 de Maio de 2006, foi registada a hipoteca voluntária a que se alude em 7., figurando como montante máximo assegurado a quantia de € 41.700,00.
26. Pela apresentação n.º 789, de 21 de Dezembro de 2020, foi registada a penhora a que se alude em 23..
27. A fracção autónoma a que se alude em 3. e 7. é a casa de habitação da executada AA e do seu agregado familiar.”
B. De Direito
Tipo e objeto de recurso
1. No âmbito de uma oposição à execução e à penhora deduzida pelos Executados AA, BB e CC contra a Exequente Ares Lusitani – STC, S.A., o Tribunal de 1.ª Instância julgou parcialmente procedente a oposição, decidindo:
a. declarar a extinção da acção executiva instaurada pela Exequente Ares Lusitani – STC, S.A., na parte relativa ao capital, no valor de € 26.345,90 (vinte e seis mil, trezentos e quarenta e cinco euros e noventa cêntimos), e aos juros de mora vencidos desde o dia 1 de dezembro de 2014 peticionados por referência ao contrato de mútuo no valor de € 30.000,00 (trinta mil euros), determinando o prosseguimento da mesma na parte restante;
b. declarar extinta a hipoteca constituída sobre a fração autónoma designada pela letra F do prédio urbano situado em ..., da freguesia e concelho da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...98 (... e noventa e oito), e, em consequência, determinar o cancelamento do registo efetuado pela apresentação n.º 16 (dezasseis), de 19 de Maio de 2006, absolvendo a exequente dos restantes pedidos formulados pelos executados;
c. absolver os Executados do pedido de condenação a título de litigância de má-fé formulado pela Exequente.
2. Desta sentença apelaram ambas as partes, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra julgado procedente o recurso interposto pela Exequente e improcedente o recurso interposto pelos Executados, revogando a sentença e ordenando o prosseguimento dos autos também quanto ao crédito declarado prescrito, com as correspondente consequências legais, v.g., quanto à declaração de extinção da hipoteca.
3. Não conformados com tal decisão, os Executados interpuseram recurso de revista.
(In)admissibilidade do recurso
1. Uma vez que o recurso de revista tem por objeto um acórdão da Relação proferido no âmbito de um procedimento de oposição à execução, aplicam-se as regras gerais de admissibilidade da revista nos termos previstos no art. 854.º do CPC.
2. O acórdão recorrido conheceu do mérito da oposição à execução, pelo que, ao contrário do que é alegado pela Exequente/Recorrida, e como foi decidido no despacho do Senhor Desembargador-Relator, que admitiu a revista, o prazo para o recurso não é de quinze dias, mas antes de trinta dias, nos termos do art. 638.º, n.º 1, do CPC.
3. O recurso foi interposto tempestivamente, subsume-se à hipótese do art. 671.º, n.º 1, do CPC, os Recorrentes têm legitimidade e tanto o valor da causa como o da sucumbência permitem o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.
4. Porém, nos termos do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC, não é admissível recurso de revista regra ou normal do acórdão que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.
5. De acordo com a posição jurisprudencial predominantemente adotada no Supremo Tribunal de Justiça, “havendo diversos segmentos decisórios (uns favoráveis, outros não), distintos e autónomos (as partes podem restringir o recurso a cada um deles), o conceito de dupla conforme terá de se aferir, separadamente, relativamente a cada um deles. Assim, só não há dupla conforme (havendo revista normal nessa parte) no segmento em que a Relação não confirme a decisão da 1ª inst. (ou confirme, mas com fundamentação essencialmente diferente), ou no segmento em que o adjunto votou vencido”1.
6. No caso em apreço, a execução tem por objeto dois títulos executivos que se consubstanciam em dois contratos de mútuo celebrados a 3 de maio de 2006, mediante os quais a instituição de crédito CEMG emprestou à Executada/Recorrente AA quantias certas - tendo um desses contratos por objeto a quantia monetária de € 80.000,00 e outro a importância de €30.000,00 -, ambos a liquidar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor.
7. Nas decisões proferidas pelas Instâncias afigura-se possível delimitar diversos segmentos decisórios distintos e autónomos, referentes a cada um desses títulos executivos:
a. segmento decisório da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, revogado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, relativo à extinção da ação executiva na parte relativa ao capital, no valor de € 26.345,90, e aos juros de mora vencidos desde o dia 1 de dezembro de 2014, peticionados por referência ao contrato de mútuo no valor de € 30.000,00 (trinta mil euros);
b. segmento decisório da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, mantido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, respeitante ao prosseguimento da execução na parte restante, por referência ao contrato de mútuo no valor de € 80.000,00 (oitenta mil euros);
c. segmento decisório da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, revogado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, relativo à declaração de extinção da hipoteca constituída sobre a fração autónoma designada pela letra F do prédio urbano situado em ..., da freguesia e concelho da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...98 (... e noventa e oito), e consequente cancelamento do registo efetuado pela apresentação n.º 16 (dezasseis), de 19 de Maio de 2006;
d. segmento decisório da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, mantido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de absolvição da Exequente dos restantes pedidos formulados pelos Executados;
e. segmento decisório da sentença do Tribunal de 1.ª Instância, mantido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de absolvição dos Executados do pedido de condenação por litigância de má-fé formulado pela Exequente.
