ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
INEFICÁCIA
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
IMPULSO PROCESSUAL
Sumário


I - Tendo sido ordenada a notificação dos “Requerentes para, no prazo de 10 dias, apresentarem o aludido levantamento topográfico, sob pena dos presentes autos prosseguiram sem o mesmo”, a regra do esgotamento do poder jurisdicional impede que, posteriormente, o tribunal julgue deserta a instância, com fundamento no facto os requerentes não terem junto aquele documento.
II – A consequência é a ineficácia do despacho que julgou deserta a instância e o prosseguimento dos autos.
III - São dois os pressupostos da deserção da instância: a) um de natureza objectiva - que o processo se encontre parado, a aguardar impulso processual das partes, há mais de seis meses; b) outro de natureza subjectiva - que essa paragem, se fique a dever a negligência das partes.
IV - O ónus das partes, de impulsionar o processo, só existe quando estiver especialmente previsto na lei (como sucede com a habilitação de herdeiros e a constituição de novo advogado pelo autor, após a renúncia do anterior, nos casos em que seja obrigatória a constituição de advogado).
V - Onde ou quando não estiver especialmente imposto esse ónus, é ao juiz que cumpre dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, resolvendo, de acordo com as normas de direito processual e substantivo aplicáveis, as situações que se forem deparando.

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
           
1. Relatório

A 21/09/2016 AA e BB intentaram Acção de Divisão de Coisa Comum contra CC e mulher, DD.

Pediram a divisibilidade do prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º ...76... e do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º ...51 e a indivisibilidade do prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º ...77..., todos da freguesia ..., concelho ....

Os requeridos contestaram invocando, em síntese, quanto:
- ao prédio urbano inscrito na matriz sob art.º ...51, o caso julgado;
- ao prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º ...77..., que são os seus únicos proprietários;
- ao prédio rústico ...76..., a sua indivisibilidade.

No desenvolvimento dos autos e no que releva à economia do recurso, a 25/04/2019 foi proferido o seguinte despacho:
“Com vista a conhecer das questões incidentais suscitadas, para tomada de declarações de parte dos requerentes e inquirição das testemunhas arroladas designa-se o dia 17.10.2019, pelas 09.30 horas, neste Tribunal.

A 17/10/2019 teve lugar a referida diligência, na qual foi designado o dia 07/11/2019 para realização de uma inspeção ao local.

A 07/11/2019 teve lugar a ordenada diligência, constando da Ata:
“Reaberta a audiência o tribunal deslocou-se de imediato ao local da questão, sito no Largo ..., Quinta ..., ..., onde se procedeu à inspecção ordenada.

*
Efectuada a inspecção e regressados à sala de audiência, foi requerida a palavra pela Il. mandatária dos requerentes.
Mandatária dos requerentes: Requerimento a requerer perícia e prazo para apresentar quesitos.
Início: 15:51:25 / Fim: 15:55:25
Mandatária dos requeridos: Requerimento a opor-se parcialmente quanto à prova pericial requerida.
Início: 15:51:30 / Fim: 15:57:31
*
Seguidamente pela Mmª Juiz foi proferido o seguinte:
Despacho
Por se afigurar pertinente a perícia ora requerida pelas partes, em face das divergências das partes quanto às configurações do prédio em causa e benfeitorias nele implementadas, quanto ao artº ..., defere-se a mesma, com o objeto ora indicado sobre o referido artigo, deferindo o requerido prazo de 5 dias para as partes indicarem os quesitos sobre os quais o perito se deverá pronunciar.
Para o efeito, designe a secção perito idóneo, o qual desde já se nomeia, fixando-se o prazo de 30 dias para apresentação do relatório, devendo ainda o srº perito prestar o compromisso por escrito.
Quanto ao demais, perícia requerida quanto ao artº ... e ao prédio urbano nº ...51, uma vez que não estão ainda decididas as excepções invocadas, por forma a evitar a prática de atos inúteis, vai por ora indeferido, sem prejuízo de, improcedendo tais excepções, o tribunal oportunamente, se assim o entender, determinar oficiosamente a perícia relativamente a estes prédios.”

As partes indicaram as questões que pretendiam ver esclarecidas e a Secretaria indicou perita, que notificada a 14/01/2020 veio dizer:
“Tendo sido nomeada para intervir no processo supra referido e após análise dos elementos enviados, verifico que para responder à matéria constante dos requerimentos, torna-se necessário que me seja fornecido Levantamento Topográfico em formato papel e em formato digital do prédio rústico ... da freguesia de, concelho ....”

A 21/01/2020 foi proferido o seguinte despacho:
Notifique as partes para se pronunciarem sobre o solicitado pela Perita nomeada nos autos, no requerimento que antecede, no prazo de cinco dias.

A 31/01/2020 os requeridos requereram a junção aos autos do levantamento topográfico do prédio rústico ...76... da freguesia ..., concelho ....

Os requerentes disseram que não dispunham de nenhum levantamento topográfico, e que o junto pelos Requeridos, não retrata a situação real, não estando as áreas correctas.