8. Assim, de acordo com a posição jurisprudencial referida supra, tais segmentos decisórios devem ser analisados separadamente para o efeito da verificação da (in)existência de dupla conformidade decisória.
9. Para aferir da (in)existência de dupla conforme, “teremos em primeiro lugar que chamar à colação a circunstância decisiva de o objecto do recurso de revista e a esfera de actuação do tribunal ad quem serem delimitados pelas conclusões da alegação do Recorrente (arts. 608º, 2, 635º, 4, 639º, 1, CPC), mesmo que (em conformidade com o art. 635º, 2 e 4, do CPC) o faça em restrição, expressa ou tácita, do objecto inicial”2. I.e., a verificação da dupla conforme restringe-se ao segmento que é limitado objetivamente nas conclusões do recurso.
10. O Tribunal da Relação de Coimbra alterou a decisão do Tribunal de 1.ª Instância no segmento decisório relativo à extinção da ação executiva na parte respeitante às quantias de capital e juros em dívida referentes ao contrato de mútuo no valor de € 30.000,00, revogando também a sentença no segmento decisório da declaração de extinção da hipoteca constituída sobre a fração autónoma designada pela letra F do prédio urbano situado em ..., da freguesia e concelho da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...98 e consequente cancelamento do registo efetuado pela apresentação n.º 16 de 19 de maio de 2006.
11. Todos os restantes segmentos decisórios da decisão do Tribunal de 1.ª Instância foram mantidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra, sendo certo que houve recurso de apelação de ambas as partes.
12. Os Executados/Recorrentes pretendem que o Supremo Tribunal de Justiça julgue totalmente procedente a oposição à execução e à penhora e, em consequência, declare a extinção da ação executiva, por o crédito se encontrar prescrito. Incluem no objeto do seu recurso tanto os segmentos decisórios da sentença do Tribunal de 1.ª Instância que foram revogados pelo Tribunal da Relação de Coimbra, como também o segmento dessa sentença que foi mantido no acórdão recorrido relativo ao prosseguimento da execução respeitante às quantias em dívida emergentes do contrato de mútuo no valor de € 80.000,00 (oitenta mil euros).
13. No que respeita aos segmentos decisórios mencionados supra, que foram revogados pelo Tribunal da Relação de Coimbra, resulta clara a inexistência de dupla conformidade decisória, pois aquele alterou a decisão do Tribunal de 1.ª Instância em sentido manifestamente desfavorável aos Executados, determinando o prosseguimento da execução na parte que havia sido declarada extinta pelo Tribunal de 1.ª Instância, além de revogar a declaração da extinção da hipoteca constituída para garantia do crédito que este havia declarado prescrito.
14. Acresce que, quanto a esta parte do acórdão recorrido, um dos fundamentos do recurso de revista interposto pelos Executados consiste na alegada violação pelo Tribunal da Relação de Coimbra dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, previstos no art. 662.º, n.os 1 e 2, do CPC. Segundo a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, a dupla conformidade decisória das Instâncias não se verifica quando se invoca a violação pela Relação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto3.
15. Com efeito, fundando-se o recurso de revista na averiguação da (in)observância das regras respeitantes ao exercício dos poderes-deveres previstos no art. 662.º, n.º 1, do CPC, no que toca à reapreciação pela Relação da matéria de facto, sindicável nos termos do art. 674.º, n.º 1, al. b), do CPC, “esta impugnação não concorre para a formação da “dupla conformidade”, uma vez que é apontado à Relação erro de aplicação ou interpretação da lei processual que é privativo e apenas emergente do acórdão proferido no âmbito da apreciação do recurso de apelação quanto à apreciação da impugnação da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto”4.
16. Porém, o segmento decisório da sentença do Tribunal de 1.ª Instância relativo ao contrato de mútuo no valor de € 80.000,00 foi confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com a mesma fundamentação e sem voto de vencido. Verifica-se, por conseguinte, nessa parte, a existência de dupla conformidade decisória.
17. De acordo com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça:
“o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª Instância. I.e., somente deixa de existir dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada”5.
18. Na verdade,
“a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quanto a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”6.
19. No caso sub judice, tendo os Executados interposto recurso de apelação pugnando pela extinção da execução relativamente às quantias em dívida no âmbito do contrato de mútuo de 80.000,00 €, encontra-se na fundamentação do acórdão recorrido o seguinte trecho:
“O deferimento desta pretensão de estender ao mútuo de 80 mil euros o prazo curto de prescrição do artº 310º al. e) do CC, dependia, necessária e inelutavelmente, na economia do defendido na sentença e corroborado pelos recorrentes embargantes, da prova de que o pagamento das prestações do mesmo cessou em 2014.
Fenecida esta prova, queda inexistente lastro factual para alicerçar tal entendimento.
O que, outrossim obrigatoriamente, e porque outros factos provados não podem sustentar tal exegese defendida na sentença e por estes recorrentes, inexoravelmente acarreta a improcedência do presente pedido.”
20. Ao manter a factualidade dada como provada pelo Tribunal de 1.ª Instância no que respeita à data de cessação do pagamento das prestações do contrato de mútuo de 80.000,00 €, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou a decisão de que ainda não havia decorrido o prazo de prescrição previsto no art. 310.º, al. e), do CC. Por conseguinte, afigura-se clara, nessa parte, a improcedência da oposição à execução.
21. Deste modo, o recurso de revista é admissível somente quanto à parte do acórdão do Tribunal a quo que se pronunciou sobre o prosseguimento da execução do crédito que havia sido declarado prescrito pelo Tribunal de 1.ª Instância, no âmbito do contrato de mútuo no valor de € 30.000,00, assim como relativamente à consequente manutenção da hipoteca constituída para garantia do cumprimento desse contrato sobre a fração autónoma designada pela letra F do prédio urbano situado em ..., da freguesia e concelho da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...98.
22. No que concerne ao restante objeto do recurso de revista, por se verificar dupla conformidade decisória parcial nos termos indicados supra, uma vez que não foi interposto recurso de revista excecional, rejeita-se, nessa parte, o recurso interposto pelos Executados CC, BB e AA.
23. Nas suas contra-alegações, a Exequente/Recorrida invocou novamente a questão do prazo de prescrição do crédito exequendo, alegando ser aplicável o prazo de ordinário de vinte anos, previsto no art. 309.º do CC, e não o prazo de prescrição excecional previsto no art. 310º, al. e), do mesmo corpo de normas.
24. Entende-se, porém, que a questão de saber qual o prazo de prescrição aplicável ao caso sub judice se encontra definitivamente decidida nos autos. A Exequente, no recurso de apelação que interpôs da sentença do Tribunal de 1.ª instância, havia já apresentado como fundamento o prazo de prescrição ordinário de vinte anos, tendo decaído no mesmo, apesar de ser parte vencedora do acórdão recorrido. Com efeito, o Tribunal da Relação de Coimbra, apesar de julgar procedente o recurso da Exequente, determinando o total prosseguimento da execução, manteve o entendimento do Tribunal de 1.ª Instância da aplicabilidade ao caso em apreço do prazo curto de prescrição previsto no art. 310.º, al. e), do CC, e não do prazo ordinário de vinte anos.
25. Refira-se, nesta sede, que o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido aplicar-se o prazo de prescrição quinquenal previsto no art. 310.º, al. e), do CC, às dívidas fracionadas, liquidáveis em prestações e, por isso, às obrigações híbridas ou mistas, normalmente acordadas no mútuo bancário. O objeto global está previamente determinado e não depende da duração da relação contratual, não influenciando o decurso do tempo o seu conteúdo. Tratando-se de uma obrigação unitária, em que o pagamento do capital tem lugar ao mesmo tempo que o pagamento dos juros vencidos, aplica-se-lhe o prazo quinquenal de prescrição – cf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2022, de 30 de junho de 2022, proc. n.º 1736/19.8T8AGD-B.P1.S1 nº 6/2022, publicado no Diário da República, I Série, n.º 184, a 22 de setembro de 20227.
26. Efetivamente, considerando-se estarem em causa dívidas pagáveis a prestações, uma vez que o objeto da prestação se encontra pré-determinado, o valor da prestação não depende da duração da relação contratual e, por isso, aplicar-se-ia, o prazo ordinário de prescrição de vinte anos. Porém, e de modo a evitar que o credor deixe acumular excessivamente os seus créditos, para tutelar o devedor contra a acumulação da sua dívida – e, até, contra a sua eventual insolvência -, deve aplicar-se o prazo de prescrição do art. 310.º, als. d) e e) do CC - de cinco anos a contar do respetivo vencimento8. De facto, “a lei funda-se no intuito de evitar que o credor deixe acumular os seus créditos a ponto de ser mais tarde ao devedor excessivamente oneroso pagar”9.
27. A hipótese do art. 310.º, al. e), do CC contempla, precisamente, essas obrigações híbridas ou mistas, que têm um componente de reembolso e outro de juro. Pretende-se estimular o credor na cobrança pontual das diversas prestações periódicas em que essas obrigações se dividem, evitando-se, assim, o protelamento do exercício do direito de crédito para o termo do contrato de mútuo, que teria por objeto a totalidade do montante em dívida.