A 04/05/2020 foi proferido o seguinte despacho:
As partes requereram nestes autos a perícia determinada em 7.11.2019.
A Sra. Perita nomeada nos autos veio dar conta de que para a realização da perícia necessita do levantamento topográfico do prédio rústico ...76..., sem o qual não poderá realizar a mesma.
Os réus na acção CC e DD, vieram apresentar o levantamento topográfico de que dispõem.
Os autores vieram informar que não dispõem de qualquer levantamento topográfico do prédio em causa e que o apresentado pelos réus não está correcto, sendo que não explicitam os termos de tal incorrecção.
Em face do exposto, considerando que os autos não podem ficar no impasse, notifique os autores para informarem se aceitam o levantamento topográfico apresentado nos autos pelos réus, ou alegarem e/ou requererem o que tiverem por conveniente, no prazo de dez dias, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção, nos termos previstos no artigo 281.º, do CPC.

A 25/05/2020 os requerentes disseram que o levantamento topográfico apresentado não está correcto quanto às áreas e requereram o prazo de 15 dias para mandar fazer e apresentar levantamento topográfico.

A 23/06/2020 foi proferido o seguinte despacho:
Defere-se o requerido prazo de 15 dias para os requerentes apresentarem nos autos o levantamento topográfico referido.

A 14/07/2020 os requerentes requereram mais cinco dias.

A 17/09/2020 foi proferido o seguinte despacho:
Defere-se, pela última vez, o requerido prazo de 5 dias para os Requerentes apresentarem nos autos o levantamento topográfico.

Os requerentes nada disseram ou requereram.

A 03/11/2020 foi proferido o seguinte despacho:
Aguardem os autos o decurso do prazo a que se refere o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Notifique os autores do teor do presente despacho.

A 06/05/2021 os requerentes requereram um prazo de 30 dias para juntarem aos autos levantamento topográfico.

A 10/05/2021 os requeridos opuseram-se ao diferimento do requerido pelos requerentes e requereram o prosseguimento dos autos, socorrendo-se o Sr. Perito do levantamento topográfico junto pelos mesmos.

A 09/06/2021 foram proferidos os seguintes despachos:
- quanto ao requerimento dos requerentes:
Não se questionando a bondade dos argumentos aventados, o certo é que, e sem prejuízo do teor do despacho de 20 de Setembro 2021, os presentes autos aguardam desde Julho de 2020 a junção os autos, pelos Requerentes, do competente levantamento topográfico.
Assim, ante o lapso temporal decorrido, os presentes autos não se compadecem com outra decisão de prorrogação do prazo concedido para elaboração do competente levantamento topográfico, pelo que, e sem necessidade de mais considerações, indefere-se a prorrogação do prazo para apresentarem nos autos o levantamento topográfico.
Destarte, notifique os Requerentes para, no prazo de 10 dias, apresentarem o aludido levantamento topográfico, sob pena dos presentes autos prosseguiram sem o mesmo.
- quanto ao requerimento dos requeridos:
Nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, «considera-se deserta a instância executiva, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses».
Ora, decorre dos autos que, os mesmos aguardam o competente impulso processual por parte dos Requerentes e dos Requeridos, desde 4 de Novembro de 2021.
De facto, nem os Requeridos, devidamente notificados do despacho que determinou que os autos ficassem o aguardar o prazo a que alude o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, se pronunciaram ou requereram o quer que fosse.
Todavia, com a entrada em vigor, em 22 de Janeiro de 2020, do artigo 6.º-B, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março com as alterações introduzidas pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, consideraram-se suspensos todos os prazos para a prática de actos processuais, incluindo o prazo a que alude o citado artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, até dia 6 de Abril de 2021, data da entrada em vigor da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril e da cessação do regime de suspensão de prazos.
Daí que, e porque os presentes autos não estiveram parados, mais de 6 meses, por inércia de qualquer uma das partes, não se encontra a presente instância deserta.”

A 30/09/2021 foi proferido o seguinte despacho:
Notifique as partes para, querendo, em dez dias, se pronunciarem quanto à ausência de impulso processual.

A 11/10/2021 pronunciaram-se os requeridos, requerendo o prosseguimento dos autos apenas com o levantamento topográfico junto pelos mesmos.

A 18/10/2021 os requerentes vieram dizer que “apresentarão o levantamento topográfico em dez dias.”

A 20/12/2021 foi proferido o seguinte despacho:
Despachos de 2020.11.03 (Ref.ª ...72), de 2021.06.09 (Ref.ª ...37) e de 2021.09.30 (Ref.ª ...01) e respectivas notificações:
Nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1 do CPC, face à ausência de impulso processual, e à postura das partes, mormente dos autores, por referência aos despachos supra mencionados, declara-se a presente instância deserta.
Notifique.
Custas a cargo dos autores.