28. Deste modo, tal como se encontra definitivamente decidido nos autos, “tendo a executada AA interrompido o pagamento das prestações relativas ao empréstimo da quantia de € 30.000,00 no dia 1 de Dezembro de 2014, impõe-se concluir que o direito de crédito invocado pela exequente por referência ao mencionado contrato de mútuo prescreveu no dia 1 de Dezembro de 2019 (cfr. artigo 279º, alínea c), do Código Civil)” e, por isso, antes da propositura da ação executiva – a 2 de dezembro de 2020 - de que este incidente constitui apenso. Nesses moldes, a Exequente poderia ter exercido o seu direito de crédito desde a data de vencimento da correspondente prestação, tendo então começado a correr, conforme o art. 306.º, n.º 1, do CC, o respetivo prazo de prescrição. Por conseguinte, o seu direito de exigir dos Executados o cumprimento das obrigações híbridas em apreço deve considerar-se prescrito desde dezembro de 2019 (data em que se completa o prazo de cinco anos desde o momento em que o direito à última prestação podia ser exercido).
29. É que, na medida em que a Exequente não requereu, nas suas contra-alegações, a ampliação do âmbito do recurso nos termos previstos no art. 636.º, n.º 1, do CPC - para que fosse consentido ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer desse fundamento -, formou-se caso julgado sobre essa questão. A sua apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça constituiria uma violação do princípio da proibição da reformatio in pejus (segundo o qual, grosso modo, o recorrente não pode perder mais no Tribunal ad quem do que perdeu no Tribunal a quo em ordem a garantir o próprio direito ao recurso), pondo em causa os efeitos do julgado pelas Instâncias – art. 635.º, n.º 5, do CPC.
30. O sistema de recursos é decisivamente informado pelo princípio dispositivo, sendo nulo o acórdão que exceder o âmbito das questões de que lhe cabe conhecer (arts. 615,º, n.º 1, al. d) e 666.º do CPC), salvo se forem de conhecimento oficioso.
31. Com efeito,
“O acórdão da Relação que revoga o despacho de rejeição liminar de embargos de executado, deduzidos com fundamento na prescrição do crédito exequendo, por entender ser aplicável determinado prazo que não o considerado no despacho recorrido, forma caso julgado quanto ao prazo de prescrição.”10.
Da violação ou não pelo Tribunal da Relação de Coimbra dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, previstos no art. 662.º, n.os 1 e 2, do CPC
1. Os Executados/Recorrentes alegam que o Tribunal da Relação de Coimbra violou o disposto no art. 662º, n.º 2, al. c), do CPC, pois não podia ampliar/alterar a decisão sobre a matéria de facto, aditando os factos provados sob o n.º 16-A, pois os factos tidos como assentes, a prova produzida ou o documento superveniente (que não existiu) não impunham tal alteração/ampliação.
2. Referem que, correspondendo os factos provados sob o n.º 16-A à transcrição de uma mensagem eletrónica que a advogada endereçou à L..., “tal documento junto pela embargada foi impugnado pelos ora recorrentes quanto ao seu teor ou conteúdo, à sua genuidade, autenticidade e também a sua força probatória e a sua eficácia ou meio idóneo para prova dos factos alegados pela embargada”, pelo que “assim, impugnado, como foi, o referido documento, e não tendo a embargada feito prova da sua genuidade , autenticidade ou veracidade, também quanto ao seu teor ou conteúdo, o mesmo fica destituído de força probatória plena.”
3. O Tribunal da Relação de Coimbra aditou, pois, à matéria de facto considerada como provada o ponto 16.º-A, que tem o seguinte teor:
“Em 24.07.2019, a ilustre advogada da executada AA endereçou a L... um e mail para o email «...» no qual expendeu nos seguintes termos:
«Na qualidade de advogada da Srª AA, na sequência da carta de VªsExªs lhe endereçaram informando da cessão de créditos do Banco CEMG…sou a expor e solicitar, em nome da minha constituinte, o seguinte:
Como sabem, tinha a minha constituinte um crédito à CEMG que entretanto vos foi cedido.
…estava a minha constituinte a renegociar a dívida…que entretanto não foi concluída em virtude da cessão de créditos…
A minha constituinte pretende pagar a sua dívida, renegociando os montantes que sabe ter em atraso.
Em face do exposto muito agradecia que me informassem qual o valor actual da dívida e ainda a melhor forma de proceder ao seu pagamento em prestações mensais e sucessivas»
4. Como justificação para tal aditamento, o Tribunal da Relação de Coimbra refere o seguinte:
“Não obstante, urge aditar um novo facto ao abrigo do artº 662º nº2 al. c) do CPC, pois que se encontram presentes todos os elementos probatórios produzidos nos autos.
A embargada alegou na contestação que os embargantes foram interpelados para o pagamento do valor em dívida e que não apenas lhe responderam, como através da sua ilustra mandatária, tentaram a resolução extrajudicial do valor em dívida – artºs 91º a 94º.
Carreou prova para o processo nesse sentido, vg. através da junção do doc. de fls. 50.
Os embargantes impugnam a genuinidade e valor probatório dos documentos apresentados pela embargada.
Mas fazem-no genérica e tabelarmente sem aduzirem razões concretas para tal postura.
Ora não basta, em abono e defesa da verdade e da justiça, que as partes adotem uma postura com aproveitamento formal e comodista das normas legais, aqui o artº 374º nº2 do CC; urge ainda convencer, ou, ao menos, tentar convencer, com argumentos alicerçantes da boa razão substancial da sua conduta processual.