A 28/01/2022 interpuseram os requeridos recurso, pretendendo que, na procedência dos mesmo, devem os autos prosseguir sem o documento que os requerentes foram convidados a juntar e ser realizada perícia com os documentos disponíveis nos autos ou outros de que o perito necessite e que, para o efeito, deve, ele próprio, requerer junto das respetivas entidades, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I. O despacho que decidiu a deserção da instância merece censura por razões de direito.
II. As razões da discordância dos recorrentes com o despacho recorrido prendem-se com as questões de não estarem preenchidos os pressupostos da deserção da instância, porque se extinguiu o poder jurisdicional quando foi proferido despacho que considerou o prosseguimento dos autos se os recorridos não juntassem a planta topográfica no prazo de 10 dias, porque a decisão que julgou a instância deserta peca por falta de fundamentação, e, por fim, porque, tal falta deveria relevar apenas para efeito de falta de prova, cometendo-se violação do princípio da igualdade para a parte que cumpriu se a sua falta for considerada um pressuposto de verificação da deserção da instância.
III. A perícia para definir as configurações de um prédio rústico e as benfeitorias nele realizadas é um meio de prova que foi requerido pelas partes e cuja apresentação radica na sua inteira disponibilidade.
IV. O perito, para efeitos de realização do relatório, requereu ao tribunal que as partes juntassem uma planta topográfica do prédio.
V. Os recorrentes juntaram essa planta topográfica, nunca o tendo feito os requeridos.
VI. Os requeridos pediram várias prorrogações de prazo para apresentação do documento o que lhes foi concedido.
VII. Ao requerimento dos requeridos onde pediram nova prorrogação de prazo para apresentação da planta topográfica, o tribunal a quo decidiu por despacho datado de 09.06.2021 com a referência ...19, que, se os recorridos não juntassem aos autos a planta topográfica pedida pelo perito, os autos prosseguiriam os seus termos.
VIII. No entanto, posteriormente, ao arrepio do despacho já proferido, o tribunal convocou as partes para serem ouvidas acerca da deserção da instância.
IX. Os recorrentes responderam, dizendo, para tanto, que não estavam preenchidos os pressupostos da deserção da instância por se tratar duma mera faculdade e que, a perita poderia levar a cabo a perícia requerida pelas partes, fazendo ela própria o levantamento topográfico do prédio ou socorrendo-se da planta apresentada pelos recorrentes.
X. O tribunal, ainda assim, perante o despacho já proferido no sentido de que os autos prosseguiriam os seus termos se os recorridos não apresentassem a planta topográfica no prazo de 10 dias, e que não foi colocado em crise, proferiu novo despacho que considerou a instância deserta.
XI. Os recorrentes entendem que não estão verificados os pressupostos da deserção da instância.
XII. A deserção da instância é consequência do não cumprimento de um ónus e não duma faculdade concedida às partes.
XIII. Os recorrentes entendem que a não apresentação da planta topográfica pelos recorridos é uma mera faculdade pois trata-se de um documento que fará parte de um meio de prova que as partes requereram – a perícia e que, portanto, a parte não colaborante terá de ter o prejuízo próprio da não apresentação desse meio de prova.
XIV. A não junção aos autos de um levantamento topográfico, não é determinante para o não prosseguimento dos autos, já que, tratando-se de uma perícia requerida pelas partes onde se pretende ver demonstrada a configuração do prédio e as benfeitorias realizadas no mesmo, a parte não colaborante tem de ver coartado o meio de prova que pretendia ver produzida e a parte colaborante  apresentar tal meio de prova – no caso a requerida perícia.
XV. Há extinção do poder jurisdicional sobre a questão do prosseguimento dos autos sem a apresentação do documento pedido às partes quando é proferido despacho no sentido do prosseguimento, não podendo, depois, ser proferido despacho em sentido inverso, ou seja, que considere a instância deserta pela falta de tal junção.
XVI. Da extinção do poder jurisdicional decorre um efeito positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão que proferiu, e um negativo – representado pela insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar o que, não permite a deserção da instância pelos fundamentos que o tribunal invocou.
XVII. O despacho que julgou deserta a instância peca por falta de fundamento quando não revela porque é que a falta do documento pedido aos recorridos deva ser considerada um ónus de impulso processual devido por essa parte e porque é que a falta do mesmo deva ser entendida como negligência da parte que determine a paralisação do processo até culminar na deserção da instância.
XVIII. É injusto que a parte colaborante seja sancionada.
XIX. Os Recorrentes aderiram, de imediato, ao pedido pelo perito promovendo a junção aos autos da planta topográfica do prédio e os requerentes/recorridos poderiam ter igualmente juntado uma outra planta topográfica do mesmo prédio, mas optaram por nada fazer, sendo que é do seu interesse fazê-lo, pois é também do seu direito que estamos a falar.
XX. O dever de gestão processual, consagrado no artigo 6º do CPC tem aqui inteiro campo de aplicação, sendo que, a paralisação da ação decorrente da decisão sub judice e, consequente extinção da instância, sem decisão de mérito prejudica a parte que cumpriu o dever de colaboração e favorece a parte que o desrespeitou, o que consiste numa violação da regra da igualdade das partes, prevista no artigo 4º do CPC.
XXI. No que respeita aos imóveis inscritos sob os artigos ...51º (urbano) e ...77... (rústico) foram invocadas exceções que não dependem de prova e que, por essa razão, já deviam ter sido decididas, sendo que, um non liquet provocado pela deserção da instância prejudica também os direitos invocados pelos recorrentes.
XXII. Numa ação de divisão de coisa comum no qual os requeridos/recorrentes também pretendem por fim à compropriedade, a deserção da instância causa-lhes prejuízo grave porque a extingue e não profere decisão de mérito.
XXIII. O despacho recorrido violou, por erro de subsunção, aplicando e desaplicando mal o regime dos artigos 281º nº 1, 613º nº 3, 6º e 4º do Código de Processo Civil.
NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:
Artigos 281º nº 1, 613º nº 3 e 6º do CPC., não tendo, no entender do recorrente, aplicação a primeira e terem de convocar-se a segunda, terceira e quarta daquelas normas.

Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.

A 27/09/2022 foi proferido despacho de admissão do recurso, tendo os autos sido remetidos a este tribunal a 24/01/2023.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida,

O Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” ( cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, Almedina, p. 139) (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida).
 
Os recorrentes suscitam três questões: não se verificam os pressupostos da deserção da instância; o despacho recorrido padece de falta de fundamentação; e estava esgotado o poder jurisdicional.

Desde já se dirá que não se conhecerá da segunda questão porque a falta (absoluta) de fundamentação constitui fonte de nulidade nos termos do disposto no art.º 615, nº 1, alínea b), do CPC. Porém, os recorrentes não invocam nem pedem a declaração da referida nulidade.

Em segundo lugar a lógica impõe que se conheça em primeiro lugar da questão do esgotamento do poder jurisdicional.

3. Fundamentação de facto

A factualidade a considerar é constituída pelas incidências processuais descritas no Relatório do Acórdão.
           
4. Direito
4.1. Esgotamento do poder jurisdicional
4.1.1. Enquadramento jurídico

Dispõe o art.º 613º n.º 1 do CPC, aplicável aos despachos, nos termos do n.º 3 do mesmo normativo, que proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.

Decorre deste normativo que fica vedado ao juiz que proferiu a decisão, revogá-la ou modificá-la.

Como se refere no Ac. da RC de 17/04/2012, processo 116/11.8T2VGS.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc, da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão, decorre um efeito negativo, que é a insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar, e um efeito positivo, que é a vinculação desse mesmo tribunal à decisão por ele proferida.

A referida regra assenta em razões de certeza e segurança jurídica.

A regra do esgotamento do poder jurisdicional comporta excepções, mas em termos muito limitados, dispondo o n.º 2 do art.º 613º que é lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.

Por outro lado, dispõe o n.º 1 do art.º 625º do CPC que, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.

4.1.2. Em concreto

Por despacho de 09/06/2021, foi ordenada a notificação dos “Requerentes para, no prazo de 10 dias, apresentarem o aludido levantamento topográfico, sob pena dos presentes autos prosseguiram sem o mesmo”.

No prazo assinado os requerentes não juntaram o levantamento topográfico.

Tendo o tribunal, por despacho de 09/06/2021, declarado que caso os requerentes não juntassem, no prazo de 10 dias, o levantamento topográfico, os “presentes autos prosseguirão sem o mesmo”, a regra do esgotamento do poder jurisdicional impedia que o tribunal decidisse de forma contrária.

Porém, a 20/12/2021 o tribunal veio a decidir julgar extinta a instância por deserção, estando na base dessa decisão a falta de junção, pelos requerentes, do levantamento topográfico, o que contraria, claramente, a decisão de 09/06/2021, violando.

Se nos termos do despacho de 09/06/2021 os autos prosseguiriam sem a junção pelos requerentes do levantamento topográfico, posteriormente a instância não podia ser julgada extinta por deserção, com esse mesmo fundamento.

Como se afirma no Ac. do STJ de 14/05/2019, processo 3422/15.9T8LSB.L1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj “a genérica proibição de comportamentos contraditórios abrange igualmente o Estado-tribunal e que, nessa justa medida, estando o juiz vinculado, desde logo, pelas suas próprias decisões, deve ser coerente e consequente com a sua atividade pretérita, sendo que esta proibição mais não é do que uma manifestação do princípio da confiança que decorre, por sua vez, do princípio da segurança jurídica plasmado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

O despacho de 20/12/2021, que julgou deserta a instância, violou regra do esgotamento do poder jurisdicional o que, face ao acima exposto, determina a sua ineficácia e, na procedência do recurso, a sua revogação, devendo os autos prosseguir a partir do despacho de 09/06/2021, o qual decidiu que caso os requerentes não juntassem, no prazo de 10 dias, o levantamento topográfico, os “autos prosseguirão sem o mesmo”.

Importa, no entanto, ter em consideração que o citado despacho não concretiza os moldes em que os autos prosseguiriam sem a junção do levantamento topográfico pelos requerentes.

Impõe-se, portanto, que, em 1ª instância e à luz do disposto no n.º 1 do art.º 6º do CPC, sejam concretizados em que termos é que tal prosseguimento deve ocorrer.

4.2. Sequência

Seria caso de considerar prejudicada a questão da não verificação dos pressupostos da deserção.

Porém e porque se trata de razões materiais, proceder-se-á á sua análise, para que não restem dúvidas

4.3. Dos pressupostos da deserção
4.3.1. Enquadramento jurídico

O art.º 277º, alínea c), do CPC, consagra como uma das formas de extinção da instância a deserção.

A mesma é desenvolvida no n.º 1 do art.º 281º, o qual dispõe que considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

E o n.º 4 do mesmo normativo dispõe que a deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.

Relativamente aos fundamentos da deserção, afirmava Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, III, pág. 439:
“…liberta-se o tribunal de um peso morto, de um processo que estava parado (…); por via indirecta e reflexa estimulam-se as partes a ser diligentes e activas, pois a ameaça da extinção pode induzi-las a promover o seguimento do processo”.