Assim sendo, verifica-se que o aludido documento é um email enviado pela ilustre advogada dos embargantes.
Nada nos autos inculca a ideia de que tenha sido forjado ou alterado nos seus dizeres, antes nele se contendo todos os elementos, vg., data de envio, e mail de origem e de destino, que convencem da sua veracidade.
Assim sendo, atento tal documento e as demais elementos probatórios dos autos, bem como outros factos apurados que nos dizem que em 2018 e 2019 existiram comunicações entre as partes relativas às dívidas em causa – cfr. os dos pontos 15 a 17 -, há que dar como provado o factualismo relevante, atentas as alegações das partes e o objeto da lide, nele ínsito.”
5. Pode, assim, dizer-se que o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu incluir na factualidade dada como provada aqueles sob o n.º 16-A, relativos ao envio, a 24 de julho de 2019, de uma mensagem eletrónica pela advogada da Executada AA à sociedade L..., facto este que o Tribunal de 1.ª Instância não considerou na sua decisão.
6. Da análise dos recursos de apelação interpostos por ambas as partes resulta que em nenhum deles é solicitado o aditamento dos referidos factos.
De um lado, no recurso de apelação interposto pelos Executados, ora Recorrentes, a impugnação da matéria de facto limitou-se ao facto provado sob o n.º 13 e ao facto não provado sob o n.º 1, em matéria relacionada com a interrupção do pagamento das prestações do contrato de mútuo de € 80.000,00 por parte da Executada AA.
De outro lado, no recurso de apelação interposto pela Exequente, ora Recorrida, apesar de se mencionar a declaração de reconhecimento de dívida enviada a 23 de julho de 2019 por mensagem eletrónica, remetendo para o teor do documento n.º 9 junto com a contestação, não se impugnou a decisão sobre a matéria de facto, conformando-se a Exequente com a decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a factualidade dada como provada e não provada. Com efeito, das alegações do seu recurso de apelação resulta claramente que a Exequente não observou qualquer dos ónus de alegação previstos no arat. 640.º, n.º 1, do CPC. Por conseguinte, o seu recurso de apelação restringiu-se exclusivamente a matéria de direito.
7. No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra apenas apreciou a impugnação da matéria de facto contida no recurso de apelação dos Executados - com o objeto identificado supra -, não tendo ponderado qualquer alteração da matéria de facto requerida pela Exequente.
8. O Tribunal da Relação de Coimbra justificou o aditamento dos factos dados como provados sob o n.º 16-A, referindo, ao abrigo do disposto no art. 662º, n.º 2, al. c), do CPC, “que se encontram presentes todos os elementos probatórios produzidos nos autos.”
9. De acordo com o art. 662.º, n.º 1, do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” e, segundo o n.º 2, al. c), do mesmo preceito, a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente, “anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
10. A este propósito, o Supremo Tribunal de Justiça tem decidido que o Tribunal da Relação excede os poderes que lhe são legalmente conferidos se introduzir alterações a pontos de facto não impugnados pelos recorrentes, exceto nos casos em que houver ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova ou ainda se, existindo essa prova no processo, a mesma tiver sido desconsiderada, excetuando-se ainda os casos em que a Relação tenha de proceder à harmonização dos factos modificados com outros não impugnados com a finalidade de evitar contradições11.
32. O aditamento oficioso pelo Tribunal da Relação à factualidade considerada como provada de outra matéria, ao abrigo do disposto no art. 5.º, n.º 2, al. b), do CPC, não tendo nenhuma das partes impugnado esta parte da decisão da matéria de facto nas alegações dos respetivos recursos de apelação, conformando-se com a mesma, configura o vício de nulidade da decisão por excesso de pronúncia12.
33. In casu, o Tribunal da Relação de Coimbra fundamentou a decisão de aditar os factos dados como provados sob o n.º 16-A no teor de um documento particular junto pela Exequente – mensagem eletrónica enviada pela Ilustre Advogada dos Embargantes - constante de fls. 50 dos autos. Apesar de os Executados/Embargantes terem impugnado o caráter genuíno e o valor probatório dos documentos apresentados pela Exequente/Embargada, o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que o fizeram de forma “genérica e tabelarmente sem aduzirem razões concretas para tal postura.”
34. Conforme o Tribunal da Relação de Coimbra, “nada nos autos inculca a ideia de que tenha sido forjado ou alterado nos seus dizeres, antes nele se contendo todos os elementos, vg., data de envio, e mail de origem e de destino, que convencem da sua veracidade. Assim sendo, atento tal documento e as demais elementos probatórios dos autos, bem como outros factos apurados que nos dizem que em 2018 e 2019 existiram comunicações entre as partes relativas às dívidas em causa – cfr. os dos pontos 15 a 17 -, há que dar como provado o factualismo relevante, atentas as alegações das partes e o objeto da lide, nele ínsito.”
35. Não está, assim, em causa qualquer prova tarifada ou vinculada, nem o aditamento do facto em apreço se destinou à harmonização dos factos modificados com outros não impugnados com a finalidade de evitar contradições (arts. 662.º, n.º 1, e 635.º do CPC).
36. Na verdade, os factos aditados sob o n.º 16-A não se encontram sequer indicados nos articulados, mas apenas num documento para o qual a Exequente remete na sua contestação. Nos artigos 93.º e 94.º desse articulado, é apenas referido o seguinte: “93.º - Como inclusivamente os Embargados e a sua Ilustre Mandatária tentaram a resolução extrajudicial do valor aqui em dívida. Conforme Docs. 9 e 10 que ora aqui se juntam e se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais. 94.º - Resolução extrajudicial que não se alcançou uma vez mais por incumprimento dos Embargantes.”
37. A alegação contida na contestação é, assim, manifestamente conclusiva e destituída de conteúdo para poder consubstanciar a alegação de factualidade que interrompa o decurso do prazo de prescrição nos termos previstos no art. 325.º do CC
38. Os factos devem ser alegados nos articulados e não por mera remissão para o teor de documentos juntos com essas peças processuais que constituem meros meios de prova de factos cuja alegação deve ser feita nesses mesmos articulados da ação.
39. Tratando-se de factualidade respeitante a um eventual reconhecimento de dívida por parte dos Executados, ora Recorrentes, para o efeito da interrupção da prescrição nos termos previstos no art. 325.º do CC, não pode deixar de ser considerada como factualidade essencial que serve de base à exceção invocada pela Exequente (reconhecimento de dívida como facto interruptivo da prescrição) à exceção perentória modificativa invocada pelos Executados (prescrição).
40. Deste modo, essa factualidade insere-se no art. 5.º, n.º 1, do CPC, não podendo tão pouco ser objeto de consideração pelo Julgador nos termos do n.º 2 desse preceito. A norma do n.º 2 apenas prevê os factos instrumentais [al. a)], os factos complementares ou concretizadores de factos essenciais oportunamente alegados [al. b)] e os factos notórios ou que sejam do conhecimento funcional do Tribunal [al.c)].
41. O Tribunal da Relação de Coimbra alterou, assim, a matéria de facto provada, aditando factos respeitantes a um novo evento interruptivo da prescrição invocada pelos Executados/Embargantes, sem que esse aditamento tenha sido pedido por qualquer das partes nos seus recursos de apelação. Também na decisão de facto do Tribunal de 1.ª Instância, em que essa matéria não se encontra incluída nem no elenco dos factos provados e nem naquele dos não provados (conforme mencionado supra, os factos em causa não foram concretamente alegados nos articulados), não se deteta qualquer deficiência, obscuridade ou contradição que permitisse ao Tribunal da Relação de Coimbra aditar os referidos factos.
42. Importa considerar que, não tendo nenhuma das partes impugnado a matéria de facto em causa, relativa à consideração de outros factos interruptivos da prescrição, para além dos factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª Instância, a sentença, nessa parte, transitou em julgado. Por isso, a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra consubstancia uma violação do princípio da reformatio in pejus, pondo em causa os efeitos do julgado com o referido aditamento factual – art. 635.º, n.º 5, do CPC.
43. Assim, de acordo com a jurisprudência supra referenciada, pode afirmar-se que o Tribunal da Relação de Coimbra excedeu os seus poderes quando aditou factualidade em matéria não impugnada, incorrendo em excesso de pronúncia. Por conseguinte, nessa parte, o acórdão recorrido é nulo (art. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC).
44. Os Executados/Embargantes/Recorrentes não invocaram nas suas alegações a nulidade do acórdão recorrido, referindo antes o erro em que o Tribunal da Relação de Coimbra incorreu no aditamento da referida factualidade em violação dos poderes que o art. 662.º do CPC lhe confere. Porém, não estando o Tribunal vinculado pela qualificação jurídica indicada pelas partes (art. 5.º, n.º 3, do CPC), julga-se que, materialmente, os Recorrentes mencionaram o vício do acórdão recorrido, que se traduz no referido excesso de pronúncia. No fundo, os Recorrentes invocam que o Tribunal da Relação de Coimbra excedeu os poderes que a lei lhe confere, alterando a matéria de facto provada em termos que não lhe eram permitidos.
45. Cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça suprir esse vício, entende-se que, nessa parte, o recurso de revista procede. Por isso, deve ter-se por não escrita essa parte do acórdão recorrido, eliminando-se os factos dados como provados sob o n.º 16-A aditados pelo Tribunal da Relação de Coimbra (arts. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, e 684.º, n.º 1, do CPC).
46. Ainda que assim se não entenda13, mesmo que que se considere que a situação em apreço não configura uma nulidade do acórdão recorrido (por o excesso de pronúncia se reportar unicamente a questões de direito e não a factos), está em causa um uso indevido ou deficiente, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, dos poderes que a lei lhe atribui. Por isso, sempre se imporia revogar, nesta parte, o acórdão recorrido, não se ponderando o referido aditamento factual levado a cabo pela Relação de Coimbra.