E o Ac. da RL de 09/09/2014, processo 211/09.3TBLNH-J.L1-7,  em cujo sumário se afirma: “Na perspectiva de uma justiça célere e cooperada, prevê a lei mecanismos para obstar à eternização dos processos em tribunal, quando a parte se desinteressa da lide ou negligencia a sua actuação, não promovendo o andamento do processo quando lhe compete fazê-lo.”

E no Ac. do TC nº 604/2018, de 14/11/2018, consultável in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180604.html, considerou-se que subjacente à deserção da instância está “uma preocupação de celeridade processual e de maior auto-responsabilidade das partes no desenvolvimento da instância. O instituto da deserção da instância visa tutelar interesses de natureza pública: o regular funcionamento dos serviços judiciais e a celeridade processual. Por um lado, não é conveniente “à boa ordem dos serviços” que existam processos parados por tempo indefinido sem solução alguma; por outro, interessa que o processo seja organizado em termos de se chegar rapidamente à sua normal conclusão. Ora, a deserção é um modo de extinção da instância que pressupõe uma atitude negativa das partes: a inércia ou inatividade durante certo lapso de tempo (perempção). Nas situações em que sobre as partes impende o ónus de impulso processual, a ameaça de extinção da instância constrange-as a promover o seguimento do processo. Por isso, quanto mais curto o período de tempo de paragem de processo, por inércia das partes, maior é o risco de extinção do processo e consequentemente maior é o estímulo à atividade das partes.
A deserção tem assim um fundamento objetivo: é consequência da inércia das partes durante certo período de tempo, independentemente da sua vontade de renunciar ou abandonar o processo. Como refere Alberto Reis, «(a) perempção não é um efeito que a lei baseie na presunção de vontade de renúncia das partes ou no pressuposto de abandono do processo, justificação esta sugerida pelo dogma nefasto da vontade; é, em vez disso, uma caducidade que a lei faz derivar do simples facto objetivo da inércia processual na pendência da lide, em atenção ao ónus de atividade que incumbe às partes, e sem querer saber se estas têm vontade de que o efeito se produza» (ob. cit. pág. 437).”

E ainda o Ac. do STJ de 14/05/2019, processo 3422/15.9T8LSB.L1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj onde se afirma:
Esta forma de extinção da relação jurídico-processual (artigo 277.º, alínea c), do Código de Processo Civil), sem que ocorra pronunciamento sobre o mérito da causa, radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, encontrando a sua razão de ser no facto de não ser desejável, numa justiça que se pretende célere e cooperada, que os processos se eternizem em tribunal, quando a parte se desinteressa da lide ou negligencia a sua atuação, não promovendo o andamento do processo quando lhe compete fazê-lo.

São dois os pressupostos da deserção da instância: a) um de natureza objectiva - que o processo se encontre parado, a aguardar impulso processual das partes, há mais de seis meses; b) outro de natureza subjectiva - que essa paragem, se fique a dever a negligência das partes (cfr. Ac’s. do STJ de 05/07/2018, processo 105415/12.2YIPRT.P1.S1, de 02/05/2019, processo 1598/15.4T8GMR.G1.S2 e de 24/05/2022, processo 31/13.0TVLSB.L1.S1, consultáveis in www.dgsi.pt/jstj).

Quanto ao elemento do pressuposto objectivo - “impulso processual” - há que ter em consideração o disposto n.º 1 do art.º 6º do CPC, onde se dispõe que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

Decorre deste normativo que o ónus das partes, de impulsionar o processo, só existe quando estiver especialmente previsto na lei (como sucede com a habilitação de herdeiros e a constituição de novo advogado pelo autor, após a renúncia do anterior, nos casos em que seja obrigatória a constituição de advogado).

Onde ou quando não estiver especialmente imposto esse ónus, é ao juiz que cumpre dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, resolvendo, de acordo com as normas de direito processual e substantivo aplicáveis, as situações que se forem deparando.

Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, I, 3ª edição, pág. 22 “ao juiz cabe, em geral, a direcção formal do processo, nos seus aspectos técnicos e de estrutura interna. Esta direcção implica a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo, só excepcionalmente cabendo às partes o ónus de impulso processual subsequente, ligado ao princípio do dispositivo. A referência a que este ónus só existe quando uma lei especial o imponha foi introduzida na revisão do Código [de 1995] para afastar a ideia, anteriormente difundida na prática dos tribunais, de que o autor tinha constantemente de impulsionar o desenvolvimento do processo (…)”

E no mesmo sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, 2ª edição, pág. 348 referem (sublinhado nosso):
“A conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou atividade unicamente dependente da sua iniciativa, sendo o caso mais flagrante o da suspensão da instância por óbito de alguma das partes, a aguardar a habilitação dos sucessores.”

Se a lei não impuser especialmente às partes o ónus de impulsionar o processo, se o processo, por aplicação do direito processual ou substantivo, puder prosseguir sem a prática do acto pela parte (seja porque o tribunal o pode ordenar oficiosamente, seja porque sem o acto, a parte onerada sofrerá uma consequência desfavorável), cabe ao juiz dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere.

Em síntese e como se afirma no Ac. deste RG de 24/04/2019, processo 1923/15.8T8CHV-C. G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg:
“Para apurar se a parte deve praticar determinado ato há, por seu turno, que recorrer à lei: só quando a lei exige a prática de um ato concreto no processo é que se encontra um dever que a parte devia ter cumprido e não fez, não bastando a menção a um abstrato dever de promover a execução.”