47. Perante a não consideração dos factos dados como provados sob o n.º 16-A, aditados pelo Tribunal da Relação de Coimbra, fica prejudicado o conhecimento da segunda questão enunciada pelos Recorrentes: saber se esses factos, aditados pela Relação, permitem concluir pela verificação de um reconhecimento da dívida que atue como facto interruptivo da prescrição nos termos do art. 325.º do CC.
48. Não se levando em linha de conta essa factualidade aditada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não se verifica a interrupção da prescrição do direito à perceção das quantias exequendas, emergente do contrato de mútuo no valor de €30.000,00. Consequentemente, estando as restantes questões discutidas nos autos cobertas pela força do caso julgado, entende-se que deverá ser repristinada a decisão do Tribunal de 1.ª Instância.
49. Com efeito, de acordo com a sentença do Tribunal de 1.ª Instância, aplicando-se o prazo de prescrição de cinco anos, previsto no art. 310.º, al. e), do CC, como se encontra definitivamente decidido nos autos, “tendo a executada AA interrompido o pagamento das prestações relativas ao empréstimo da quantia de € 30.000,00 no dia 1 de Dezembro de 2014, impõe-se concluir que o direito de crédito invocado pela exequente por referência ao mencionado contrato de mútuo prescreveu no dia 1 de Dezembro de 2019 (cfr. artigo 279º, alínea c), do Código Civil)” e, por isso, antes da propositura da ação executiva – a 2 de dezembro de 2020 - de que este incidente constitui apenso.
50. Assim, encontrando-se prescrito o direito de crédito invocado pela Exequente, por referência ao contrato de mútuo no valor de € 30.000,00, afigura-se legítima a recusa do cumprimento da obrigação que impendia sobre os Executados/Embargantes, nos termos do disposto no art. 304º, n.º 1, do CC. Isto acarreta, naturalmente, nessa parte, a extinção da execução.
51. Por outro lado, conforme o art. 732.º, n.º 5, do CPC, “para além dos efeitos sobre a instância executiva, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda”.
52. Consequentemente, tal como é afirmado na sentença do Tribunal de 1.ª Instância, com o trânsito em julgado da decisão proferida nestes autos, ficará definitivamente assente, entre as partes, a inexigibilidade da obrigação exequenda decorrente do contrato de mútuo no valor de € 30.000,00. Impõe-se, por isso, julgar procedente o pedido de declaração da extinção da hipoteca a que se reporta a apresentação n.º 16, de 19 de maio de 2006 e consequente cancelamento do registo dessa mesma hipoteca.
53. Recorde-se, por último, que:
- na relação de tensão dialética em que a justiça e a segurança se encontram, as normas que estabelecem prazos de prescrição ilustram um exemplo de prevalência do valor segurança sobre o valor justiça;
- o processo civil consubstancia-se numa sequência de atos jurídicos praticados pelas partes que estão ordenados para um fim – a resolução de conflitos de interesses privados comuns -, que é desejavelmente uma decisão final de mérito proferida por um ou mais juízes; na fase dos articulados, as partes expõem a sua versão do litígio e formulam as suas pretensões, alegando a matéria de facto e de direito relevante para a decisão; os articulados são então os factos que interessam à formação do pedido e da defesa (art. 147.º do CPC); na contestação, o réu, conforme os arts. 569.º e 572.º do CPC, deve expor, inter alia, as razões de facto e de direito da sua discordância; nos fundamentos de facto, o Juiz está, em grande medida, limitado àquilo que é alegado pelas partes; os factos essenciais são alegados pelas partes – o Julgador não alega, apenas conhece e decide; no apuramento da verdade, visando a justa composição do litígio, o Juiz apenas pode conhecer dos factos cujo conhecimento lhe é consentido.
IV - Decisão
Nos termos expostos, acorda-se em:
- rejeitar parcialmente o conhecimento do objeto do recurso interposto pelos Executados/Embargantes AA, BB e CC, por verificação de dupla conformidade decisória parcial, relativamente à parte do acórdão recorrido que manteve a decisão do Tribunal de 1.ª Instância de prosseguimento da execução quanto às quantias em dívida referentes ao contrato de mútuo no valor de € 80.000,00;
- julgar parcialmente procedente o recurso de revista interposto pelos Executados/Embargantes AA, BB e CC e, em consequência:
- declarar a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, eliminando-se da matéria de facto provada o ponto 16-A aditado pela Relação;
- repristinar in totum a decisão do Tribunal de 1.ª Instância.
Custas na proporção do decaimento.