Importa precisar que o “incumprimento da parte em sede do dever de apresentação de documento probatório poderá ter como consequência a condenação da parte faltosa em multa e ainda a livre apreciação do valor da recusa para efeitos probatórios, incluindo a inversão do ónus da prova. E, se o documento se destinar a demonstrar factos cujo ónus probatório incumba à própria parte que o não junte, será esta desfavorecida pela falta de prova desse facto, sem prejuízo de poder ser condenada como litigante má fé instrumental, nos termos do artigo 542.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC.” (cfr. Ac. do STJ de 03/0572018, processo 217/12.5TNLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

No mesmo sentido Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, 2ª edição, pág. 348 referem:
“O simples facto de, por exemplo, o juiz solicitar ao autor a junção de determinado documento, sem apontar qualquer consequência, não legitima que, através de um encadeamento de juízos, se extraia o efeito da deserção da instância, decorrido que seja o prazo de 6 meses ( cf. STJ 3-10-19, 1980/14, STJ 14-5-19, 3422/15 e STJ 3-5-18, 217/12); só a ordenada junção de documento essencial para o prosseguimento da acção (não de documento meramente probatório) poderá determinar a deserção (RP 4-2-19, 1082/10)…”

O prazo de seis meses conta-se da data da notificação do despacho que alerte a parte para a necessidade de impulso processual (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, I, 3ª edição, pág. 557).

Quanto ao elemento subjectivo, haverá negligência desde que, por um lado, a parte seja advertida, “alertada”, das consequências da falta de impulso processual e a mesma esteja em condições de praticar o acto.

Se a parte, por algum factor externo, isto é, imputável a terceiro, devidamente demonstrado, não estiver em condições de praticar o acto, não se poderá falar em negligência, o que, naturalmente, carece de ser aferido caso a caso e mediante invocação e demonstração da parte onerada com o impulso processual, antes do decurso do prazo de seis meses.

No sentido referido (todos os Ac´s citados são consultáveis in www.dgsi.pt/jstj):
- o Ac STJ 20/09/2016, processo 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1 em cujo sumário consta: V. A negligência a que se refere o nº 1 do art. 281º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente); VI. Tal negligência só deixa de estar constituída quando a parte onerada tenha mostrado atempadamente estar impossibilitada de dar impulso ao processo.
- Ac. do STJ de 14/12/2016, processo 105/14.0TVLSB.G1.S1 em cujo sumário consta: II - Impendendo sobre as partes que sobreviveram ou a qualquer dos sucessores o ónus do impulso processual, cumpre-lhes levar ao processo as circunstâncias que levam o Tribunal a considerar que ocorre situação justificativa de que não se considere verificada inércia negligente.
- Ac. do STJ de 31/01/2023, processo 18932/16.2T8LSB.L3.S1, em cujo texto se afirma: “O tribunal não tem de ouvir previamente as partes sobre a verificação ou não dos pressupostos da deserção da instância. A parte a quem compete impulsionar o processo é que deve, antes de esgotado o prazo da deserção, alegar e demonstrar as razões de facto justificativas da falta de impulso processual.”

Nada sendo invocado, ter-se-á por verificada a negligência pois a lei, ao impor à parte o ónus de impulsionar o processo, presume que a mesma está em condições de o fazer; e tendo a mesma sido, oportunamente, advertida das consequências da falta de impulso processual, fica, necessariamente, advertida da necessidade de dar a conhecer ao tribunal quaisquer circunstâncias impeditivas de conferir impulso ao processo, não carecendo, por isso, de ser ouvida previamente à declaração da deserção.

Como referido no sumário do Ac. do STJ de 05/07/2018, processo 5314/05.0TVLSB.L1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj, a “aferição da negligência da parte, enquanto pressuposto da deserção da instância, deve ser feita em face dos elementos que constam do processo, pelo que inexiste fundamento para a respectiva decisão ser precedida de audiência prévia das partes.”

E também no Ac. do STJ de 18/09/2018, processo 2096/14.9T8LOU-D.P1.S1, consultável no mesmo sitio e onde se ponderou que tendo a parte sido advertida de que a instância estava suspensa (em virtude do óbito de uma das partes), “sem prejuízo do disposto no artigo 281.º, n.º 5, do CPC” e que a mesma sabia “que a sua inércia conduziria à deserção da instância”, não era exigível ao tribunal determinar a notificação da parte antes de proferir o despacho a declarar extinta a instância.          

E no Ac. do TC nº 604/2018, de 14/11/2018, consultável in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180604.html (sublinhado nosso): “Não é qualquer paralisação que causa a deserção, mas apenas a que resulta de um ato que só as partes estão em condições de praticar. A deserção não prescinde, pois, do nexo entre a paragem do processo e a não atuação do ónus de impulso processual que recai sobre as partes e da negligência destas no que a tal omissão respeita. Deste modo, as partes têm sempre a possibilidade de demonstrar no processo que a paragem se deve a causas estranhas à sua vontade, por resultar de facto de terceiro, do tribunal ou de força maior que as impede de praticar o ato em falta. Tal como ocorre no caso paralelo de justo impedimento (artigo 140.º do CPC), as partes oneradas com o impulso processual podem atempadamente informar e mostrar as razões de facto que justificam a ausência do seu impulso processual, contrariando a situação de negligência. O comportamento omissivo das partes é apreciado e valorado por ato do juiz, pois a deserção não se produz automaticamente pelo decurso do prazo de seis meses; depende de declaração judicial que avalia se a paragem do processo resulta efetivamente de negligência das partes em promover o seu andamento e se estão preenchidos os demais pressupostos da deserção. Por isso, a existência de um impedimento à satisfação do ónus de impulso processual pode afastar o juízo de negligência sobre a conduta das partes.”

4.3.2. Em concreto

Resulta dos autos que a 07/11/2019 foi ordenada a realização de uma perícia “em face das divergências das partes quanto às configurações do prédio em causa e benfeitorias nele implementadas, quanto ao artº ...”.

A Sra. Perita designada veio dizer que “para responder à matéria constante dos requerimentos, torna-se necessário que me seja fornecido Levantamento Topográfico em formato papel e em formato digital do prédio rústico ... da freguesia ..., concelho ....”

Foi ordenada a notificação das partes para “se pronunciarem sobre o solicitado pela Perita”.

Os requeridos requereram a junção aos autos do levantamento topográfico do prédio rústico ...76... da freguesia ..., concelho ....

Os requerentes disseram que não dispunham de nenhum levantamento topográfico, e que o junto pelos Requeridos, não retrata a situação real, não estando as áreas correctas.

A 04/05/2020  foi proferido despacho que, no que ora releva, tem o seguinte teor: “… considerando que os autos não podem ficar no impasse, notifique os autores para informarem se aceitam o levantamento topográfico apresentado nos autos pelos réus, ou alegarem e/ou requererem o que tiverem por conveniente, no prazo de dez dias, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção, nos termos previstos no artigo 281.º, do CPC.”

Os requerentes disseram que o levantamento topográfico apresentado não está correcto quanto às áreas e requereram o prazo de 15 dias para mandar fazer e apresentar levantamento topográfico, o que foi deferido.

A 17/09/2020 os requerentes requereram mais 5 dias para apresentar o levantamento topográfico, o que foi deferido, consignando-se que seria “pela última vez.”

Porém, os requerentes nada disseram ou requereram.

A 03/11/2020 foi proferido o seguinte despacho:
Aguardem os autos o decurso do prazo a que se refere o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Notifique os autores do teor do presente despacho.

Entretanto a 06/05/2021 os requerentes requereram um prazo de 30 dias para juntar aos autos levantamento topográfico.

O requerido foi indeferido por despacho de 09/06/2021.

Mas contraditoriamente, inclusive com o despacho de 17/09/2020, em que se consignou que era a última vez que era deferido um prazo para os requerentes juntarem o levantamento topográfico, foi-lhe concedido um novo prazo de 10 dias.

Além disso, o tribunal nada disse quanto ao requerido pelos recorridos: que o Sr. Perito se socorresse do levantamento topográfico junto pelos mesmos.

A 30/09/2021 foi ordenada a notificação das partes “para, querendo, em dez dias, se pronunciarem quanto à ausência de impulso processual”, tendo os requeridos requerido o prosseguimento dos autos apenas com o levantamento topográfico junto pelos mesmos e os requerentes, que “apresentarão o levantamento topográfico em dez dias.”

Até que a 20/12/2021 foi proferido o seguinte despacho.
Despachos de 2020.11.03 (Ref.ª ...72), de 2021.06.09 (Ref.ª ...37) e de 2021.09.30 (Ref.ª ...01) e respectivas notificações:
Nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1 do CPC, face à ausência de impulso processual, e à postura das partes, mormente dos autores, por referência aos despachos supra mencionados, declara-se a presente instância deserta.

Não podemos deixar de observar que não é expressa a razão concreta pela qual foi decretada a deserção da instância, pois este despacho limita-se a um conjunto de referências vagas e genéricas “…à ausência de impulso processual, e à postura das partes, mormente dos autores, por referência aos despachos supra mencionados…”.

Só através da análise dos despachos citados é que se alcança que o que esteve na base da decisão impugnada, foi o facto de os requerentes nunca terem junto o levantamento topográfico.

Entrando na verificação dos pressupostos da deserção, é patente e manifesto que os autos não estiveram (não têm estado) parados a aguardar o impulso processual das partes, nomeadamente dos requerentes, antes sendo da actividade do tribunal que dependia o seu regular desenvolvimento.

E isto porque, desde logo, a junção, pelos requerentes, de um levantamento topográfico, não constitui um ónus processual dos mesmos, sequer um ónus especialmente previsto na lei, para impulsionar o processo.

Não decorre directamente de qualquer norma legal que a junção de um levantamento topográfico pelos requerentes, na sequência do solicitado pela Sra. Perita, seja necessário para o impulso processual (ainda que o mesmo encontre abrigo no princípio da cooperação – art.º 7º do CPC), ainda para mais quando, ab initio, os requerentes declararam não o possuir.

Além disso, a obtenção do levantamento topográfico não estava dependente da estrita iniciativa dos requerentes ou, dito de outra forma, para a sua obtenção não era imprescindível a actuação dos requerentes.