Lisboa, 5 de Setembro de 2023
Maria João Vaz Tomé (Relatora)
António Magalhães
Jorge Arcanjo
_____________________________________________
1. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de julho 2021 (Fernando Baptista), proc. n.º 2010/12.6TBGMR.G2.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, a título exemplificativo, vide os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de novembro de 2020 (Maria da Graça Trigo), proc. n.º 214/17.4T8MNC.G1.S1; de 17 de novembro de 2020 (Acácio das Neves), proc. n.º 484/18.0T8MDL.G1.S1; de 16 de dezembro de 2020 (Rosa Tching), proc. n.º 12380/17.4T8LSB.L1.S1; de 12 de janeiro de 2021 (Fernando Samões), proc. n.º 1141/18.3T8PVZ.P1-A.S1; de 2 de março de 2021 (Graça Amaral), proc. n.º 2622/19.7T8VNF-B.G1.S1; de 10 de maio de 2021 (Ricardo Costa), proc. n.º 4679/19.1T8CBR-C.C1.S1; e de 17 de junho de 2021 (Tibério Nunes da Silva), proc. n.º 5569/16.5T8VIS.C1.S1 - disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.↩︎
2. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de setembro de 2020 (Ricardo Costa), proc. n.º 12651/15.4T8PRT.P1.S1 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎
3. Vide, nesse sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de novembro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1; de 21 de setembro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 2380/08.0TBSTS.P2.S1; de 10 de fevereiro de 2022 (Maria da Graça Trigo), proc. n.º 337/16.7T8CSC.L1.S1; de 9 de dezembro de 2021 (Catarina Serra), proc. n.º 1420/18.0T8PVZ.P1.S1; de 7 de julho de 2021 (Ricardo Costa), proc. n.º 5835/18.5T8BRG.G1.S1; de 14 de julho de 2021 (Fernando Baptista), proc. n.º 65/18.9T8EPS.G1.S1; de 9 de fevereiro de 2021 (Fátima Gomes), proc. n.º 753/08.8TBLGS.E1.S1; e de 14 de janeiro de 2021 (Maria da Graça Trigo), proc. n.º 4986/15.2T8LLLE.E1.S1 - disponíveis para consulta in www.dgsi.pt.↩︎
4. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de julho de 2021 (Ricardo Costa), proc. n.º 5835/18.5T8BRG.G1.S1 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎
5. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de novembro de 2021 (Oliveira Abreu), Reclamação n.º 22990/16.1T8PRT-B.P1-A.S1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt. Neste sentido, vide ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de novembro de 2021 (Tibério Nunes da Silva), proc. n.º 712/19.5T8LSB.L1.S1; de 4 de novembro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1; de 9 de junho de 2021 (Ricardo Costa), Incidente n.º 1035/10.0TYLSB-B.L1.S1; de 22 de junho de 2021 (Maria Clara Sottomayor), proc. n.º 15319/16.0T8PRT.P1.S1; de 6-de maio de 2021 (Oliveira Abreu), proc. n.º 1097/16.7T8FAR.E2.S1; de 29 de abril de 2021 (João Cura Mariano), proc. n.º 115/16.3T8PRG.G1.S1; de 2 de março de 2021 (Graça Amaral), proc. n.º 2622/19.7T8VNF-B.G1.S1; de 2 de março de 2021 (Ricardo Costa), proc. n.º 30690/15.3T8LSB.L1.S1; e de 18 de março de 2021(Tibério Nunes da Silva), proc. n.º 22563/19.7T8LSB.L1.S1 – disponíves para consulta in www.dgsi.pt.↩︎
6. Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020, p. 413.↩︎
7. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de janeiro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 20767/16.3T8PRT-A.S216 de junho de 2020 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 23762/15.6T8PRT-A.P1.S1; de 29 de setembro de 2016 (Lopes do Rego), Proc. n.º 201/13.1TBMIR-A.C1.S1; de 27 de março de 2014 (Silva Gonçalves), Proc. n.º 189/12.6TBHRT-A.L1.S1; de 5 de junho de 2018 (Hélder Almeida), Proc. n.º 9678/16.0T8PRT.P1.S1; de 18 de outubro de 2018 (Olindo Geraldes), Proc. n.º 2483/15.5T8ENT-A.E1.S1.
Vide, ainda, Ana Filipa Morais Antunes, “Algumas Questões sobre Prescrição e Caducidade”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, Vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 44-45.↩︎
8. Cf. Fernando Gravato Morais, Manual da Locação Financeira, Coimbra, Almedina, 2011, p.110.↩︎
9. Cf. Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra, 1972, p.452.↩︎
10. Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de outubro 2001 (Silva Paixão), Agravo n.º 2831/01.↩︎
11. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2017 (Fernanda Isabel Pereira), proc. n.º 1512/07.0TBCSC.L1.S1 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎
12. Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de janeiro de 2021 (Maria João Vaz Tomé), proc. n.º 1307/14.5T8PDL.L1.S1); de 22 de fevereiro de 2017 (Fernanda Isabel Pereira), proc. n.º 1512/07.0TBCSC.L1.S1; de 2 de dezembro de 2013 (Ana Paula Boularot), proc. n.º 34/11.0TBPNI.L1.S1 – disponíveis para consulta in www.dgsi.pt; de 18 de dezembro de 2012 (Orlando Afonso), proc. n.º 1965/07.7TBPNF.P1.S1.↩︎
13. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de dezembro de 2012 (Orlando Afonso), proc. n.º 1965/07.7TBPNF.P1.S1.↩︎