Note-se que estava em causa um elemento que a Sra. Perita entendeu ser necessário para realizar a perícia e, nesse sentido e no uso dos poderes que a lei lhe confere (cfr. art.º 481º, n.º 1 do CPC,  o qual dispõe que “Os peritos podem socorrer-se de todos os meios necessários ao bom desempenho da sua função, podendo solicitar a realização de diligências ou a prestação de esclarecimentos, ou que lhes sejam facultados quaisquer elementos constantes do processo”), solicitou que lhe fosse fornecido.

Além disso, tendo sido solicitado pela Sra. Perita, para dar resposta às questões que lhe foram colocadas, sendo, portanto, um documento necessário para a realização da perícia e que passaria a integrar a mesma, está necessariamente em causa um documento com relevância probatória indirecta, não estando sequer excluído que o mesmo fosse susceptível de constituir, de per si, prova de factos relevantes para a boa decisão da causa quanto ao prédio inscrito na matriz sob o art.º ...76....

A situação de “impasse” (expressão utilizada no despacho de 04/05/2020) (e que bem se podia manter, caso os requerentes tivessem apresentado um levantamento topográfico que não coincidisse com o dos requeridos), podia e devia ser resolvida pelo tribunal, como determinado pelo n.º 1 do art.º 6º do CPC, fosse:
a) considerando que a Sr.ª Perita, no uso dos poderes que lhe são conferidos pelo art.º 481º n.º 1 do CPC, podia, não tendo competências para realizar ela própria o levantamento topográfico, solicitar a colaboração de terceiros (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC anotado, 3ª edição, pág. 333) para o fazer, apresentando, posteriormente, o respectivo custo;
b) ordenando, oficiosamente, a realização do solicitado levantamento topográfico, a fim de dissipar todas as dúvidas e, em função do resultado do mesmo, julgar, à luz do princípio da boa fé, a actuação dos requerentes ao colocarem em crise o levantamento topográfico junto pelos requeridos;
c) ou, no limite, determinando que os autos prosseguissem apenas com o levantamento topográfico junto pelos requeridos, aqui recorrentes, como requerido pelos mesmos, tendo em consideração que, se por um lado, os requerentes colocaram em causa tal levantamento topográfico, por outro lado, a seu pedido, foram-lhes concedidas diversas e sucessivas oportunidades para juntar um levantamento topográfico, que os mesmos, por diversas vezes declararam pretender juntar, nunca o tendo feito, sofrendo, assim as consequências, eventualmente desfavoráveis, por não terem concorrido para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio, ou seja, por terem violado o principio da cooperação.

Cabe recordar estar constitucionalmente consagrado o direito a uma tutela jurisdicional efectiva, princípio contido nos n.ºs 4 e 5 do art.º 20º da CRPortuguesa, o qual se desdobra em vários direitos, sendo um deles o direito ao processo e a um processo equitativo, como consagra o n.º 4 do art.º 20º da mesma CRP.

E direito ao processo, enquanto emanação do direito à tutela jurisdicional efectiva, impõe a prevalência da justiça material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a capa de “requisitos processuais”, se manifeste numa decisão que, afinal, não consubstancia mais de que uma denegação de justiça (cfr. Rui Medeiros, CRP Anotada, Universidade Católica Editora, Volume I, anotação ao art.º 20º, pág. 321) ou, dito de outra forma, impõe que o processo permita, na medida do possível, alcançar a solução concreta do litígio, que o processo seja um efectivo meio de realização do Direito e da Justiça.

Importa notar que nem o despacho de 04/05/2020 – que ordena a notificação dos requerentes (sublinhado nosso) “para informarem se aceitam o levantamento topográfico apresentado nos autos pelos réus, ou alegarem e/ou requererem o que tiverem por conveniente, no prazo de dez dias, sem prejuízo do decurso do prazo de deserção, nos termos previstos no artigo 281.º, do CPC” -  nem o despacho de 03/11/2020 – que determinou que os autos aguardassem “ o decurso do prazo a que se refere o artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil “ - não encerram qualquer caso julgado formal, no sentido de impor a subsequente declaração da deserção da instância, nem a imposição da respectiva cominação seria susceptível de recurso, o qual só cabe do despacho que julga verificada a deserção  (neste sentido cfr. Ac. do STJ de 03/05/2018, processo 217/12.5TNLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

A concreta verificação dos pressupostos da deserção da instância só é possível relativamente ao despacho que julga deserta a instância, ou seja, ao despacho de 20/12/2021.

E, pelas razões expostas, não se verifica, desde logo, o pressuposto da falta de impulso processual das partes, razão também pela qual a decisão não se podia manter, devendo ser revogada.

4.4. Custas

Dispõe o art.º 527º n.º 1 do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

E o n.º 2 dispõe que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

Os recorrentes obtiveram vencimento no recurso.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Destarte as custas ficam a cargo dos recorrentes de acordo com o critério do proveito – art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

5. Decisão

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção da Relação de Guimarães em revogar o despacho de 20/12/2021, determinando o prosseguimento dos autos a partir do despacho de 09/06/2021, concretizando a 1ª instância os termos em que os autos devem prosseguir sem a junção do levantamento topográfico pelos requerentes.

Custas pelos recorrentes – art.º 527º n.º 1 e 2 do CPC
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Notifique-se
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Guimarães, 14/09/2023
(O presente acórdão é assinado electronicamente) 
           
Relator: José Carlos Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Morais
Maria João Matos